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terça-feira, 23 de agosto de 2011

Celso, Tácito e o Talmude judaico: fontes anticristãs.

No ano 66 d.C., os judeus da Palestina iniciaram uma revolta contra o governo romano que, para dizer o mínimo, não agradou aos romanos. O imperador enviou tropas lideradas pelo general Vespasiano para conter a rebelião e retomar o controle das áreas rebeldes. Em 67, Vespasiano liderou um cerco à cidade rebelde de Jotapata, na Galiléia. No 47º dia daquele cerco, um jovem revolucionário judeu optou por entregar-se ao exército romano, muito superior, em vez de cometer suicídio — um destino que muitos de seus compatriotas haviam escolhido. Aquele jovem recebeu o favor de Vespasiano e, depois, foi levado a Roma pelo general Tito, filho de Vespasiano; mais tarde, Tito destruiu Jerusalém e o templo judeu no ano 70 d.C.

Aquele jovem era Flávio Josefo (c. 37-100 d.C.) que, por fim, tornou-se o maior historiador judeu de sua época. Josefo começou a escrever documentos históricos em Roma, enquanto trabalhava como historiador do imperador romano Domiciano. Foi ali que escreveu sua autobiografia e duas obras históricas importantes. Uma dessas obras é sua atualmente famosa Antiguidades dos judeus [publicada em português pela CPAD], concluída por volta do ano 93. No livro 18, capítulo 3, seção 3 dessa obra, Josefo, que não era cristão, escreveu estas palavras:

Nessa época [a época de Pilatos], havia um homem sábio chamado Jesus. Sua conduta era boa e [ele] era conhecido por ser virtuoso. Muitos judeus e de outras nações tornaram-se seus discípulos. Pilatos condenou-o à crucificação e à morte. Mas aqueles que se tornaram seus discípulos não abandonaram seu discipulado, antes relataram que Jesus havia reaparecido três dias depois de sua crucificação e que estava vivo; por causa disso, ele talvez fosse o Messias, sobre quem os profetas contaram maravilhas.

Essa não foi a única menção feita a Jesus por Josefo. Em outra passagem das Antiguidades dos judeus, Josefo revelou de que maneira o novo sumo sacerdote dos judeus (Ananus, o jovem) valeu-se de um hiato no governo romano para matar Tiago, o irmão de Jesus. Isso aconteceu no ano 62, quando o imperador romano Festo morreu repentinamente durante seu ofício. Três meses se passaram até que seu sucessor, Albino, pudesse chegar à Judéia, abrindo um grande espaço de tempo para que Ananus realizasse seu trabalho sujo. Josefo descreve o incidente da seguinte maneira:

Festo está morto, e Albino está a caminho. Assim, ele [Ananus, o sumo sacerdote] reuniu o Sinédrio dos juízes e trouxe diante deles o irmão de Jesus, que era chamado Cristo, cujo nome era Tiago, e alguns outros [ou alguns de seus companheiros] e, quando havia formulado uma acusação contra eles como transgressores da lei, ele os entregou para que fossem apedrejados.

Temos aqui não apenas outra referência do século I feita a Jesus, mas a confirmação de que tinha um irmão chamado Tiago que, obviamente, não era benquisto pelas autoridades judaicas. Poderia ser o caso de Tiago ter sido martirizado por ser ele o líder da igreja de Jerusalém, como o NT deixa implícito?

Quantas fontes não-cristãs fazem menção a Jesus? Incluindo Josefo, existem dez outros escritores não-cristãos conhecidos que mencionam Jesus num período de até 150 anos depois de sua morte Por outro lado, nesses mesmos 150 anos, existem nove fontes não-cristãs que mencionam Tibério César, o imperador romano dos tempos de Jesus. Assim, descontando todas as fontes cristãs, em relação ao imperador romano existe uma fonte a mais que menciona Jesus. Se você incluir as fontes cristãs, os autores que mencionam Jesus superam aqueles que mencionam Tibério numa proporção de 43 para 10!

Algumas dessas fontes não-cristãs — como Celso, Tácito e o Talmude judaico — poderiam ser consideradas como fontes anticristãs. Embora essas obras não tenham uma testemunha ocular sequer que contradiga os fatos descritos nos documentos do NT, foram escritas por autores claramente anticristãos. O que podemos aprender nos baseando neles e nas fontes não-cristãs mais neutras? Aprendemos que admitem certos fatos sobre o cristianismo primitivo que nos ajudam a formar uma narrativa que é surpreendentemente congruente com o NT. Reunindo todas as dez referências não-cristãs, vemos que:

1. Jesus viveu durante o tempo de Tibério César.

  1. Ele viveu uma vida virtuosa.
  2. Realizou maravilhas.
  3. Teve um irmão chamado Tiago.
  4. Foi aclamado como Messias.
  5. Foi crucificado a mando de Pôncio Pilatos.
  6. Foi crucificado na véspera da Páscoa judaica.
  7. Trevas e um terremoto aconteceram quando ele morreu.
  8. Seus discípulos acreditavam que ele ressuscitara dos mortos.
  9. Seus discípulos estavam dispostos a morrer por sua crença.
  10. O cristianismo espalhou-se rapidamente, chegando até Roma.
  11. Seus discípulos negavam os deuses romanos e adoravam Jesus como Deus.

À luz dessas referências não-cristãs, a teoria de que Jesus nunca existiu é claramente injustificável. De que maneira escritores não-cristãos poderiam juntos revelar uma narrativa congruente com o NT se Jesus nunca tivesse existido?

Mas as implicações vão muito além disso. O que isso nos fala sobre o NT?

Diante de tal fato, as fontes não-cristãs confirmam o NT. Embora os autores não-cristãos não digam que acreditam na ressurreição de Jesus, eles relatam que os discípulos certamente acreditavam nela.

Uma vez que a existência de Deus e a possibilidade de milagres são firmemente estabelecidas por meio da revelação natural — como já demonstramos e a história geral de Cristo e da igreja primitiva é confirmada por meio de fontes não-cristãs, será que os milagres de Cristo realmente aconteceram como os discípulos afirmam? Os documentos do NT registram a história real? Poderia ser o caso de esses documentos não serem textos religiosos puramente tendenciosos, cheios de mitos e fábulas — como muitos em nosso mundo moderno afirmam — mas, em vez disso, documentos que descrevem eventos que realmente aconteceram cerca de 2 mil anos atrás? Se é assim, estaremos na direção certa na nossa busca para saber qual religião teísta é verdadeira.

Para verificar se o NT é um registro fidedigno da história, precisamos responder a duas perguntas em relação aos documentos que compõem o NT:

  1. Temos cópias precisas dos documentos originais que foram escritos no século I?
  2. Esses documentos falam a verdade?

Para que se possa acreditar na mensagem do NT, essas duas perguntas precisam ser respondidas de maneira afirmativa. Não basta simplesmente apresentar evidências de que possuímos cópias precisas dos documentos originais do século I (pergunta 1), porque tais documentos poderiam contar mentiras. Devemos ter uma cópia precisa dos documentos e termos razões para acreditar que esses documentos descrevem aquilo que realmente aconteceu cerca de 2 mil anos atrás (pergunta 2). Vamos começar com a pergunta número 1.

Temos certeza de que você se lembra da brincadeira infantil chamada “telefone sem fio”. Era uma brincadeira na qual uma criança recebe uma mensagem verbal para passar à próxima criança, que passa aquilo que ouviu à criança seguinte, e assim por diante. Quando a mensagem chega à última criança na seqüência, ela é uma péssima representação daquilo que a primeira criança ouviu. Para o observador comum, esse parece ser o mesmo tipo de distorção que poderia ter infectado documentos que foram transmitidos de geração a geração num espaço de 2 mil anos.

Felizmente o NT não foi transmitido dessa maneira. Uma vez que não foi contado a uma pessoa, que o contou a outra, e assim por diante, a brincadeira do telefone não se aplica. Várias pessoas testemunharam acontecimentos do NT de modo independente, muitas das quais os registraram em sua memória, e nove dessas testemunhas oculares/contemporâneas registraram suas observações por escrito.

Neste momento, precisamos esclarecer um conceito errado muito comum sobre o NT. Quando falamos dos documentos do NT, não estamos falando de um único texto, mas de 27 textos. Os documentos do NT são 27 documentos diferentes, escritos em 27 rolos diferentes, por nove autores, num período de 20 a 50 anos. Esses textos específicos desde então foram reunidos em um único livro que hoje chamamos Bíblia. Desse modo, o NT não é uma fonte única, mas uma coleção de fontes.

Existe apenas um problema: até agora, nenhum dos documentos escritos originais do NT foi descoberto. Temos apenas cópias dos textos originais, chamados manuscritos. Isso pode nos impedir de saber o que diziam os originais?

De modo algum. De fato, toda literatura significativa do mundo antigo é reconstituída à sua forma original ao se comparar os manuscritos que sobreviveram. Para reconstruir-se o original, é muito útil termos um grande número .de manuscritos produzidos não muito tempo depois do original. Maior quantidade de manuscritos e manuscritos antigos normalmente nos dão um testemunho mais confiável e geram condições para uma reconstrução mais precisa.

Como os documentos do NT se saem nesse aspecto? Muito bem, melhor do que qualquer outro material do mundo antigo. De fato, os documentos do NT possuem mais manuscritos, manuscritos mais antigos e manuscritos mais abundantemente apoiados do que as dez melhores peças da literatura clássica combinadas. Veja a seguir o que queremos dizer com isso.

Mais manuscritos. De acordo com a última contagem, existem cerca de 5.700 manuscritos gregos do NT escritos à mão. Além disso, existem mais de 9 mil manuscritos em outras línguas (e.g., siríaco, copta, latim, árabe). Alguns desses quase 15 mil manuscritos são bíblias completas, outros são livros ou páginas, e somente alguns são apenas fragmentos. Como mostrado na figura 9.1, não existe nada no mundo antigo que sequer se aproxime disso em termos de apoio a manuscritos. A obra mais próxima é a llíada, de Homero, com 643 manuscritos. A maioria das outras obras antigas sobrevive com pouco mais de uma dúzia de manuscritos. Contudo, poucos historiadores questionam a historicidade dos eventos que essas obras registram.

Manuscritos mais antigos. O NT não apenas desfruta de um amplo apoio dos manuscritos, como também possui manuscritos que foram escritos logo depois dos originais. O mais antigo e incontestável manuscrito é um segmento de João 18.31-33,37,38, conhecido como fragmento John Rylands (porque está na Biblioteca John Rylands, em Manchester, Inglaterra). Os estudiosos datam esse documento como tendo sido escrito entre 117 e 138 d.e, mas alguns dizem que ele é ainda mais antigo. O fragmento foi encontrado no Egito próximo ao mar Mediterrâneo, e seu provável local de composição foi a Ásia Menor — demonstrando que o evangelho de João foi copiado e levado a lugares distantes logo no início do século 11.

Existem nove fragmentos discutíveis, ainda mais antigos que o fragmento John Rylands, que datam do período que vai do ano 50 ao 70 d.e, encontrados com os Manuscritos do mar Morto. Alguns estudiosos acreditam que esses fragmentos são parte de seis livros do NT, incluindo Marcos, Atos, Romanos, 1 Timóteo, 2Pedro e Tiago. Embora outros estudiosos resistam a essa conclusão (talvez porque admitir isso seria uma afronta à sua inclinação liberal de que o NT foi escrito posteriormente), eles não encontraram nenhum outro texto que não fosse do NT ao qual esses fragmentos pudessem pertencer.

CONFIABILIDADE DO NOVO TESTAMENTO QUANDO COMPARADO COM OUTROS DOCUMENTOS ANTIGOS

Os fragmentos foram encontrados numa caverna que, anteriormente, fora identificada como uma que possuía material cuja datação variava de 50 a.C. a 50 d.C. O primeiro estudioso a identificar esses fragmentos antigos como livros do NT foi José O’Callahan, um destacado paleógrafo espanhol. O New York Times reconheceu as implicações da teoria de O’Callahan ao admitir que, se eles fossem verdadeiros, “então provariam que pelo menos um dos evangelhos — o de S. Marcos — foi escrito apenas alguns anos depois da morte de Jesus”.

Mas mesmo que não fossem fragmentos verdadeiros do NT e se o fragmento John Rylands fosse realmente o mais antigo, o espaço de tempo entre o original e a primeira cópia ainda existente é muitas vezes menor do que qualquer outro do mundo antigo. A Ilíada tem o segundo menor espaço, que é de cerca de 500 anos. A maioria das outras obras antigas está distante mil anos ou mais do original. O espaço do NT, de cerca de 25 anos, pode ser menor (isso não significa que não tenha havido outros manuscritos entre o original e a primeira cópia; eles certamente existiram. Isso simplesmente significa que esses manuscritos deterioraram-se, foram destruídos ou até mesmo não foram descobertos ainda).

Qual é a idade do mais antigo manuscrito de um livro completo do NT?

Manuscritos que formam livros inteiros do NT sobreviveram a partir do ano 200 d.C. E quanto aos mais antigos manuscritos do NT completo? A maioria dos manuscritos do NT, incluindo os quatro evangelhos, sobrevive desde o ano 250, e um manuscrito do NT (incluindo um Antigo Testamento em grego), chamado Códice Vaticano, sobrevive desde o ano 325. Vários outros manuscritos completos sobrevivem desde aquele século. Esses manuscritos possuem ortografia e pontuação características que sugerem ser parte de uma família de manuscritos que pode ter sua origem entre 100 e 150 d.C.

Se esses numerosos e antigos manuscritos fossem tudo o que os estudiosos possuíssem, poderiam reconstruir o NT original com grande precisão. Mas eles também possuem abundantes evidências de apoio do mundo antigo que fazem a reconstituição do NT ser ainda mais precisa. Vamos analisar isso a seguir.

Grande quantidade de manuscritos de apoio. Começando em fevereiro do ano 303 d.C., o imperador romano Diocleciano promulgou três editos de perseguição aos cristãos porque acreditava que a existência do cristianismo estava rompendo a aliança entre Roma e seus deuses. Os editos pediam a destruição das igrejas, dos manuscritos e de livros, assim como a morte dos cristãos.

Centenas, se não milhares, de manuscritos foram destruídos por todo o Império Romano durante essa perseguição, que durou até o ano 311. Mas mesmo que Diocleciano tivesse sido bem-sucedido em varrer da face da Terra todos os manuscritos bíblicos, ele não poderia ter destruído nossa capacidade de reconstruir o NT. Por quê? Porque os pais da igreja primitiva — homens dos séculos 11 e 111 como Justino Mártir, Ireneu, Clemente de Alexandria, Orígenes, Tertuliano e outros — fizeram tantas citações do NT (36.289 vezes, para ser exato) que todos os versículos do NT, com exceção de apenas 11, poderiam ser reconstituídos simplesmente de suas citações. Em outras palavras, você poderia ir até a biblioteca pública, analisar as obras dos pais da igreja primitiva e ler praticamente todo o NT simplesmente com base nas citações que eles fizeram! Desse modo, nós não apenas temos milhares de manuscritos, mas milhares de citações desses manuscritos. Isso torna a reconstrução do texto original praticamente precisa.

Mas quão precisa? Como os originais são reconstruídos e quão preciso é este NT reconstruído?

Como o original é reconstruído?

Esses três fatos — manuscritos em quantidade, antigos e de apoio — ajudam os estudiosos a reconstruírem os manuscritos originais do NT de maneira bem fácil. O processo de comparar muitas cópias e citações fornece uma reconstrução extremamente precisa do original, mesmo que erros fossem cometidos durante a cópia. Como isso funciona? Considere o exemplo a seguir. Suponha que tenhamos quatro diferentes manuscritos, os quais possuem quatro erros diferentes no mesmo versículo, como Filipenses 4.13 (“Tudo posso naquele que me fortalece”). Vejamos as quatro cópias hipotéticas:

  1. Tudo posso naquele que me fortalece
  2. Tudo posso naquele que me fortalece
  3. Tudo posso naquele que me fortalece
  4. Tudo posso naquele que me fortalece

Há algum mistério em relação àquilo que o original dizia? De modo algum.

Pelo processo de comparação e de verificação cruzada, o NT original pode ser reconstruído com grande precisão. A reconstrução do NT é ainda mais fácil que isso, porque existem muito menos erros nos manuscritos verdadeiros do NT do que os que foram representados nesse exemplo.

Vamos presumir por um instante que o NT seja realmente a palavra de Deus.

Os céticos podem perguntar: “Bem, se o NT é realmente a palavra de Deus, então por que Deus não preservou o original?”. Só podemos especular aqui, mas uma possibilidade é porque sua palavra pode ser melhor protegida por meio de cópias do que por meio de documentos originais. Como assim? Porque, se o original estivesse de posse de alguma pessoa, essa pessoa poderia alterá-lo. Mas, se houvesse cópias espalhadas por todo o mundo antigo, não haveria maneira de um escriba ou sacerdote alterar a palavra de Deus. Como vimos, o processo de reconstrução permite que variantes e alterações nas cópias sejam identificadas e corrigidas de maneira bastante simples. Desse modo, ironicamente, o fato de não existirem originais pode preservar a palavra de Deus de uma maneira melhor do que se eles existissem.

Quão precisa é esta reconstrução?

Com o objetivo de abordar a questão da precisão, temos de esclarecer alguns mal-entendidos de muitos críticos em relação a “erros” nos manuscritos bíblicos. Alguns já chegaram a estimar que existem cerca de 200 mil erros nos manuscritos do NT. Primeiro de tudo, eles não são “erros”, mas leituras variantes, a maioria das quais de natureza estritamente gramatical (i.e., pontuação e ortografia). Segundo, essas leituras estão espalhadas por cerca de 5.700 manuscritos, de modo que a variação na ortografia de uma letra de uma palavra em um versículo em 2 mil manuscritos é considerada 2 mil “erros”.

Os especialistas em texto Westcott e Hort estimam que apenas uma em cada 60 dessas variantes tem significância. Isso levaria a um texto com grau de pureza de 98,33%. Philip Schaff calculou que, das 150 mil variantes conhecidas em seus dias, somente 400 mudaram o significado da passagem, apenas 50 foram de real importância e nem mesmo uma sequer afetou “um artigo de fé ou um preceito de obrigação que não seja abundantemente apoiado por outras passagens indubitáveis ou pelo sentido geral do ensinamento das Escrituras”.

Nenhum outro livro antigo é tão bem autenticado. O grande estudioso do NT e professor da Universidade de Princeton, Bruce Metzger, estimou que o Mahabharata, do hinduísmo, foi copiado com apenas 90% de precisão e que a Ilíada de Homero, com cerca de 95%. Por comparação, ele estimou que o NT é cerca de 99,5% preciso. I? Mais uma vez, o 0,5% em questão não afeta uma única doutrina da fé cristã.

Fredric Kenyon, autoridade em manuscritos antigos, resumiu muito bem a situação do NT quando escreveu:

Não se pode afirmar com plena firmeza que, em substância, o texto da Bíblia seja inquestionável. Em especial, essa é a situação do Novo Testamento. O número de manuscritos do NT, de traduções antigas dele e de suas citações pelos antigos autores da igreja é tão grande que é praticamente certo que a verdadeira leitura de toda passagem dúbia esteja preservada em uma ou outra dessas autoridades antigas. Não se pode dizer isso em relação a nenhum outro livro antigo do mundo.

Desse modo, sabemos que possuímos o mesmo NT que foi escrito 2 mil anos atrás. Mas a pergunta seguinte é ainda mais importante: Temos uma cópia precisa da verdade — ou uma mentira? Em outras palavras, o NT é historicamente confiável?

O NT É HISTORICAMENTE CONFIÁVEL?

Quando fazemos a pergunta “O NT é historicamente confiável?”, estamos procurando descobrir se os principais fatos descritos nos documentos do NT realmente aconteceram. Especificamente, houve realmente um homem judeu, há cerca de 2 mil anos, chamado Jesus que ensinou profundas verdades, realizou milagres, foi crucificado pelas autoridades romanas e judaicas por se dizer Deus, que apareceu a muitas testemunhas depois de ter ressuscitado três dias após sua morte?

É importante manter em mente que, nesse ponto, não estamos buscando saber se o NT não possui erros ou se ele é a “palavra de Deus”. Estamos simplesmente tentando descobrir se a narrativa básica é fato, e não ficção. Com o objetivo de descobrir isso, precisamos averiguar que tipos de registros compreendem o NT. Eles são documentos escritos por testemunhas oculares (ou por aqueles que entrevistaram testemunhas oculares) logo depois dos acontecimentos, ou são documentos escritos muito depois, por seguidores tendenciosos que simplesmente embelezaram detalhes sobre a vida de uma personagem histórica real?

Com o objetivo de descobrir isso, nos capítulos seguintes vamos testar os documentos do NT pelo critério que os historiadores freqüentemente usam para determinar se devemos acreditar ou não em determinado documento histórico. Vamos nos referir a esse critério como “testes históricos”. São eles:

  1. Temos um testemunho antigo? De modo geral, quanto mais antigas as fontes, mais preciso é o seu testemunho.
    1. Temos o depoimento de testemunhas oculares? O depoimento das testemunhas oculares normalmente é o melhor meio de estabelecer o que realmente aconteceu.
    2. Temos o depoimento de testemunhas oculares múltiplas e independentes? Testemunhas oculares múltiplas e independentes confirmam que os fatos realmente aconteceram (eles não são ficção) e dão detalhes adicionais que uma única fonte poderia perder (fontes verdadeiramente independentes normalmente contam a mesma história básica, mas com detalhes diferentes. Os historiadores às vezes chamam isso de “coerência com dissimilaridade”) .
    3. As testemunhas oculares são dignas de confiança? Devemos acreditar nelas? O caráter é muito importante.
    4. Temos evidências corroborantes da arqueologia ou de outros autores? Isso traz confirmação adicional.
      1. Temos algum testemunho de algum oponente? Se os oponentes das testemunhas oculares admitem certos fatos que as testemunhas afirmam ser verdadeiros, então tais fatos provavelmente são verdadeiros (se a sua mãe diz, por exemplo, que você é corajoso, isso pode ser verdadeiro; contudo, é provavelmente mais digno de crédito se o seu arquiinimigo disser a mesma coisa).
      2. O testemunho contém fatos ou detalhes que são embaraçosos para os autores? Uma vez que a maioria das pessoas não gosta de registrar informação negativa sobre si mesmas, qualquer testemunho que faça o autor parecer ruim é provavelmente verdadeiro.

Na maioria dos casos, os documentos que satisfazem a maioria ou todos esses testes históricos são considerados confiáveis ainda que com pequena margem de dúvida. Como se saem os documentos do NT? Vamos descobrir neste capítulo e nos três seguintes. Contudo, antes de começarmos o teste histórico número 1 (testemunho antigo), precisamos esclarecer algumas objeções que impedem muitos céticos de até mesmo considerarem a confiabilidade do NT.

Objeções comuns à confiabilidade

A história não pode ser conhecida. O mais recente argumento gerado contra a possibilidade de se considerar a confiabilidade dos documentos do NT é a afirmação de que a história não pode ser conhecida. Ironicamente, essa objeção normalmente vem das mesmas pessoas que dizem saber que a primeira vida foi gerada espontaneamente com base em elementos químicos inorgânicos e que toda a vida subseqüente evoluiu daquela primeira vida, sem nenhuma intervenção inteligente. Eles estão absolutamente seguros sobre essa história a despeito do fato de que não existem testemunhas oculares ou dados corroborantes desses acontecimentos. Contudo, afirmam que a ressurreição de Jesus Cristo — um acontecimento do qual existem testemunhas oculares e dados corroborantes não pode ser conhecida!

A afirmação de que a história não pode ser conhecida vai na direção contrária do bom senso. Não temos certeza de que George Washington foi o primeiro presidente dos Estados Unidos? Que Lincoln foi o 162? Que o Japão atacou Pearl Harbor em 7 de dezembro de 1941? Que o New York Mets venceu a série mundial de beisebol em 1969? É claro que sim. O cético está errado. Nós podemos conhecer e realmente conhecemos a história. De fato, se não pudéssemos conhecer a história, então não poderíamos detectar o revisionismo histórico ou a propaganda histórica, linhas que assumem existir uma história objetiva que pode ser conhecida.

Por que alguém não poderia ter conhecimento de um fato passado? O cético pode dizer: “Porque você não tem acesso a todos os fatos!”. A isso, responderemos: “Então os cientistas não podem saber coisa alguma, porque não têm acesso a todos os fatos”. Isso é obviamente absurdo. Embora não possamos ter acesso a todos os fatos, podemos ser capazes de reunir uma quantidade suficiente deles para estarmos razoavelmente certos daquilo que aconteceu.

Parte da confusão envolve uma falha em definir aquilo que significa “conhecer”. Uma vez que não podemos voltar no tempo e testemunhar os fatos históricos outra vez, nosso conhecimento histórico está baseado na probabilidade. Em outras palavras, usamos o mesmo padrão que um júri usa para determinar se um acusado cometeu um crime: o de dúvidas justificáveis. Se a história não pode ser conhecida, então nenhum júri poderia chegar a um veredicto! Além do mais, um júri faz um julgamento sobre a culpa ou a inocência de alguém baseado no conhecimento de algum fato passado. Os historiadores precisam descobrir fatos passados do mesmo modo que a polícia ou a equipe de criminalística faz: reunindo evidências e entrevistando testemunhas. Quando fazem isso, freqüentem ente usam os sete testes históricos que acabamos de identificar.

Por último, se não podemos conhecer a história, então os céticos não podem afirmar que o cristianismo não seja verdadeiro. Para dizer que o cristianismo não é verdadeiro, o cético precisa conhecer a história. Por quê? Porque toda negativa implica uma afirmação. Para dizer que Jesus não ressuscitou dos mortos (a negação), o cético precisa saber o que realmente aconteceu a ele (a afirmação).

No fim de tudo, os céticos são pegos num dilema. Se disserem que a história não pode ser conhecida, então não podem dizer que a evolução é verdadeira e que o cristianismo é falso. Se admitirem que a história pode ser conhecida, então precisam enfrentar as múltiplas linhas de evidência histórica favorável à criação e ao cristianismo.

Os documentos do Novo Testamento contêm milagres. Os céticos normalmente fazem a seguinte acusação: “O NT contém milagres; portanto, uma grande parte dele só pode ser lenda!”. Já respondemos a essa objeção. Uma vez que Deus existe, os milagres são possíveis. Como veremos no capítulo 13, os eventos do NT estão num contexto em que os milagres não são apenas possíveis, mas foram preditos. Desse modo, a inclusão de milagres não nega a historicidade dos documentos do NT, mas, na verdade, a fortalece (porque registram fatos que foram preditos).

Os autores do Novo Testamento eram tendenciosos. O grande cético David Hume disse que, se vamos considerar as testemunhas dignas de crédito, então elas não devem ser tendenciosas. Desse modo, quando os céticos olham para os documentos do NT, freqüentemente perguntam: “Como você pode dizer que eram confiáveis, uma vez que foram escritos pelos convertidos? Esses são relatos tendenciosos escritos por pessoas tendenciosas”.

É verdade que os autores do NT eram tendenciosos e convertidos. Mas isso não significa que mentiram ou que exageraram. Na verdade, sua conversão e seu viés podem realmente tê-las levado a serem mais precisos. Vamos ver por quê.

Alguns anos atrás, o assim chamado documentário sobre Jesus, transmitido por um canal de televisão, começava com o seguinte comentário do narrador: ”A maior parte daquilo que pensamos saber sobre Jesus vem dos evangelhos do NT:

Mateus, Marcos, Lucas e João. Mas não podemos confiar que esses livros apresentem uma informação precisa, porque foram escritos pelos convertidos.

Bem, o que há de errado com essa lógica? O que há de errado com a lógica é que deixa de fazer a pergunta mais importante: Por que eles se converteram? De fato, a primeira e mais importante pergunta não é “Qual era a crença dos autores do NT?”. A primeira e mais importante pergunta é: “Por que eles se converteram a essas novas crenças?”. Em outras palavras, por que os autores do NT repentinamente abandonaram seu meio de ganhar a vida e suas valiosas tradições religiosas em favor dessas novas crenças?

Eu [Frank] fiz essa pergunta a um casal de negros muçulmanos19 durante um debate no rádio há não muito tempo. Tal como os muçulmanos tradicionais, os negros muçulmanos não acreditam que Jesus tenha sido crucificado, e, assim, não há maneira de ele ter ressuscitado. Tendo isso em mente, perguntei:

— Por que os autores do NT repentinamente se converteram do judaísmo para acreditar que Jesus ressuscitara dos mortos?

— Porque eles queriam ter poder sobre as pessoas! — disse um deles.

— Que poder os autores do NT ganharam ao afirmar que Jesus ressuscitara

dos mortos? — perguntei. — A resposta é “nenhum”. De fato, em vez de ganhar poder, eles receberam exatamente o oposto: submissão, servidão, perseguição, tortura e morte — disse eu. Eles não responderam nada. Então, fiz a pergunta de uma maneira diferente:

— Que possível motivo teriam os autores do NT para fabricar a história da ressurreição se ela não era verdadeira?

Mais uma vez, não tiveram resposta. Por quê? Porque começaram a perceber que os autores do NT tinham todos os motivos naturais para negar a ressurreição, em vez de proclamá-la. Não havia motivação ou incentivo para fabricar a narrativa do NT. Desde a última vez que pensamos nisso, a promessa de submissão, servidão, perseguição, tortura e morte não motivaria ninguém a inventar tal história.

Os autores do NT certamente não tiveram razão para inventar uma nova religião. Devemos nos lembrar de que todos eles (com a possível exceção de Lucas) eram judeus que acreditavam firmemente já possuírem uma religião verdadeira. Aquela religião de quase 2 mil anos afirmava que eles, os judeus, eram o povo escolhido de Deus. Por que os judeus que se converteram ao cristianismo se arriscariam a sofrer perseguição, morte e, talvez, condenação eterna para começar alguma coisa que 1) não era verdadeira e 2) elevou os não-judeus ao mesmo relacionamento exclusivo que eles afirmavam ter com o Criador do Universo? A não ser que a ressurreição realmente tivesse acontecido, por que deixariam, de maneira quase imediata, de observar o sabá, a circuncisão, a lei de Moisés, a centralidade do templo, o sistema sacerdotal e outros ensinamentos do AT? Os autores do NT precisavam ter testemunhado alguma evidência muito forte para abandonar as crenças e as práticas antigas que haviam definido quem eles e seus ancestrais eram por cerca de 2 mil anos.

Pessoas convertidas não são objetivas. Nesse ponto, o cético pode protestar:

“Mas, uma vez que os autores do NT eram convertidos, eles não podem ser objetivos”. Absurdo. As pessoas podem ser objetivas mesmo que não sejam neutras. Um médico pode fornecer um diagnóstico objetivo mesmo que tenha uma grande afeição pelo paciente. Ou seja, pode ser objetivo embora não seja neutro. O fato é que sua paixão pelo paciente pode fazê-lo ser ainda mais diligente ao diagnosticar e tratar a doença de maneira adequada.

Ao escrever este livro, embora certamente não sejamos neutros, estamos apresentando fatos objetivos. Do mesmo modo, os ateus não são neutros, mas também podem apresentar fatos objetivos se optarem por fazê-lo. Os autores do NT poderiam ter feito o mesmo.

A verdade sobre essa questão é que todos os livros são escritos por uma razão, e a maioria dos autores acredita naquilo que está escrevendo! Mas isso não significa que aquilo que eles escrevem seja errado ou não possua um elemento objetivo. Como mencionamos no prefácio, os sobreviventes do Holocausto que escreveram suas experiências certamente não foram observadores neutros. Acreditavam apaixonadamente no propósito de registrar esses fatos, de modo que o mundo jamais se esquecesse do Holocausto, e esperam que ele nunca se repita. Enquanto a paixão pode fazer algumas pessoas exagerarem, ela pode levar outras a serem ainda mais meticulosas e precisas de modo a não perderem a credibilidade e a aceitação da mensagem que desejam comunicar.

A distinção entre a neutralidade e a objetividade dos autores do NT é uma questão extremamente importante. Com muita freqüência, os documentos que compõem o NT são automaticamente considerados tendenciosos e indignos de confiança. Isso é irônico, pois aqueles que sustentam essa visão são freqüentemente tendenciosos. São tendenciosos porque não investigaram primeiramente os documentos do NT ou o contexto no qual eles foram escritos, com o objetivo de fazer uma avaliação isenta de sua probidade.

Como veremos logo a seguir, os documentos do NT não são “propaganda da igreja” ou um monólito de escritos planejados para promover uma teologia construída pela própria igreja. Então, o que são? Essa é a pergunta que vamos abordar no restante deste capítulo e nos três seguintes.

Sendo assim, vamos começar. Sabemos que temos uma cópia precisa do que foi escrito pelos autores do NT. Mas esses documentos são fidedignos? Nossa primeira pergunta lida com o teste histórico número 1: Os documentos do NT são antigos?

OS DOCUMENTOS DO NOVO TESTAMENTO SÃO ANTIGOS?

Sim, mas quão antigos?

Todos os livros do NT foram escritos antes do ano 100 d.C. (cerca de 70 anos depois da morte de Jesus). Como mostra a tabela 9.1, em cartas escritas entre os anos 95 e 110 d.C, três pais da igreja primitiva — Clemente, Inácio e Policarpo — citaram passagens de 25 dos 27 livros do NT. Somente os pequenos livros de Judas e 2João não foram citados, mas certamente já tinham sido escritos (Judas teria escrito sua pequena carta nessa época porque, sendo o meio irmão de Jesus, muito provavelmente já estava morto no ano 100; 2João fora escrita porque ela é anterior a 3João, que é um dos 25 livros citados).

Uma vez que Clemente estava em Roma e Inácio e Policarpo estavam a centenas de quilômetros de distância, em Esmirna, os documentos originais do NT precisariam ter sido escritos muito tempo antes, caso contrário não poderiam ter circulado por todo o mundo antigo daquela época. Portanto, é seguro dizer que todo o NT já havia sido escrito por volta do ano 100 e pelo menos todos os livros que constam na primeira coluna da esquerda foram escritos vários anos antes de 95.

Mas essa é simplesmente a data mais posterior na qual eles poderiam ter sido escritos. A maioria deles foi provavelmente escrita muito tempo antes. Quando? A maioria, se não todos, antes do ano 70 d.C

A maioria desses livros, se não todos, foi escrita antes do ano 70 d.C (cerca de 40 anos depois da morte de Jesus). Imagine isto. Você é um judeu religioso do século I. O centro de sua vida nacional, econômica e religiosa é Jerusalém e, em especial, o templo. Essa tem sido a vida de sua nação, de sua família e de praticamente toda a família judaica por milhares de anos, desde que Salomão construiu o primeiro templo. A maior parte do novo templo, construída pelo rei Herodes, foi completada quando você era criança, mas porções dele ainda estão em construção, iniciada no ano 19 a.C Por toda a sua vida, você freqüentou os cultos e trouxe sacrifícios ali para expiar os pecados que cometera contra Deus. Por quê? Porque você e seus compatriotas consideram esse templo como a habitação terrena do Deus do Universo, o Criador do céu e da terra, a própria Divindade cujo nome é tão santo que você nem ousa pronunciar.

Sendo jovem, você começa a seguir um judeu chamado Jesus, o qual afirma ser o tão esperado Messias predito nas suas Escrituras. Ele realiza milagres, ensina verdades profundas e repreende e confunde os sacerdotes encarregados do templo. De maneira incrível, prediz sua própria morte e ressurreição. Prediz que o próprio templo será destruído antes do fim de sua geração (Mc 13.2,30).

Isso é escandaloso! Jesus é condenado por blasfêmia pelos sacerdotes do seu templo e crucificado na véspera da Páscoa, um dos seus feriados mais sagrados. Ele é enterrado num túmulo judeu, mas, três dias depois, você e os outros seguidores vêem Jesus vivo tal como ele havia predito. Você toca nele, ouve o que diz, e ele continua a realizar milagres, sendo o último deles a sua própria ascensão ao céu. Passados 40 anos, o seu templo é destruído tal como Jesus havia predito, juntamente com toda a cidade e milhares de compatriotas seus.

Pergunta: se você e seus colegas seguidores escrevessem relatos de Jesus depois de a cidade e o templo terem sido destruídos no ano 70 d.C, você não faria pelo menos uma menção da tragédia nacional, humana, econômica e religiosa sem precedentes em algum lugar dos seus escritos, especialmente uma vez que esse Jesus ressurreto havia predito que tudo isso aconteceria? É claro que sim! Bem, aqui está um problema para aqueles que dizem que o NT foi escrito depois do ano 70 d.C: não existe absolutamente nenhuma menção do cumprimento dessa tragédia predita em lugar algum nos documentos do NT. Isso significa que a maioria, se não todos os documentos, deve ter sido escrita antes do ano 70 d.C

Alguns podem levantar uma objeção: “Esse é o argumento do silêncio, e isso não prova nada”. Contudo, na verdade esse não é um argumento do silêncio, pois os documentos do NT falam de Jerusalém e do templo, ou de atividades associadas a eles, como se eles ainda estivessem intactos na época da composição dos textos. Mas mesmo que esse fosse um argumento extraído do silêncio, não significa que esteja errado. Considere estes paralelos modernos. Se um ex-marinheiro a bordo do USS Arizona escrevesse um livro relacionado à história daquele navio e o livro terminasse sem nenhuma menção do navio sendo afundado e do fato de 1.177 marinheiros terem sido mortos em Pearl Harbor, você teria alguma dúvida de que o livro fora escrito antes de 7 de dezembro de 1941? Ou se um morador do World Trade Center escrevesse um livro relatando a história daqueles prédios e o livro terminasse com as torres ainda em pé — sem haver absolutamente nenhuma menção das torres sendo destruídas e de cerca de 3 mil pessoas sendo mortas por terroristas muçulmanos — você teria alguma dúvida de que o livro fora escrito antes de 11 de setembro de 2001? É claro que não.

Bem, o desastre no ano 70 d.C., em termos de vidas, propriedade e abrangência nacional, foi muitas vezes maior do que Pearl Harbor e o Onze de Setembro. Ele marcou o fim da terrível guerra que Josefo — que se rendeu aos romanos no ano 67 — chamou de “a maior” guerra de todos os tempos. Os judeus não perderam apenas um navio ou dois prédios importantes — perderam todo o país, a capital e o templo, que fora o centro da sua vida religiosa, política e econômica por pelo menos 2 mil anos. Além disso, dezenas de milhares de compatriotas foram mortos e centenas de vilas foram queimadas totalmente.

Desse modo, se esperamos que tragédias como Pearl Harbor e o Onze de Setembro sejam mencionadas em escritos relevantes de hoje, certamente deveríamos esperar que os acontecimentos do ano 70 d.C. fossem citados em algum lugar do NT (principalmente pelo fato de esses acontecimentos terem sido previstos por Jesus). Contudo, uma vez que o NT não menciona esses acontecimentos em qualquer lugar que seja, sugerindo que Jerusalém e o templo ainda estavam intactos, podemos concluir com grande grau de certeza que a maioria, se não todos os documentos do NT, deve ter sido escrita antes do ano 70 d.C.

Mas quanto antes?

Muitos dos livros do Novo Testamento foram compostos antes do ano 62 d.C. (cerca de 30 anos depois da morte de Jesus). Imagine o seguinte: você é um médico do século I que resolveu fazer um projeto de pesquisa para registrar os acontecimentos da igreja primitiva. Essa pesquisa vai exigir que você entreviste testemunhas oculares da igreja primitiva e que viaje com o apóstolo Paulo enquanto ele visita novas igrejas por todo o mundo antigo. Você registra fatos importantes da vida da igreja, como o trabalho inicial de João e Pedro, assim como os martírios de Estevão e de Tiago (irmão de João). Na vida de Paulo, você registra tudo, desde sermões, espancamentos e julgamentos até naufrágios e prisões. Você também registra o debate teológico que ele teve com Pedro e Tiago, que é irmão de Jesus e líder da igreja de Jerusalém.

À medida que você descreve muitos desses fatos, sua narrativa torna-se tão rica em detalhes que todo leitor informado saberá que teve acesso ao depoimento das testemunhas oculares ou então que você mesmo foi uma testemunha ocular. Ao seguir Paulo em suas viagens, por exemplo, você deixa de usar o pronome “eles” e passa a usar “nós”, registrando corretamente os nomes de políticos locais, aspectos da linguagem local, padrões meteorológicos do local, topografia local e práticas comerciais locais. Você até mesmo registra a profundidade correta da água a cerca de 400 metros da ilha de Malta, conforme seu navio está prestes a afundar durante uma tormenta! De fato, você registra pelo menos 84 detalhes desse tipo na segunda metade de sua narrativa.

Pergunta: uma vez que está claro que você considera importante registrar todos esses detalhes menores, se o apóstolo Paulo — seu assunto principal fosse executado pelas mãos do imperador romano Nero, você não registraria isso? Ou se o irmão de Jesus, o líder da igreja de Jerusalém, fosse morto nas mãos do Sinédrio, o mesmo corpo jurídico judaico que sentenciou Jesus à morte, você não registraria isso? Claro que sim! Se você deixasse de registrar tais fatos importantes, nós corretamente presumiríamos que você escreveu sua narrativa antes dessas mortes.

Esta é a situação que encontramos no NT. Lucas, o médico, registra meticulosamente todo tipo de detalhes no livro de Atos dos Apóstolos, que é uma crônica da igreja primitiva (você encontrará uma lista de 84 detalhes historicamente confirmados no capítulo seguinte). Lucas registra a morte de dois mártires cristãos (Estevão e Tiago, o irmão de João), mas seu relato termina tendo dois de seus principais líderes (Paulo e Tiago, irmão de Jesus) ainda vivos. Atos termina abruptamente quando Paulo está numa prisão domiciliar em Roma, e não há menção de Tiago ter morrido. Por meio de Clemente de Roma — escrevendo no final do século I — e de outros pais da igreja primitiva, sabemos que Paulo foi executado em algum momento durante o reinado de Nero, que terminou no ano 68 d.C. Sabemos por meio de Josefo que Tiago foi morto no ano 62 d.C. Assim, podemos concluir, acima do que se considera dúvida justificável, que o livro de Atos foi escrito antes do ano 62 d.C.

Se você ainda não está convencido, considere este paralelo moderno: suponha que alguém escreva um livro registrando os fatos que cercaram as principais personagens do movimento pelos direitos civis na década de 1960. O livro começa com o assassínio do presidente John Fitzgerald Kennedy e inclui a lei dos Direitos Civis de 1964, as marchas e os protestos de Martin Luther King Jr., incluindo sua prisão e o seu grande discurso “Eu tenho um sonho” nos jardins de Washington, D.C. Pergunta: se o livro terminasse com Martin Luther King Jr. — o grande líder desse movimento — ainda vivo, você concluiria que o livro foi escrito em qual data? Obviamente em algum momento antes de seu assassinato em abril de 1968. Essa é a mesma situação que encontramos na narrativa de Lucas. Seu livro termina tendo os principais líderes ainda vivos, o que significa que ele foi escrito não depois do ano 62 d.C. (Colin Hemer, historiador e pesquisador clássico, mostra 13 razões adicionais pelas quais o livro de Atos foi escrito por volta do ano 62 d.C.).

Se Atos foi escrito por volta do ano 62 d.C., então o evangelho de Lucas foi escrito antes. Como podemos saber isso? Porque Lucas lembra ao destinatário original do livro de Atos, Teófilo (que provavelmente era um importante oficial romano), aquilo que lhe escrevera anteriormente. O primeiro versículo de Atos diz: “Em meu livro anterior, Teófilo, escrevi a respeito de tudo o que Jesus começou a fazer e a ensinar … “. O “livro anterior” deve ser o evangelho de Lucas, porque Lucas também o endereçou a Teófilo (Lc 1.1-4, v. citação a seguir).

O evangelho de Lucas foi escrito quanto tempo antes? Pareceria plausível dizer que Lucas foi escrito antes ou por volta do ano 60 d.C. Por quê? Porque o ano 62 d.C. é a última data para Atos ter sido escrito, e seria necessário algum tempo entre o primeiro texto de Lucas enviado a Teófilo e o segundo texto. Se Atos não poderia ser escrito depois de 62 d.C. (e muito possivelmente antes disso), então Lucas está corretamente colocado no ano 60 d. e. ou antes.

Essa data também faz sentido à luz da citação que Paulo faz do evangelho de Lucas. Escrevendo em algum momento entre os anos 62 e 65 d.C., Paulo cita Lucas 10.7 e o chama de “Escritura’ (1Tm 5.18). Portanto, o evangelho de Lucas deve ter circulado tempo suficiente antes dessa época para que tanto Paulo quanto Timóteo conhecessem o seu conteúdo e o considerassem Escritura (a propósito, o fato de Paulo ter dito isso não é pouca coisa. Com efeito, ele estava afirmando com ousadia que o evangelho de Lucas era tão inspirado quanto a santa Bíblia judaica — o AT que ele tanto valorizava!).

Se Lucas foi escrito por volta do ano 60 d.C., então Marcos deve ter sido escrito da metade para o fim da década do ano 50 d.C., se não mais cedo. Por quê? Porque Lucas diz que ele obteve conhecimento dos fatos confrontando-os com as fontes das testemunhas oculares:

Muitos já se dedicaram a elaborar um relato dos fatos que se cumpriram entre nós, conforme nos foram transmitidos por aqueles que desde o início foram testemunhas oculares e servos da palavra. Eu mesmo investiguei tudo cuidadosamente, desde o começo, e decidi escrever-te um relato ordenado, ó excelentíssimo Teófilo, para que tenhas a certeza das coisas que te foram ensinadas (Lc 1.1-4).

A maioria dos estudiosos acredita que o evangelho de Marcos foi uma dessas fontes de testemunhas oculares. Se aqueles fragmentos dos Manuscritos do mar Morto que mencionamos são realmente do período que vai de 50 a 70 d.C., então certamente Marcos é anterior. Contudo, mesmo que Marcos não fosse anterior a Lucas, o próprio fato de sabermos, ainda que com pequena parcela de dúvida justificável, que Lucas é anterior ao ano 62 d.C. (e provavelmente ao ano 60 d.C.) realmente significa que aquilo que temos meticulosamente registrado são depoimentos de testemunhas oculares do sepultamento e da ressurreição de Jesus, escritos num período de 25 a 30 anos depois da morte dele. Isso é cedo demais para ter-se tornado uma lenda. Também significa que a fonte das testemunhas oculares aponta para mais cedo ainda. Quanto mais cedo?

Alguns livros do Novo Testamento foram escritos nas décadas de 40 e 50 d.C., com base em fontes da década de 30 d.C. (apenas alguns anos depois da morte de Jesus). Tão certo como podemos datar os escritos de Lucas, ninguém duvida — nem mesmo os estudiosos mais liberais — que Paulo escreveu sua primeira carta à igreja de Corinto (que está hoje na Grécia moderna) em algum momento entre os anos 55 e 56 d.C. Em sua carta, Paulo fala sobre problemas morais da igreja e, então, continua, discutindo controvérsias sobre línguas, profecias e a ceia do Senhor. Isso certamente demonstra que a igreja em Corinto estava experimentando algum tipo de atividade miraculosa e já estava observando a ceia do Senhor 25 anos depois da ressurreição de Cristo.

Contudo, o aspecto mais significativo dessa carta é que ela contém o mais antigo e mais autenticado testemunho da própria ressurreição. No capítulo 15 de 1 Coríntios, Paulo escreve o testemunho que recebeu de outros e o testemunho que foi autenticado quando Cristo apareceu-lhe:

Pois o que primeiramente lhes transmiti foi o que recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras, e apareceu a Pedra e depois aos Doze. Depois disso apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez, a maioria dos quais ainda vive, embora alguns já tenham adormecido. Depois apareceu a Tiago e, então, a todos os apóstolos; depois destes apareceu também a mim, como a um que nasceu fora de tempo (1Co 15.3-8).

Onde Paulo obteve aquilo que ele “recebeu”? Ele provavelmente o recebeu de Pedro e de Tiago, quando os visitou em Jerusalém, três anos depois de sua conversão (GI1.18). Por que isso é tão importante? Porque, como destaca Gary Habermas, a maioria dos estudiosos (até mesmo os liberais) acredita que esse testemunho era parte de um antigo credo cuja origem remonta à própria ressurreição de Jesus — 18 meses a oito anos depois, mas alguns dizem que foi ainda mais cedo. Não há possibilidade de tal testemunho ser descrito como lenda, porque ele tem sua origem exatamente no momento e no lugar do fato em si. Se havia um lugar onde uma ressurreição lendária não pudesse acontecer, era Jerusalém, porque os judeus e os romanos estavam por demais ansiosos para esmagar o cristianismo e poderiam facilmente tê-la feito apresentando o corpo de Jesus por toda a cidade.

Além disso, perceba que Paulo cita 14 testemunhas oculares cujos nomes são conhecidos: os doze apóstolos, Tiago e o próprio Paulo (o termo “Cefas” é a palavra aramaica equivalente a Pedro) e depois faz referência a uma aparição a mais outras 500 pessoas de uma só vez. Dentro desse grupo, havia um cético, Tiago, e um inimigo declarado, o próprio Paulo. Ao citar os nomes de tantas pessoas que poderiam verificar o que Paulo estava dizendo, ele estava, com efeito, desafiando seus leitores de Corinto a verificar o que dizia. O especialista em Bíblia William Lillie expõe a questão da seguinte maneira:

O que concede uma autoridade especial à lista como evidência histórica é a referência ao fato de a maioria dos 500 irmãos ainda estarem vivos. Com efeito, S. Paulo diz: “Se você não acredita em mim, pergunte a eles”. Tal declaração, numa carta comprovadamente genuína, escrita cerca de 30 anos depois do acontecimento, é praticamente uma evidência tão conclusiva quanto alguém poderia esperar obter de algo que aconteceu cerca de 2 mil anos atrás.

Se a ressurreição de Jesus não tivesse acontecido, por que Paulo daria uma lista de supostas testemunhas oculares? Ele teria perdido imediatamente toda a credibilidade diante de seus leitores da cidade de Corinto ao mentir de maneira tão descarada.

Além de 1 Coríntios, existem diversos outros documentos do NT que foram escritos na década de 50 d.C. ou antes. Gálatas (48 d.C.), 1Tessalonicenses (5054 d.C.) e Romanos (57 e 58 d.C.) encaixam-se nessa categoria. De fato (e sabemos que podemos ficar sozinhos nessa posição!), todas as obras de Paulo precisariam ter sido escritas antes que ele morresse, o que aconteceu em algum momento na década de 60 d. e.

Mas não são apenas os estudiosos conservadores que acreditam nessas datas tão antigas. Até mesmo alguns críticos radicais, como o ateu John A. T. Robinson, admitem que os documentos do NT foram escritos logo. Conhecido por seu papel no lançamento do movimento “a Morte de Deus”, Robinson escreveu um livro revolucionário intitulado Redating the New Testament [Refazendo a datação do Novo Testamento] no qual postula que a maioria dos livros do NT, incluindo os quatro evangelhos, foram escritos em algum momento entre os anos 40 e 65 d.C.

Depois de ver quão bem o NT encaixa-se com os dados arqueológicos e históricos, o grande e outrora liberal arqueólogo William F. Albright escreveu: “Já podemos dizer enfaticamente que não há mais nenhuma base sólida para considerar que algum livro do NT tenha sido escrito depois do ano 80 d.C.”. Em outro lugar, Albright disse: “Na minha opinião, todos os livros do NT foram escritos por um judeu batizado entre os anos 40 e 80 do século I (muito provavelmente em algum momento entre os anos 50 e 75)”.

Desse modo, sabemos, acima do que se considera dúvida justificável, que a maioria dos documentos do NT, se não todos, é antiga. Mas os céticos ainda têm algumas objeções.

Os documentos não são suficientemente antigos

Alguns céticos podem pensar que um período de 15 a 40 anos entre a vida de Cristo e os escritos sobre ele é um período grande demais para que o testemunho seja confiável. Mas estão errados.

Pense nos fatos que aconteceram entre 15 e 40 anos atrás. Quando os historiadores escrevem sobre eles, não dizemos “Oh, isso é impossível! Ninguém pode se lembrar dos fatos que se passaram há tanto tempo!”. Tal ceticismo é claramente injustificável. Os historiadores de hoje escrevem com precisão sobre fatos das décadas de 1970, 80 e 90 consultando suas próprias lembranças, a lembrança das testemunhas oculares e qualquer fonte escrita daquela época.

Esse processo é o mesmo que os autores do NT usaram para registrar seus documentos. Tal como um bom repórter, Lucas entrevistou testemunhas oculares. Como veremos no capítulo seguinte, alguns autores do NT foram eles mesmos testemunhas oculares. Eles podiam lembrar-se de fatos acontecidos 15 a 40 anos antes, assim como você pode. Por que você pode se lembrar de certos fatos de maneira tão viva, mesmo que eles tenham acontecido 15 a 40 anos atrás (se você possui idade suficiente) ou até mais para trás? Você pode ser capaz de se lembrar de certos fatos porque eles causaram um grande impacto emocional sobre você (de fato, aqueles de nós de idade provecta às vezes podem lembrar-se de fatos ocorridos 30 anos atrás melhor do que aquilo que aconteceu há 30 minutos!).

Onde você estava e o que estava fazendo quando o presidente Kennedy foi assassinado? Quando a nave Challenger explodiu? Quando o segundo avião atingiu a torre em Nova York? Por que consegue lembrar-se tão bem desses fatos? Porque eles provocaram um profundo impacto emocional em você. Uma vez que um fato como a ressurreição de Jesus certamente teria causado um profundo impacto emocional nos autores do NT e nas testemunhas oculares que eles podem ter consultado, é fácil entender por que a história de Jesus pôde ser lembrada tão facilmente muitos anos depois, especialmente numa cultura com uma confiança estabelecida no testemunho oral (leia mais sobre isso a seguir).

Além do mais, se as maiores obras do NT são relatos de testemunhas oculares, escritos dentro de um período de duas gerações depois dos fatos, então é muito provável que não sejam lendas. Por quê? Porque a pesquisa histórica indica que um mito não pode começar a se sobrepor aos fatos históricos enquanto as testemunhas oculares ainda estão vivas. Por essa razão, o historiador romano A. N. Sherwin-White chama a visão mitológica do NT de “inacreditável”. Willian Lane Craig escreve: “Os testes mostram que mesmo duas gerações é um período muito curto para que tendências legendárias apaguem o cerne dos fatos históricos”. Dentro dessas duas gerações, as testemunhas oculares ainda estão por perto para corrigir os erros dos revisionistas da história.

Estamos vendo essa tendência exatamente agora com respeito ao Holocausto.

No começo do século XXI, começamos a ver algumas pessoas afirmarem que o Holocausto nunca aconteceu. Por que os revisionistas estão tentando isso agora? Porque a maioria das testemunhas oculares já morreu. Felizmente, uma vez que temos o testemunho escrito das testemunhas oculares do Holocausto, os revisionistas não estão sendo bem-sucedidos em passar adiante suas mentiras como se fossem verdades. O mesmo se confirma com relação ao NT. Se o NT fosse escrito 60 anos depois dos fatos que ele registra, é altamente improvável que os fatos pudessem ser lendários. Como já vimos, todos os documentos do NT foram escritos dentro de um período de 60 anos após os fatos narrados, considerando-se que muitos deles foram escritos antes desse período.

Por que não antes?

Neste momento, o cético pode dizer: “O.k., tudo bem. O NT é antigo, mas ele não é tão antigo quanto eu esperaria. Por que eles não escreveram seu testemunho ainda antes? Se eu visse o que eles disseram que viram, não esperaria 15 a 20 anos para escrevê-lo”.

Existe um número de razões possíveis para a espera.

Em primeiro lugar, uma vez que os autores do NT estavam vivendo numa cultura em que a grande maioria das pessoas não sabia ler, não havia necessidade inicial ou utilidade em fazer-se um registro de forma escrita. Por pura necessidade, as pessoas da Palestina do século I desenvolveram forte capacidade de memorização com o objetivo de lembrar e passar adiante uma informação. Craig escreve:

Numa cultura oral como a da Palestina do primeiro século, a habilidade de memorizar e reter grandes textos de tradição oral era algo altamente valorizado e bastante desenvolvido. Desde os primeiros anos, as crianças no lar, na escola fundamental e na sinagoga eram ensinadas a memorizar corretamente as tradições sagradas. Os discípulos teriam exercido cuidado similar com os ensinamentos de Jesus.

Numa cultura oral como essa, os fatos sobre Jesus podem ter sido colocados numa forma fácil de ser decorada. Existem boas evidências disso. Gary Habermas identificou 41 pequenas sessões do Novo Testamento que parecem ser credos frases compactas que poderiam ser facilmente relembradas e que provavelmente eram passadas adiante de maneira oral antes de serem colocadas em forma escrita (já mencionamos um desses credos — 1Co 15.3-8).

Em segundo lugar, uma vez que alguns dos autores do NT podem ter tido grandes esperanças de que Jesus estava para voltar durante a sua vida, eles não viam uma razão imediata de escrever. Contudo, conforme foram ficando mais velhos, talvez tenham pensado que seria sábio registrar suas observações no papiro.

Em terceiro lugar, à medida que o cristianismo se espalhava por todo o mundo antigo, a escrita tornava-se um meio mais eficiente de se comunicar com a igreja, que se expandia rapidamente. Em outras palavras, o tempo e a distância forçaram os autores do NT a escrever.

No entanto, pode não ter havido um espaço de tempo com relação a pelo menos um dos evangelhos. Se aqueles fragmentos dos Manuscritos do mar Morto são realmente do evangelho de Marcos (e existe uma grande possibilidade que sejam), então esse evangelho pode ter sido escrito nos anos 30 d.C. Por quê? Porque os fragmentos são das cópias, e não do original. Se temos cópias dos anos 50 d.C., então o original deve ser anterior.

Além disso, muitos estudiosos acreditam que realmente havia fontes escritas anteriores aos evangelhos. De fato, nos primeiros quatro versículos de seu evangelho, Lucas diz que verificou outras fontes, aparentemente algumas delas podem ter sido evangelhos mais antigos (e.g., Mateus e Marcos). O evangelho de Marcos teria sido uma dessas fontes? Não sabemos com certeza. Certamente parece que Lucas está falando de várias outras fontes escritas, porque ele diz:

“Muitos já se dedicaram a elaborar um relato dos fatos que se cumpriram entre nós … ” (Lc 1.1). Lucas pode ter se referido ao evangelho de Marcos e a outros depoimentos escritos, incluindo registros públicos do tribunal que julgou Jesus.

Por fim, realmente não importa se havia ou não outras fontes escritas anteriores ao NT. Também não importa se Marcos foi escrito na década de 30 d.C. Por quê? Porque os documentos dos quais realmente temos conhecimento são antigos o suficiente e contêm material-fonte antigo. Como veremos no capítulo seguinte, muitos, se não todos os documentos do NT, foram escritos por testemunhas oculares ou por seus contemporâneos num período de 15 a 40 anos depois de Jesus, e alguns contêm testemunho escrito de origem oral ou outros escritos que aponta diretamente para a sua ressurreição. Em outras palavras, a verdadeira questão não é tanto com relação à data dos escritos, mas à data das fontes usadas nos escritos.

Por que não mais?

Os céticos podem dizer: “Se Jesus realmente ressuscitou dos mortos, não deveria haver mais coisa escrita sobre ele do que realmente existe?”. A resposta é que nós realmente temos mais testemunho do que poderíamos esperar e certamente mais do que suficiente para estabelecer, acima do que se considera dúvida justificável, o que aconteceu. Como já vimos, Jesus é citado por muito mais autores do que um imperador romano de sua época (Jesus é citado por 43 autores, enquanto Tibério é citado por dez, num período de 150 anos após a morte de cada um). Nove desses autores foram testemunhas oculares ou contemporâneos dos acontecimentos e escreveram 27 documentos, dos quais a maioria menciona ou deixa implícita a ressurreição de Jesus. Isso é mais do que suficiente para estabelecer historicidade.

Para aqueles que ainda acham que deveria haver mais material escrito sobre Jesus, o estudioso do NT Craig Blomberg apresenta quatro razões que explicam por que essa idéia não é plausível: 1) o início humilde do cristianismo; 2) a localização remota da Palestina, na fronteira oriental do Império Romano; 3) a pequena porcentagem de obras de historiadores greco-romanos que sobreviveu (devido provavelmente a fatos como perda, degradação, destruição ou as três alternativas juntas) e 4) a falta de atenção dada aos documentos históricos sobreviventes por parte de personagens judaicos em geral.

Todavia, alguns céticos ainda podem pensar que deveria existir o testemunho de alguma daquelas 500 pessoas que supostamente viram o Cristo ressurreto. O cético Farrell Till é um deles. Durante um debate sobre a ressurreição de Jesus que eu [Norm] tive com ele em 1994, Till exigiu: “Mostre-me uma dessas 500 testemunhas ou nos dê alguma coisa que elas tenham escrito, e nós aceitaremos isso como uma prova confiável ou como evidência”.

Essa expectativa não é plausível, por diversas razões. Em primeiro lugar, como já destacamos, a Palestina do século I era uma cultura oral. A maioria das pessoas não sabia ler e lembrava-se das informações e passava-as adiante de maneira oral.

Em segundo lugar, quantas dessas testemunhas oculares predominantemente analfabetas teriam escrito alguma coisa, ainda que soubessem escrever? Mesmo hoje, com uma taxa de analfabetismo muito menor e todas as conveniências da escrita moderna e das ferramentas de pesquisa, quantas pessoas você conhece que já escreveram um livro ou até mesmo um artigo sobre um assunto qualquer? Quantas você conhece que já escreveram um livro ou um artigo sobre um fato histórico contemporâneo, até mesmo algo tão significativo quanto o Onze de Setembro? Provavelmente não muitas e certamente muito menos do que 500 (será que o próprio Farrell Till já escreveu um artigo sobre um fato histórico importante que ele testemunhou?).

Em terceiro lugar, mesmo que alguma daquelas cerca de 500 pessoas tivesse escrito aquilo que viram, por que os céticos esperariam que seu testemunho sobrevivesse por 2 mil anos? O NT sobrevive intacto por causa dos milhares de manuscritos copiados por escribas para uma igreja em crescimento durante vários séculos. Obras históricas de grandes historiadores antigos como Josefo, Tácito e Plínio possuem apenas algumas poucas cópias restantes, e essas cópias distam centenas de anos dos originais. Por que os céticos acham que qualquer coisa poderia ter sido escrita — muito mais que tenha sobrevivido — por um grupo antigo de camponeses galileus analfabetos?

Por fim, sabemos o nome de muitos daqueles 500, e seu testemunho está escrito no NT. Dentre eles, estão Mateus, Marcos, Lucas, João, Pedra, Paulo e Tiago — além de outras nove que são citados em outras lugares como apóstolos (Mt 10 e At 1).

Desse modo, não devemos esperar mais testemunho do que aquilo que temos sobre Jesus. E isso é mais do que suficiente para estabelecer a historicidade.

CONCLUSÃO

Temos muito mais para investigar no que concerne à historicidade do NT.

Mas podemos tirar duas grandes conclusões neste momento:

  1. Temos uma cópia precisa dos documentos originais do NT:

a) Embora os documentos originais do NT não tenham sobrevivido ou ainda não tenham sido encontrados, temos muitas cópias precisas dos documentos originais — muito mais do que as dez melhores peças da literatura antiga combinadas. Além do mais, uma reconstrução praticamente perfeita dos originais pode ser realizada ao comparar-se os milhares de cópias manuscritas que sobreviveram. Descobrimos fragmentos manuscritos do século 11 e alguns talvez tão antigos quanto o material da segunda metade do século I. Não existem obras do mundo antigo que sequer cheguem perto do NT em termos de apoio de manuscritos.

b) A reconstrução também é autenticada por milhares de citações feitas pelos pais da igreja primitiva. De fato, todo o NT, com exceção de poucos versículos, pode ser reconstruído simplesmente das citações que eles fizeram.

  1. Os documentos do NT são antigos e contêm uma fonte ainda mais antiga:

a) Uma vez que os documentos do NT são citados por outras autores por volta do ano 100 d.C., é necessário que tenham sido escritos antes deles.

b)Uma vez que os documentos do NT falam como se o templo e a cidade ainda estivessem em pé na época em que foram escritos — e não há menção do ataque da guerra judaica ou da destruição do templo de Jerusalém -, a maioria dos documentos do NT é provavelmente anterior ao ano 70 d.C.

c) Temos fortíssimas evidências de que o livro de Atos foi escrito por volta do ano 62 d.C., o que significa que o evangelho de Lucas é ainda mais antigo.

d) Temos fontes que chegam até os anos 30 d.C. Praticamente todos os estudiosos concordam que o testemunho da morte, do sepultamento e da ressurreição encontrado em 1 Coríntios 15 vem do tempo desses acontecimentos ou de poucos anos depois deles. Além do mais, existem pelo menos outros 40 credos no NT que parecem possuir uma origem bastante antiga.

Portanto, os documentos são antigos, e as fontes são ainda mais antigas. Mas isso não é suficiente para provar historicidade acima do que se considera dúvida justificável. Para provar historicidade, precisamos ter certeza de que esses documentos realmente contêm o testemunho das testemunhas oculares. Será que eles contêm?

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

...gente ignorante, que pertence à mais vil população...(A prece dos mártires cristãos)

A Perseguição aos cristãos

As perseguições do Império Romano aos cristãos durante o segundo e terceiro séculos eram cruéis. Mesmo quando havia paz, a perseguição podia recomeçar a qualquer momento, cada vez mais violenta.

O governo imperial se incomodava com o crescimento e com os “mistérios” que envolviam os cristãos, que se negavam a participar das cerimônias religiosas regulares realizadas pelos romanos, bem como aceitar que o imperador fosse adorado como um deus. Este foi o principal motivo das perseguições. Mas, também existiam outros motivos, como por exemplo:

Religiosos: As reuniões dos cristãos despertavam suspeitas, por isso foram acusados de praticarem atos imorais e criminosos durante a celebração da Ceia do Senhor. Eles se reuniam antes do nascer do sol, ou então à noite, quase sempre em cavernas ou nas catacumbas subterrâneas. Eram acusados de incesto, de canibalismo e de praticas desumanas, a ponto de serem acusados de infanticídio em adoração ao seu Deus. A saudação com o ósculo santo (beijo) foi transformado em forma de conduta imoral.

Políticos: Os cristãos rejeitavam a escravidão e a adoração ao imperador. A adoração ao imperador era considerada prova de lealdade. Havia estátuas de imperadores reinantes nos lugares mais visíveis para o povo adorar. Só que os cristãos não faziam essa adoração. Pelo fato de cantarem hinos e louvores e adorarem a “outro Rei, um tal Jesus”, eram considerados pelo povo como desleais e conspiradores de uma revolução. Dentro da igreja misturavam escravos com o povo. E o que era considerado mais absurdo, o escravo podia tornar-se líder da igreja. Não havia dentro da igreja a divisão: senhor e escravo, os dois eram tratados de forma igual.

Primeiras perseguições

A primeira tomada de posição do Estado Romano contra os Cristãos remonta ao imperador Cláudio (41-54 d.C). Os historiadores Suetônio e Dione Cássio referem que Cláudio mandou expulsar os judeus porque estavam continuamente em litígio entre si por causa de um certo Chrestos. «Estaríamos diante das primeiras reações provocadas pela mensagem cristã na comunidade de Roma», comenta Karl Baus.

O historiador Gaio Suetônio Tranquilo (70-140 c.), funcionário imperial de alto nível sob Trajano e Adriano, intelectual e conselheiro do imperador, justificará a decisão e as sucessivas intervenções do Estado contra os Cristãos definindo-os como «superstição nova e maléfica»; palavras muito pesadas. Como superstição, o cristianismo é relacionado com as mágicas. Para os romanos ela é aquele conjunto de práticas irracionais que magos e feiticeiros de personalidade sinistra usam para enganar a gente ignorante, sem educação filosófica.

Magia é o irracional contra o racional, o conhecimento vulgar contra o conhecimento filosófico. A acusação de magia (como também de loucura) é uma arma com que o Estado Romano timbra e submete ao controle os novos e duvidosos componentes da sociedade como o cristianismo.

Com a palavra maléfica (= portadora de males) é encorajada a obtusa suspeita do povinho que imagina essa novidade (como qualquer novidade) impregnada dos delitos mais inomináveis e, portanto, causa dos males que de vez em quando se desencadeiam inexplicavelmente, da peste aos aluviões, da carestia à invasão dos bárbaros.

Corpo aberto mas etnia fechada e desconfiada

O Império Romano é (e manifestar-se-á especialmente nas perseguições contra os Cristãos) como um grande campo aberto, disposto a assimilar qualquer novo povo que abandone a própria identidade, mas também uma etnia fechada e desconfiada. Com a palavra etnia, grupo étnico (éthnos em grego) indicamos um agregado social que se distingue pela língua e cultura, desconfiada em relação a qualquer outra etnia.

Roma, com sua organização social de livres com todos os direitos e escravos sem qualquer direito, de patrícios ricos e de plebeus miseráveis, de centro explorador e periferia explorada, vive persuadida de ter realizado o sonho de Alexandre Magno: fazer a unidade da humanidade, fazer de cada homem livre um cidadão do mundo, e do império uma "assembléia universal" (oikuméne) que coincide com a "civilização humana".

Quem quiser viver fora dela, manter a própria identidade para não se confundir com ela, é excluído da civilização humana. Roma tinha um grande temor dos "estrangeiros", dos "diferentes" que poderiam pôr em discussão a sua segurança. E assim como estabeleceu a "concórdia universal" com a feroz eficiência de suas legiões, entende mantê-la também a golpes de espada, crucifixões, condenações aos trabalhos forçados, exílios. Numa palavra: Roma usa a "limpeza étnica" como método para tutelar a própria tranqüila segurança de ser "o mundo civil".

Nero e os Cristãos vistos pelo intelectual Tácito

Um incêndio devastou 10 dos 14 bairros de Roma no ano 65. O imperador Nero, acusado pelo povo de ser o seu autor, lançou a culpa sobre os Cristãos. Inicia, assim, a primeira grande perseguição que durará até 68 e verá perecer, entre outros, os apóstolos Pedro e Paulo.

O grande historiador Tácito Cornélio (54-120), senador e cônsul, descreverá esse acontecimento em seus "Anais", escrito no tempo de Trajano. Ele acusa Nero de ter injustamente culpado os Cristãos, mas declara-se convencido de que eles merecem as mais severas punições porque a sua superstição os leva a cometer infâmias. Não compartilha nem mesmo da compaixão que muitos experimentaram ao vê-los torturados. Eis a célebre página de Tácito:

«Para acabar logo com as vozes públicas, Nero inventou os culpados, e submeteu a refinadíssimas penas aqueles que o povo chamava de cristãos, e que eram mal vistos pelas suas infâmias. O nome deles provinha de Cristo, que sob o reinado de Tibério fora condenado ao suplício por ordem do procurador Pôncio Pilatos.

Momentaneamente adormecida, essa superstição maléfica prorrompeu de novo, não só na Judéia, lugar de origem daquele flagelo, mas também em Roma onde tudo que seja vergonhoso e abominável acaba confluindo e encontrando a própria consagração.

«Foram inicialmente aprisionados os que faziam confissão aberta da crença. Depois, denunciados por estes, foi aprisionada uma grande multidão, não tanto porque acusados de terem provocado o incêndio, mas porque eram tidos como acesos de ódio contra o gênero humano.

Os que se encaminhavam à morte estavam também expostos à burla: cobertos de pele de feras, morriam dilacerados pelos cães, ou eram crucificados, ou queimados vivos como tochas que serviam para iluminar as trevas quando o sol se punha. Nero tinha oferecido seus jardins para gozar desse espetáculo, enquanto oferecia os jogos do circo e, vestido como cocheiro misturava-se ao povo ou mantinha-se hirto sobre o coche.

«Embora os suplícios fossem contra gente culpada, que merecia tais tormentos originais, nascia por eles, um senso de piedade, porque eram sacrificados não em vista de um vantagem comum, mas pela crueldade do príncipe» (15,44).

Os cristãos eram, portanto, tidos também por Tácito como gente desprezível, capaz de crimes horrendos. Os crimes mais infames atribuídos aos cristãos eram o infanticídio ritual (como se na renovação da Ceia do Senhor, quando alimentavam-se da Eucaristia, sacrificassem uma criança e comessem suas carnes!) e o incesto (clara deformação do abraço da paz que se dava na celebração da Eucaristia "entre irmãos e irmãs"). As acusações, nascidas do mexerico do povo simples, foram assim sancionadas pela autoridade do Imperador, que perseguia os cristãos e os condenava à morte.

A partir daquele momento (testemunha Tácito) acrescentou-se à conta dos Cristãos um novo crime: o ódio contra o gênero humano. Plínio o Jovem escreverá, ironicamente, que daquele momento em seguida poder-se-ia condenar qualquer um à morte.

Acusados de ateísmo

São muito poucas as notícias da perseguição que atingiu os Cristãos no ano 89, sob o imperador Domiciano. É, de particular importância, a notícia trazida pelo historiador grego Dione Cássio, que foi pretor e cônsul em Roma. Ele afirma no livro 67 da sua História Romana que sob Domiciano foram acusados e condenados "por ateísmo" (ateòtes) o cônsul Flávio Clemente e sua mulher Domitila, e com eles muitos outros que «tinham adotado os costumes judaicos».A acusação de ateísmo, nesse século, dirige-se a quem não considerava a majestade imperial como divindade absoluta. Domiciano, duríssimo restaurador da autoridade central, pretende o culto máximo à sua pessoa, centro e garantia da "civilização romana".

É admirável que um intelectual como Dione Cássio chame de "ateísmo" a recusa do culto ao imperador. Significa que em Roma não se admite nenhuma idéia de Deus que não coincida com a majestade imperial. Quem tem uma idéia diversa é eliminado como gravemente perigoso à "civilização romana".

Plínio o Jovem, governador da Bitínia no Mar Negro, estava voltando em 111 de uma inspeção em sua populosa e rica província quando um incêndio devastou a capital, Nicomédia. Muito poderia ter sido salvo se houvessem bombeiros. Plínio relata ao imperador Trajano (98-117): «Cabe-te, senhor, avaliar a necessidade criar uma associação de bombeiros de 150 homens. De minha parte, farei com que essa associação não acolha senão bombeiros…».Trajando responde recusando a iniciativa: «Não esqueças que a tua província está nas mãos de sociedades desse tipo. Qualquer que seja o seu nome, qualquer que seja a destinação que quisermos dar a homens reunidos em corporação, isso permite, sempre e rapidamente as hetérias. O temor das hetérias (nome grego das "associações") prevaleceu sobre o medo dos incêndios.

O fenômeno era antigo. As associações de qualquer tipo que se transformavam em grupos políticos tinham levado César a interditar todas as associações no ano 7 a. C.: «Quem quer que forme uma associação sem autorização especial, é passível das mesmas penas dos que atacam à mão armada os lugares públicos e os templos». A lei estava sempre em vigor, mas as associações continuavam a florescer: dos barqueiros do Sena aos médicos de Avenches, dos mercantes de vinho de Lion aos trombeteiros de Lamesi. Todas defendiam os interesses de seus inscritos fazendo pressões sobre os poderes públicos.

Plínio não demorou em aplicar a interdição das hetérias num caso particular que lhe foi apresentado no outono de 112. A Bitínia estava cheia de Cristãos: «É uma multidão de gente de todas as idades, de todas as condições, espalhada pelas cidades, nas aldeias e nos campos», escreve ao Imperador. Continua dizendo que recebeu denúncias dos construtores de amuletos religiosos, perturbados pelos Cristãos que pregavam a inutilidade de tais bugigangas.

Instituíra uma espécie de processo para conhecer bem os fatos, e tinha descoberto que eles costumavam «reunir-se num dia fixo, antes do levantar-se do sol, cantar um hino a Cristo como a um deus, empenhar-se com juramento a não cometer crimes, a não cometer nem roubos, nem assaltos, nem adultérios, e a não faltar à palavra dada. Eles têm também o hábito de reunir-se para tomar a própria refeição que, apesar dos boatos, é alimento ordinário e inócuo».Os cristãos não tinham cessado as reuniões nem mesmo depois do edito do governador que insistia na interdição das hetérias. Continuando a carta (10,96), Plínio refere ao Imperador que nada vê de mal nisso tudo. A recusa, porém, de oferecer incenso e vinho diante das estátuas do Imperador parece-lhe um ato sacrílego de desprezo. A obstinação dos Cristãos parece-lhe «irracional e tola».

Parece claro, da carta de Plínio, que caíram as absurdas acusações de infanticídio ritual e incesto. Permanecem a de «recusarem a oferecer culto ao Imperador» (portanto de lesa majestade), e da formação de hetérias.

O Imperador responde: «Os cristãos não devem ser perseguidos por ofício. Sendo, porém, denunciados e reconhecidos culpados, é preciso condená-los». Em outras palavras: Trajano encoraja a fechar um olho sobre eles: são uma hetéria inócua como os barqueiros do Sena e os vendedores de vinho de Lion. Uma vez, porém, que estão praticando uma «superstição irracional, tola e fanática» (como é julgada por Plínio e outros intelectuais do tempo, como Epíteto, e continuam a recusar o culto ao imperador (e portanto consideram-se «estranhos» à vida civil), não se pode fazer de conta que não há nada. Quando denunciados, sejam condenados.

Continua então (embora de forma menos rígida) o "Não é lícito ser cristão". Vítimas desse período são seguramente o bispo Simeão de Jerusalém, crucificado quando tinha 120 anos de idade, e Inácio Bispo de Antioquia, levado a Roma como cidadão romano, e aí justiçado. A mesma política, em relação aos Cristãos, é exercida pelos imperadores Adriano (117-138) e Antonino Pio (138-161).

Marco Aurélio: o cristianismo é uma loucura

Marco Aurélio (161 - 180), imperador filósofo, passou guerreando 17 dos seus 19 anos de império. Em suas Memórias, em que anotava todas as noites alguns pensamentos «para si mesmo», nota-se um grande desprezo pelo cristianismo. Considerava-o uma loucura porque propunha à gente comum, ignorante, uma maneira de comportar-se (fraternidade universal, perdão, sacrifício pelos outros sem esperar recompensa) que só os filósofos como ele podiam compreender e praticar ao final de longas meditações e disciplinas.

Ele proibiu, num rescrito de 176-7, que sectários fanáticos, com a introdução de cultos até então desconhecidos, pusessem em perigo a religião de Estado. A situação dos cristãos, sempre difícil, endureceu-se ainda mais com ele.

As comunidades florescentes da Ásia Menor, fundadas pelo apóstolo Paulo foram submetidas dia e noite a roubos e saques por parte da ralé. Em Roma, o filósofo Justino e um grupo de intelectuais cristãos foram condenados à morte. A florescente comunidade de Lion foi destruída sob a acusação de ateísmo e imoralidade. Pereceram entre torturas refinadas, também, a muito jovem Blandina, e Pôntico de quinze anos.

Os relatórios que chegaram até nós dão a entender que a opinião pública foi endurecendo em relação aos cristãos. Grandes calamidades públicas (das guerras à peste) despertaram a convicção de que os deuses estivessem encolerizados contra Roma. Quando percebeu-se que os cristãos ficavam ausentes das funções expiatórias, ordenadas pelo Imperador, o furor popular encontrou pretextos para excitar-se contra eles. A mesma situação continuou nos primeiros anos do imperador Cômodo, filho de Marco Aurélio. Sob o reinado de Marco Aurélio, a ofensiva dos intelectuais de Roma contra os Cristãos atingiu o auge.

«Freqüente e erroneamente - escreve Fábio Fuggiero - acredita-se que o mundo antigo tenha combatido a nova fé com as armas do direito e da política. Numa palavra, com as perseguições. Se isso pode ser verdade (embora apenas em parte) para o primeiro século da era cristã, já não o é a partir de meados do segundo século. Seja o mundo da "gentios" (= pagãos) seja a Igreja compreendem, mais ou menos na mesma época, a necessidade de combater-se e de dialogar no terreno da argumentação filosófica e teológica.

«A cultura antiga, treinada por séculos em todas as subtilezas da dialética, pode opor armas intelectuais refinadíssimas ao complexo doutrinal cristão e, logo, a própria Igreja, tomando consciência da força que o pensamento clássico exerce como freio da expansão do evangelho, vê a necessidade de elaborar um pensamento filosófico e teológico genuinamente cristão, mas capaz ao mesmo tempo, de exprimir-se numa linguagem e em categorias culturais inteligíveis por parte do mundo greco-romano, no qual se vem inserindo sempre mais».

As argumentações dos intelectuais anticristãos

As argumentações de Marco Aurélio (121-180), Galeno (129-200), Luciano, Pelegrino Proteo e, especialmente, Celso (que escreveram suas obras na segunda metade do século segundo) podem-se condensar assim:

«A 'salvação' da insignificatividade da vida, da desordem dos acontecimentos, do aniquilamento da morte, da dor, só pode ser encontrada numa 'sabedoria filosófica' por parte de uma elite de raros intelectuais. Trata-se de uma loucura o fato de os cristãos colocarem esta 'salvação' na 'fé' num homem crucificado (como os escravos) na Palestina (uma província marginal) e declarado ressuscitado.

«O fato de os cristãos crerem na mensagem do crucificado, que se dirige preferencialmente aos marginalizados e pobres (à 'poeira humana') e que pregue a fraternidade universal (numa sociedade bem escalonada em pirâmide e considerada como 'ordem natural') é outra loucura intolerável, que incomoda, que revira tudo. É preciso eliminar os Cristãos como transgressores da civilização humana».

A crítica dos intelectuais anticristãos volta-se contra a própria idéia de "revelação do alto", não baseada numa "sabedoria filosófica"; contra as Escrituras cristãs, que têm contradições históricas, textuais, lógicas; contra os dogmas "irracionais"; contra o fato do LOGOS de Deus fazer-se carne (Evangelho de João) e submeter-se à morte dos escravos; contra a moral cristã (fidelidade no matrimônio, honestidade, respeito pelos outros, ajuda recíproca), que pode ser alcançada por um pequeno grupo de filósofos, mas não certamente pela massa intelectualmente pobre.

Toda a doutrina cristã, para esses intelectuais, é loucura, como é loucura a pretensão da ressurreição (ou seja, da prevalência da vida sobre a morte), como é loucura a preferência de Deus pelos humildes e a fraternidade universal. É tudo irracional.

O filósofo grego Celso, em seu Discurso sobre a verdade, escreve: «Recolhendo gente ignorante, que pertence à mais vil população, os cristãos desprezam as honras e a púrpura, e chegam até mesmo a chamar-se indistintamente de irmãos e irmãs… O objeto de sua veneração é um homem punido com o último dos suplícios e, do lenho funesto da cruz, eles fazem um altar, como convém a depravados e criminosos».

As primeiras reações dos Cristãos

Por decênios, os cristãos permaneceram calados. Difundem-se com a força silenciosa da proibição. Opõem amor e martírio às acusações mais infamantes. É no segundo século que seus primeiros apologistas (Justino, Atenágoras, Taciano) negam, com a evidência dos fatos, as acusações mais infamantes, e procuram exprimir a própria fé (nascida em terra semítica e confiada a "narrações") em termos culturalmente aceitáveis por um mundo embebido de filosofia greco-romana. Os "tijolos" bem alinhados da mensagem de Jesus Cristo começam a ser organizados segundo uma estrutura arquitetônica que possa ser valorizada pelos greco-romanos. Serão Tertuliano, no Ocidente, e Orígenes, no Oriente (terceiro século), a darem uma forma sistemática e imponente a toda a "sabedoria cristã". Com os "tijolos" da mensagem de Jesus Cristo tentar-se-á delinear a harmonia da basílica romana, como depois, com o passar dos séculos, tentar-se-á delinear a ousadia da basílica gótica, a sólida pacatez da catedral românica, o fasto da igreja barroca…

A grave crise do terceiro século (200-300)

O século terceiro vê Roma em gravíssima crise. As relações entre Cristianismo e império romano transformam-se, embora nem todos o percebam. A grande crise é assim descrita pelo historiador grego Herodiano: «Jamais houve, nos duzentos anos passados, um tão freqüente suceder-se de soberanos, nem tantas guerras civis e contra os povos limítrofes, nem tantos movimentos de povos. Houve uma quantidade incalculável de assaltos a cidades no interior do Império e em muitos países bárbaros, de terremotos e pestilências, de reis e usurpadores. Alguns deles exerceram o comando longamente, outros mantiveram o poder por brevíssimo tempo. Algum deles, proclamado imperador e glorificado, permaneceu um só dia e logo desapareceu».

O Império Romano estendera-se progressivamente com a conquista de novas províncias. A conquista continuada permitira a exploração de sempre novas vastíssimas terras (o Egito era o celeiro de Roma, a Espanha e as Gálias, a sua vinha e o seu olival). Roma apossara-se de sempre novas minas (a Dácia tinha sido conquistada pelas suas minas de ouro). As guerras de conquista tinham providenciado multidões infinitas de escravos (prisioneiros de guerra), mão-de-obra gratuita.

Em meados do século terceiro (por volta de 250) percebeu-se que a festa acabara. A Leste, formara-se o poderoso império Sassânida, que fez duríssimos ataques aos Romanos. Em 260 foram capturados o imperador Valeriano e todo o seu exército de 70 mil homens, e devastadas as províncias do Leste. A peste acabou com as legiões supérstites e espalhou-se por todo o Império. Ao Norte formara-se um outro aglomerado de povos fortes: os Godos. Espalharam-se pela Mésia e pela Dácia. O Imperador Décio e o seu exército tinham sido massacrados em 251. Os Godos desceram devastando do Norte até Esparta, Atenas, Ravena. Eram terríveis os amontoados de destroços que deixavam. A maior parte das pessoas cultas, que não puderam ser substituídas, perderam a vida ou tornaram-se escravas. A vida regrediu ao estado primitivo e selvagem. A agricultura e o comércio foram aniquilados.

Nesse tempo de grave incerteza cai a segurança garantida pelo Estado. Agora são os gentios (=pagãos) que se tornam "irracionais", a confiar não mais na ordem imperial mas na proteção das divindades mais misteriosas e estranhas. Surge no Quirinal, em Roma, um templo à deusa egípcia Isis, o imperador Heliogábalo impõe a adoração do deu Sol, o povo recorre a ritos mágicos para manter a peste distante. Entretanto, mesmo no século terceiro dão-se anos de terríveis perseguições contra os cristãos. Não mais por causa da sua "irracionalidade" (num mar de gente que se entrega a ritos mágicos, o cristianismo é agora o único sistema racional), mas em nome da renascida limpeza étnica. Muitos imperadores, mesmo sendo bárbaros de nascimento, vêem no retorno à unidade centralizada a única via de salvação. E decretam a extinção dos cristãos, sempre mais numerosos, para lançar fora da etnia romana esse "corpo estranho", que se apresenta sempre mais como uma nova etnia, pronta a substituir aquela que já declina do império fundado nas armas, na rapina, na violência.

Setímio Severo, Maximino, Décio e Galo

Com Setímio Severo (193-211), fundador da dinastia siríaca, parece anunciar-se ao cristianismo uma fase de desenvolvimento não perturbado. Muitos cristãos ocupam posições influentes na corte. Só no décimo ano de seu reinado (202), o imperador muda radicalmente de atitude.

Em 202 surge um edito de Setímio Severo, que comina graves penas à passagem ao judaísmo e à religião cristã. A repentina mudança do imperador pode ser compreendida apenas pensando que ele percebera que os cristão estavam se unindo sempre mais fortemente numa sociedade religiosa universal e organizada, dotada de uma íntima forte capacidade de oposição que a ele, por considerações de política estatal, parece suspeita. As devastações mais vistosas foram sofridas pela célebre escola cristã de Alexandria e pelas comunidades cristãs da África.

Maximino Trace (235-238) teve uma reação violenta e brutal contra o que tinham sido amigos do seu predecessor, Alexandre Severo, tolerante com os cristãos. A igreja de Roma foi devastada com a deportação às minas da Sardenha dos dois chefes da comunidade cristã, o bispo Ponciano e o presbítero Hipólito.

A atitude para com os Cristãos não fora alterada entre a gente simples; demonstra-o a verdadeira caça aos cristãos desencadeada na Capadócia quando se acreditava ver neles os culpados de um terremoto. A revolta popular diz-nos o quanto os cristãos ainda fossem considerados "estranhos e maléficos" pelo povo. (Cf. K. Baus, Le origini, p. 282-287).

Sob o imperador Décio (249-251) desencadeia a primeira perseguição sistemática contra a Igreja, com a intenção de desenraiza-la para sempre. Décio (sucessor de Filipe o Árabe, muito favorável aos cristão, se não ele mesmo cristão), é um senador originário da Panônia, e muito apegado às tradições romanas. Sentindo profundamente a desagregação política e econômica do império, acreditou que podia restaurar a sua unidade recolhendo todas as energias ao redor dos protetores do Estado. Todos os habitantes são obrigados a sacrificar aos deuses e recebem, depois disso, um certificado.

As comunidades cristãs estão abaladas pela tempestade. Quem recusa-se ao ato de submissão é preso, torturado, justiçado: como o bispo Fabiano em Roma e, com ele, muitos sacerdotes e leigos. Em Alexandria houve uma perseguição acompanhada de saques. Na Ásia, os mártires foram numerosos; entre eles, os bispos de Pérgamo, Antioquia, Jerusalém. O grande estudioso Orígenes foi submetido a uma tortura desumana, e sobreviveu quatro anos aos suplícios, reduzido a uma larva humana.

Nem todos os Cristãos suportam a perseguição. Muitos aceitam sacrificar. Outros, mediante suborno, obtêm escondidamente os famosos certificados. Entre eles, segundo a carta 67 de Cipriano, estão pelo menos dois bispos espanhóis. A perseguição, que parece golpear até à morte a Igreja, termina com a morte de Décio em batalha contra os Godos na planície de Dobrug (Romênia). (Cf. M. Clèvont, I Cristiani e il potere. P. 179s).

Os setes anos seguintes (250-257) são de tranqüilidade para a Igreja, perturbada apenas em Roma por uma breve onda de perseguição quando o imperador Trebônio Galo (251-253) manda prender o chefe da comunidade cristã Cornélio, mandando-o em exílio a Centum Cellae (Civitavecchia). Sua conduta foi devida, provavelmente, à condescendência aos humores do povo, que atribuía aos cristãos a culpa pela peste que assolava o império. O cristianismo continuava a ser visto como "superstição" estranha e maléfica! (Cf. K. Baus, Le origini, p. 292).

Valeriano e as finanças do império

No quarto ano do reino de Valeriano (257) tem-se um improvisa, dura e cruenta perseguição dos cristãos. Não se tratou contudo de assunto religioso, mas econômico. Diante da precária situação do império, o conselheiro imperial (depois usurpador) Macriano induziu Valeriano a tentar tapar o rombo seqüestrando os bens dos cristãos ricos. Houve mártires ilustres (do bispo Cipriano ao papa Sisto II, ao diácono Loureço). Foi, porém, apenas um furto encoberto por motivos ideológicos, que terminou com o trágico fim de Valeriano. Em 259, ele caiu prisioneiro dos persas com todo o seu exército, foi obrigado à vida de escravo e morreu com tal.Os quarenta anos de paz que se seguiram, favoreceram o desenvolvimento interno e externo da Igreja. Muitos cristãos acederam a altos cargos do Estado e demonstraram-se homens capazes e honestos.

O desastre financeiro cai nos braços de Diocleciano

Em 271 o imperador Aureliano ordenou aos soldados e cidadãos romanos que abandonassem aos Godos a vasta província da Dácia e suas minas de ouro: a defesa daquelas terras já tinha custado muito sangue.

Como não existiam mais províncias a conquistar e explorar, todas as tenções voltaram-se para o cidadão comum. Sobre eles abateram-se taxas, corvéias (= manutenção de aquedutos, canais, esgotos, estradas, edifícios públicos…) sempre mais onerosos. Já não se sabia, literalmente, se o trabalho realizado era para sobreviver ou para pagar as taxas.

Em 284, depois de uma brilhante carreira militar, Diocleciano, de origem dálmata, foi aclamado imperador. Desde então as taxas seriam pagas per capita e per jugero, ou seja, um tanto por cada pessoa e por cada pedaço de terra cultivável.

A coleta das taxas foi confiada a uma atilada e imensa burocracia, que tornava impossível fugir ao fisco, punia de modo desumano quem conseguia fazê-lo e custava muitíssimo ao estado.

As taxas eram tão pesadas que tiravam a vontade de trabalhar. A solução foi proibir que se abandonasse o lugar de trabalho, o pedaço de terra que se cultivava, a oficina, o uniforme militar.

«Teve início, dessa forma - escreve F. Oertel, professor de história antiga na Universidade de Bonn - a feroz tentativa do Estado de espremer a população até à última gota… Sob Diocleciano é realizado um socialismo integral de estado: terrorismo de funcionários, fortíssima limitação da ação individual, progressiva interferência estatal, pesadas taxações».

Perseguições de Galério em nome de Diocleciano

Os primeiros vinte anos do reino de Diocleciano não molestaram os cristãos. Em 303, como um golpe de cena, desencadeou-se a última perseguição contra eles. «É obra de Galério, o "César" de Diocleciano», escreve F. Ruggiero. «Ele pôs fim em 303 à política prudente de Diocleciano, que se abstivera, embora nutrisse sentimentos tradicionalistas, de atos intransigentes e intolerantes». Quatro editos consecutivos (fevereiro de 303 - fevereiro de 304) impuseram aos cristãos a destruição das igrejas, o confisco dos bens, a entrega dos livros sagrados, a tortura até à morte para quem não sacrificasse em honra do imperador.

Como sempre, é difícil determinar os motivos que levaram Diocleciano a aprovar uma política do gênero. Pode-se supor que tenha sido objeto de pressões por parte de ambientes pagãos fanáticos, que estavam por detrás de Galério. Numa situação de "angústia difusa" (como diz Dodds), só o retorno à antiga fé de Roma poderia, segundo Galério e seus amigos, unificar o povo e persuadi-lo a enfrentar tantos sacrifícios. Era preciso retornar às vetera instituta, isto é, às antigas leis e à tradicional disciplina romana.

A perseguição atingiu a sua máxima intensidade no Oriente, especialmente na Síria, Egito e Ásia Menor. A Diocleciano, que abdicou em 305, sucedeu como "Augusto" Galério, e como "César" Maximino Daia, que se demonstrou mais fanático do que ele.Só em 311, seis dias antes de morrer de câncer na garganta, Galério emanou um irritado decreto com que detinha a perseguição. Com o decreto (que marcou historicamente a definitiva liberdade de ser cristão), Galério deplorava o obstinação, a loucura dos cristãos, que em grande número se tinham recusado a retornar à religião da antiga Roma; declarava que perseguir os cristãos tornara-se inútil; e exortava-os a rezar ao próprio Deus pela saúde do imperador.

Comentando o decreto, F. Ruggiero escreve: «Os cristãos foram um inimigo extremamente anômalo. Por mais de dois séculos Roma tinha procurado assimilá-los ao próprio tecido social… estavam fisicamente no interior da civitas Romana, mas por motivos diversos eram-lhe estranhos»; tinham finalmente determinado «uma radical transformação da própria civitas em sentido cristão».

A profunda revolução

As últimas perseguições sistemáticas do terceiro e quarto séculos resultaram ineficazes como aquelas esporádicas do primeiro e segundo séculos. A limpeza étnica invocada e apoiada pelos intelectuais greco-romanos não fora realizada. Porque?

Porque, à distância, as acusações indignadas de Celso resultaram o melhor elogio aos Cristãos: «recolhendo gente ignorante, pertencente à população mais vil, os cristãos desprezam as honras e a púrpura, e chegam até mesmo a chamar-se indistintamente de irmãos e irmãs».

O apelo à dignidade de toda pessoa, mesmo a mais humilde, a igualdade diante de Deus (o ponto mais revolucionário da mensagem cristã) tinha feito silenciosamente o seu caminho na consciência de tantas pessoas e de tantos povos, que os Romanos tinham relegado a posições miseráveis de nascidos escravos e de lixo humano.

As perseguições só se encerram totalmente depois do edito de Constantino I, em 321D.C..