De Jesus a Cristo
Um outro
ponto em relação ao qual existe amplo acordo entre os estudiosos do Novo
Testamento é ainda mais importante para compreender o desenvolvimento da
cristologia. Ele consiste no fato de que o Jesus histórico não reivindicou para
si o atributo da divindade, atributo este reivindicado para ele pelo pensamento
cristão posterior: ele não se compreendeu como Deus, ou o Deus Filho encarnado.
A encarnação divina, no sentido em que a teologia cristã usou a idéia, requer
que um elemento eternamente preexistente da divindade, o Deus Filho ou o Logos
divino, tenha se encarnado como um ser humano. Mas é extremamente improvável
que o Jesus histórico tenha concebido a si próprio de maneira semelhante a
esta. A bem da verdade, ele provavelmente teria rejeitado a idéia como
blasfema; um dos ditos a ele atribuídos reza: “Por que me chamas bom? Ninguém é
bom senão um só, que é Deus” (Mc 10,18).
É claro que
nenhuma afirmação sobre o que Jesus disse ou não disse, pensou ou não pensou,
pode ser feita com certeza. Mas a evidência existente levou os historiadores do
período a concluir, com um grau impressionante de unanimidade, que Jesus não
teve a pretensão de ser Deus encarnado. Hoje em dia existe uma concordância tão
geral a esse respeito que umas poucas citações representativas, mesmo tomadas
de autores que afirmam uma cristologia ortodoxa, serão suficientes para o nosso
presente propósito. Nessa linha, o falecido Arcebispo Michael Ramsey, que era
um erudito do Novo Testamento, escreveu: “Jesus não reivindicou divindade para
si” (Ramsey 1980, 39). Um contemporâneo seu, o especialista em Novo Testamento
C.F.D. Moule, disse: “Toda e qualquer defesa de uma cristologia ‘desde cima’
que dependesse da autenticidade das supostas reivindicações de Jesus acerca de
si próprio, em especial no Quarto Evangelho, seria efetivamente precária”
(Moule 1977, 136). Em um estudo importante das origens da doutrina da encarnação,
James Dunn conclui: “na tradição mais antiga sobre Jesus, não havia reais
evidências daquilo que poderia razoavelmente ser chamado uma consciência da
divindade” (Dunn 1980, 60). Além disso, Brian Hebblethwaite, defensor resoluto
da tradicional cristologia niceno-calcedoniana, admite: “já não é possível
defender a divindade de Jesus Cristo fazendo referência às reivindicações de
Jesus” (Hebblethwaite 1987, 74). Indo mais além, David Brown, outro leal
defensor de Calcedônia, diz: “há boas evidências sugerindo que [Jesus] jamais
viu a si mesmo como um objeto adequado de culto” e é “impossível basear
qualquer alegação em favor da divindade de Cristo em sua consciência, uma vez
que abandonemos o retrato tradicional refletido numa compreensão literal do Evangelho
de São João” (David Brown 1985, 108).
Essas
citações (que poderiam ser multiplicadas) refletem uma transformação notável
resultante do moderno estudo histórico-crítico do Novo Testamento. Até
aproximadamente cem anos atrás (como ainda hoje, de forma muito difundida, em
círculos não instruídos) tinha-se por certo que a crença em Jesus como Deus
encarnado firmava-se com toda segurança sobre seu próprio ensinamento
explícito: “Eu e o Pai somos um”; “Aquele que me viu, viu o Pai”; e assim por
diante. Agora, porém, para citar um dos mais recentes defensores de uma
cristologia calcedoniana, Adrian Thatcher: “dificilmente haverá um estudioso
competente do Novo Testamento que esteja preparado a defender a concepção de
que as quatro ocorrências do uso absoluto de “Eu sou” em João, ou mesmo a maior
parte dos outros usos, possam ser historicamente atribuídas a Jesus” (Thatcher
1990, 77).
Às vezes,
embora nem sempre, esse reconhecimento é associado à idéia de que Jesus se
tornou o Cristo ao ser ressuscitado por Deus. Esta idéia, por sua vez,
vincula-se a uma linha adocionista muito antiga do pensamento neotestamentário.
Como diz James Dunn: “a pregação cristã primitiva parece ter considerado a
ressurreição de Jesus como o dia de sua designação à filiação divina, como o
evento pelo qual ele se tornou Filho de Deus” (Dunn 1980, 36). Assim, a versão
lucana do discurso de Pedro em Pentecostes refere-se a Jesus como a “um homem
aprovado por Deus diante de vós com milagres, prodígios e sinais, os quais Deus
realizou por intermédio dele entre vós” (At 2,22), e diz: “A este Jesus Deus
ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas. (...) Esteja absolutamente
certa, pois, toda a casa de Israel, de que, a este Jesus que vós crucificastes,
Deus o fez Senhor e Cristo” (2,32.36). Além disso, Paulo fala de Jesus como de
um ser humano (“veio da descendência de Davi de acordo com a carne”) que foi
“poderosamente designado [horisthentos]
Filho de Deus, segundo o espírito de santidade, pela sua ressurreição dos
mortos” (Rm 1,3-4). Nesta cristologia, uma das mais antigas que já existiram, o
ser humano Jesus foi elevado a ocupar um papel único e extremamente exaltado
(embora não tenha sido elevado à condição divina) logo depois de sua morte.
Tudo isso
exclui a forma de apologética outrora popular, segundo a qual quem pretende ser
Deus deve ser ou louco, ou mau, ou Deus; e já que Jesus evidentemente não era
nem louco nem mau, deve ter sido Deus (e.g. Lewis 1955, 51-2). Com o
reconhecimento de que Jesus não pensou dessa forma a seu próprio respeito, a
discussão cristológica moveu-se daquela que outrora se supunha ser a rocha
firme da própria reivindicação de Jesus em direção ao terreno, muito menos
certo, das tentativas eclesiais subseqüentes de formular o sentido de sua vida.
Vale a pena
fazer uma pausa para refletir sobre a magnitude dessa mudança. Pelo menos do
século V até o final do século XIX os cristãos geralmente acreditavam que Jesus
se autoproclamara Deus Filho, a segunda pessoa de uma Trindade divina, que
vivia uma vida humana; e, conseqüentemente, seu discipulado incluía esta crença
como um artigo central da fé. Mas essa suposta autoridade dominical
dissolveu-se sob o impacto do exame histórico. Até um período comparativamente
recente, este resultado da pesquisa do Novo Testamento teria causado um choque
indescritível em círculos eclesiásticos; e numa época tão tardia como o século
XVI, em países protestantes, e como o século XVII, em países católicos, aqueles
que o propusessem teriam estado sob grave perigo de serem executados por
heresia. Na verdade, muitos dos resultados da pesquisa acadêmica dos séculos
XIX e XX provavelmente teriam sido considerados demoníacos pelos líderes da
Igreja em Nicéia e Calcedônia (2), ou por Tomás de Aquino e pelos outros
teólogos medievais, ou por Lutero e Calvino e pelos outros reformadores, ou
mesmo pelos cristãos em geral até apenas há algumas gerações atrás – como de
fato muitas vezes ainda o são entre a grande maioria dos cristãos que continuam
não tendo familiaridade com o estudo moderno da Bíblia. Esta ignorância por
parte dos membros da Igreja, que normalmente não perturba seus pastores, ainda
torna difícil discutir questões teológicas básicas na Igreja de maneira aberta
e genuinamente reflexiva.
Hoje,
muitos teólogos cristãos – mas não mais quase todos, como em gerações
anteriores – continuam a aderir ao dogma niceno-calcedônio. Agora, porém,
depois que seu fundamento centenário desmoronou, eles tiveram de encontrar uma
nova base para ele. Conseqüentemente, concluíram que a doutrina da encarnação
não requer o conhecimento ou consentimento do próprio Jesus histórico. Com
efeito, David Brown argumenta: “é incoerente supor que uma mente humana poderia
estar consciente de sua própria divindade” (Brown 1985, 109 e cap. 6). E,
respondendo ao “novo paradoxo do Deus encarnado que não sabe que é Deus
encarnado”, Brian Hebblethwaite protesta que “referir-se com indiferença à
noção de que Jesus era Deus mas não tinha consciência deste fato é o mesmo que
não captar a finalidade da cristologia quenótica” (Hebblethwaite 1979, 90). Em
outras palavras, na encarnação o Deus Filho auto-esvaziou-se dos atributos da
divindade a tal ponto que perdeu a consciência de ser Deus. Precisamos agora
(nos capítulos 6 e 7) considerar com todo cuidado a viabilidade ou
inviabilidade dessa idéia.
No entanto,
supondo por um instante – e para favorecer a argumentação – que a idéia de um
Deus encarnado que ignora sua própria divindade pode tornar-se inteligível,
levando a implicações aceitáveis, a nova pergunta será: como é possível que a
Igreja saiba algo de tamanha importância a respeito de Jesus, algo que ele
mesmo não sabia?
Esta
pergunta evocou quatro tipos diferentes de resposta, que às vezes aparecem
separadamente mas que, mais freqüentemente, surgem em várias combinações.
O primeiro
tipo de resposta envolve uma limitação do reconhecimento de que Jesus não tinha
consciência de sua própria divindade e tampouco a incluiu em seus ensinamentos.
Esta resposta sustenta que ele estava implicitamente consciente
dela em sua relação singularmente íntima e filial com o Pai celeste, e que ele
a ensinou implicitamente por
meio de suas ações, particularmente ao ab-rogar a lei de Moisés e ao perdoar
pecados. Portanto, ao construir sua doutrina da encarnação, a Igreja estava apenas
explicitando aquilo que estivera implicitamente embutido nos fatos desde o
princípio (3). Dada a natureza do caso, uma consciência implícita não é
suscetível de ser objeto de prova ou contraprova, e o ato de afirmá-la ou
negá-la tem de ser instigado por um posicionamento teológico mais amplo. Nessa
linha, o erudito católico-romano Gerald O’Collins admite “as dificuldades
inerentes à sondagem do conhecimento e da experiência interior de qualquer ser
humano – especialmente de um que viveu há quase dois mil anos atrás”, e
pergunta: “Quem de nós é suficientemente sábio ou santo para falar com uma
grande convicção acerca do conhecimento e da mente de Jesus? (O’Collins 1983,
184-5). Quem será de fato? E não obstante, a despeito disso, e mesmo numa
postura de desafio a isso, O’Collins sente-se capaz de afirmar com toda
confiança “uma autoconsciência e presença de si na qual [Jesus] estava
intuitivamente consciente de sua identidade divina” (185)!
Também
James Dunn supõe uma tal consciência implícita ao dizer: “Não podemos
reivindicar que o próprio Jesus acreditou ser o Filho de Deus encarnado; mas
podemos reivindicar que a doutrina a esse respeito, assim como se exprimiu no
pensamento cristão do final do primeiro século, foi, à luz da totalidade do
evento de Cristo, uma reflexão apropriada sobre a percepção do próprio Jesus
quanto à sua filiação e missão escatológica, bem como um detalhamento da mesma”
(Dunn 1980, 60). Esta frase merece atenção, construída que foi, com todo
cuidado, por um estudioso proeminente do Novo Testamento e crente decidido na
fórmula de Calcedônia. Observa-se, em primeiro lugar, que ela não aspira ir
além da noção pré-trinitária do “Filho de Deus” e chegar à idéia, esta sim
propriamente trinitária, do “Deus Filho”. Nota-se também que a frase faz uso da
noção altamente elástica do “evento Cristo”, que precisamos considerar a
seguir. Mas, passando ao largo destes pontos, o que foi “a percepção do próprio
Jesus quanto à sua filiação”? Foi a percepção ressaltada pelo uso da sua
expressão abba,
“pai querido”. Embora se discuta o significado preciso que tinha abba naquela época – e
James Barr recentemente defendeu com vigor a idéia de que a expressão não
possuía, de modo especial, o sentido íntimo que tantas vezes lhe foi atribuído,
mas simplesmente significava “pai”, usada por crianças ou por adultos (Barr
1988a, 1988b) –, e embora também se discuta a freqüência com que ocorria esta
expressão no discurso de outros carismáticos judeus (Dunn 1980, 26-7), não
pretendo oferecer resistência à concepção, amplamente aceita, de que o uso da
palavra por Jesus constituiu uma contribuição genuinamente nova à
espiritualidade ocidental. Considerar Deus como nosso Pai celeste não era de
maneira nenhuma algo novo, mas Jesus parece ter dotado a idéia de uma centralidade
e poder bastante distintos, e dessa forma ter iniciado, através de seu uso, um
novo desenvolvimento dentro daquilo que viria a ser o cristianismo. Pois na
Oração do Senhor ele ensinou seus discípulos a dirigir-se a Deus desse mesmo
modo familiar. Paulo posteriormente interpretou a prática no sentido de que ela
envolvia uma incorporação mística ou metafísica na vida do Cristo ressuscitado.
Mas nisso, como geralmente o fazia, Paulo acomoda Jesus à sua própria teologia,
tendo pouca consideração com a figura histórica. Contudo, é com certeza
inteiramente admissível que a consciência de Jesus acerca do Pai celeste tenha
sido muito mais vigorosa e intensa do que a de qualquer um de seus
contemporâneos. Temos porém de acrescentar, e mesmo enfatizar, que experimentar
Deus como Pai celeste não é o mesmo que experimentar a si mesmo, de maneira
única, como o Deus Filho, segunda pessoa de uma Trindade divina.
De mais a
mais, qual era a “missão escatológica” de Jesus referida por Dunn? Não era seu
chamamento para ser o último profeta, um ser humano que falaria em um momento
crucial como mensageiro de Deus? O papel do último profeta era único por não
poder voltar a repetir-se, de sorte que “Jesus teve a sensação de uma unicidade escatológica em
sua relação com Deus” (Dunn 1980, 28). Mas também isso está bem longe da
possibilidade de Jesus ter pensado ser, ele mesmo, Deus (i.é, o Deus Filho).
Assim
sendo, considerar esses dois elementos – o uso jesuânico da expressão abba e sua mensagem
escatológica – como suficientes para conferir uma autoridade dominical
implícita à crença da Igreja na divindade de Jesus é caminhar sobre um terreno
bastante movediço.
O que
fazer, porém, da sugestão de que ao “ab-rogar a lei de Moisés” e ao “perdoar
pecados” Jesus estava implicitamente reclamando para si uma autoridade divina?
Jesus de
fato ab-rogou a Torá, e de fato fez o que somente Deus pode fazer ao perdoar
pecados? Como a literatura demonstra, aqui há muito espaço para desacordo entre
os pesquisadores. Após um exame cuidadoso dos textos, E.P. Sanders diz:
“Encontramos uma situação em que Jesus efetivamente exigiu a transgressão da
lei: a exigência ao homem cujo pai morrera [“Segue-me, e deixa aos mortos o
sepultar seus próprios mortos”, Mt 8,22). Afora isso, o material nos evangelhos
não revela nenhuma transgressão da parte de Jesus. E, com uma única exceção,
segui-lo não implicou transgressão por parte de seus seguidores. Por outro
lado, existem claras evidências de que ele não considerou a dispensação mosaica
da lei como final e absolutamente vinculatória”; e Sanders sugere, como razão
para isso, que “foi a sensação que tinha Jesus de estar vivendo na virada de
uma era para outra que lhe permitiu pensar que a lei mosaica não era final e
absoluta” (Sanders 1985, 267). E ele conclui com referência ao perdão dos
pecados: “A reivindicação muitas vezes repetida de que Jesus ‘colocou-se no
lugar de Deus’ é exagerada. Freqüentemente se diz que ele fez tal coisa ao
perdoar pecados; precisamos observar, contudo, que ele somente pronunciava o
perdão, o que não é prerrogativa de Deus, e sim do sacerdócio.
Estes são
pontos do tipo sobre o qual continuarão por muito tempo a existir argumentos,
em ambas as direções, por parte dos especialistas no Novo Testamento. Existem
diversas outras passagens relevantes que são debatidas, particularmente a
parábola da vinha, em que o filho é morto (Mc 12,1-11; Mt 21,33-41; Lc
20,9-18); e o seguinte dito de Marcos: “Mas a respeito daquele dia ou daquela
hora ninguém sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão somente o Pai” (Mc
13,32); bem como o de Mateus: “Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém
conhece o Filho senão o Pai; e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a
quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,27). A autenticidade de cada uma destas
passagens enquanto ditos de Jesus tem sido seriamente questionada, e seu
significado muito debatido. Mas, ao invés de tentar fazer um exame detalhado de
cada uma delas, será suficiente citar aqui a conclusão a que chega James Dunn
ao cabo de sua discussão detalhada de todos os materiais sinóticos que têm
relação com a autocompreensão de Jesus: “Justamente quando nosso questionamento
alcança o tópico decisivo (Tinha Jesus consciência de ser o Filho divino de
Deus?), descobrimos que ele é incapaz de proporcionar uma resposta histórica
clara” (Dunn 1980, 29). As evidências não concedem uma prova, ou mesmo um grau
objetivo de probabilidade. Deve haver juízo histórico na ponderação de
considerações divergentes; e as conclusões tiradas desses exercícios de
ponderação inevitavelmente refletem a perspectiva e o compromisso mais gerais
do autor. Neste ponto concordo com a observação de David Brown sobre a
“situação de jogo entre os especialistas” com respeito à autoconsciência de
Jesus, observação no sentido de que “o teólogo filosófico não pode deixar de
suspeitar que razões apologéticas estão por trás de boa parte da energia
devotada à questão” (David Brown 1985, 107). Com efeito, muitas vezes existe
uma circularidade no uso da Escritura a fim de estabelecer conclusões
teológicas debatidas. De modo geral, uma postura teológica mais ampla toma a
dianteira, levando uma seleção de textos a partir do largo espectro de
materiais neotestamentários a coadunar-se com aquela posição. Por conseguinte,
seria perigoso basear uma fé na divindade de Jesus no juízo histórico segundo o
qual ele mesmo reclamou, implicitamente, tal divindade para si. Caso já se
tenha aceito uma forma de cristologia ortodoxa, pode-se razoavelmente
interpretar algumas das palavras e ações de Jesus, assim como são apresentadas
pelos escritores dos evangelhos, como sustentação implícita daquela crença. Mas
parece estar claro que não é possível chegar de modo justificado à crença
simplesmente a partir das evidências do Novo Testamento assim como estas são
analisadas e interpretadas até agora pela comunidade de pesquisadores.
Uma segunda
resposta diante da descoberta de que o próprio Jesus não reivindicou ser Deus
encarnado é o uso do conceito “evento Cristo”. Esta idéia útil, porque
elástica, é vastamente utilizada no presente para afastar a pressão colocada
contra o pilar da autoridade dominical – que já se descobriu ser oco –,
deslocando-a para o fato historicamente sólido da doutrina da Igreja. Aqui
supõe-se que o “evento Cristo” consiste não só na vida de Jesus, mas também na
formação da Igreja e no crescimento de sua fé na divindade de Jesus. É este
conjunto maior de fatores, e não as próprias palavras e ações de Jesus, que se
declara agora oferecer a autorização da crença de que ele foi o Deus encarnado.
A noção do
“evento Cristo” parece ter surgido pela primeira vez na interpretação
existencialista do Novo Testamento proposta por Rudolf Bultmann, interpretação
segundo a qual a fé cristã não é uma resposta ao Jesus de Nazaré em grande
parte desconhecido, mas sim à noção atual de Jesus como o Cristo; deste modo,
sempre que “o Cristo” é proclamado, tem-se uma “continuação do evento de
Cristo” (Bultmann 1955, 286). Na obra de Bultmann, o uso da idéia do evento
Cristo refletia um forte ceticismo histórico e a conseqüente mudança de uma
compreensão ontológica para uma compreensão existencialista de Cristo. No
entanto, na obra de outro estudioso do Novo Testamento, John Knox, o evento
Cristo possui um sentido eclesiástico (e portanto social) em vez de um sentido
existencial (e mais individual). A fé cristã não está centrada somente na
pessoa de Jesus de Nazaré, mas na memória desenvolvida pela Igreja – não,
porém, uma memória comum no sentido literal, mas uma “memória” metafórica –
acerca dele como seu Senhor divino (Knox 1967, 2s). Para Knox, “A expressão ‘Jesus
Cristo nosso Senhor’ não designa primordialmente um indivíduo histórico do
passado, mas uma realidade presente efetivamente experimentada dentro da vida
comunitária” (Knox 1967, 2). Na verdade: “A Igreja é a realidade cristã distintiva (...). E é
porque a Igreja é corpo
[de Cristo] e, na história, seu único corpo, que muitas vezes usamos as
palavras ‘Cristo’ e ‘Igreja’ de maneira intercambiável, dizendo ‘em Cristo’
quando queremos referir-nos ao que realmente significa estar – e realmente
estar – na Igreja. É esta corporificação ou encarnação (isto é, a Igreja) que é
mais imediatamente conhecida –
na verdade, a única que é imediatamente conhecida. (...) E por isso digo mais
uma vez: a Encarnação originalmente não teve lugar dentro dos limites da
existência particular de um indivíduo, mas sim na nova realidade comunitária,
em princípio coextensiva com a humanidade, da qual ele foi o centro criativo”
(Knox 1967, 66-7).
A esta
altura somente irei tecer um comentário e fazer uma pergunta. O comentário
resume-se em dizer que este tipo de pensamento, no qual o cristianismo já não
está centrado na pessoa de Jesus, mas sim na Igreja, afastou-se um bom trecho
da crença tradicional de que Jesus, o indivíduo histórico, foi ele próprio o
Deus Filho encarnado. E a pergunta inevitável torna-se então: a Igreja cristã,
como uma realidade dentro da história humana, tem sido tão gloriosamente
diferente de todas as outras sociedades humanas a ponto de justificar-se uma
reivindicação sua à divindade? Pensar em Jesus como um ser divino de algum modo
faz sentido, intuitivamente falando; mas faz o mesmo sentido pensar a Igreja
cristã como algo divino?
Outros
teólogos contemporâneos importantes utilizam o conceito do evento Cristo como
uma forma de consertar a tessitura da doutrina ortodoxa, danificada após os
efeitos da crítica do Novo Testamento. Assim, John Macquarrie diz que o
uso dessa concepção em certa medida minimiza os problemas que surgem de nossa
falta de informação a respeito do Jesus histórico. Digamos que a vinda à
existência por parte da Igreja ou do movimento cristão é mais visível e
claramente atestada na história do que a carreira pessoal do rabino de Nazaré.
E se pensamos que tanto Jesus como a comunidade são abarcados pelo evento
Cristo, isso não significa apenas ser fiel ao caráter inevitavelmente social de
toda existência humana, mas dissolve também algumas questões que costumavam ser
debatidas com alguma veemência entre homens de igreja, que discordavam sobre o
que vem de Jesus e o que vem da comunidade. Por exemplo: se os assim chamados
sacramentos “dominicais” foram instituídos por Jesus ou por seus seguidores, ou
talvez em parte por ambos, torna-se uma questão de pouca importância a partir
do momento que se reconhece não existir uma linha divisória nítida entre Jesus
e a comunidade. Em alguns dos livros mais antigos sobre cristologia,
atribuía-se ainda mais importância à questão como Jesus se autocompreendia. Ele
considerava a si mesmo como Messias, ou designava-se Filho do Homem em algum
sentido escatológico especial desse termo? Foi ele o primeiro a aplicar a si
mesmo a imagem do servo sofredor do Dêutero-Isaías? Ele considerou a si mesmo
como alguém que se encontrava em uma relação única com o Pai? Ou algumas dessas
formas de pensar, ou quem sabe todas elas, originaram-se entre os seus
discípulos? Penso que não pode haver nenhuma resposta segura a estas questões.
Mas acho também que a importância destas questões foi exagerada. Nós não
necessitamos conhecer os pensamentos íntimos de Jesus, e, de qualquer modo, não
podemos conhecê-los. Quando o colocamos em seu contexto e reconhecemos que ele
não pode ser abstraído de sua comunidade e das respostas dessa comunidade para
ser composto a partir dos títulos aplicados a ele, então muitas de nossas
questões, embora continuem a possuir um certo interesse histórico, deixam de
ser tão decisivas em cristologia (Macquarrie 1990, 21-2).
Vê-se aqui
como pode ser útil a idéia do “evento Cristo” na tarefa de dissipar questões
potencialmente explosivas. Já não importa como Jesus se autocompreendeu. Já não
importa, por exemplo, se ele se considerou como alguém que se encontrava em uma
relação única com o Pai celeste. Isso porque a encarnação consiste, para
Macquarrie, na existência da comunidade cristã, incluindo-se nisso as crenças
que a mesma desenvolveu acerca de Jesus. Assim, afirmar a encarnação é afirmar
a Igreja e a narrativa cristã pela qual esta vive; e isso não requer um juízo
prévio ou independente de que a narrativa seja literalmente verdadeira. Uma
posição um tanto semelhante é apresentada por Schubert Ogden quando diz que “o
sujeito real da asserção cristológica não é o Jesus histórico ou, como agora
podemos dizer mais precisamente, o Jesus empírico-histórico, em relação ao qual o
estrato mais antigo do testemunho cristão deve ser usado como fonte histórica.
Antes, o sujeito da asserção cristológica é o Jesus existencial-histórico, em
relação ao qual este mesmo estrato mais antigo do testemunho cristão desempenha
o papel um tanto diferente da norma teológica” (Ogden 1982, 56).
Contudo, o
conceito do “evento Cristo” tem o mérito de chamar a atenção para algo
importante. O significado da vida de alguém para outras pessoas não consiste
apenas na realidade concreta daquela vida em si, mas também na(s) forma(s) em
que este alguém é percebido, reverenciado ou denegrido, recordado e respondido
pelos outros. Isso é verdadeiro a respeito de todas as figuras históricas,
tanto boas como más, sejam elas São Francisco ou Átila, George Washington ou
Hitler. Elas se tornaram parte da história pública em termos das memórias e
narrativas, das lealdades e dos ódios dos outros, sendo conhecidas pelos
valores que se considera encarnarem. Isso também é verdade em relação a Jesus.
Sabemos a seu respeito somente porque outros responderam a ele e ainda outros
responderam às respostas destes, de sorte que se desenvolveu um movimento que,
de modo quase inevitável, veio a considerá-lo divino no sentido extremamente
elástico em que figuras religiosas e políticas proeminentes muitas vezes eram tidas
como divinas no mundo antigo. Esta divindade “fraca”, expressa na metáfora
“filho de Deus”, finalmente se desenvolveu até chegar à reivindicação
metafísica “forte” de que Jesus era o Deus Filho, segunda pessoa de uma
Trindade divina, encarnada. Mas usar o conceito do “evento Cristo” para validar
este desenvolvimento implica estender de maneira arbitrária aquele “evento”
altamente flexível no mínimo até o Concílio de Nicéia (325 dC), incluindo, de
preferência, o Concílio de Calcedônia (451 dC).
A terceira
resposta à falta de autoconsciência divina em Jesus ou, de qualquer modo, à
falta de qualquer indicação de uma tal autoconsciência, tem um parentesco
íntimo com isso. Porém, ao invés de utilizar o conceito do “evento Cristo”, e
estendê-lo a fim de incluir o desenvolvimento da ortodoxia trinitária, ela fala
do Espírito Santo como o guia da Igreja em seu desenvolvimento teológico. Esta
é principalmente uma posição católico-romana. Por isso diz M. Schmaus: “O que o
Espírito Santo concedeu aos discípulos foi uma compreensão verdadeira de Jesus
Cristo e de sua obra” (Schmaus 1972, 42); e Hugo Meynell afirma a respeito da
evolução da cristologia da Igreja: “Do ponto de vista cristão ortodoxo, este
desenvolvimento deve ser, em última análise, atribuído à providência divina”
(Meynell 1986, 107). O Vaticano II declarou: “Esta tradição que vem dos
apóstolos desenvolve-se na Igreja com o auxílio do Espírito Santo” (Abbott
1966, 116 – Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina, cap. 2, par. 8). E
o Cardeal Ratzinger chega a dizer o seguinte a respeito da história da Igreja:
“Esta história é, em sua totalidade, uma manifestação do Espírito Santo”
(Ratzinger 1987, 131). Como anglicano, Richard Swinburne afirma que a revelação
divina exige ou uma autoridade interpretativa infalível, que pode ser
representada pelo papa ou pelos concílios (ou por ambos), ou “uma direção geral
de Deus, que permite erros aqui e ali mas que garante a estrutura básica da fé”
(Swinburne 1989, 82-3). E Stephen Davis, protestante evangélico, diz da
cristologia de Calcedônia: “Confesso uma forte crença de que a Igreja foi
conduzida à doutrina clássica pelo Espírito Santo” (Davis 1988, 43). A
pretensão de que a orientação divina incidiu sobre a teologia da Igreja em
desenvolvimento é instigada pelas imensas diferenças entre essa teologia e a
mensagem do próprio Jesus. Mas deveria ser evidente que um apelo ao Espírito
Santo nada pode acrescentar à defesa da verdade do dogma de Calcedônia ou de
qualquer outro. Ao propor o dogma adicional de que aqueles que criaram o dogma
original foram divinamente guiados, simplesmente se desloca o ponto de debate:
de uma crença de primeira ordem passa-se à crença de segunda ordem de que a
crença de primeira ordem é divinamente garantida. Mas não temos nenhum modo de
determinar se os concílios foram de fato divinamente inspirados, a não ser
avaliando seus pronunciamentos. Se podemos aceitar estes pronunciamentos como
verdadeiros, poderíamos aceitar que os autores foram inspirados ao fazê-los; do
contrário, não. Aqui existe uma circularidade óbvia: acredita-se que o dogma é
verdadeiro porque os concílios ecumênicos foram divinamente guiados ao
declará-lo verdadeiro, e acredita-se que foram divinamente guiados porque se
acredita que o dogma é verdadeiro. Aqui não há escapatória da questão relativa
aos fundamentos de primeira ordem do dogma. Assim, esta terceira resposta acaba
sendo enganosamente redundante.
A quarta
linha de resposta ao reconhecimento de que o Jesus histórico não se
autoconcebeu como Deus encarnado tem se dado no abandono do Jesus terreno em
favor do Cristo celestial ou cósmico (na tradição católica) ou do Jesus
ressuscitado experimentado no presente (no protestantismo evangélico), ambos
entendidos como o objeto da fé cristã.
O enfoque
católico é expresso por Eric Mascall: “É básico para a nossa fé o fato de que o
Cristo que conhecemos hoje é o Cristo histórico, mas, para nos familiarizarmos
com ele, não dependemos da pesquisa dos historiadores ou dos arqueólogos. Ele
também é o Cristo celestial, e como tal é o objeto de nossa experiência
presente, mediado através da vida sacramental da Igreja” (Mascall 1985, 38-9).
A linguagem
evangélica de que “Jesus está comigo”, “guiando minhas decisões” e assim por
diante, reflete um tipo de experiência religiosa de alcance mundial, na qual se
sente que um guru ou um deus está espiritualmente presente junto ao crente.
Pense-se, por exemplo, no hino cristão “No Jardim”, com seu refrão “Ele anda
comigo, fala comigo e me diz que sou seu”; ou no spiritual que reza: “Tenho
uma conversinha com Jesus e lhe conto meus pesares”; e termina dizendo: “Uma
simples conversinha com Jesus faz tudo ficar bem, bem, bem”. Em provável
continuidade com isso – do ponto de vista da descrição psicológica – está a
vívida impressão, relatada com abundância, de que uma pessoa querida já morta
(em geral recentemente) encontra-se presente de modo invisível, confortando,
guiando ou desafiando alguém em alguma situação do presente.
Eu
absolutamente não desejaria excluir a possibilidade de que as pessoas que
morreram possam às vezes estar presentes dessa forma para os vivos, e que isso
também pode ter sido verdade no tocante a Jesus durante os dias e semanas que
sucederam sua morte. Mas a experiência evangélica de estar falando hoje com um
Jesus invisível – ou algumas vezes, no caso dos católicos, com uma Virgem Maria
invisível ou com um santo glorificado – deve ser entendida, juntamente com a
percepção do Cristo cósmico, de um modo que também se aplica a fenômenos
comparáveis dentro de outras tradições religiosas. Um sem-número de exemplos de
experiências vivas daquilo que se considera ser uma presença divina pessoal
encontramos no livro de William James, Varieties
of Religious Experience (3ª Conferência), bem como na coleção
de textos contemporâneos Seeing
the Invisible: Modern Religious and Other Transcendent Experiences,
textos estes extraídos dos relatos compilados pelo Centro de Pesquisa Alister
Hardy em Oxford. Esses relatos registram muitos casos de uma experiência de
encontro com Jesus, esboçada com base nas narrativas dos Evangelhos (Maxwell
1990, 78-9, 83, 104-5, 142, 150, 166). Existem relatos similares, tirados de
fontes hindus, acerca do encontro com o Senhor Krishna (Klostermeier, 1969, 15)
ou com a Mãe Kali (Isherwood 1965, 65s). Às vezes ouve-se uma voz, e às vezes a
experiência é cercada de uma luz brilhante (James 1960, 251s; Maxwell 1990,
165), de forma idêntica ao exemplo de Paulo no caminho de Damasco. Como no caso
de todas as formas de experiência religiosa, são possíveis tanto uma
interpretação religiosa como uma interpretação naturalista. Do ponto de vista
naturalista, todas essas experiências devem ser vistas como alucinações. Do
ponto de vista religioso, porém, elas devem ser testadas por meio de seus
frutos; e, se estes promovem a transformação humana salvífica que leva do
autocentramento a um novo centramento na Realidade divina, elas devem ser
aceitas como modos pelos quais o Transcendente veio à consciência na
experiência de pessoas formadas pelas diferentes tradições. Assim, tais
experiências são, conjuntamente, produtos da presença universal do Real último;
das circunstâncias especiais que fazem com que, em momentos particulares, os
indivíduos se abram àquela realidade; e dos conceitos e imagens em termos dos
quais sua experiência consciente é construída.
Acabamos de
tomar conhecimento das várias formas em que os teólogos responderam ao fato de
Jesus não ter pretendido ser Deus encarnado. E vimos que nenhuma dessas formas
pode eximir os defensores da deificação de Jesus da tarefa de justificar um
passo tão importante. Uma tal justificação implica demonstrar duas coisas: que
o processo pelo qual se produziu a deificação é um processo que podemos
considerar válido; e que a doutrina daí resultante é coerente e crível em si
mesma.
Mas, antes
de examinar a coerência da doutrina tradicional, vamos considerar, no próximo
capítulo, a maneira pela qual ela parece ter surgido enquanto um objeto da
história.
A afirmação
eclesial da divindade de Jesus
Nossa
próxima tarefa, então, será considerar o desenvolvimento histórico desde o
Jesus de Nazaré terreno ao Cristo divino da fé, da teologia, da pregação e dos
sacramentos cristãos ortodoxos. Como foi que ocorreu essa transição imensamente
significativa? Ao fazer esta pergunta, temos de avaliar a diferença entre o ambiente
intelectual do primeiro século da era cristã e o ambiente de nosso Ocidente
moderno industrializado, dominado pela ciência e secularizado. Eis aqui algumas
palavras de James Dunn que recomendam cautela: “Quando os primeiros cristãos
chamaram Jesus de ‘filho de Deus’, que significado teria isso para os seus
ouvintes? (...) precisamos fazer o esforço de sintonizar nossa maneira de
escutar a fim de ouvir com os ouvidos dos contemporâneos dos primeiros
cristãos. Devemos tentar cumprir a tarefa extremamente difícil de banir de
nossas mentes as vozes dos antigos Padres da Igreja, dos concílios e dos
teólogos dogmáticos ao longo dos séculos; e isso se no caso de terem afogado as
vozes mais antigas, e de as vozes mais antigas tiverem dito algo diferente, e
estas pretendessem que suas palavras falavam a seus ouvintes com uma força
diferente” (Dunn 1980, 13-14). De nosso ponto de vista hodierno, seriam
necessários milagres de fazer tremer a terra, que revirassem toda a concepção
de mundo secular já estabelecida, para que um indivíduo histórico fosse
considerado também Deus. Isso porque, sob a influência de séculos de pensamento
cristão, passamos a significar com a palavra “Deus” o eterno, o onipotente e
onisciente criador do universo. No mundo antigo, porém, o conceito de divindade
era definido de maneira muito menos clara, e as condições para seu uso eram
marcadas por exigências muito menores. Aquele era um mundo em que havia, na
expressão de São Paulo, “muitos deuses e muitos senhores” (1Cor 8,5). Assim,
para citar novamente o Arcebispo Michael Ramsey: “O título ‘Filho de Deus’ não
precisa por si mesmo possuir grande significado, pois em círculos judeus ele
poderia significar o mesmo que o Messias ou inclusive a nação israelita como um
todo, e no helenismo popular havia muitos filhos de Deus, entendendo-se, sob
isso, homens santos e inspirados” (Ramsey 1980, 43). Explicando ainda mais o
tema, Dunn destaca que, no mundo romano do período do Novo Testamento, as
palavras “divino” e “filho de Deus”, e mesmo “Deus”, eram usadas de modo mais
ou menos intercambiável. Heróis “eram freqüentemente chamados de ‘divinos’ em
Homero e, de Augusto em diante, ‘divino’ tornou-se um termo fixo no culto
imperial, ‘o César divino’. Na outra ponta do mesmo espectro, o termo poderia
simplesmente significar ‘pio’, ‘piedoso’. (...) Mais uma vez descobrimos que os
heróis eram às vezes chamados de ‘deuses’; e que ‘deus’ era um título comum de
imperadores e reis a partir dos tempos h será saudado como o Filho de Deus, e o
chamarão Filho do Altíssimo” Esse uso flexível e permissivo continuou , 16-17).
Referindo-se
especificamente ao conceito “filho de Deus”, Dunn diz que alguns dos
heróis legendários do mito grego eram chamados filhos de Deus – em particular
Dioniso e Hércules eram filhos de Zeus com mães mortais. Governantes orientais,
especialmente egípcios, eram chamados filhos de Deus. Sobretudo os ptolomeus do
Egito reivindicaram o título de “filho de Hélio” a partir do século IV aC, e no
tempo de Jesus a expressão “filho de Deus” (huios
theou) era muito utilizada com referência a Augusto. Também de
filósofos famosos, como Pitágoras e Platão, dizia-se às vezes que foram gerados
por um Deus (Apolo). E na filosofia estóica pensava-se que Zeus, o ser supremo,
era o pai de todos os homens (...) (Dunn 1980, 17).
Dunn
conclui: “A linguagem da filiação divina e da divindade possuía uso difundido e
variado no mundo antigo e teria sido familiar aos contemporâneos de Jesus, de
Paulo e de João num amplo leque de aplicações” (Dunn 1980, 17). Evidência adicional
disso é que os manuscritos do Mar Morto se referem a alguém que “será chamado
filho do Grande Deus. Ele será saudado como o Filho de Deus, e o chamarão Filho
do Altíssimo”. Esse uso flexível e permissivo continuou a existir por um bom
período de nossa era cristã. Escrevendo em torno do ano 200, Clemente de
Alexandria, por exemplo, afirmou: “Também alguns dos indianos obedecem aos
preceitos de Buda que, por causa de sua extraordinária santidade, eles elevaram
às honras divinas” (Clemente 1956, 316; Livro I, cap. 15). Deter honras
divinas, ser divino, ser um deus ou um filho de Deus eram todos itens
pertencentes ao mesmo amplo espectro do divino.
Em vista
desta elasticidade da idéia de divindade no mundo antigo, inclusive no judaísmo
do primeiro século, não é de modo algum surpreendente ou notável que Jesus
viesse a ser tido como alguém pertencente à classe das pessoas divinas. Mesmo
durante sua vida, a sua qualidade especial de santo profeta e impressionante
pregador e curandeiro bem pode ter sido reconhecida dessa forma. Como diz o
especialista em Novo Testamento Maurice Casey: “Jesus podia ter sido chamado
filho de Deus por qualquer um que pensasse ser ele uma pessoa particularmente
justa: dada a sua habilidade como exorcista, pessoas que acreditavam estar
possuídas pelo mal bem poderiam ter usado aquele termo com referência a uma
figura tão obviamente santa e eficaz” (Casey 1991, 46). E após a sua morte e os
eventos da ressurreição, quando ele veio a ser identificado por seus seguidores
como o Messias, da linhagem real de Davi, o título “filho de Deus” de novo
seria natural e apropriado. De fato, podemos até mesmo dizer que teria sido
surpreendente se Jesus não tivesse compartilhado da difundida divinização
honorífica de figuras religiosas destacadas, e se a metáfora hebraica de “filho
de Deus” não tivesse sido aplicada a ele.
Digo
“metáfora”, muito embora no mundo antigo não se traçasse com nitidez a nossa
distinção moderna entre o uso literal da linguagem e seus vários usos
metafóricos e não-literais de outra espécie. Na tradição hebraica, o
significado de um acontecimento lembrado pessoal ou comunitariamente, ou então
de uma pessoa encontrada nessas mesmas formas, era prontamente expresso em
termos metafóricos e míticos. Aquela era “uma cultura acostumada à expansão, ao
estilo do Midrash”
(Casey 1991, 52). Com efeito, toda a linguagem bíblica a respeito de Deus e de
suas manifestações no mundo é, em bem grande parte, metafórica. Deus é descrito
nas Escrituras hebraicas como rei, pastor, pai e rocha. No Novo Testamento, a
imagem-chave é a do pai, de sorte que esta imagem e sua imagem correlativa de
um filho tornaram-se centrais no discurso cristão. Em seu uso escriturístico
original, todas estas são – em termos de nossa distinção moderna –, de modo
manifesto, metáforas. Literalmente, um pai é um ascendente masculino imediato.
Deus, porém, é espírito, para além da distinção biológica entre masculino e
feminino, e não gera filhos de modo literal – se bem que a idéia do “nascimento
virginal” de Jesus (ou mais precisamente: da concepção virginal) chegue
perigosamente próxima disso. Mas, quando falamos de Deus como nosso Pai
celeste, estamos fazendo uso de uma metáfora poderosa que retrata a atitude
divina com a humanidade como sendo, de uma maneira importante, análoga à de um
pai ou mãe ideais.
Assim
sendo, no caso da linguagem do “filho de Deus”, temos aquilo que era, no mundo
antigo, uma metáfora amplamente utilizada e prontamente compreendida, ainda que
a teologia cristã subseqüente viesse a tratá-la como uma linguagem dotada de
sentido literal. Citarei aqui o erudito judeu Geza Vermes: “A expressão ‘filho
de Deus’ sempre foi entendida metaforicamente em círculos judeus. Nas fontes
judaicas, seu uso jamais implica a participação da pessoa assim denominada na
natureza divina. Em conseqüência, pode-se seguramente presumir que, se o meio
no qual a teologia cristã se desenvolveu tivesse sido hebraico e não grego, ela
não teria produzido uma doutrina da encarnação assim como esta é
tradicionalmente compreendida” (Vermes 1983, 72).
No entanto,
pareceu a alguns, e pode ser o caso, que Paulo constitui uma exceção ou uma
exceção parcial pelo fato de ter sido alguém cujo modo de pensar era
distintamente judeu, mas que, não obstante isso, chegou até a idéia de Jesus
como o único Filho de Deus encarnado. Paulo pode ser compreendido, e de fato o
foi, de várias maneiras; isto porque (em suas cartas) ele é geralmente
exortativo e retórico e não preciso em termos conceituais. Ao invés de escrever
teologia sistemática, ele prega a grupos cristãos com suas particularidades.
Fala de Jesus como o Senhor Jesus Cristo e como o Filho de Deus; e em sua
última carta, aos colossenses – se é que esta é de Paulo (muitos especialistas
duvidam disso) –, sua linguagem se move na direção da deificação. Naturalmente,
porém, a pergunta é: o que esta linguagem significou para o escritor e seus
leitores no primeiro século? A imagem central utilizada por Paulo, a de pai e
filho, sugere inevitavelmente (e sugeriu com ênfase ainda maior no mundo
antigo) a subordinação do filho ao pai. E nos escritos de Paulo não é possível
dizer que Deus e o Filho de Deus sejam co-iguais, como mais tarde se declarou
serem as pessoas da Santíssima Trindade. A noção de Jesus como Filho de Deus é,
na verdade, pré-trinitária. A posição teológica de Paulo, cuidadosamente
enunciada na Epístola aos Romanos, parece – segundo o sermão petrino de
Pentecostes narrado por Lucas em Atos – afirmar que Jesus foi um homem elevado
por Deus, em sua ressurreição, a um status especial
e importante de maneira única. A respeito de Jesus, Paulo diz que, “segundo a
carne, ele veio da descendência de Davi, e foi poderosamente demonstrado Filho
de Deus, segundo o espírito de santidade, pela sua ressurreição dos mortos” (Rm
1,3-4). O papel subordinado do Filho é deixado claro de modo ainda mais
inequívoco em 1Cor, onde, ao falar da futura ressurreição geral, Paulo diz que
Cristo irá aparecer primeiro, “depois os que são de Cristo, na sua vinda. E
então virá o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver
destruído todo principado, bem como toda potestade e poder. Porque convém que
ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo dos seus pés. (...)
Quando, porém, todas as coisas lhe estiverem sujeitas, então o próprio Filho
também se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja
tudo em todos” (1Cor 15,23-28).
Contudo,
tem-se argumentado, com base no tema da quenose do hino em Fl 2,5-11 (“a si
mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tendo nascido em semelhança de
homens [...]”), e em passagens como Gl 4,4 (“Deus enviou seu Filho, nascido de
mulher [...]”), que para Paulo Jesus era um ser preexistente que Deus enviou ao
mundo – uma idéia que poderia estar ligada a concepções judaicas de entidades
intermediárias (Sabedoria, Palavra, anjos) entre Deus e a humanidade. Nesse
caso, Paulo está mais próximo da idéia desenvolvida da encarnação divina do que
sugere o conteúdo geral de seus escritos. Mas a questão demonstrou ser
altamente discutível, e na verdade pertence ao tipo de questões objetivamente
sem solução na exegese do Novo Testamento, e provavelmente continuarão a
alimentar pontos de vista conflitantes. James Dunn conclui, após um exame cabal
de todos os textos relevantes: “É possível que nas duas passagens, ao falar do
Deus que envia seu Filho (Rm 8,3 e Gl 4,4), ele pretenda supor que o Filho de
Deus era preexistente e se encarnou como Jesus; mas é igualmente verossímil, de
fato provavelmente mais verossímil, que o sentido pretendido por Paulo não se
estenda tão longe, e que nestes momentos ele e seus leitores simplesmente
pensavam, em relação a Jesus, que ele era a pessoa encarregada por Deus de
participar totalmente da fragilidade, do cativeiro e do pecado humano, e cuja
morte realizou o propósito libertador e transformador de Deus para com o ser
humano” (Dunn 1980, 46). Mas uma vez que, a esta altura, faz pouca diferença se
Paulo estava mais próximo das interpretações mais antigas ou mais tardias
acerca de Jesus, nesta questão, não irei além deste ponto. De modo provisório,
considero que seu pensamento está mais ou menos na altura de um terço do
caminho histórico que conduz da designação honorífica do Jesus humano como
“filho de Deus” – e a seguir mais especificamente como “o filho de Deus” (com o
F maiúsculo suplantando, no devido momento, o f minúsculo) –, até se chegar,
finalmente, após vários séculos de debates, a designá-lo como o Deus Filho,
segunda pessoa de uma Trindade divina.
A Igreja
que crescia e se desenvolvia tinha de explicar as suas crenças em termos
filosóficos aceitáveis, tanto para a cultura de fala grega do mundo
mediterrâneo como para si mesma; e, depois da conversão do imperador
Constantino ao cristianismo, a paz do Império passou a exigir um conjunto
unitário de crenças cristãs. Por isso, Constantino convocou em 325 o Concílio
de Nicéia, “com o propósito de restaurar a concórdia na Igreja e no império”
(Pelikan 1985, 52); e foi nele que pela primeira vez a Igreja adotou
oficialmente, da cultura grega, o conceito não-bíblico de ousia, declarando que Jesus,
como o Deus Filho encarnado, era homoousios
toi patri, da mesma substância que o Pai. As metáforas bíblicas
originais foram daí por diante relegadas, para propósitos teológicos, ao nível
da linguagem popular que aguardava interpretação, ao passo que uma definição
filosófica tomou o seu lugar para objetivos oficiais. Um filho de Deus
metafórico se transformara no Deus Filho metafísico, segunda pessoa da
Trindade. O significado político disso foi que o imperador cristão possuía
agora o status de
vice-rei de Deus na terra. Assim, ao escrever sobre a vitória de Constantino
diante de seu rival Licínio, o historiador contemporâneo Eusébio diz que
Constantino e seu filho, “sob a proteção de Deus, o Rei universal, tendo o
Filho de Deus, Salvador de todos, como seu líder e aliado, juntaram suas forças
de todos os lados contra os inimigos da Divindade, chegando a uma fácil
vitória” (Eusébio 1952, 386; Livro X, cap. 9, par. 4).
A
formulação nicena foi aumentada, com o uso da mesma conceptualidade filosófica,
no Concílio de Calcedônia em 451, afirmando que Cristo era “homoousios com o Pai
quanto à sua divindade, e ao mesmo tempo homoousios conosco quanto à nossa
humanidade (...), dado a conhecer em duas naturezas [que existem] sem confusão,
sem modificação, sem divisão, sem separação (...)”. E é esta formulação de
Calcedônia que, desde então, constituiu a linguagem cristã oficial a respeito
de Cristo.
A linguagem
metafórica da Bíblia cria de modo natural comunicação com todos que habitam ou
possam adentrar imaginativamente em seu universo de discurso. Ainda temos pais
e filhos, e, menos universalmente, reis e pastores como parte de nosso mundo
conceitual; e, fazendo valer apenas um pouco de esforço imaginativo, podemos
apreciar o hábito antigo de conceber uma pessoa espiritualmente próxima de
Deus, como um servo fiel de Deus, tal como um Filho de Deus. Metáforas como
esta estabelecem comunicação com sucesso, porque foram formadas dentro do
discurso ordinário da época. Mas a fórmula de Calcedônia é um artefato
filosófico, que contém todo o sentido fixado por ela, nada mais nada menos.
Fórmulas como esta impressionam precisamente porque seu único sentido é técnico
e conhecido apenas dos eruditos. Contudo, um minucioso exame crítico e de cunho
filosófico dessas construções conceptuais sempre deve estar na ordem do dia. E
nesse caso, precisa-se considerar a possibilidade de que a fórmula, que à
primeira vista parece tão firme e definitiva, seja incapaz de ser explicada de
qualquer maneira religiosamente aceitável. A intenção por trás dela era excluir
qualquer compreensão de Jesus que negasse, quer sua divindade plena e
autêntica, quer sua humanidade plena e autêntica. Mas talvez isso não possa ser
feito! Se a fórmula é constituída de tal maneira que qualquer explicação
pormenorizada de seu significado venha a ter implicações que entram em conflito
com um ou outro daqueles desideratos, então a fórmula representa um fracasso.
Se todas as tentativas de explicá-la revelam-se inaceitáveis, ela somente pode
funcionar como um pronunciamento ritual, cujo sentido não deve ser examinado
muito de perto e que somente pode servir para inibir e ensandecer o pensamento.
Esta é a
lição, creio eu, dos debates cristológicos iniciados já antes da época de
Nicéia e conduzidos até os dias de hoje. Naturalmente é impossível provar que
ninguém conseguirá, no futuro, tornar inteligível a fórmula das duas naturezas
de modo válido em termos religiosos. Segundo penso, porém, é possível mostrar
que isso ainda não foi feito, a despeito de tantos entre os melhores cérebros
cristãos terem tentado fazê-lo, ou apesar de terem recuado diante da tarefa
como algo irrealizável, geração após geração.