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quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Richard A. Horsley, John P. Meier, e a figura histórica de Jesus


Numa incrível viagem à Palestina do século 1, historiadores e arqueólogos reconstituem com era a vida do homem comum que se tornou o filho de Deus para os mais de 2 bilhões de cristãos.

Cristo está em toda parte: nas obras mais importantes da história da arte, nos roteiros de Hollywood, nos letreiros luminosos de novas igrejas, nas canções evangélicas em rádios gospel, nos best-sellers de auto-ajuda, nos canais de televisão a cabo, nos adesivos de carro, nos presépios de Natal. Onde você estiver, do interior da floresta amazônica às montanhas geladas do Tibete, sempre será possível deparar com o símbolo de uma cruz, pena de morte comum no Império Romano à qual um homem foi condenado há quase 2 mil anos. Para mais de 2 bilhões de pessoas esse homem era o próprio messias ("Cristo", do grego, o ungido) que ressuscitara para redimir a humanidade.

Embora o mundo inteiro (inclusive os não-cristãos) esteja familiarizado com a imagem de Cristo, até há bem pouco tempo os pesquisadores eram céticos quanto à possibilidade de descobrir detalhes sobre a vida do judeu Yesua (Jesus, em hebraico), o homem de carne e osso que inspirou o cristianismo. "Isso está começando a mudar", diz o historiador André Chevitarese, professor de História Antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos especialistas no Brasil sobre o "Jesus histórico" - o estudo da figura de Jesus na história sem os constrangimentos da teologia ou da fé no relato dos evangelhos. Embora tragam detalhes do que teria sido a vida de Jesus, os evangelhos são considerados uma obra de reverência e não um documento histórico. Chevitarese e outros pesquisadores acreditam que, apesar de não existirem indícios materiais diretos sobre o homem Jesus, arqueólogos e historiadores podem ao menos reconstruir um quadro surpreendente sobre o que teria sido a vida de um líder religioso judeu naquele tempo, respondendo questões intrigantes sobre o ambiente e o cotidiano na Palestina onde ele vivera por volta do século I.

NAZARÉ, ENTRE 6 E 4 A.c.

Uma aldeia agrícola com menos de 500 habitantes, cuja paisagem é pontuada por casas pobres de chão de terra batida, teto de estrados de madeira cobertos com palha, muros de pedras coladas com uma argamassa de barro, lama ou até de uma mistura de esterco para proteger os moradores da variação da temperatura no local. Segundo os arqueólogos, essa é a cidade de Nazaré na época em que Jesus nasceu, provavelmente entre os anos 6 e 4 a.c., no fim do reinado de Herodes. Isso mesmo: segundo os historiadores, Jesus deve ter nascido alguns anos antes do ano 1 do calendário cristão. "As pessoas naquele tempo não contavam a passagem do tempo como hoje, por meio da indicação do ano", explica o historiador da Unicamp Pedro Paulo Funari. "O cabeçalho dos documentos oficiais da época trazia apenas como indicação do tempo o nome do regente do período, o que leva os pesquisadores a crer que Jesus teria nascido anos antes do que foi convencionado."

Estudos históricos sobre a vida dos judeus da Palestina no século 1 a.C.
indicam que Jesus nasceu em Nazaré e que tinha irmãos

Se você também está se perguntando por que os historiadores buscam evidências do nascimento de Jesus na cidade de Nazaré - e não em Belém, cidade natal de Jesus, de acordo com os evangelhos de Mateus e Lucas -, é bom saber que, para a maioria dos pesquisadores, a referência a Belém não passa de uma alegoria da Bíblia. Na época, essa alegoria teria sido escrita para ligar Jesus ao rei Davi, que teria nascido em Belém e era considerado um dos messias do povo judeu. Ou seja: a alcunha "Jesus de Nazaré" ou "nazareno" não teria derivado apenas do fato de sua família ser oriunda de lá, como costuma ser justificado.

Mesmo que os historiadores estejam certos ao afirmarem que o nascimento em Belém seja apenas uma alegoria bíblica, o entorno de uma casa pobre na cidade de Nazaré daquele tempo não deve ter sido muito diferente do de um estábulo improvisado como manjedoura. Como a residência de qualquer camponês pobre da região, as moradias eram ladeadas por animais usados na agricultura ou para a alimentação de subsistência.

Jesus deve ter tido uma infância comum, dividida entre brincadeiras com os
irmãos e ajuda nas tarefas profissionais da família

A dieta de um morador local era frugal: além do pão de cada dia (no formato conhecido no Brasil hoje como pão árabe), era possível contar com azeitonas (e seu óleo, o azeite, usado também para iluminar as casas), lentilhas, feijão e alguns incrementos como nozes, frutas, queijo e iogurte. De acordo com os arqueólogos, o consumo de carne vermelha era raro, reservado apenas para datas especiais. O peixe era o animal consumido com mais freqüência pela população, seco sob o sol, para durar. A maioria dos esqueletos encontrados na região mostra deficiência de ferro e proteínas. Essa parca alimentação é coerente com relatos como o da multiplicação dos pães, no Evangelho de Mateus, no qual os discípulos, preocupados com a fome de uma multidão que seguia Jesus, mostram ao mestre cinco pães e dois peixes, todo o alimento de que dispunham.

Se alguém presenciasse o nascimento de Jesus, provavelmente iria deparar com um bebê de feições bem diferentes da criança de pele clara que costuma aparecer nas representações dos presépios. Baseados no estudo de crânios de judeus da época, pesquisadores dizem que a aparência de Jesus seria mais próxima da de um árabe (de cabelos negros e pele morena) que da dos modelos louros dos quadros renascentistas. Seu nome, Jesus, uma abreviação do nome do herói bíblico Josué, era bastante comum em sua época. Ainda na infância, deve ter brincado com pequenos animais de madeira entalhada ou se divertido com rudimentares jogos de tabuleiro incrustados em pedras.

Nossa Senhora de ísis. De onde pode ter se originado uma das mais belas imagens cristãs. O Cristianismo sofreu influências de diversas religiões da época de Jesus. Se você acha que conhece a imagem ao lado, é bom dar uma olhada com um pouco mais de atenção. À primeira vista, ela parece, de fato, representar a Nossa Senhora embalando o menino Jesus. Mas não é. A imagem da estátua é uma representação da deusa egípcia ísis oferecendo o peito a seu filho Hórus. Apesar de não haver como provar que as imagens de Nossa Senhora tenham sido inspiradas diretamente em representações como essa, os pesquisadores sabem que o cristianismo sofreu, em seus primórdios, a influência de diversos cultos que faziam parte dos mundos egípcio e greco-romano. "Desde seu início, o cristianismo tinha uma diversidade assombrosa", diz o professor de Teologia Gabriele Cornelli, da Universidade de Brasília. Na região do Egito, por exemplo, prevalecera o chamado cristianismo gnóstico, cujos textos revelam um Jesus bem mais parecido com um monge oriental. Alguns historiadores acreditam até que alguns cristãos gnósticos possam ter sido influenciados por missionários budistas vindos da índia.

Quanto à família de Jesus, os pesquisadores não acreditam que ele tenha sido filho único. Afinal, era comum que famílias de camponeses tivessem mais de um filho para ajudarem na subsistência da família. Isso poderia explicar o fato de os próprios evangelhos falarem em irmãos de Jesus, como Tiago, José, Simão e Judas. "As igrejas Ortodoxa e Católica preferiram entender que o termo grego adelphos, que significa irmão, queria dizer algo próximo de discípulo, primo", diz Chevirarese.

Assim como outros jovens da Galiléia, é provável que ele não tenha tido uma educação formal ou mesmo a chance de aprender a ler e escrever, privilégio de poucos nobres. Ainda assim, nada o impediria de conhecer profundamente os textos religiosos de sua época transmitidos oralmente por gerações.

POLÍTICA, RELIGIÃO, SEXO

Desde aquele tempo, a região em que Jesus vivia já era, digamos, um tanto explosiva. O confronto não se dava, é claro, entre judeus e muçulmanos (o profeta Maomé só iria receber sua revelação mais de cinco séculos depois). A disputa envolvia grupos judaicos e os interesses de Roma, cujo império era o equivalente, na época, ao que os Estados Unidos são hoje. E, assim como grupos religiosos do Oriente Médio resistem atualmente à ocidentalização dos seus costumes, diversos grupos judaicos da época se opunham à influência romana sobre suas tradições.

O LUXO QUE VEM DE ROMA Diferentemente de Jesus, nobres judeus viviam muito bem obrigado. Para a elite judaica que vivia na Palestina do século I, levar uma vida com requinte e elegância era sinônimo de viver como os romanos. Escavações arqueológicas em Jerusalém e outras cidades indicam uma clara influência da arquitetura e da decoração de Roma no interior das mansões. Para criar uma atmosfera palaciana, era comum, no interior das casas, a reprodução de afrescos e desenhos decorativos com motivos florais e geométricos. Em ambientes maiores, as colunas no estilo romano eram indispensáveis, assim como o uso de mármore para o acabamento dos detalhes - quem não podia pagar pelo mármore usava uma tinta de cor parecida para manter a aura palaciana. Fontes, vasos vitrificados e pisos de mosaico colorido também faziam parte do sonho de consumo dos novos ricos de Jerusalém, que costumavam receber os amigos influentes recostados confortavelmente no TRICLINIUM, espécie de divã usado na hora das refeições. Resquícios da importação de vinhos e outros ingredientes nobres da cozinha mediterrânea, como o garum, um molho especial de peixe típico da cidade de Pompéia, também foram encontrados no interior das mansões. Algumas delas deviam ter uma vista privilegiada para o Templo de Jerusalém, de onde os nobres podiam assistir confortavelmente à movimentação dos peregrinos ou mesmo à condenação à morte de rebeldes judeus.

Na verdade, fazia séculos que os judeus lutavam contra o domínio de povos estrangeiros. Antes de os romanos chegarem, no ano 63 a.c., eles haviam sido subjugados por assírios, babilônios, persas, macedônios, selêucidas e ptolomeus. Os judeus sonhavam com a ascensão de um monarca forte como fora o rei Davi, que por volta do século 10 a.c. inaugurara um tempo de relativa estabilidade. Não é à toa, Davi ficaria lembrado como o messias (ungido por Javé) e, assim como ele, outros messias eram aguardados para libertar o povo judeu.

A resistência aos romanos se dava de maneiras variadas. A primeira delas, e mais feroz, era identificada como simples banditismo. Nessa categoria estavam bandos de criminosos formados por camponeses miseráveis que atacavam comerciantes, membros da elite romana ou qualquer desavisado que viajasse levando uma carga valiosa.

O peixe, pescado no mar da Galileia, fazia parte do cardápio fundamental
das famílias de Nazaré da época. Para conservar o alimento, ele era seco sob o sol.

Além do banditismo, havia a resistência inspirada pela religião, principalmente a dos chamados movimentos apocalípticos. De acordo com os seguidores desses movimentos, Israel estava prestes a ser libertado por uma intervenção direta de Deus que traria prosperidade, justiça e paz à região. A questão era saber como se preparar para esse dia.

Alguns grupos, como os zelotes, acreditavam que o melhor a fazer era se armar e partir para a guerra contra os romanos na crença de que Deus apareceria para lutar ao lado dos hebreus. Para outros grupos, como os essênios, a violência era desnecessária e o melhor mesmo a fazer era se retirar para viver em comunidades monásticas distantes das impurezas dos grandes centros. E Jesus, de que lado estava?

É quase certo que Jesus tenha tido contato com ao menos um líder apocalíptico de sua época, que preparava seus seguidores por meio de um ritual de imersão nas águas do rio Jordão. Se você apostou em João Batista, acertou.

O curioso é que, para a maioria dos pesquisadores, incluindo aí o padre católico John P. Meier, autor da série sobre o Jesus histórico chamada 'Um Judeu Marginal', o movimento apocalíptico de João Batista deve ter sido mais popular, em seu tempo, do que a própria pregação de Jesus. Os historiadores acreditam que é bem provável que Jesus, de fato, tenha sido batizado por João Batista nas margens do rio Jordão, e que o encontro deve ter moldado sua missão religiosa dali em diante.

Os relatos escritos sobre o tempo de Jesus têm, em sua maioria caráter religioso, como os chamados Manuscritos do Mar Morto, encontrados em cavernas próximas a Qumram em Israel

Apesar de não haver nenhuma restrição para que um líder religioso judeu tivesse relações com mulheres em seu tempo, ninguém sabe ainda se entre as práticas espirituais de Jesus estaria o celibato. Da mesma forma, afirmar que ele teve relações com Maria Madalena, como no enredo de livros como 'O Código Da Vinci', também não passaria de uma grande especulação.

UMA MORTE MARGINAL

O pesquisador Richard Horsley, professor de Ciências da Religião da Universidade de Massachusetts, em Boston, é categórico: a morte de Jesus na cruz em seu tempo foi muito menos perturbadora para o Império Romano do que se costuma imaginar. Horsley e outros pesquisadores desapontam os cristãos que imaginam a crucificação como um evento que causara, em seu tempo, uma comoção generalizada, como naquela cena do filme 'O Manto Sagrado' em que nuvens negras escurecem Jerusalém e o mundo parece prestes a acabar. Apesar de ter sido uma tragédia para seus seguidores e familiares, a morte do judeu Yesua deve ter passado praticamente despercebida para quem vivia, por exemplo, no Império Romano. Ou seja: se existisse uma rede de televisão como a CNN, naquele tempo, é bem possível que a morte de Jesus sequer fosse noticiada. E, caso fosse, dificilmente algum estrangeiro entenderia bem qual a diferença da mensagem dele em meio a tantas correntes do judaísmo do período - assim como poucas pessoas no Ocidente compreendem as diferenças entre as diversas correntes dentro do Islã ou do budismo.

Os pesquisadores sabem, no entanto, que Jesus não deve ter escolhido por acaso uma festa como a Páscoa para fazer sua pregação em Jerusalém. A data costumava reunir milhares de pessoas para a comemoração da libertação do povo hebreu do Egito. No período que antecedia a festa, o ar tornava-se carregado de uma forte energia política. Era quando os judeus pobres sonhavam com o dia em que conseguiriam ser libertados dos romanos."

Para a elite judaica que vivia em Jerusalém, contudo, as manifestações anti-Roma não eram nada bem-vindas. Afinal, como ela se beneficiava da arrecadação de impostos da população de baixa renda, boa parte dela tinha mais a perder que a ganhar com revoltas populares que desafiassem os dirigentes romanos, cujos estilos de vida eram copiados por meio da construção de suntuosas vilas (espécie de chácaras luxuosas) nas cercanias de Jerusalém.

OS OUTROS MESSIAS: Os lideres religiosos judeus que não emplacaram na história. Na época de Jesus, a figura do messias esperado para libertar o povo judeu era muito diferente da nossa atual concepção do messias cristão. Para início de conversa, o messias do povo hebreu não precisava ser nenhum santo. Podia ter várias mulheres (como tivera o rei Davi) e devia empregar a violência, caso fosse necessário, para garantir a autonomia do povo hebreu frente a seus inimigos. Não é à toa que, décadas antes e depois da morte de Jesus, diversos outros homens identificados como messias lideraram movimentos religiosos na região. Por volta do ano 4 a.c., por exemplo, um homem conhecido como Judas, filho de Ezequias, liderou uma revolta contra Herodes na cidade de Séforis, na Galiléia. Judas e seus seguidores chegaram a invadir um palacete na cidade para roubar armas para seu exército de oposição aos romanos. No mesmo ano, outras revoltas foram desencadeadas pelos líderes messiânicos Simão e Astronges. O principal objetivo desses movimentos era derrubar a dominação romana e restaurar os ideais tradicionais do povo hebreu. Na década de 60 do século I, o líder Simão Bar Giora organizou um exército de camponeses que chegou a assumir o controle de diversas regiões da Palestina daquele século. De acordo com os historiadores, o último e mais famoso líder messiânico a comandar uma revolta contra os romanos na região foi o judeu Bar Kokeba. Entre os anos 132 e 135, Kokeba teria liderado uma batalha sem precedentes contra os romanos, conquistando territórios por meio de uma tática de guerrilha que incluía esconderijos em cavernas e construção de fortalezas em montanhas. A rebelião somente foi aniquilada depois que o poderoso Exército romano mobilizou uma força maciça para pôr fim à guerra que se arrastava pelo terceiro ano. Não deixa de ser emblemático o fato de que o pacifico Jesus de Nazaré tenha ficado para a história como o "verdadeiro messias" - logo ele, que nunca liderara um exército.

A própria opulência do Templo do Monte de Jerusalém, reconstruído por Herodes, o Grande, parecia uma evidência de que a aliança entre os romanos e os judeus seria eterna. A construção era impressionante até mesmo para os padrões romanos, o que fazia de Jerusalém um importante centro regional em sua época.

Em meio às festas religiosas, o comércio da cidade florescia cada vez mais. Vendia-se de tudo por lá, incluindo animais para serem sacrificados no templo. Os mais ricos podiam comprar um cordeiro para ser sacrificado e quem tivesse menos dinheiro conseguia comprar uma pomba no mercado logo em frente. A cura de todos os problemas do corpo e da alma (na época, as doenças eram relacionadas à impureza do espírito) passava pela mediação dos rituais dos sacerdotes do templo.

Não é difícil imaginar a afronta que devia ser para esses líderes religiosos ouvir que um judeu rude da Galiléia curava e livrava as pessoas de seus pecados com um simples toque, sem a necessidade dos sacerdotes. A maioria dos pesquisadores concorda que atos subversivos como esses seriam suficientes para levar alguém à crucificação.

Quase tudo o que os pesquisadores conhecem sobre a crucificação deve-se à descoberta, em 1968, do único esqueleto encontrado de um homem crucificado em Giv'at há-Mivtar, no nordeste de Jerusalém. Após uma análise dos ossos, eles concluíram que os calcanhares do condenado foram pregados na base vertical da cruz, enquanto os braços haviam sido apenas amarrados na travessa. A raridade da descoberta, deve-se a um motivo perturbador: a pena da crucificação previa a extinção do cadáver do condenado, já que o corpo do crucificado deveria ser exposto aos abutres e aos cães comedores de carniça. A idéia era evitar que o túmulo do condenado pudesse servir de ponto de peregrinação de manifestantes. De qualquer forma, a descoberta desse único esqueleto preservado prova que, em alguns casos, o corpo poderia ser reivindicado pelos parentes do morto, o que talvez tenha acontecido com Jesus.

O que aconteceu após sua morte?

Para os pesquisadores, a vida do Jesus histórico encerra-se com a crucificação. "A ressurreição é uma questão de fé, não de história", diz Richard Horsley.

Tudo o que os historiadores sabem é que, apesar de pequeno, o grupo de seguidores de Jesus logo conseguiria atrair adeptos de diversas partes do mundo. E foi um dos novos convertidos, um ex-soldado que havia perseguido cristãos e ganhara o nome de Paulo, que se tornaria uma das pedras fundamentais para a transformação de Jesus em um símbolo de fé para todo o mundo. Com sua formação cosmopolita, Paulo lutou para que os seguidores de Jesus trilhassem um caminho independente do judaísmo, sem necessidade de obrigar os convertidos a seguirem regras alimentares rígidas ou, no caso dos homens, ser obrigados a fazer a circuncisão. A influência de Paulo na nova fé é tão grande que há quem diga que a mensagem de Jesus jamais chegaria aonde chegou caso ele não houvesse trabalhado com tanto afinco para sua difusão.

O templo de Jerusalém era o centro político, econômico, social e religioso do mundo em que viveu Jesus. Para lá convergiam mercadores, bandidos, profetas e revolucionários.

Mesmo para quem não acredita em milagres, não há como negar que Paulo e os outros seguidores de Jesus conseguiram uma proeza e tanto: apenas três séculos após sua morte, transformaram a crença de uns poucos judeus da Palestina do século I na religião oficial do Império Romano. Por essa época, a vida do judeu Yesua já havia sido encoberta pela poderosa simbologia do Cristo: assim como os judeus sacrificavam cordeiros para Javé, o Cristo se tornaria símbolo do cordeiro enviado por Deus para tirar os pecados do mundo. Desde então, a história de boa parte do mundo está dividida entre antes e depois de sua existência.

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SAIBA MAIS

LIVROS:

Excavating Jesus - Beneath the Stones, Behind the Texts, John Dominic Crossan e Jonathan l. Reed, Harper San Francisco, 2002

O diferencial do livro está no fato de ele trazer as descobertas arqueológicas mais importantes para que se possa entender como era a vida no tempo de Jesus.

Bandidos, Profetas e Messias, Richard A. Horsley e John S. Hansom. Paulus, 1995

O melhor guia para quem quer compreender os diversos movimentos religiosos e políticos no tempo de Jesus.

Jesus, uma Biografia Revolucionária, John Dominic Crossan, Imago, 1995

Um retrato fascinante sobre o que podemos saber sobre a figura histórica de Jesus escrito por um dos maiores especialistas sobre o tema.

Um Judeu Marginal- Repensando o Jesus Histórico, John P. Meier, Imago, 1992

Uma obra corajosa sobre a vida marginal de Jesus em seu tempo escrita com rigor, erudição e clareza

Jesus de Nazaré, uma Outra História, André Chevitarese, Gabriele Cornelli, Mônica Selvatici (or95.), Annablume Editora, 2006

Coletânea de artigos dos maiores especialistas brasileiros sobre o Jesus histórico

Jesus, Coleção Para Saber Mais, Rodrigo Cavalcante e André Chevitarese, Editora Abril, 2003

Introdução rápida sobre a figura do Jesus na história escrita pelo autor desta reportagem em parceria com o historiador André Chevitarese

Revista Aventuras na História

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Richard Horsley e o dossiê: Jesus de Nazaré

Numa incrível viagem à Palestina do século 1, historiadores e arqueólogos reconstituem com era a vida do homem comum que se tornou o filho de Deus para os mais de 2 bilhões de cristãos.

Cristo está em toda parte: nas obras mais importantes da história da arte, nos roteiros de Hollywood, nos letreiros luminosos de novas igrejas, nas canções evangélicas em rádios gospel, nos best-sellers de auto-ajuda, nos canais de televisão a cabo, nos adesivos de carro, nos presépios de Natal. Onde você estiver, do interior da floresta amazônica às montanhas geladas do Tibete, sempre será possível deparar com o símbolo de uma cruz, pena de morte comum no Império Romano à qual um homem foi condenado há quase 2 mil anos. Para mais de 2 bilhões de pessoas esse homem era o próprio messias (“Cristo”, do grego, o ungido) que ressuscitara para redimir a humanidade.

Embora o mundo inteiro (inclusive os não-cristãos) esteja familiarizado com a imagem de Cristo, até há bem pouco tempo os pesquisadores eram céticos quanto à possibilidade de descobrir detalhes sobre a vida do judeu Yesua (Jesus, em hebraico), o homem de carne e osso que inspirou o cristianismo. “Isso está começando a mudar”, diz o historiador André Chevitarese, professor de História Antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos especialistas no Brasil sobre o “Jesus histórico” – o estudo da figura de Jesus na história sem os constrangimentos da teologia ou da fé no relato dos evangelhos. Embora tragam detalhes do que teria sido a vida de Jesus, os evangelhos são considerados uma obra de reverência e não um documento histórico. Chevitarese e outros pesquisadores acreditam que, apesar de não existirem indícios materiais diretos sobre o homem Jesus, arqueólogos e historiadores podem ao menos reconstituir um quadro surpreendente sobre o que teria sido a vida de um líder religioso judeu naquele tempo, respondendo questões intrigantes sobre o ambiente e o cotidiano na Palestina onde ele vivera por volta do século I.

Nazaré, entre 6 e 4 a.C.

Uma aldeia agrícola com menos de 500 habitantes, cuja paisagem é pontuada por casas pobres de chão de terra batida, teto de estrados de madeira cobertos com palha, muros de pedras coladas com uma argamassa de barro, lama ou até de uma mistura de esterco para proteger os moradores da variação da temperatura no local. Segundo os arqueólogos, essa é a cidade de Nazaré na época em que Jesus nasceu, provavelmente entre os anos 6 e 4 a.C., no fim do reinado de Herodes. Isso mesmo: segundo os historiadores, Jesus deve ter nascido alguns anos antes do ano 1 do calendário cristão. “As pessoas naquele tempo não contavam a passagem do tempo como hoje, por meio da indicação do ano”, explica o historiador da Unicamp Pedro Paulo Funari. “O cabeçalho dos documentos oficiais da época trazia apenas como indicação do tempo o nome do regente do período, o que leva os pesquisadores a crer que Jesus teria nascido anos antes do que foi convencionado.”

Se você também está se perguntando por que os historiadores buscam evidências do nascimento de Jesus na cidade de Nazaré – e não em Belém, cidade natal de Jesus, de acordo com os evangelhos de Mateus e Lucas –, é bom saber que, para a maioria dos pesquisadores, a referência a Belém não passa de uma alegoria da Bíblia. Na época, essa alegoria teria sido escrita para ligar Jesus ao rei Davi, que teria nascido em Belém e era considerado um dos messias do povo judeu. Ou seja: a alcunha “Jesus de Nazaré” ou “nazareno” não teria derivado apenas do fato de sua família ser oriunda de lá, como costuma ser justificado.

Mesmo que os historiadores estejam certos ao afirmarem que o nascimento em Belém seja apenas uma alegoria bíblica, o entorno de uma casa pobre na cidade de Nazaré daquele tempo não deve ter sido muito diferente do de um estábulo improvisado como manjedoura. Como a residência de qualquer camponês pobre da região, as moradias eram ladeadas por animais usados na agricultura ou para a alimentação de subsistência. A dieta de um morador local era frugal: além do pão de cada dia (no formato conhecido no Brasil hoje como pão árabe), era possível contar com azeitonas (e seu óleo, o azeite, usado também para iluminar as casas), lentilhas, feijão e alguns incrementos como nozes, frutas, queijo e iogurte. De acordo com os arqueólogos, o consumo de carne vermelha era raro, reservado apenas para datas especiais. O peixe era o animal consumido com mais freqüência pela população, seco sob o sol, para durar. A maioria dos esqueletos encontrados na região mostra deficiência de ferro e proteínas. Essa parca alimentação é coerente com relatos como o da multiplicação dos pães, no Evangelho de Mateus, no qual os discípulos, preocupados com a fome de uma multidão que seguia Jesus, mostram ao mestre cinco pães e dois peixes, todo o alimento de que dispunham.

Se alguém presenciasse o nascimento de Jesus, provavelmente iria deparar com um bebê de feições bem diferentes da criança de pele clara que costuma aparecer nas representações dos presépios. Baseados no estudo de crânios de judeus da época, pesquisadores dizem que a aparência de Jesus seria mais próxima da de um árabe (de cabelos negros e pele morena) que da dos modelos louros dos quadros renascentistas. Seu nome, Jesus, uma abreviação do nome do herói bíblico Josué, era bastante comum em sua época. Ainda na infância, deve ter brincado com pequenos animais de madeira entalhada ou se divertido com rudimentares jogos de tabuleiro incrustados em pedras. Quanto à família de Jesus, os pesquisadores não acreditam que ele tenha sido filho único. Afinal, era comum que famílias de camponeses tivessem mais de um filho para ajudarem na subsistência da família. Isso poderia explicar o fato de os próprios evangelhos falarem em irmãos de Jesus, como Tiago, José, Simão e Judas. “As igrejas Ortodoxa e Católica preferiram entender que o termo grego adelphos, que significa irmão, queria dizer algo próximo de discípulo, primo”, diz Chevitarese.

Assim como outros jovens da Galiléia, é provável que ele não tenha tido uma educação formal ou mesmo a chance de aprender a ler e escrever, privilégio de poucos nobres. Ainda assim, nada o impediria de conhecer profundamente os textos religiosos de sua época transmitidos oralmente por gerações.

Política, religião e sexo

Desde aquele tempo, a região em que Jesus vivia já era, digamos, um tanto explosiva. O confronto não se dava, é claro, entre judeus e muçulmanos (o profeta Maomé só iria receber sua revelação mais de cinco séculos depois). A disputa envolvia grupos judaicos e os interesses de Roma, cujo império era o equivalente, na época, ao que os Estados Unidos são hoje. E, assim como grupos religiosos do Oriente Médio resistem atualmente à ocidentalização dos seus costumes, diversos grupos judaicos da época se opunham à influência romana sobre suas tradições. Na verdade, fazia séculos que os judeus lutavam contra o domínio de povos estrangeiros. Antes de os romanos chegarem, no ano 63 a.C., eles haviam sido subjugados por assírios, babilônios, persas, macedônios, selêucidas e ptolomeus. Os judeus sonhavam com a ascensão de um monarca forte como fora o rei Davi, que por volta do século 10 a.C. inaugurara um tempo de relativa estabilidade. Não à toa, Davi ficaria lembrado como o messias (ungido por Javé) e, assim como ele, outros messias eram aguardados para libertar o povo judeu.

A resistência aos romanos se dava de maneiras variadas. A primeira delas, e mais feroz, era identificada como simples banditismo. Nessa categoria estavam bandos de criminosos formados por camponeses miseráveis que atacavam comerciantes, membros da elite romana ou qualquer desavisado que viajasse levando uma carga valiosa.

Além do banditismo, havia a resistência inspirada pela religião, principalmente a dos chamados movimentos apocalípticos. De acordo com os seguidores desses movimentos, Israel estava prestes a ser libertado por uma intervenção direta de Deus que traria prosperidade, justiça e paz à região. A questão era saber como se preparar para esse dia.
Alguns grupos, como os zelotes, acreditavam que o melhor a fazer era se armar e partir para a guerra contra os romanos na crença de que Deus apareceria para lutar ao lado dos hebreus. Para outros grupos, como os essênios, a violência era desnecessária e o melhor mesmo a fazer era se retirar para viver em comunidades monásticas distantes das impurezas dos grandes centros. E Jesus, de que lado estava?
É quase certo que Jesus tenha tido contato com ao menos um líder apocalíptico de sua época, que preparava seus seguidores por meio de um ritual de imersão nas águas do rio Jordão. Se você apostou em João Batista, acertou.
O curioso é que, para a maioria dos pesquisadores, incluindo aí o padre católico John P. Meier, autor da série sobre o Jesus histórico chamada Um Judeu Marginal, o movimento apocalíptico de João Batista deve ter sido mais popular, em seu tempo, do que a própria pregação de Jesus. Os historiadores acreditam que é bem provável que Jesus, de fato, tenha sido batizado por João Batista nas margens do rio Jordão, e que o encontro deve ter moldado sua missão religiosa dali em diante.
Apesar de não haver nenhuma restrição para que um líder religioso judeu tivesse relações com mulheres em seu tempo, ninguém sabe ainda se entre as práticas espirituais de Jesus estaria o celibato. Da mesma forma, afirmar que ele teve relações com Maria Madalena, como no enredo de livros como O Código Da Vinci, também não passaria de uma grande especulação.

Uma morte marginal

O pesquisador Richard Horsley, professor de Ciências da Religião da Universidade de Massachusetts, em Boston, é categórico: a morte de Jesus na cruz em seu tempo foi muito menos perturbadora para o Império Romano do que se costuma imaginar. Horsley e outros pesquisadores desapontam os cristãos que imaginam a crucificação como um evento que causara, em seu tempo, uma comoção generalizada, como naquela cena do filme O Manto Sagrado em que nuvens negras escurecem Jerusalém e o mundo parece prestes a acabar. Apesar de ter sido uma tragédia para seus seguidores e familiares, a morte do judeu Yesua deve ter passado praticamente despercebida para quem vivia, por exemplo, no Império Romano. Ou seja: se existisse uma rede de televisão como a CNN, naquele tempo, é bem possível que a morte de Jesus sequer fosse noticiada. E, caso fosse, dificilmente algum estrangeiro entenderia bem qual a diferença da mensagem dele em meio a tantas correntes do judaísmo do período – assim como poucas pessoas no Ocidente compreendem as diferenças entre as diversas correntes dentro do Islã ou do budismo.

Os pesquisadores sabem, no entanto, que Jesus não deve ter escolhido por acaso uma festa como a Páscoa para fazer sua pregação em Jerusalém. A data costumava reunir milhares de pessoas para a comemoração da libertação do povo hebreu do Egito. No período que antecedia a festa, o ar tornava-se carregado de uma forte energia política. Era quando os judeus pobres sonhavam com o dia em que conseguiriam ser libertados dos romanos.

Para a elite judaica que vivia em Jerusalém, contudo, as manifestações anti-Roma não eram nada bem-vindas. Afinal, como ela se beneficiava da arrecadação de impostos da população de baixa renda, boa parte dela tinha mais a perder que a ganhar com revoltas populares que desafiassem os dirigentes romanos, cujos estilos de vida eram copiados por meio da construção de suntuosas vilas (espécie de chácaras luxuosas) nas cercanias de Jerusalém.

A própria opulência do Templo do Monte de Jerusalém, reconstruído por Herodes, o Grande, parecia uma evidência de que a aliança entre os romanos e os judeus seria eterna. A construção era impressionante até mesmo para os padrões romanos, o que fazia de Jerusalém um importante centro regional em sua época.
Em meio às festas religiosas, o comércio da cidade florescia cada vez mais. Vendia-se de tudo por lá, incluindo animais para serem sacrificados no templo. Os mais ricos podiam comprar um cordeiro para ser sacrificado e quem tivesse menos dinheiro conseguia comprar uma pomba no mercado logo em frente. A cura de todos os problemas do corpo e da alma (na época, as doenças eram relacionadas à impureza do espírito) passava pela mediação dos rituais dos sacerdotes do templo.

Não é difícil imaginar a afronta que devia ser para esses líderes religiosos ouvir que um judeu rude da Galiléia curava e livrava as pessoas de seus pecados com um simples toque, sem a necessidade dos sacerdotes. A maioria dos pesquisadores concorda que atos subversivos como esses seriam suficientes para levar alguém à crucificação.

Quase tudo o que os pesquisadores conhecem sobre a crucificação deve-se à descoberta, em 1968, do único esqueleto encontrado de um homem crucificado em Giv’at há-Mivtar, no nordeste de Jerusalém. Após uma análise dos ossos, eles concluíram que os calcanhares do condenado foram pregados na base vertical da cruz, enquanto os braços haviam sido apenas amarrados na travessa. A raridade da descoberta deve-se a um motivo perturbador: a pena da crucificação previa a extinção do cadáver do condenado, já que o corpo do crucificado deveria ser exposto aos abutres e aos cães comedores de carniça. A idéia era evitar que o túmulo do condenado pudesse servir de ponto de peregrinação de manifestantes. De qualquer forma, a descoberta desse único esqueleto preservado prova que, em alguns casos, o corpo poderia ser reivindicado pelos parentes do morto, o que talvez tenha acontecido com Jesus.

O que aconteceu após sua morte?

Para os pesquisadores, a vida do Jesus histórico encerra-se com a crucificação. “A ressurreição é uma questão de fé, não de história”, diz Richard Horsley.

Tudo o que os historiadores sabem é que, apesar de pequeno, o grupo de seguidores de Jesus logo conseguiria atrair adeptos de diversas partes do mundo. E foi um dos novos convertidos, um ex-soldado que havia perseguido cristãos e ganhara o nome de Paulo, que se tornaria uma das pedras fundamentais para a transformação de Jesus em um símbolo de fé para todo o mundo. Com sua formação cosmopolita, Paulo lutou para que os seguidores de Jesus trilhassem um caminho independente do judaísmo, sem necessidade de obrigar os convertidos a seguirem regras alimentares rígidas ou, no caso dos homens, ser obrigados a fazer a circuncisão. A influência de Paulo na nova fé é tão grande que há quem diga que a mensagem de Jesus jamais chegaria aonde chegou caso ele não houvesse trabalhado com tanto afinco para sua difusão.

Mesmo para quem não acredita em milagres, não há como negar que Paulo e os outros seguidores de Jesus conseguiram uma proeza e tanto: apenas três séculos após sua morte, transformaram a crença de uns poucos judeus da Palestina do século I na religião oficial do Império Romano. Por essa época, a vida do judeu Yesua já havia sido encoberta pela poderosa simbologia do Cristo: assim como os judeus sacrificavam cordeiros para Javé, o Cristo se tornaria símbolo do cordeiro enviado por Deus para tirar os pecados do mundo. Desde então, a história de boa parte do mundo está dividida entre antes e depois de sua existência.

Escavando Jesus (Dois mil anos embaixo da terra)
Objetos de cozinha, brinquedos, ferramentas de trabalho e documentos: escavações na Palestina, Iraque, Roma e Turquia revelam como era a vida no tempo de Jesus.

Diversão infantil
Conhecidos desde o século 7 a.C., bonecos de barro com formas de animais eram brinquedos comuns na Galiléia, no tempo de Jesus

Iluminação
A luz interna das casas era feita por lamparinas a óleo – como esta, encontrada ao norte do atual Israel

Passatempo
Encontrado em Hazor, cidade bíblica no norte da Palestina, o jogo tinha tabuleiro de pedra e peões e dados feitos de ossos

Antes do plástico
Potes de cerâmica serviam para quase tudo. Estes, menores e com alças, achados em Megido, tinham vestígios de vinho

À mesa
A decantadeira de cerâmica – achada em 1905, no atual Israel – era usada para servir vinho, cerveja ou azeite
Oliveira
Moinhos como esse, em Cafarnaum, na Galiléia, movidos por tração humana ou animal, eram usados para obter azeite
Despensa
Jarros maiores de cerâmica serviam para guardar comida, principalmente grãos como a cevada e o trigo

Âncoras de pedra
Feitas no século 1 e achadas no mar da Galiléia, estas foram usadas por pescadores e comerciantes

Barco
Achado no mar da Galiléia e datado do século 1, esse era o modelo mais comum entre os pescadores

Manuscritos
A escrita era para poucos. E a maioria dos textos eram religiosos. Como o “Fragmento Trever”, parte dos Manuscritos do Mar Morto

Sandálias
Como estas, achadas em Massada (Israel), tinham solado e palmilhas de couro e cadarços de tecido

Tinteiro
De cerâmica, feito no século 1, encontrado numa das cavernas de Qumram

Fé e poder
Jerusalém era o centro religioso e político dos judeus. Lá foi encontrado o mais antigo desenho da menorá, do século o 1 a.C.

Graal
Feitos (adivinhem!) de cerâmica, estes eram os copos usados no século 1

Dinheiro
Moeda de bronze do reino de Herodes, o Grande, do século 1 a.C.

Crucificação
Parte de osso do calcanhar perfurado por prego de ferro, datado do século 1

Ver o peso
Caneca de pedra usada como medida no mercado de Jerusalém

O luxo que vem de Roma

Para a elite judaica que vivia na Palestina do século I, levar uma vida com requinte e elegância era sinônimo de viver como os romanos. Escavações arqueológicas em Jerusalém e outras cidades indicam uma clara influência da arquitetura e da decoração de Roma no interior das mansões. Para criar uma atmosfera palaciana, era comum, no interior das casas, a reprodução de afrescos e desenhos decorativos com motivos florais e geométricos. Em ambientes maiores, as colunas no estilo romano eram indispensáveis, assim como o uso de mármore para o acabamento dos detalhes – quem não podia pagar pelo mármore usava uma tinta de cor parecida para manter a aura palaciana. Fontes, vasos vitrificados e pisos de mosaico colorido também faziam parte do sonho de consumo dos novos ricos de Jerusalém, que costumavam receber os amigos influentes recostados confortavelmente no triclinium, espécie de divã usado na hora das refeições. Resquícios da importação de vinhos e outros ingredientes nobres da cozinha mediterrânea, como o garum, um molho especial de peixe típico da cidade de Pompéia, também foram encontrados no interior das mansões. Algumas delas deviam ter uma vista privilegiada para o Templo de Jerusalém, de onde os nobres podiam assistir confortavelmente à movimentação dos peregrinos ou mesmo à condenação à morte de rebeldes judeus.

Os outros messias (Os líderes religiosos judeus que não emplacaram na história)

Na época de Jesus, a figura do messias esperado para libertar o povo judeu era muito diferente da nossa atual concepção do messias cristão. Para início de conversa, o messias do povo hebreu não precisava ser nenhum santo. Podia ter várias mulheres (como tivera o rei Davi) e devia empregar a violência, caso fosse necessário, para garantir a autonomia do povo hebreu frente a seus inimigos. Não é à toa que, décadas antes e depois da morte de Jesus, diversos outros homens identificados como messias lideraram movimentos religiosos na região. Por volta do ano 4 a.C., por exemplo, um homem conhecido como Judas, filho de Ezequias, liderou uma revolta contra Herodes na cidade de Séforis, na Galiléia. Judas e seus seguidores chegaram a invadir um palacete na cidade para roubar armas para seu exército de oposição aos romanos. No mesmo ano, outras revoltas foram desencadeadas pelos líderes messiânicos Simão e Astronges. O principal objetivo desses movimentos era derrubar a dominação romana e restaurar os ideais tradicionais do povo hebreu. Na década de 60 do século I, o líder Simão Bar Giora organizou um exército de camponeses que chegou a assumir o controle de diversas regiões da Palestina daquele século. De acordo com os historiadores, o último e mais famoso líder messiânico a comandar uma revolta contra os romanos na região foi o judeu Bar Kokeba. Entre os anos 132 e 135, Kokeba teria liderado uma batalha sem precedentes contra os romanos, conquistando territórios por meio de uma tática de guerrilha que incluía esconderijos em cavernas e construção de fortalezas em montanhas. A rebelião somente foi aniquilada depois que o poderoso Exército romano mobilizou uma força maciça para pôr fim à guerra que se arrastava pelo terceiro ano. Não deixa de ser emblemático o fato de que o pacífico Jesus de Nazaré tenha ficado para a história como o “verdadeiro messias” – logo ele, que nunca liderara um exército.
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Saiba mais;

Excavating Jesus – Beneath the Stones, Behind the Texts, John Dominic Crossan e Jonathan L. Reed, HarperSanFrancisco, 2002
O diferencial do livro está no fato de ele trazer as descobertas arqueológicas mais importantes para que se possa entender como era a vida no tempo de Jesus
Bandidos, Profetas e Messias, Richard A. Horsley e John S. Hansom, Paulus, 1995
O melhor guia para quem quer compreender os diversos movimentos religiosos e políticos no tempo de Jesus
Jesus, uma Biografia Revolucionária, John Dominic Crossan, Imago, 1995
Um retrato fascinante sobre o que podemos saber sobre a figura histórica de Jesus escrito por um dos maiores especialistas sobre o tema
Um Judeu Marginal – Repensando o Jesus Histórico, John P. Meier, Imago, 1992
Uma obra corajosa sobre a vida marginal de Jesus em seu tempo escrita com rigor, erudição e clareza
Jesus de Nazaré, uma Outra História, André Chevitarese, Gabriele Cornelli, Mônica Selvatici (orgs.), Annablume Editora, 2006
Coletânea de artigos dos maiores especialistas brasileiros sobre o Jesus históricoJesus, Coleção Para Saber Mais, Rodrigo Cavalcante e André Chevitarese, Editora Abril, 2003
Introdução rápida sobre a figura do Jesus na história escrita pelo autor desta reportagem em parceria com o historiador André Chevitarese.
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quinta-feira, 22 de abril de 2010

Voltando no tempo em busca de Jesus

Ele não nasceu em Belém, teve vários irmãos e sua morte passou quase despercebida no Império Romano. A história e a arqueologia desencavam o Jesus histórico, um homem bem diferente daquele descrito nos evangelhos. Foi um dia de trabalho como outro qualquer. Depois da festa da Páscoa do ano 3790 do calendário hebraico, a maioria dos camponeses seguia sua rotina normalmente, assim como os coletores de impostos, os pescadores, os soldados romanos, os carpinteiros, os sacerdotes e as prostitutas. Em Jerusalém, contudo, algumas pessoas deviam estar comentando o tumulto do dia anterior, que resultou na morte de um judeu. Nada que não estivessem acostumados a ouvir. Naquele tempo, a cidade já era palco de conflitos político-religiosos sangrentos e quase sempre algum agitador morria por incitar a rebelião contra os romanos, que governavam a região com o apoio da elite judaica do templo de Jerusalém. Dessa vez, o fuzuê foi causado por um judeu camponês chamado Yeshua, que foi aprisionado e condenado à morte por ter desafiado o poder romano e o templo de Jerusalém em plena Páscoa. “Se você quisesse chamar a atenção de multidões para as suas idéias, essa era a data ideal”, afirma Richard Horsley, professor de Ciências da Religião na Universidade de Massachusetts e autor do livro Bandidos, Profetas e Messias - Movimentos Populares no Tempo de Jesus. “A festa tinha um forte conteúdo político, já que comemorava a libertação dos hebreus do Egito, que agora estavam sob o domínio dos romanos.” No meio da multidão (imagine a cidade paulista de Aparecida do Norte em dia de peregrinação), pouca gente deve ter se comovido com a prisão e morte de mais um judeu agitador - a não ser um punhado de parentes e amigos pobres. Mas nem eles poderiam imaginar que a cruz em que Jesus pagou sua sentença (sim, Yeshua é Jesus em hebraico) seria, no futuro, o símbolo mais venerado do mundo. Da suntuosa Basílica de São Pedro, no Vaticano, à pequena igrejinha da Assembléia de Deus, encravada no interior da Floresta Amazônica, a cruz se tornou o símbolo de fé para mais de 2 bilhões de pessoas. Sua morte dividiu, literalmente, a história em antes e depois dele. Mas, afinal, quem foi Jesus?

Pode parecer estranho, mas para os estudiosos há pelo menos dois Jesus. O primeiro, que dispensa apresentações, é o Cristo (o ungido, em grego), cuja história contada pelos quatro evangelistas deixa claro que ele é o enviado de Deus para salvar os homens com a sua morte. Os judeus costumavam sacrificar animais como cordeiros no templo para se purificarem. Ao morrer na cruz, Cristo torna-se o símbolo do cordeiro enviado por Deus para tirar o pecado do mundo.

O outro Jesus, já citado no início da matéria, é Yeshua, o homem que morreu sem chamar muita atenção dos cidadãos do Império Romano. Além dos evangelhos - que não podem ser considerados fontes imparciais de sua vida, já que foram escritos por seus seguidores - há apenas uma menção direta a ele citada pelo historiador judeu Flávio Josefo, que escreve sobre sua morte no livro Antiguidades Judaicas, feito provavelmente no fim do século 1. Para os pesquisadores, essa falta de citações seria um indício da pouca repercussão que Jesus teria tido para os cronistas da época. “Se existisse um grande jornal em Israel no tempo de Jesus, sua morte provavelmente seria noticiada no caderno de polícia, e não na primeira página”, diz John Dominic Crossan, professor de Estudos Religiosos da Universidade De Paulo, em Chicago, Estados Unidos. Autor dos livros O Jesus Histórico - A Vida de um Camponês Judeu no Mediterrâneo e Excavating Jesus - Beneath The Stones, Behind The Texts (”Escavando Jesus - Por Baixo das Pedras, Por Trás dos Textos”, inédito no Brasil), ele diz que a escassez de fontes diretas sobre Jesus não significa que seja impossível recompor a vida do homem de carne e osso que morreu em Jerusalém. “A interpretação correta dos textos históricos e a arqueologia estão trazendo surpreendentes revelações sobre o Jesus histórico.”

Uma dessas revelações pode estar contida numa pequena caixa de pedra cor de areia encontrada em Jerusalém com uma inscrição feita em língua e caligrafia de 2 mil anos atrás. Ao lê-la em aramaico, da direita para esquerda, como a maioria das línguas semitas, está escrito inicialmente “Yaákov, bar Yosef”, ou seja: Tiago, filho de José. E continua, mais desgastada, “akhui di…” irmão de “Yeshua”, Jesus. Isso mesmo. Segundo André Lemaire, especialista em inscrições do período bíblico da Universidade de Sorbonne, em Paris, há uma alta probabilidade de que a caixa tenha sido usada como ossário de Tiago (São Tiago, para os católicos), o mesmo do Novo Testamento, já que a possibilidade que a associação entre esses três nomes seja uma referência a outras pessoas é estatisticamente baixa.

Apesar de não ter sido encontrada num sítio arqueológico (como foi comprada por um colecionador num antiquário, as chances de fraude seriam maiores), ela poderá se tornar a primeira evidência material associada a Jesus. “Caso fique provado que a inscrição é verdadeira, a descoberta levantará uma série de novas questões”, diz Crossan. “Vamos ter que nos perguntar, por exemplo, se termos como irmão e pai significam exatamente o mesmo que hoje: pai e irmão de sangue.

Apesar de o Evangelho de São Mateus, no capítulo 13, versículos 55-56, citar: “Porventura não é este o filho do carpinteiro? Não se chamava sua mãe Maria, e seus irmãos Tiago, e José, e Simão, e Judas: e suas irmãs não vivem elas todas entre nós?”, a Igreja sempre pregou aos fiéis que irmão e irmã, nesse caso, significavam apenas primos ou um forte vínculo de amizade e companheirismo entre os que faziam parte de um grupo.

“Como esse é um campo cheio de fé e paixões, a busca do Jesus histórico sempre foi um desafio”, diz André Chevitarese, professor de História Antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos maiores especialistas sobre o tema no país. “Enquanto um religioso conservador ressalta a dimensão espiritual de Jesus, um teólogo da libertação vai buscar nele sua atuação como revolucionário político.”

Mesmo que a diversidade de visões de Jesus seja proporcional ao número de igrejas, correntes e seitas que existem em seu nome, historiadores e arqueólogos estão conseguindo reconstituir como era o mundo em que ele vivia: um retrato fascinante da política, da religião, da economia, da arquitetura e dos hábitos cotidianos que devem ter moldado a vida de um homem bem diferente daquele retratado pelas imagens renascentistas que povoam a imaginação da maioria dos cristãos. A começar pela aparência. Baseados no estudo de crânios de judeus que viviam na região na época, os pesquisadores dizem que a fisionomia de Jesus deveria ser mais próxima da de um árabe moderno, como na imagem que abre essa reportagem. “Em tempos turbulentos como o de hoje, ele provavelmente teria dificuldades de passar pela alfândega de um aeroporto europeu ou americano”, diz Chevitarese.

Um presépio diferente

Imagine que nesse Natal você pudesse entrar numa máquina do tempo para visitar Jesus recém-nascido (quem conhece o argumento da série Operação Cavalo de Tróia, do escritor J. J. Benítez, sabe que a idéia não é original). Se isso fosse possível, os arqueólogos garantem que você teria algumas surpresas. A primeira delas teria relação com a data da viagem. Ao programar a engenhoca para o ano zero, provavelmente você iria se deparar com um menino de quatro anos. É que Jesus deve ter nascido no ano 4 a.C. - o calendário romano-cristão teria um erro de cerca de quatro anos. Tampouco adiantaria chegar em Belém no dia 25 de dezembro. Em primeiro lugar, porque ninguém sabe o dia e a data em que Jesus nasceu. O mês de dezembro foi fixado pela Igreja no ano 525 porque era a mesma época das festas pagãs de Roma. E o segundo problema, ainda mais grave, é que provavelmente Jesus não nasceu em Belém. “Há quase um consenso entre os historiadores de que Jesus nasceu em Nazaré”, diz o padre Jaldemir Vitório, do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte. Então por que o evangelho de Mateus diz que o nascimento foi em Belém? Vitório explica que o texto segue o gênero literário conhecido por midrash. Basicamente, o midrash é um forma de contar a história da vida de alguém usando como pano de fundo a biografia de outras personalidades históricas. No caso de Jesus, ele explica, a referência a Belém é feita para associá-lo ao rei Davi do Antigo Testamento - que, segundo a tradição, teria nascido lá. Mas as associações não parariam por aí. Assim como o nascimento em Belém, a terrível execução de recém-nascidos ordenada por Herodes e a fuga de Maria e José para o Egito também teriam sido uma “licença poética do texto”, dessa vez para simbolizar que Jesus é o novo Moisés - já que essa narrativa é bem semelhante ao que se contava da vida do patriarca bíblico. “Isso não foi uma criação maquiavélica para glorificar Jesus, era apenas o estilo literário da época”, diz Vitório. Até os simpáticos três reis magos estariam ali para representar que Jesus foi reconhecido como messias por povos do Oriente - e quase nenhum historiador defende que, de fato, eles tenham existido. (Apesar dos muitos fiéis que visitam todos os anos a Catedral de Colônia, na Alemanha, que acreditam que os restos mortais dos três estão lá.)

Mas se essas passagens são representações e não fatos históricos, o que um viajante no tempo encontraria de semelhante às imagens estampadas nos cartões de Natal? “Jesus deve ter nascido numa casa de camponeses extremamente pobres, cercada de animais”, diz Gabriele Cornelli, professor de Teologia e Filosofia da Universidade Metodista de São Paulo. “Cresceu numa das regiões mais pobres e turbulentas daquela época.”

Um judeu pobre da Galileia

Um vilarejo de trabalhadores rurais numa encosta de serra com, no máximo, 400 habitantes. Segundo os arqueólogos, essa é a cidade de Nazaré no tempo em que Jesus nasceu. De tão pequena, a vila praticamente não é citada nos documentos da época. “As escavações arqueológicas na cidade não encontraram nenhuma sinagoga, fortificação, basílica, banho público, ruas pavimentadas, enfim, nenhuma construção importante que datasse do tempo de Jesus”, diz o historiador John Dominic Crossan. “Em compensação, foram encontradas pequenas prensas de azeitonas para a fabricação de azeite, prensas de uvas para vinho, cisternas de água, porões para armazenar grãos e outros indícios de uma vida agrária de subsistência.”

A casa em que Jesus cresceu devia ser como a de todo camponês pobre da época: chão de terra batida, teto de estrados de madeiras cobertos com palha e muros de pedras empilhadas com barro, lama ou até uma mistura de esterco e palha para fazer o isolamento. Ao entrar na casa, talvez alguém lhe oferecesse água tirada de uma cisterna servida num dos muitos vasilhames de pedra e barro achados pelos arqueólogos na região - a água era preciosa, já que a chuva era escassa. Para comer, a cesta básica era formada por pão, azeitona, azeite e vinho e um pouco de lentilhas refogadas com alguns outros vegetais sazonais, servido às vezes no pão (que você deve conhecer como pão árabe). Com sorte, nozes, frutas, queijo e iogurte eram complementos bem-vindos, além de um peixe salgado vez ou outra. Segundo os arqueólogos, a carne era rara, reservada apenas para celebrações especiais. A maioria dos esqueletos encontrados na região mostra deficiência de ferro e proteínas e sinais de artrite grave. “A mortalidade infantil era alta e a expectativa de vida girava em torno dos 30 anos”, diz Crossan. “Só raros privilegiados alcançavam 50 ou 60 anos de idade.”

Para garantir o sustento, as famílias precisavam ter um número razoável de filhos que ajudassem no duro trabalho no campo. “É pouco provável que Jesus tenha sido filho único”, diz o historiador Gabriele Cornelli. “Assim como um menino de roça que vive em comunidades pobres no interior, ele deve ter crescido cercado de irmãos.” Mesmo pesquisadores católicos como o padre John P. Meier, autor dos quatro volumes da série Um Judeu Marginal, sobre o Jesus histórico, dizem que é praticamente insustentável o argumento de que, no Novo Testamento, “irmão” poderia significar “primo”. “A palavra grega adelphos, usada para designar irmão, deve ter sido usada no sentido literal”, diz Meier. Sua conclusão reforça ainda mais as chances de que o ossário atribuído a São Tiago, irmão de Jesus, possa ser verdadeiro.

E quanto à profissão de Jesus? O historiador Gabriele Cornelli diz que, baseado nas parábolas atribuídas a ele, é muito provável que Jesus tenha sido um camponês. “Sua pregação está repleta de imagens detalhadas da vida agrícola”, diz Cornelli. “É quase impossível que esse grau de detalhamento possa ter surgido de alguém que não lidava dia a dia no campo.” Mas José não era carpinteiro e seu filho não o teria seguido na profissão?

O professor de Ciências da Religião Pedro Lima Vasconcellos, da PUC de São Paulo, diz que a palavra carpinteiro (tekton) usada no Novo Testamento pode significar também “biscateiro”, no sentido de uma classe inferior que faz serviços manuais. “É o que chamamos atualmente do trabalhador pau-pra-toda-obra.” Uma das hipóteses levantadas pelos arqueólogos é de que Jesus pode ter trabalhado no campo e, eventualmente, atuado em algumas obras de construção civil. Os arqueólogos descobriram que, a apenas 6 quilômetros de Nazaré, uma série de novos edifícios em estilo greco-romano estava sendo construída na cidade de Séforis. “É possível que Jesus tenha trabalhado lá”, diz Vasconcellos. A construção era apenas uma das várias obras que estavam sendo erguidas por Herodes Antipas, governante da Galiléia no tempo de Jesus. Além das intervenções em Séforis, os edifícios construídos nas cidades de Tiberíades e Cesaréia Marítima (nome dado em homenagem ao imperador Júlio César) tornavam a região cada vez mais parecida com as cidades romanas. “O problema é que todas essas obras representavam um fardo a mais aos camponeses pobres, que já pagavam muitos impostos”, diz o historiador Richard Horsley. “Não é à toa que surgiram nesse período vários movimentos populares de contestação ao poder romano, do qual Jesus era mais um representante.”

Messias de um novo reino

Se o rei Herodes Antipas precisasse se candidatar para se manter no poder na Galiléia no tempo de Jesus, seus assessores de marketing o venderiam como o “realizador de grandes obras” e seu slogan provavelmente seria “Herodes faz”. No seu governo (4 a.C. a 39 d.C.), enormes palácios foram construídos na Galiléia, muitos deles para abrigar a elite judaica que dominava a imensa massa de judeus pobres na região. O esquema de poder na Galiléia, assim como em outras regiões de Israel, funcionava num sistema de clientela: para reinar, Herodes contava com o apoio dos romanos. Estes, por sua vez, exigiam em troca que ele recolhesse impostos para Roma e se responsabilizasse pela repressão de qualquer movimento de contestação ao poder imperial. Sob essas condições, Roma permitia que os judeus cultuassem o seu Deus único, Javé, em vez de celebrarem as várias divindades do panteão romano. Estando bom para ambas as partes, o equilíbrio de poder era mantido. “O problema é que apenas os romanos e uma elite sacerdotal judaica eram beneficiados”, diz o professor André Chevitarese. “A maioria dos judeus tinha que trabalhar cada vez mais para sustentar essas duas classes.”

Ninguém sabe ao certo até que ponto Jesus começou a sua pregação motivado por esse sentimento de injustiça social. Até mesmo porque a tentativa de retratá-lo como um revolucionário político (e não um líder espiritual) parece fazer pouco sentido considerando-se a época em que ele viveu. “Essa distinção de uma consciência política separada da espiritualidade é uma invenção dos pensadores ocidentais modernos, como Maquiavel”, diz Chevitarese. “Para os movimentos apocalípticos de então, o modelo de sociedade perfeita é o Reino de Deus, algo que para essas pessoas estava prestes a se concretizar.”

Os estudiosos dizem que há uma dificuldade natural de quem vive nas sociedades modernas de entender a verdadeira dimensão da palavra apocalipse na época de Jesus. “Algumas pessoas hoje entendem o apocalipse como um futuro distante, o fim dos tempos que chegará somente quando todos estiverem mortos”, diz Paulo Nogueira, professor de Literatura do Cristianismo Primitivo da Universidade Metodista de São Paulo. “Na época de Jesus, os movimentos apocalípticos viam esse futuro como algo para daqui a alguns dias, quando o Reino dos Céus fosse se sobrepor ao Reino da Terra.” Enfim, era preciso se preparar logo.

Para os judeus pobres, estava claro que o tal reino terrestre prestes a ruir era aquele formado por Roma, pelos governantes locais e pela elite judaica representada pelo suntuoso Templo de Jerusalém. E o que as pessoas deveriam fazer para se preparar para o advento do novo reino? Um bom começo era ouvir as profecias de um dos mais conhecidos pregadores da época: João Batista. “Naquele tempo, a figura de João Batista era mais importante do que a de Jesus, que somente se tornou uma ameaça a Roma depois da crucificação”, diz o historiador John Dominic Crossan. Depois de ouvir suas profecias, as pessoas podiam se preparar para a chegada da nova era submetendo-se a um ritual de imersão na água: o famoso batismo de João Batista. “Ao entrar e sair da água, as pessoas sentiam-se como se estivessem deixando para trás os pecados e renascendo purificadas para o novo reino de Deus”, diz Nogueira. (Não é à toa que algumas igrejas até hoje só batizam o fiel quando ele já é adulto - e tem consciência da força do ato como marca da conversão.)

A maioria dos historiadores acredita que João Batista, de fato, deve ter batizado Jesus adulto. “Afinal, não deve ter sido fácil para os evangelistas explicar por que o messias foi batizado, já que, como enviado de Deus, ele é que devia batizar os outros”, diz o historiador André Chevitarese. Mas ele explica que o evangelho logo “resolve” a polêmica ao narrar que, na hora do batismo, a pomba do Espírito Santo aparece sobre Jesus e João Batista diz que ele é que deveria ser batizado.

“As fontes que estão nos ajudando a compreender esses movimentos apocalípticos são os manuscritos do mar Morto”, diz Paulo Nogueira. Descobertos em 1947, os manuscritos foram encontrados no convento de Qumran, uma espécie de condomínio de cavernas habitado pelos essênios, grupos de judeus que viviam como monges seguindo uma rígida disciplina de orações e uma dieta rigorosa. “Apesar de os manuscritos não revelarem nada diretamente sobre Jesus, eles mostram como os cultos apocalípticos já estavam disseminados nessa época”, diz Nogueira. Há até quem defenda a hipótese de que Jesus tenha tido uma ligação direta com os essênios.

Do que os crentes e céticos parecem não ter dúvida é que o batismo de João Batista foi um divisor de águas na vida de Jesus. A partir dali, ele teria se retirado para o deserto para depois dar início à trajetória de sermões e milagres que o levaria à condenação na cruz.

Milagres subversivos

Se os historiadores e arqueólogos estão conseguindo reconstituir o ambiente físico em que Jesus viveu e até têm bons palpites sobre a veracidade de certas passagens da sua vida, tudo muda da água para o vinho quando o assunto são os milagres. Afinal, como um pesquisador pode estudar objetivamente feitos considerados sobrenaturais?

Uma moda no passado (que até hoje tem muitos adeptos nos Estados Unidos) foi a tentativa de explicar a origem de alguns desses fenômenos como tendo causas naturais. Você provavelmente conhece algumas dessas teses: a estrela de Davi no nascimento de Jesus era na verdade o cometa Halley, Lázaro foi ressuscitado por Cristo porque estava em coma, não havia morrido biologicamente…

“Explicações desse tipo conseguem às vezes ser mais absurdas do que o próprio milagre”, diz André Chevitarese. Para ele, em vez de querer esclarecer racionalmente esses fenômenos, o historiador deve manter a mente aberta para entender como as comunidades da época encaravam esses feitos, estudando, por exemplo, qual a noção que se tinha então da doença e da cura.

Os pesquisadores sabem que no tempo de Jesus a doença estava associada à impureza. “A grande preocupação da lei judaica, já prevista em textos como o Levítico, era demarcar o que é puro e o que não é puro”, diz o professor Manuel Fernando Queiroz dos Santos Júnior, da Faculdade de Saúde Pública da USP. “E as doenças de pele, as mais visíveis, logo eram associadas à impureza espiritual.” Especialista em hanseníase, o professor diz que o que a Bíblia chama de lepra servia para nomear, na verdade, todas as doenças de pele na época, de eczemas a micoses. “Traduzir a palavra sara’at na Bíblia para o termo lepra ou hanseníase é errado”, diz o professor. “Quem lê a Bíblia sem atentar para esse detalhe tem a impressão errônea de que existia uma verdadeira epidemia da doença na época de Jesus.” O pior é que, graças a esse erro, os leprosos foram segregados por centenas de anos como portadores de uma doença impura.

Segundo os historiadores, essa associação perversa entre doença e impureza (ou pecado) terminava favorecendo a elite judaica do Templo de Jerusalém. “Afinal, para se curar, o doente tinha que pagar mais taxas e oferecer mais sacrifícios no templo”, diz Crossan. “Isso gerava para o doente um ciclo interminável de sofrimento e dívidas.” O templo era comandado por uma casta sacerdotal que detinha o monopólio de conduzir os fiéis aos rituais de purificação - que, na época, incluíam o sacrifício de animais como cordeiros (quem não tinha posses para tanto, podia sacrificar uma pomba branca comprada no mercado do templo).

Imagine agora o mal-estar que os sacerdotes deviam sentir ao ouvir relatos de que, com um simples toque, um judeu pobre da Galiléia andava curando doentes, declarando, com esse gesto, que a pessoa estava livre dos pecados. “Hoje é difícil de entender como um ato desses era radicalmente subversivo”, diz Richard Horsley. Ele diz que Jesus não estava só. “Uma série de outros curandeiros também usavam esse ritual para desafiar o poder do templo naquela época”, diz o historiador.

Como Jesus conseguia curar as pessoas? Poucos pesquisadores se arriscam a dar palpites. O certo é que, ao se misturar com doentes, mendigos, gentis, prostitutas, enfim, toda classe de pessoas consideradas impuras, Jesus conseguiu incomodar a maioria dos grupos judaicos da época. Entre esses incomodados, se incluíam os fariseus, membros de uma escola religiosa que insistia na completa separação entre os judeus e os gentios (fariseu quer dizer “o que está separado”). Eram provavelmente hostis a Jesus e não deviam entender por que ele comia na mesma mesa dos “impuros” - se você leu os evangelhos, deve ter notado como os primeiros cristãos retratam os fariseus de forma pouco lisonjeira. Jesus provavelmente também não agradou saduceus, pequeno grupo judeu que não acreditava na imortalidade da alma nem nos anjos, muito menos nos milagres de Jesus. “Seu estilo de ensinar e de viver desagradou muitos judeus, que o colocaram à margem do judaísmo palestino”, diz o padre e historiador John P. Meier, no seu livro Um Judeu Marginal. “Mesmo sendo um galileu rústico que nunca freqüentou uma escola de escribas, ele ousou desafiar as doutrinas da época”, diz Meier.

A escolaridade é outro ponto polêmico sobre a vida de Jesus - já que, para muitos historiadores, ele provavelmente era analfabeto. “Somente uma ínfima parcela da população que trabalhava para os governantes sabia ler e escrever”, diz Richard Horsley. “Não acredito que ele fizesse parte dessa parcela.” Então, como explicar o trecho do evangelho que o retrata lendo numa sinagoga? “A palavra ler no evangelho pode significar recitar”, diz Horsley. “O fato de Jesus não saber ler nem escrever não significa que ele não conhecesse os textos e as tradições judaicas.” Juan Arias, correspondente do jornal El País no Brasil e autor do livro Jesus, Esse Grande Desconhecido, discorda. “Apesar de ter vindo de uma família muito pobre, é difícil imaginar que as discussões polêmicas que ele teve com seus contemporâneos relatadas nos evangelhos possam ter sido feitas por um homem que não sabia ler”, diz Arias.

Mesmo que não tenha sido analfabeto, o judeu pobre da Galiléia não deve ter chamado a atenção da elite intelectual da época. A não ser, talvez, pelos tumultos que deve ter causado quando resolveu pregar diretamente em Jerusalém, chegando a derrubar barracas dos mercadores que comerciavam no templo. O resto da história você conhece: para os romanos, apenas mais um agitador crucificado, nada anormal em meio a centenas de outras crucificações. Para um punhado de seguidores, o símbolo de uma nova fé que mudaria o rumo da humanidade.

De Jesus a Cristo

Imagine Nova York como o centro espiritual do mundo muçulmano. Ou mesmo a Basílica de São Pedro, no Vaticano, transformada numa mesquita dedicada ao profeta Maomé. Improvável, não? “Foi algo dessas proporções que aconteceu com a expansão do cristianismo”, diz André Chevitarese. “Em cerca de três séculos, a crença de uns poucos seguidores se tornou a religião oficial do Império Romano, o mesmo império que havia ordenado a sua morte.”

Como isso ocorreu?

Para os cristãos, a resposta é simples: Jesus ressuscitou. Essa seria a evidência de que o homem crucificado não era, afinal, apenas um homem e sim Cristo, o messias esperado pelo povo judeu. Mas como entender o evento da ressurreição? “Nenhum outro tipo de milagre se choca mais com a mentalidade cética da moderna cultura ocidental”, diz o padre John P. Meier. Para ele, ficar especulando sobre o que aconteceu com o corpo de Jesus é, do ponto de vista da história, uma tarefa inútil. “A essência da crença na ressurreição é que, ao morrer, Jesus ascendeu em sua humanidade à presença de Deus”, diz Meier. “Descobrir qual a ligação dessa humanidade com o seu corpo físico não é matéria dos historiadores.”

Mas se a ressurreição é uma questão de fé e não de história, os estudiosos estão pelo menos conseguindo esclarecer detalhes sobre o terrível momento que a teria antecedido: a crucificação. Tudo começou em 1968, quando foi descoberto na região de Giv’at há-Mivtar, no nordeste de Jerusalém, o único esqueleto de um crucificado conhecido pela ciência. Depois que os ossos foram analisados pelos pesquisadores do Departamento de Antiguidades de Israel e da Escola de Medicina Hadassah, da Universidade Hebraica de Jerusalém, conclui-se que os braços não foram pregados, mas amarrados na travessa da cruz. Já as pernas do condenado foram colocadas em ambos os lados da base vertical de madeira, com pregos segurando o calcanhar em cada lado. Não havia evidências de que suas pernas haviam sido quebradas depois da crucificação para apressar a sua morte. “O curioso é que uma revelação surpreendente sobre a morte na cruz não surgiu da descoberta de esqueletos, mas da falta deles”, diz Pedro Lima Vasconcellos, da PUC de São Paulo. “Afinal, se centenas e até milhares de pessoas foram crucificadas na época, por que apenas um esqueleto foi encontrado?”

O historiador John Dominic Crossan diz que há uma razão terrível para isso: “As três penas romanas supremas eram morrer na cruz, no fogo e entregue às feras”, diz Crossan. “O que as tornava supremas não era a sua crueldade desumana ou sua desonra pública, mas o fato de que não podia restar nada para ser enterrado no final.” Apesar de ser fácil de entender por que não sobraria nada de um cadáver consumido pelo fogo ou devorado por leões, ele diz que a maioria das pessoas esquece que, no caso da crucificação, o corpo era exposto aos abutres e aos cães comedores de carniça. Como um ato de terrorismo de Estado, a extinção do cadáver também tinha como vantagem para as autoridades evitar que o túmulo do condenado se tornasse local de culto e resistência.

Mesmo que ninguém saiba o que ocorreu após a morte de Jesus (alguns historiadores acham razoável que a família e os amigos pudessem ter reivindicado o seu corpo), o fato é que seus seguidores passaram a relatar suas aparições. “Não se deve subestimar o poder dessas experiências em nome do racionalismo”, diz Paulo Nogueira, professor da Universidade Metodista de São Paulo. “Afinal, as pessoas tinham visões, entravam em transe. É uma simplificação, por exemplo, ficar tentando encontrar razões sociológicas para explicar a experiência mística responsável pela conversão de Paulo.”

Nascido na cidade de Tarso, na atual Turquia, Paulo (São Paulo, para os católicos) talvez seja o homem que, sozinho, fez mais pela expansão do cristianismo que qualquer outro dos seguidores de Jesus. O curioso é que, antes de se converter, ele era uma espécie de agente policial encarregado de perseguir os cristãos. “Sua conversão foi tão surpreendente na época como seria hoje ver um embaixador israelense se converter à causa palestina”, diz Monica Selvatici, doutoranda em História da Unicamp e especialista em Paulo. “Suas idéias terminaram afastando o cristianismo do judaísmo da época.”

Ela explica que, depois da morte de Jesus, não havia uma distinção clara entre judeus e cristãos. “Os seguidores de Jesus eram apenas judeus que defendiam a tese de que ele era o messias, ao contrário daqueles que não o reconheciam como tal”, diz Mônica. “Eram uma ala do judaísmo, assim como o PT tem alas que não representam as idéias predominantes do partido.” Como falava grego muito bem e foi um dos cristãos que mais viajaram, ele discordava dos judeus-cristãos que defendiam a tese de que os gentios convertidos precisavam seguir rigorosamente a lei judaica, incluindo aí a necessidade da circuncisão - não vista com bons olhos pelos estrangeiros. Em suas cartas (epístolas), são famosas as polêmicas travadas com Tiago (São Tiago, para os católicos), suposto irmão de Jesus, que teria sido um defensor de um cristianismo mais fiel ao judaísmo.

Mas a idéia central de Paulo, resumida na frase de que “o verdadeiro cristão se justifica pela fé e não pelos trabalhos da lei”, prevaleceu. Os gentios podiam agora se converter sem tantos empecilhos e o cristianismo ganhou novas fronteiras. “Paulo ajudou a tirar de Jesus a imagem de um messias para o povo hebreu, transformando-o num salvador de todos os povos”, diz Mônica. “Jesus deixou de ser um fenômeno regional para ganhar um caráter universal.”

A influência de Paulo é tão grande, que há historiadores que chegam a dizer que o cristianismo como o conhecemos é, na verdade, um “paulismo”. “Isso é um exagero”, diz Paula Fredriksen, professora de estudos religiosos da Universidade de Boston e autora do livro From Jesus To Christ (”De Jesus a Cristo”, inédito no Brasil). “Com ou sem Paulo, já havia um movimento forte entre os judeus cristãos de que os gentios não precisavam seguir estritamente as leis para serem salvos”, diz Paula.

Mas o que levaria um cidadão romano a trocar os seus deuses para cultuar um judeu da Galiléia? (Lembrando que, na época da morte de Jesus, um cidadão romano sabia tão pouco sobre as várias correntes do judaísmo como um ocidental hoje sabe sobre as linhas do Islã.) “O cristianismo trouxe uma idéia de salvação da alma que não existia na religião romana”, diz Pedro Paulo Funari, professor de história e arqueologia da Unicamp. “A religião romana tinha um aspecto formal, público, pouco ligado às inquietações da vida depois da morte”. Mas Funari explica que, apesar do formalismo das crenças romanas, a idéia de salvação da alma já estava difundida na população pela influência de algumas religiões orientais, como o culto a Íris e Osíris, do Egito. “Isso deve ter facilitado ainda mais a expansão do cristianismo em Roma”, diz Funari.

O ápice dessa expansão se deu quando o imperador romano Constantino converteu-se ao cristianismo, no século 4. Ninguém sabe ao certo se ele foi motivado mais por dilemas espirituais do que razões políticas (afinal, ao se converter, ele pôde contar com o apoio dos cristãos e com a estrutura de um Igreja já bem organizada.)

O certo é que alguns séculos depois, a cruz, imagem brutal da sua crucificação, foi usada para invocar a guerra e a paz entre os povos. E Yeshua, o judeu pobre que morreu praticamente despercebido durante a Páscoa em Jerusalém, já era conhecido por boa parte do mundo como o Cristo. O mesmo Cristo cujo nascimento passou a ser celebrado todos os anos, no mês de dezembro, no dia de Natal.
Fonte: Revista Superinteressantehttp://super.abril.com.br/super2/home/