terça-feira, 10 de janeiro de 2012
Jesus Histórico. Uma Brevíssima Introdução
terça-feira, 18 de outubro de 2011
Helmut Koster, Martin Hengel: Cristianismo, Judaísmo e Helenismo nunca formaram blocos monolíticos e imutáveis
Em primeiro lugar, deveremos considerar as categorias “Cristianismo”, “Judaísmo” e “Helenismo” não como blocos monolíticos e absolutamente imutáveis; uma vez que o seu desenvolvimento e dinâmica situam-se no dinamismo e na dialética da história. Segundo André Chevitarese e Gabriele Cornelli “o judaísmo, o cristianismo e o politeísmo grego nunca existiram, enquanto formas culturais autônomas e independentes, fora das simplificações manualísticas ou das identificações ideológicas posteriores”.
Para Chevitarese e Cornelli, “ao nos referirmos às culturas judaicas, cristãs e politeístas, estamos admitindo o uso de um conceito que estabelece a todo o momento, em termos individuais ou coletivos, um diálogo constante entre o presente e o passado...”.
a. Judaísmo
O judaísmo monoteísta se fundamenta na fé em Deus e na obediência às Leis. Nisso consiste sua pertência à Deus e aqui se fundamenta a apologia. A relação fé/Lei torna-se uma peculiaridade para os judeus, por causa de seu caminho de vida. Nessa adesão, os judeus como povo eleitos de Deus, torna-se a base de toda a apologia. A Toráh pode ser identicada com a lei da natureza e da humanidade. Os gentios politeístas eram adoradores da criação mais que do Criador. Adoravam as coisas, matérias do universo. Os judeus respondiam às calunias concernentes às suas origens recitando a história da criação e seu contexto na história do povo; referindo-se às Leis.
Em base na Bíblia, os judeus foram capazes de levar em frente sua cronografia como um contraposto alternativo, que era plausível para eles mesmos e para os demais. A prova da antiguidade dos judeus (cronografia) pode ser determinada assim: ‘Moisés precede Orpheos e a filosofia grega. Moisés era a figura principal, porém outros serão incluídos no argumento, como Abraão, que nos textos apologéticos veio a ser o inventor. A cronologia judaica se dá em três fases: a. Fora da cronologia bíblica; b. Mistura de dados bíblicos com mitologia extra-bíblica; c. os eventos bíblicos como parte da cronologia universal da história do mundo.
O que melhor concerne ao judaísmo, quando eles iniciam sua residência na terra, foi com a instituição cúltica. E a instituição cúltica incluia especialmente o particular caminho judaico para a vida, expressa em termos de doutrina grega de virtudes (Catálogo de virtudes) – como era delineado antes por Moisés.
A relação entre religião e nação na constituição do judaísmo pós-exílico era muito visível e seu desenvolvimento muito dependeria das ações proféticas, fortalecendo assim uma identidade voltada ao nacionalismo e à plena observância aos preceitos religiosos estabelecidos. “Desde sua instalação na Palestina até o cativeiro, e a despeito da pressão de vizinho muitíssimo mais forte, os israelitas haviam conseguido manter uma relativa independência nacional nos limites do reino que fundaram, mais tarde cindido em dois pelo cisma. Com base nesse quadro nacional, cujos marcos geográficos eram formados pelas fronteiras da Palestina, praticavam a religião que desde o início se caracterizava pelo acentuado cunho étnico. Em virtude do pacto do Sinai, que os unira a Deus, os hebreus consideravam-se o povo eleito. Havia perfeita correspondência entre nação e religião.
O esforço dos profetas visou preservar o patrimônio religioso de Israel contra quaisquer influências estrangeiras e defendê-lo de toda contaminação oriunda do substrato cananeu. É suficientemente verdadeira que, a literatura apologética judaica era uma reação ao antisemitismo.
Mas não há evidência de escritos anti-semíticos antes do tempo dos Macabeus. Após o Exílio da Babilônia (587 a.C.), desde as “leis” e o “Templo” (centro da vida religiosa judaica), a constituição da identidade judaica foi se consolidando a partir das diversidades étnicas e socioculturais dos povos mobilizados, com forte acento em uma “nação judaica” restaurada e definida desde “o Projeto do Segundo Templo (Ex 25-40)”, porém acentuando o caráter étnico.
Sendo assim, o movimento de migração das diásporas judaicas no contexto da consolidação do “judaísmo” possibilitou um pluralismo de matizes étnicas e culturais ao interior da construção do mesmo. “No judaísmo helenístico era possível fazer uso de uma mistura de elementos do judaísmo e da sabedoria grega”.
Para Simon e Benoit, “no interior ou fora de sua pátria, os judeus experimentaram contato permanente e direto com diferentes civilizações (egípcia, mesopotâmica, persa e, sobretudo, a grega, em seguida a romana). Mesmo com muitas precauções, entretanto, não chegaram a impedir a atuação das influências externas. À medida que se dava a instalação definitiva do reino da lei, percebe-se que também se formava no judaísmo um corpo de doutrina, parcialmente constituído de elementos estrangeiros tomados de empréstimo, em especial do Irã e da Grécia”.
O judaísmo, em sua mobilização, vai se situar num campo mais complexo com o início da helenização, tanto na Palestina como em outros territórios onde se fará presente; contudo, sem que imaginemos que se tratara de um processo homogêneo para todo o domínio grego e, posteriormente, romano. “Edward Ullendorff diz que, Conti Rossini (1895) já havia sugerido que o judaísmo professado pela guarnição militar divergia consideravelmente das formas judaicas como era preservada na Etiópia”.
No que concerne à constituição da identidade judaica, no contexto da helenização, observa-se enfaticamente seu caráter de conflito, tensão e fluidez.
Entre o período de Antíoco IV Epifânio (175-164.a.C.) e a ascensão dos Asmoneus houve um conglomerado de ocorrências como a imposição de valores culturais e religiosos gregos à Palestina, como também a todo o dominio greco-romano. A respeito da comunidade judaica da Palestina e das diásporas judaicas fez-se necessário o consentimento parcial judaico a respeito da recepção da oferta grega, não obstante a resistência e oponência radical dos Macabeus, conferindo à identidade judaica seu caráter de fluidez, de conflitos, dinamismo entre as fronteiras étnicas e de reconhecimento da demarcação de sua identidade. Segundo Helmut Koster a rebelião dos Macabeus havia começado devido a tentativa de facer de Jerusalém uma cidade helénica. O pensamento mesmo de um pluralismo cultural e religioso era necessariamente inadmisivel a respeito de Jerusalém.
Desde a perspectiva da fé judaica tradicional, a continuidade lógica da rebelião consistía no retorno de todo o país a fé no Dios de Israel. Por isso quase todas as cidades gregas de território palestino foram conquistadas pelos Asmoneos. A população era expulsa ou obrigada a se converter ao judaísmo, e outros foram incorporados ao imperio asmoneo sem seus direitos cívicos. Enquanto que ao princípio das guerras macabeias pela independência predominava o componente ideológico de liberar o templo, a cidade e o país dos horrores pagãos, depois a religião se converteu nas mãos dos asmoneos como um meio para ligar todos os habitantes com Jerusalém, onde o soberano era ao mesmo tempo o sumo sacerdote.
Foi conquistada a capital samaritana, Siquém, se destruiu o templo de Monte Garizim, sendo obrigados os samaritanos a reconhecer a supremacia religiosa de Jerusalém. Porém, torna-se prematuro afirmar uma supremacía judaica desde Jerusalém pelos asmoneus, com incidência a todo judaísmo das diásporas. Na suposição de que Jerusalém tivesse uma autoridade sobre las comunidades da diáspora, esta seria de caráter ideal e não institucional. Em nenhum momento as autoridades de templo tiveram direitos judiciales e poder policial sobre os judeus que viviam fora dos limites políticos dominados por Jerusalém. Por regra geral a diáspora procurava se manter à margem das questões políticas de Palestina, ainda que somente fosse por motivos de subsistência e de obediência à autoridade política correspondente, que teinha poder sobre ela. Esta atitude básica a adotaram mais tarde muitas comunidades cristãs (cf. Rm 13,1ss.; 1 Pe 2,13).
O judaísmo no período greco-romano vai se desenvolvendo a partir de um caráter pluri-étnico, abrangendo realidades socioculturais distintas, porém sem deixar de considerar no seu processo de interação entre fronteiras étnicas a alteridade presente em suas origens e as diversidades presentes em seu dinamismo histórico.
b. Helenismo
No que se refere ao Helenismo, abre-se um novo período na história do judaísmo, isto é, a “helenização”, que antecede a Antioco IV Epifânio (175-164 a.C.). A história helenista veio a ser uma história universal. Esse foi um esquema que penetrou no judaísmo. O estabelecimento de uma era universalmente válida. Uma universalidade aceitável, datando de eventos que transcenderá os sistemas locais. Assim como o judaísmo vai se definindo por meio do caráter plural do processo de interação com outras culturas e povos, preservando sua autonomia com seus valores étnicos e religiosos, o helenismo também se apresenta como categoria de pensamento na órbita das diversidades, não isento das correntes de resistências, como também de consentimentos, porém com certas especificidades no que se refere à filosofia e às religiões. André Chevitarese e Gabriele Cornelli14, a partir das concepções de Werner Jeager (1991) e L. I. Levine (1998), apresentam duas definições de helenismo: Werner Jeager demonstra que o termo ‘helenismo’ sofreu um processo de interpretações variadas na Antiguidade. De imediato, com Teofrasto no quarto século a.C., esta palavra adquire o sentido do uso gramaticalmente correto da língua grega, o grego livre de barbarismos e solecismos.
Posteriormente, porém, o helenismo vai caracterizar a adoção das maneiras gregas, do modo de vida grego, em especial fora da Hélade, onde a cultura grega tornara-se moda. L. I. Levine define o helenismo como um meio cultural, largamente grego dos períodos helenísticos, romano e uma extensão mais limitada do bizantino, enquanto que, por helenização, Levine chama o processo de adoção e adaptação desta cultura em nível local.
Consideramos que nas duas concepções estão presentes elementos como “maneiras gregas e sua expressão na linguagem”, assim como sua adaptação e assimilação em novos meios locais, onde também se situam as comunidades judaicas e outros povos judaizados. É o caso do Egito, que desde a Alexandria desenvolveu fortemente uma literatura marcada pela cultura helenística. “Cerca de trezentos anos antes de Cristo, o Egito foi conquistado por Alexandre Magno (332 a.C.). O país dos Faraós foi então aberto à intensa colonização dos gregos, chamada helenizaçao (Helenos – Gregos). A língua e a cultura grega não se restringiram aos muitos comerciantes gregos que se estabeleceram em Alexandria e outras cidades, mas foram aceitos praticamente por toda a população urbana”.
O processo de helenização em várias nações não foi motivo para a abdicação da língua nacional e suas representações simbólicas, mesmo que houvesse o consentimento ou aceitação do processo dentro de um consenso coletivo ou parcial, não isentando, porém, as nações onde tal fenômeno de fato ocorreu. Segundo Helmut Köester “na Babilônia e Palestina, a maioria dos judeus falava o arameu, enquanto que na diáspora do Egito, de Ásia Menor e do Ocidente se havia imposto a língua grega”. Essa realidade não nega outras conseqüências menos ou mais drásticas geradas no interior das culturas e dos povos helenizados. Como conseqüência geral da helenização, considera-se que, como processo histórico-cultural, esta afetava a todos os judeus da Palestina e da diáspora.
O processo de romanização que se segue às categorias de pensamento grego vai ampliar, no âmbito universalista que caracterizava o império romano desde Pompeu (65 a.C.) até Constantino (século IV d.C.), as já mencionadas categorias do Judaísmo e Helenismo. Para uma melhor compreensão dessa ampliação e ao mesmo tempo das influências greco-romanas na concepção judaica do mundo, recorremos a James M. Scott.
Este apresenta “o quadro das nações do rei Agripa e a discrição da soberania universal do Império Romano, enquanto Flavio Josefo o coloca como sendo Agripa II, com o início da guerra (Bj 2.345-401). Agripa inclui um impressionado quadro das nações sob o controle romano, isto é, gregos e macedônios, como os miríades de outras nações, incluindo as quinhentas cidades da província da Ásia e outras nações da Ásia Menor, os tracianos, os gauleses, os ibéricos, os germanos, os bretões, os partos, os cirenaicos, numerosas nações do continente africano e Egito.
c. Cristianismo
A construção das identidades dos povos oriundos de diversas nações e geografias irão apresentar uma constituição flexível, não isento os conflitos e tensão no seu processo de interação com outros povos e culturas, porém com autonomia quando se refere ao consenso de identificar seu passado e seu presente na história. Dessa forma, “a pertença étnica não pode ser determinada senão em relação a uma linha de demarcação entre os membros e os não membros. Para que a noção de grupo étnico tenha sentido, é preciso que os atores possam se dar conta das fronteiras que marcam o sistema social ao qual acham que pertencem e para além dos quais eles identificam outros atores implicados em um outro sistema social”.
O cristianismo, procedendo do judaísmo, implantou-se e desenvolveu-se em ambientes greco-romanos, assimilando, integrando, interagindo e reinterpretando muitos elementos socioculturais e categorias de pensamentos neles encontrados, especificamente de cunho religioso, culto de mistérios, hermetismos e gnoses pagãs. Para Martin Hengel “O cristianismo primitivo é uma religião sincrética com várias raízes. O judaísmo não foi o único berço do Cristianismo primitivo, mas havia diversas outras correntes como o gnosticismo, religiões mistéricas gregas e orientais, magias, astrologia, politeísmo pagão, histórias de homens divinos (theioi andres) e seus milagres, filosofia helenista popular com a influência do culto pagão e não judeu, e também influência da imaginação e linguagem religiosa helenista na diáspora”.
O processo de interação étnico-cultural entre os povos e nações, e a constituição do Cristianismo primitivo estão inseridos no movimento das Diásporas e das Sinagogas, como mediações judaicas, helênicas e de inserção cristã. “Enquanto o acesso ao Templo era rigorosamente vedado aos pagãos, o culto sinagogal estava aberto a todos. Por nele se usar normalmente a língua comum, e devido também ao lugar capital que nele se reservava à instrução, esse culto prestou-se com grande eficácia à difusão do judaísmo”. De acordo com os decretos conferidos por César aos judeus, a sinagoga ocupava um “lugar central”, ou seja, um espaço aglutinador dos costumes e das tradições judaicas. A sinagoga garante aos judeus o espaço para as assembléias, para guardar o sábado, a Torá e todas as prescrições que norteiam suas vidas individuais e coletivas; religiosas e culturais. Segundo E. P. Sanders, os decretos em favor dos judeus na Diáspora consistiam nos seguintes pontos: “O direito para assembléia ou para fazer um lugar de assembléia: 5 tempos; o direito para guardar o sábado: 5 tempos; o direito para fazer suas comidas ancestrais: 3 tempos; o direito para resolver seus assuntos pessoais: 2 tempos; o direito para a contribuição monetária: 2 tempos”. Isso tudo era fundamental para a vida judaica.
Porém, no contexto greco-romano essa realidade não era passível de críticas e oposições, uma vez que “os judeus insistiam em reclamar para si um status especial que lhes garantissem a prática de sua religião, o desfrute de alguns privilégios fiscais, o envio a Jerusalém do tributo do templo e, ao mesmo tempo, depreciavam aos deuses dessas cidades”.
É notória a presença de antigas sinagogas no contexto das Diásporas, e essa realidade é testemunhada por fontes literárias como também pela arqueologia. O prefácio da obra editada por Steven Fine apresenta um mapeamento das sinagogas na Palestina e nas diásporas. Aponta a localização das mesmas nas geografias de Egito, África e Gaza. “Na região do Egito (entre Alexandria, Atribes e Crocodilopolis) encontramos, pelas fontes literárias três sinagogas. Em Naro (território africano) encontramos, pelas evidências arqueológicas, uma sinagoga. Em Gaza, situada mais ou menos a 100 km ao sudoeste de Jerusalém, encontramos, pelas evidências arqueológicas, uma sinagoga”.
Porém, qual seria a concepção de sinagoga, a partir da prática judaica da Palestina e das diásporas no contexto do Cristianismo do primeiro século? Tratar-se-ia de espaços informais e comuns de encontros e assembléias, mas não de estruturas já consolidadas. Paulo, em Antioquia, participa de uma sunagwgh/j (“assembléia, reunião”) de judeus e prosélitos (At 13,43).
Para Pieter W. van der Horst, “apenas depois da queda do Templo, para resistir, numa atitude de solidariedade fundamental para a preservação da identidade judaica, que sinagoga veio a ser um termo para a casa da assembléia de adoração. Nas fontes judaicas, porém, até o terceiro século d.C., a palavra sinagoga é usada apenas como ‘assembléia’ ou ‘congregação’, em concordância com o significado original da palavra e com o uso grego, e não para um lugar de assembléia ou a construção. Para o lugar da assembléia, as fontes primitivas sempre usam proseuchê, literalmente (lugar de) oração. Os lugares de reuniões eram meramente partes privadas da casa. Isto se aplica igualmente para Palestina e para a Diáspora. Nas passagens do Novo Testamento; nos Evangelhos e no livro de Atos, sinagoga refere-se à congregação judaica ou à reunião informal de crenças judaicas.
Como considerações provisórias Alguns conflitos e desafios inerentes ao processo da construção da identidade do Cristianismo primitivo
O processo da construção da identidade do Cristianismo primitivo não esteve isento de conflitos e tensão. Como vimos anteriormente, o seu processo interacional entre fronteiras étnicas e geográficas está impregnado de fatores de diferenciação e aproximação que irá construir um tecido identitário plural e diversificado. Segundo Martim Hengel, no tempo de Antíoco IV, o judaísmo helenístico tinha ameaçado a exclusividade do judaísmo monoteísta com seu esforço pela secularização do templo e integração entre a nação do mundo (O templo, o culto, a famosa Jerusalém das perigrinações teve a marca da cultura helenista no tempo dos asmoneus e Herodes; diferentemente do helenismo de Alexandria e de outras geografias helenizadas).
Porém, isso não era tão problemático para o judaísmo quanto à eminência da vinda do Reinado de Deus e a proclamação da escatologia realizada da profecia do A. T. O significado do templo e da Toráh foi diretamente colocado em questão. Da fé e obediência à Lei, como foi dado para Israel no Sinai, passa para uma pessoa messiânica, um mediador, com quem a oração de Isaias (64,1) era certamente atualizada: Deus vem para seu povo em forma de ser humano. Há um verdadeiro Deus, chamado Deus de Israel que em breve envia um Salvador. Cristo é o fim da lei e a luz de todos os que creem26. Aqui reside um conflito entre o judaísmo normativo e o novo movimento messiânico. Já não é Moisés e a Lei os intermediários entre Deus e a humanidade, mas sim o Messias, o que traz o novo pacto. Para Hengel é o começo de uma nova religião tanto para Israel como para o mundo. A eminente chegada do Reinado de Deus e a parusia de Jesus de Nazaré, o Messias crucificado de Israel, o Filho de Deus.
No desenvolvimento do Cristianismo primitivo, estão presentes outros acontecimentos históricos como a Guerra Judaica (64 d.C.), a morte de Pedro, Paulo, João (43 a.C.), a iliminação de vários grupos sociais e religiosos, a expulsão dos cristãos da sinagoga, a formação das diásporas cristãs helênicas e a consolidação do judaísmo rabínico. Aqui reside um outro conflito entre o judaísmo normativo e o movimento cristão.
A partir desses conflitos apresentam-se os desafios para dar passos na direção da separação. Martins Hengel afirma que segundo o descrito por Lucas no contexto da missão de Paulo, foi o fato de que os judeus messiânicos e seus pagãos, seguindo entre os tementes a Deus, foram expelidos das ordenadas sinagogas/comunidades, que foram finalmente distinguidos pelo termino ekklesia. Como uma nova seita escatológica, uma nova assembléia sinagogal, muito familiar, onde se lia a antiga Escritura, mas com novo entusiasmo; com uma oração confiante, mas também no “nome de Cristo”. Com hinos cristológicos, uma vivência segundo a ordem ética das escrituras e no amor (agape); contra a idolatria e vicios dos pagãos. O domingo, a liturgia, a eucaristia, as leituras litúrgicas eram formas dos cristãos se distinguirem da tradição mosaica. Assim como os judeus-cristãos, predominantementes comunidades cristãs gentílicas da Diáspora no Império romano, na segunda metade do primeiro século, não observavam a circuncisão, sábado, leis de dietas, dias de festas e festas anuais.
No contexto do desenvolvimento do Cristianismo predominantemente vemos a carta que Plínio descreve a respeito do cristianismo, em uma carta à Trajano, como degenerado e extravagante. Sutônio chama o movimento cristão como uma nova e maléfica superstição e magia. Tácito descreve o Cristianismo como detestável superstição, assim como em Atos dos Apóstolos 24,5; 24,15; 26,28; 26,5; 28,22.
Sendo assim, o Cristianismo primitivo abre-se às diversidades e às múltiplas experiências na construção de sua identidade. É nesse contexto de mobilidade dos povos e culturas, no horizonte de suas fronteiras étnicas e geográficas, no seu processo de interação e assimilação, conflitos e desafios, nos espaços das sinagogas ou sobre as influências das mesmas, que o Cristianismo vai se desenvolver.
John P. Meier, Geza Vermes e John Dominic Crossan: Por que Jesus foi detido? Do que foi acusado? Como o condenaram? Quem o matou?
sexta-feira, 16 de setembro de 2011
A Morte do judeu Yesua
Cristo está em toda parte: nas obras mais importantes da história da arte, nos roteiros de Hollywood, nos letreiros luminosos de novas igrejas, nas canções evangélicas em rádios gospel, nos best-sellers de auto-ajuda, nos canais de televisão a cabo, nos adesivos de carro, nos presépios de Natal. Onde você estiver, do interior da floresta amazônica às montanhas geladas do Tibete, sempre será possível deparar com o símbolo de uma cruz, pena de morte comum no Império Romano à qual um homem foi condenado há quase 2 mil anos. Para mais de 2 bilhões de pessoas esse homem era o próprio messias (“Cristo”, do grego, o ungido) que ressuscitara para redimir a humanidade.
Embora o mundo inteiro (inclusive os não-cristãos) esteja familiarizado com a imagem de Cristo, até há bem pouco tempo os pesquisadores eram céticos quanto à possibilidade de descobrir detalhes sobre a vida do judeu Yesua (Jesus, em hebraico), o homem de carne e osso que inspirou o cristianismo.
“Isso está começando a mudar”, diz o historiador André Chevitarese, professor de História Antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos especialistas no Brasil sobre o “Jesus histórico” – o estudo da figura de Jesus na história sem os constrangimentos da teologia ou da fé no relato dos evangelhos. Embora tragam detalhes do que teria sido a vida de Jesus, os evangelhos são considerados uma obra de reverência e não um documento histórico.
Chevitarese e outros pesquisadores acreditam que, apesar de não existirem indícios materiais diretos sobre o homem Jesus, arqueólogos e historiadores podem ao menos reconstituir um quadro surpreendente sobre o que teria sido a vida de um líder religioso judeu naquele tempo, respondendo questões intrigantes sobre o ambiente e o cotidiano na Palestina onde ele vivera por volta do século I.
“As pessoas naquele tempo não contavam a passagem do tempo como hoje, por meio da indicação do ano”, explica o historiador da Unicamp Pedro Paulo Funari, colunista do site de História. “O cabeçalho dos documentos oficiais da época trazia apenas como indicação do tempo o nome do regente do período, o que leva os pesquisadores a crer que Jesus teria nascido anos antes do que foi convencionado.”
Se você também está se perguntando por que os historiadores buscam evidências do nascimento de Jesus na cidade de Nazaré – e não em Belém, cidade natal de Jesus, de acordo com os evangelhos de Mateus e Lucas -, é bom saber que, para a maioria dos pesquisadores, a referência a Belém não passa de uma alegoria da Bíblia. Na época, essa alegoria teria sido escrita para ligar Jesus ao rei Davi, que teria nascido em Belém e era considerado um dos messias do povo judeu. Ou seja: a alcunha “Jesus de Nazaré” ou “nazareno” não teria derivado apenas do fato de sua família ser oriunda de lá, como costuma ser justificado.
Mesmo que os historiadores estejam certos ao afirmarem que o nascimento em Belém seja apenas uma alegoria bíblica, o entorno de uma casa pobre na cidade de Nazaré daquele tempo não deve ter sido muito diferente do de um estábulo improvisado como manjedoura. Como a residência de qualquer camponês pobre da região, as moradias eram ladeadas por animais usados na agricultura ou para a alimentação de subsistência.
Se alguém presenciasse o nascimento de Jesus, provavelmente iria deparar com um bebê de feições bem diferentes da criança de pele clara que costuma aparecer nas representações dos presépios. Baseados no estudo de crânios de judeus da época, pesquisadores dizem que a aparência de Jesus seria mais próxima da de um árabe (de cabelos negros e pele morena) que da dos modelos louros dos quadros renascentistas.
Seu nome, Jesus, uma abreviação do nome do herói bíblico Josué, era bastante comum em sua época. Ainda na infância, deve ter brincado com pequenos animais de madeira entalhada ou se divertido com rudimentares jogos de tabuleiro incrustados em pedras.
Quanto à família de Jesus, os pesquisadores não acreditam que ele tenha sido filho único. Afinal, era comum que famílias de camponeses tivessem mais de um filho para ajudarem na subsistência da família. Isso poderia explicar o fato de os próprios evangelhos falarem em irmãos de Jesus, como Tiago, José, Simão e Judas. “As igrejas Ortodoxa e Católica preferiram entender que o termo grego adelphos, que significa irmão, queria dizer algo próximo de discípulo, primo”, diz Chevitarese.
Assim como outros jovens da Galiléia, é provável que ele não tenha tido uma educação formal ou mesmo a chance de aprender a ler e escrever, privilégio de poucos nobres. Ainda assim, nada o impediria de conhecer profundamente os textos religiosos de sua época transmitidos oralmente por gerações.
Política, religião e sexo
Desde aquele tempo, a região em que Jesus vivia já era, digamos, um tanto explosiva. O confronto não se dava, é claro, entre judeus e muçulmanos (o profeta Maomé só iria receber sua revelação mais de cinco séculos depois). A disputa envolvia grupos judaicos e os interesses de Roma, cujo império era o equivalente, na época, ao que os Estados Unidos são hoje.
E, assim como grupos religiosos do Oriente Médio resistem atualmente à ocidentalização dos seus costumes, diversos grupos judaicos da época se opunham à influência romana sobre suas tradições. Na verdade, fazia séculos que os judeus lutavam contra o domínio de povos estrangeiros. Antes de os romanos chegarem, no ano 63 a.C., eles haviam sido subjugados por assírios, babilônios, persas, macedônios, selêucidas e ptolomeus. Os judeus sonhavam com a ascensão de um monarca forte como fora o rei Davi, que por volta do século 10 a.C. inaugurara um tempo de relativa estabilidade. Não à toa, Davi ficaria lembrado como o messias (ungido por Javé) e, assim como ele, outros messias eram aguardados para libertar o povo judeu.
Além do banditismo, havia a resistência inspirada pela religião, principalmente a dos chamados movimentos apocalípticos. De acordo com os seguidores desses movimentos, Israel estava prestes a ser libertado por uma intervenção direta de Deus que traria prosperidade, justiça e paz à região. A questão era saber como se preparar para esse dia.
O curioso é que, para a maioria dos pesquisadores, incluindo aí o padre católico John P. Meier, autor da série sobre o Jesus histórico chamada Um Judeu Marginal, o movimento apocalíptico de João Batista deve ter sido mais popular, em seu tempo, do que a própria pregação de Jesus. Os historiadores acreditam que é bem provável que Jesus, de fato, tenha sido batizado por João Batista nas margens do rio Jordão, e que o encontro deve ter moldado sua missão religiosa dali em diante.
Apesar de não haver nenhuma restrição para que um líder religioso judeu tivesse relações com mulheres em seu tempo, ninguém sabe ainda se entre as práticas espirituais de Jesus estaria o celibato. Da mesma forma, afirmar que ele teve relações com Maria Madalena, como no enredo de livros como O Código Da Vinci, também não passaria de uma grande especulação.
Uma morte marginal
O pesquisador Richard Horsley, professor de Ciências da Religião da Universidade de Massachusetts, em Boston, é categórico: a morte de Jesus na cruz em seu tempo foi muito menos perturbadora para o Império Romano do que se costuma imaginar. Horsley e outros pesquisadores desapontam os cristãos que imaginam a crucificação como um evento que causara, em seu tempo, uma comoção generalizada, como naquela cena do filme O Manto Sagrado em que nuvens negras escurecem Jerusalém e o mundo parece prestes a acabar.
Os pesquisadores sabem, no entanto, que Jesus não deve ter escolhido por acaso uma festa como a Páscoa para fazer sua pregação em Jerusalém. A data costumava reunir milhares de pessoas para a comemoração da libertação do povo hebreu do Egito. No período que antecedia a festa, o ar tornava-se carregado de uma forte energia política. Era quando os judeus pobres sonhavam com o dia em que conseguiriam ser libertados dos romanos.
Em meio às festas religiosas, o comércio da cidade florescia cada vez mais. Vendia-se de tudo por lá, incluindo animais para serem sacrificados no templo. Os mais ricos podiam comprar um cordeiro para ser sacrificado e quem tivesse menos dinheiro conseguia comprar uma pomba no mercado logo em frente. A cura de todos os problemas do corpo e da alma (na época, as doenças eram relacionadas à impureza do espírito) passava pela mediação dos rituais dos sacerdotes do templo.
Não é difícil imaginar a afronta que devia ser para esses líderes religiosos ouvir que um judeu rude da Galiléia curava e livrava as pessoas de seus pecados com um simples toque, sem a necessidade dos sacerdotes. A maioria dos pesquisadores concorda que atos subversivos como esses seriam suficientes para levar alguém à crucificação.
O que aconteceu após sua morte? Para os pesquisadores, a vida do Jesus histórico encerra-se com a crucificação. “A ressurreição é uma questão de fé, não de história”, diz Richard Horsley.
Tudo o que os historiadores sabem é que, apesar de pequeno, o grupo de seguidores de Jesus logo conseguiria atrair adeptos de diversas partes do mundo. E foi um dos novos convertidos, um ex-soldado que havia perseguido cristãos e ganhara o nome de Paulo, que se tornaria uma das pedras fundamentais para a transformação de Jesus em um símbolo de fé para todo o mundo.
Com sua formação cosmopolita, Paulo lutou para que os seguidores de Jesus trilhassem um caminho independente do judaísmo, sem necessidade de obrigar os convertidos a seguirem regras alimentares rígidas ou, no caso dos homens, ser obrigados a fazer a circuncisão. A influência de Paulo na nova fé é tão grande que há quem diga que a mensagem de Jesus jamais chegaria aonde chegou caso ele não houvesse trabalhado com tanto afinco para sua difusão.
Mesmo para quem não acredita em milagres, não há como negar que Paulo e os outros seguidores de Jesus conseguiram uma proeza e tanto. apenas três séculos após sua morte, transformaram a crença de uns poucos judeus da Palestina do século I na religião oficial do Império Romano.
Por essa época, a vida do judeu Yesua já havia sido encoberta pela poderosa simbologia do Cristo: assim como os judeus sacrificavam cordeiros para Javé, o Cristo se tornaria símbolo do cordeiro enviado por Deus para tirar os pecados do mundo. Desde então, a história de boa parte do mundo está dividida entre antes e depois de sua existência.
Seus Evangelhos contam, com algumas variações, a vida de Jesus Cristo. Apresentam-no como filho de Deus que veio à Terra salvar a humanidade. Para os cristãos, esses são textos sagrados, escritos sob inspiração divina. A leitura comparativa dos quatro, no entanto, revela diferenças que podem ter tido um propósito quase publicitário. É essa a conclusão de L. Michael White, diretor do Instituto de Estudos sobre as Origens do Cristianismo da Universidade do Texas, nos Estados Unidos. Em Scripting Jesus (Roteirizando Jesus, em tradução livre), lançado no mês passado nos EUA, White diz que fatos da vida de Jesus narrados nos Evangelhos serviram para fundamentar a "agenda teológica" de seus autores. "Os evangelistas sentiam-se compelidos a preencher os vazios da narrativa oral com fatos adequados a seus objetivos", disse White a ÉPOCA. Para ele, a meta desses narradores era cativar públicos de formação cultural distinta. Os Evangelhos não teriam, portanto, o caráter universal que se atribui a eles.
Segundo White, o texto de Lucas foi escrito para evangelizar povos greco-romanos. Os de Marcos e Mateus, para os judeus. E o de João era destinado aos que faziam a transição de uma seita judaica para uma religião independente – o cristianismo, que em muitos aspectos se opunha ao judaísmo. A necessidade de cativar cada público teria sido responsável por moldar o conteúdo dos Evangelhos. "Como os seguidores de Mateus eram judeus, é sob essa ótica que ele 'apresenta' Jesus", diz White. "Em contraste, os Evangelhos de Lucas e João 'falavam' com audiências não judaicas."
Para comprovar sua teoria, White cita exemplos tirados de cada texto. O Evangelho de Marcos, que teria sido escrito poucos anos depois da queda de Jerusalém, na fracassada revolta dos judeus contra o Império Romano (70 d.C.), afirma que Jesus previu a destruição do Templo, o local mais sagrado para os judeus. Lucas, que precisava se adequar à cultura helênica – habituada a filósofos como Sócrates e Platão –, teria resolvido esse dilema tornando-se um antagonista da tradição judaica. "Seu objetivo é separar Jesus dos judeus", afirma White. "E seu estilo literário é da mais alta qualidade, de modo que qualquer um do mundo greco-romano ficaria confortável com sua leitura."
O exemplo favorito de White para confirmar sua tese é a Paixão de Cristo narrada no Evangelho de João. Embora os quatro situem a crucificação de Cristo na Páscoa, João difere de Lucas, Marcos e Mateus no que diz respeito à Última Ceia. Para João, ela teria ocorrido antes da Páscoa, e não durante. Qual a diferença que isso traz? Segundo White, o objetivo seria confirmar entre os judeus a ideia de Jesus como o "cordeiro de Deus", sacrificado para expiar os pecados da humanidade. O sacrifício do cordeiro pascal celebrava o Êxodo, a passagem do Antigo Testamento em que os judeus, liderados por Moisés, fogem do cativeiro no Egito. "O autor do Evangelho de João mudou intencionalmente a ordem da narrativa para alcançar seu efeito simbólico e metafórico", afirma White. A opinião é endossada por Giovanni Bazzana, especialista em Novo Testamento da Universidade Harvard: "O objetivo principal dos Evangelhos é anunciar que Jesus ressuscitou dos mortos para ser o salvador da humanidade", disse Bazzana a ÉPOCA.
"Mas cada um tinha metas específicas."
Alterar a ordem dos acontecimentos para dar um novo sentido aos mesmos fatos pode parecer um artifício duvidoso do ponto de vista ético, mas não é assim que os especialistas veem a questão. "Os Evangelhos não são jornalismo e não se deve esperar isso deles", diz John Dominic Crossan, um dos maiores pesquisadores religiosos do mundo, no documentário De Jesus a Cristo: os primeiros cristãos, da rede de TV americana PBS. Para White, os autores dos Evangelhos, longe de ser repórteres em busca de verdades factuais, mais se aproximavam de dramaturgos. "Eles fizeram uma recriação dramática da história e analisaram os fatos sob determinado ângulo que os favorecia." André Chevitarese, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), concorda: "Mais do que biografias, são plataformas de ataques e defesas em torno de Jesus para consolidar as fronteiras entre nós (cristãos) e eles (de outras religiões)". Admitir que os Evangelhos não são biografias de Jesus não significa, porém, que eles tenham sido inventados. "São baseados em antigas tradições orais que foram passadas pelos seguidores de Jesus após sua morte", diz White.
Os historiadores são unânimes em afirmar que os quatro evangelistas bíblicos não escreveram uma só linha de punho próprio. "Não sabemos a real identidade dos autores", diz Bazzana. Ele explica que seus nomes passaram a constar nos textos apenas a partir do século II, com o objetivo de dar credibilidade às escrituras. Sem dúvida, o texto ganhou mais força ao ser atribuído a Mateus e João (apóstolos que conviveram com Jesus) e a Marcos e Lucas, discípulos de Pedro e Paulo, respectivamente. "Esse processo de chama pseudepigrafia e era muito comum no mundo antigo", diz o professor de Harvard.
Nessa tradição, as versões já eram moldadas para se adaptar a seu público. "As histórias eram contadas por meio de performances dramáticas para uma plateia. O que dava certo continuava, o que não funcionava era rejeitado e trocado." Os contadores de histórias também preenchiam as "lacunas", que eram muitas, deixadas pela falta de elementos históricos, para aumentar seu impacto. White cita como exemplos as narrações sobre a Paixão de Cristo – incluindo o papel de Judas Iscariotes como o traidor, que serve para dar efeito dramático à narrativa. Nas epístolas de Paulo, mais antigas que os Evangelhos, Jesus reaparece da morte para os 12 apóstolos, sem menção à morte do suposto traidor, Judas. Os narradores também gostavam de reforçar a divindade de Jesus adequando sua vida às velhas profecias judaicas. Mateus diz que Jesus teria entrado em Jerusalém no lombo de um jumento – exatamente como o profeta Zacarias previra que o Messias chegaria à cidade.
Os Evangelhos são as principais fontes de pesquisa sobre Jesus, mas não são as únicas. Há os evangelhos apócrifos, rejeitados pela Igreja, que não fazem parte da Bíblia. A inclusão dos quatro Evangelhos no cânone da Igreja (quer dizer, sua aceitação como escritos de inspiração divina) não se deu apenas por serem os mais antigos. "Eles eram os mais populares", diz Dale Martin, professor de estudos religiosos da Universidade Yale, dos EUA. Para o autor de Scripting Jesus, há outro motivo. Como o núcleo teológico dos Evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João está na Paixão de Cristo, que demonstraria seu caráter único e divino como filho de Deus, eles dariam mais força a esse dogma. Além disso, os quatro Evangelhos se complementam. O nascimento de Jesus, por exemplo, é contado apenas em Lucas e Mateus. Ainda assim, a historiografia é precária. "Mesmo juntando os quatro, não temos um registro histórico confiável de Jesus", diz White. O que se sabe é que, 2 mil anos atrás, cada texto dos Evangelhos pertencia a um círculo restrito de seguidores.
Mesmo o distanciamento histórico ainda não permite explicar o que fez um homem da Galileia atrair tantos seguidores após sua morte, num contexto em que muitos se diziam profetas e Messias. Em 300 anos, o que começou como uma pequena seita judaica se transformou na religião oficial do Império Romano. "Jesus se tornou o 'filho de Deus', historicamente falando, por milhares de fatores que nunca serão totalmente explicados", diz Dale Martin, de Yale. "Ele inspirou lealdade em seus seguidores, que acreditaram terem-no visto após sua morte."
Os Evangelhos tiveram papel fundamental nisso. Primeiro, levaram adiante a tradição sobre Jesus. Segundo, se encaixaram em várias situações, dando força ao proselitismo cristão. Nos primeiros séculos de cristianismo, diz White, conquistaram de judeus a gregos. No presente, são usados por algumas igrejas evangélicas para fundamentar a teologia da prosperidade, segundo a qual os fiéis são merecedores das riquezas materiais. "São textos com múltiplos significados, usados por seguidores que vão dos kardecistas aos católicos", diz André Chevitarese, da UFRJ. White afirma, porém, que a compreensão histórica e teológica dos Evangelhos não deve levar à conclusão de que Jesus Cristo foi "inventado". Ou que as escrituras são puramente fantasiosas. "Não estou tentando dizer que devemos jogá-las fora", afirma o historiador. "Pelo contrário. Eu as levo muito a sério. Mas não de forma ingênua."