O século 19 é marcado pelo fortalecimento do
discurso racional, pelo avanço da Ciência e pela gradativa invisibilidade das
concepções religiosas, particularmente na Europa Ocidental. Percebido como
fonte e objeto da Razão o Homem deve admitir e obedecer às leis da natureza. Em A
Origem das Espécies, Charles Darwin acabou por acrescentar mais uma dura
crítica ao cristianismo, na medida em que a idéia evolucionista coloca em xeque
o discurso criacionista tradicional. A distância entre Ciência e Religião
parece ficar ainda mais acentuada, e mesmo que o discurso sacerdotal, a partir
de uma perspectiva dualista, busque exaustivamente blindar a figura de Deus de
qualquer autoria quanto ao mal, o Altíssimo acaba não escapando dos
questionamentos e das condenações que vão emergir. Em Os Irmãos
Karamazov, Ivã expressa sua revolta contra um mundo que considera
contraditório. No seu diálogo com Aliócha, ele narra a história de uma menina
que sofrera nas mãos dos próprios pais:
…aqueles pais instruídos praticavam muitas
sevícias na pobre menininha. Açoitavam-na, espezinhavam-na sem razão, seu corpo
vivia coberto de equimoses (…). Pelas noites glaciais, no inverno, encerravam a
menina na privada, sob o pretexto de que ela não pedia a tempo, à noite, ir
para ali (…). Esfregavam-lhe os próprios excrementos na cara, e sua mãe, sua
própria mãe obrigava-a a comê-los (…). Vês tu daqui aquele pequeno ser, não
compreendendo o que lhe acontece, no frio e na escuridão, bater com seus
pequeninos punhos no peito ofegante e derramar lágrimas inocentes, chamando o
‘bom Deus’ em socorro? (…) Dizem que tudo isso é indispensável para estabelecer
a distinção entre o bem e o mal no espírito do homem. Para que pagar tão caro
essa distinção diabólica?…[1].
É interessante notarmos que no discurso desse
personagem, Fiódor Dostoievski, embora cristão, nos permite entrever seus
próprios conflitos internos, conflitos que também emergem como fruto de sua
época. E como nos relembra Bauman, “o mundo moderno é mundo de conflito; é
também o mundo de um conflito que foi interiorizado, que virou
conflito interior, um estado de ambivalência e contingências pessoais. Este é
um mundo que dá à luz a loucura…” [2] O
romancista russo, cujas obras literárias não deixaram de influenciar pensadores
como Friedrich Nietzsche, vive uma atmosfera na qual os valores modernos já
exalam os odores de sua decadência, sobretudo os valores cristãos que levam o
indivíduo a imaginar este mundo como algo subjugado aos desígnios de Deus e às
investidas do Diabo.
De fato, as personagens dostoievskianas vêm à tona
como seqüela de uma Modernidade ambivalente que parece morder a própria cauda.
Ivã Karamazov faz parte deste repertório de figuras dramáticas que, com seus
discursos ateístas, confrontam antigas idéias cristãs e metafísicas sobre o bem
e o mal e que, de certa forma, expõem um réquiem para Deus. Em
Dostoievski, o Diabo se mantém vivo como uma voz que clama em favor da vida e
contra uma moral que tenta escarnecer da terra. No diálogo com Ivã, o Diabo
busca mais uma vez apontar saídas de modo que o homem consiga se libertar das
correntes que o impedem de usufruir da vida, das pulsões, dos desejos.
Na minha opinião, não é preciso destruir nada, a
não ser a ideia de Deus no espírito do homem: eis por onde é preciso começar.
Oh! Os cegos não compreendem nada! Uma vez que a humanidade inteira professe o
ateísmo (…), então, por si mesma, sem antropofagia, a antiga concepção do mundo
desaparecerá, e, sobretudo a antiga moral (…). Cada qual saberá que é mortal,
sem esperança de ressurreição, e resignar-se-á à morte com uma altivez
tranquila, como um deus… [3]
Eis o prelúdio dostoievskiano que será evocado por
Nietzsche através da boca de Zaratustra. Em plena praça sua voz se fez ouvir:
“… Deus morreu, e morreram com ele tais blasfêmias. Agora, o que causa mais
espanto é blasfemar da terra, e ter em mira as entranhas do impenetrável e não
a razão da terra”.[4]
Esse pronunciamento da morte de
Deus, a partir da genealogia nietzschiana, significa que ele teria deixado de
ser o alicerce dos valores do homem moderno, ou seja, os valores que nos
norteiam não são mais valores cristãos ou sagrados, são humanos. Em outras
palavras, ao anunciar este “óbito do divino”, Nietzsche busca sintetizar seu pensamento
do que seria a morte de todos os ídolos, de todos os valores santificados que
antes permeavam e davam sustentação ao homem ocidental. Mas não podemos deixar
de salientar que, embora sendo um crítico ferrenho dos valores cristãos e
seculares, Nietzsche não busca abraçar qualquer forma de niilismo de morte e
aniquilação em favor da ilusão de um mundo melhor.
A Modernidade, dessa forma,
expressaria a passagem de uma visão teológica centrada em Deus e na religião
para uma visão racional e laica. Agora é o homem que toma o lugar do Altíssimo.
Mas se Deus está morto, o que nos resta? Eis uma questão que ainda se manteve
persistente, pois, ao repudiar a maior parte dos valores cristãos e abraçar
novos valores laicos, criou-se apenas um deslocamento, pois o homem continua a
perceber a vida de forma negativa. O anseio por tal mundo ou paraísos perdidos
se constitui numa negação niilista da própria vida.
Assim, o discurso moral do
ocidente persiste em manter acesa esta bipolarização entre a ordem e o caos,
entre a luz e a sombra, entre Deus e o Diabo, enfim, continua ratificando a
ideia do bem e do mal como sendo valores absolutamente inconciliáveis.
E aqui se torna oportuno discutirmos alguns
aspectos que envolvem essa reinvenção cristã que estabelece uma linha divisória
entre bem e mal. Mas é importante frisarmos que a incursão neste solo não deixa
de ser árdua, pois discorrer sobre a invenção de um Deus bom e de um antagônico
Anjo do mal é, em certa medida, ponderar sobre os alicerces da própria religião
cristã. Contudo, pensadores que se debruçaram a respeito desta questão, como é
o caso de Ludwig Feuerbach e Sigmund Freud,
por exemplo, assinalam certas pistas que, de uma forma ou de outra, podem nos
auxiliar a compreender os dispositivos psicológicos que levam os indivíduos a
produzirem seus deuses e demônios.
Em A Essência do Cristianismo, livro
publicado em 1841, Feuerbach faz uma critica contundente à teologia cristã ao
desenvolver uma interpretação antropológica da religião. É um texto
interessante, pois nele o Deus do cristianismo emerge como um produto da
imaginação, isto é, as qualidades e características divinas seriam, em certo
sentido, uma antropomorfização, uma invenção a partir da própria “essência
humana”. Deus não é algo abstrato e distante daquilo que compõe o próprio ser
do homem. “Deus é a intimidade revelada, o pronunciamento do Eu do homem; a
religião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem, confissão
dos seus mais íntimos pensamentos…” [5]
Seguindo tal linha de pensamento, não fica difícil para Feuerbach concluir que
não foi Deus quem criou o homem, mas, ao contrário, foi o homem quem inventou
Deus a sua própria imagem. A Teologia, até certo ponto, acaba por ser
destronada pela Antropologia.
Os teólogos cristãos vêm buscando,
ao longo do tempo, sistematizar seu discurso dicotômico entre Homem e Deus,
reforçando a ideia da existência de um ser Supremo pessoal, independente,
perfeito e eterno, um ser que estaria demasiadamente distante das imperfeições
humanas e das limitações corpóreas. O discurso feuerbachiano, grosso modo, visa
demonstrar que todo o arcabouço teórico cristão se prende a uma ilusão, a uma
“concepção infantil” do que significa a idéia de religião. O cristianismo,
portanto, teria inventado um deus com atributos que são, de fato, projeções e
fantasias inconscientes fincadas no mundo material. É Feuerbach quem nos diz:
O homem projeta espontaneamente através da
imaginação a sua essência interior; ele a mostra fora de si. Esta essência da
natureza humana contemplada, personificada, que atua sobre ele através do poder
irresistível da imaginação como lei do pensar e agir – é Deus.[6]
Embora na condição de um ser racional e,
aparentemente, superior aos animais, o Homem termina sendo refém de sua própria
consciência, pois é ela que o lança perante a realidade de sua finitude e, ao
mesmo tempo, perante o desejo de imortalidade. Como afirma Bauman, “é a
implacável realidade da morte que torna a imortalidade uma proposta atraente,
mas é a mesma realidade que torna o sonho da eternidade uma força ativa, um
motivo para ação”.[7] E não deixa de ser
interessante notar, na concepção feuerbachiana, como a certeza da
transitoriedade aflora como um dos aspectos relevantes a fim de compreender a
crença em um deus imortal e numa vida eterna. A percepção de sua fragilidade
perante as forças da natureza e da inevitabilidade da morte leva o homem a
conceber o desejo de continuidade do seu ser e, assim sendo, imagina outro
mundo habitado por um deus não apenas onisciente, onipotente e onipresente,
mas, acima de tudo, imortal. Feuerbach observa que o sujeito não poderia crer
num deus imortal se não acreditasse que sua própria individualidade possa ser
também eterna.
A ideia de imortalidade, desta forma, encontra-se
na própria genealogia do cristianismo. Nas palavras do filósofo alemão, “… o
interesse de que Deus exista é idêntico ao interesse de que eu exista, que seja
eterno (…). Deus é a existência correspondente aos meus desejos e sentimentos
(…). A imortalidade é a conclusão da religião – o testamento no qual ela expressa
o seu último desejo” [8] Vemos aqui a
relevância da invenção de um paraíso e de um céu povoado por seres para os
quais o tempo humano é ausente. Caso não pudesse projetar este universo
espiritual e eterno, não haveria como contornar a angústia provocada pela
possibilidade do vazio que a morte nos lança. Mas não somente a angústia, mas o
medo da perda da tão valorizada individualidade.
O anseio de continuidade esteve enraizado em várias
culturas antigas, como foi caso do Egito com suas mumificações que buscavam,
sobretudo, preservar o corpo para a eternidade. E o cristianismo não
escapou às regras de tal anseio. Com uma fórmula bem elaborada, o discurso
cristão, que se apropria da morte e da idéia de eternidade, consegue, em certa
medida, abrandar o medo que emerge diante do inevitável e misterioso destino da
finitude. A morte é desenhada como uma passagem, uma ponte para outro mundo
eterno no seio de Abraão ou, a depender do veredicto divino, para os aquecidos
braços do Diabo. De qualquer maneira, a morte não é concebida como o fim último
da alma ou mesmo do corpo. Não devemos esquecer que, no cristianismo, esta
ânsia pela continuidade não exclui a esperança de ter um corpo também
inacabável. E a fórmula cristã não deixa este problema teológico sem
elucidação: a vitória sobre a morte, sobre a morte do corpo encontra-se na
ressurreição que ocorrerá no dia do Juízo Final, a exemplo do que teria
acontecido com o Lázaro ressuscitado por Cristo.
Outro ponto sublinhado por
Feuerbach diz respeito à questão dos valores bem e mal. Deus é bom e justo e,
portanto, ele não seria responsável pelas adversidades que recaem sobre a
humanidade, a autoria do mal fica por conta de outra figura imaginária: o
Diabo. A invenção da dicotomia entre o bem e o mal vem à tona como algo extra-mundano,
desconectado do humano, um aspecto, aliás, que o cristianismo, através do seu
discurso teológico, vai buscar dá relevo. De qualquer modo, Deus e o Diabo, na
perspectiva feuerbachiana, não passam de personagens oriundas da essência
humana, ou melhor, das projeções daquilo que se almeja e, ao mesmo tempo,
negação de tudo aquilo que o homem considera como mal.
A maior parte das questões discutidas por Feuerbach
na Essência do Cristianismo, e que tentamos abordar aqui de forma
bastante resumida, foram duramente rechaçadas tanto por homens da Igreja quanto
por intelectuais de sua época. Contudo, seus textos críticos em torno da
religião cristã vieram a se tornar uma herança teórica significativa para
outros pensadores que, posteriormente, também se debruçaram sobre a
problemática religiosa. Freud está entre os herdeiros deste “iluminismo
feuerbachiano”. Mesmo antes da invenção da Psicanálise, Freud já não escondia
sua adesão às concepções ateístas que, em parte, foi nutrida pela filosofia
iluminista do século 18. Porém, são as idéias de Feuerbach que acabam se
tornando decisivas para o médico vienense elaborar seu próprio discurso em
torno da religião, especialmente a cristã. Assim como o autor da Essência do
Cristianismo, Freud também vai encarar a religião de uma forma crítica, em
particular a ideia de Deus como algo produzido pelos próprios homens. Em
Feuerbach encontramos a seguinte observação:
O homem transporta primeiramente a sua essência
para fora de si antes de encontrá-la dentro de si. A sua própria essência é
para ele objeto primeiramente como uma outra essência. A religião é a essência
infantil da humanidade; mas a criança vê a sua essência, o ser humano, fora de
si – enquanto criança é o homem objeto para si como um outro homem…[9]
Freud, por sua vez, escreve em O Futuro de
uma Ilusão:
Quando o indivíduo em crescimento descobre que está
destinado a permanecer uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem
proteção contra estranhos poderes superiores empresta a esses poderes as
características pertencentes à figura do pai; cria para si próprio os deuses a
quem teme, a quem procura propiciar e a quem, não obstante, confia sua
proteção. Assim, seu anseio por um pai constitui um motivo idêntico à sua
necessidade de proteção contra conseqüências de sua debilidade humana. É a
defesa contra o desamparo infantil que empresta suas feições características à
reação do adulto ao desamparo que ele tem de reconhecer – reação que é,
exatamente, a formação da religião.[10]
Sob essa ótica, portanto, a Religião e todo seu
discurso doutrinário não passam de uma ilusão, e para Freud, “… acolhemos as
ilusões porque nos poupam sentimentos desagradáveis, permitindo-nos em troca
gozar de satisfações. Portanto, não devemos reclamar se, repetidas vezes, essas
ilusões entrarem em choque com alguma parcela da realidade e se despedaçarem
contra ela”.[11] Na perspectiva freudiana, tais
ilusões possuem raízes fincadas na infância, ou melhor, na relação da criança
com o pai. A religião emerge para o inventor da Psicanálise como uma espécie de
“patologia psíquica”, pois a idéia de Deus encontra-se relacionada a um determinado
processo de substituição da figura paterna. Em outras palavras, o desejo de
proteção diante da conjuntura de desamparo volta-se para seu genitor, aquele
que lhe garantirá a segurança diante dos perigos.
Com o passar do tempo, a figura paterna vai
gradualmente sendo substituída pela ideia de Deus ou outras entidades
protetoras. E não seria arriscado afirmar que o medo está conectado em tal
processo que, de algum modo, irá acompanhar o indivíduo ao longo de sua
existência.
O desamparo do homem (…) permanece e, junto com
ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses. Estes mantêm sua tríplice missão:
exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do
Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos
e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs. [12]
Sobre esse mesmo aspecto, é interessante fazer vir
à baila certa convergência da concepção freudiana com o que Nietzsche pontua em
suaGenealogia da Moral:
Para que o sofrimento oculto, não descoberto, não
testemunhado, pudesse ser abolido do mundo e honestamente negado, o homem se
viu então praticamente obrigado a inventar deuses e seres intermediários para
todos os céus e abismos, algo, em suma, que também vagueia no oculto, que
também vê no escuro, e que não dispensa facilmente um espetáculo interessante
de dor. [13]
O cristianismo institucionalizado emerge
principalmente a partir das interpretações dos textos paulinos que acabaram se
tornando hegemônicas entre tantas outras interpretações. E neste ponto devemos
observar que, equilibrando-se numa moral de “sujeitos ressentidos” diante de
sua condição de sofrimento, o projeto do apóstolo Paulo foi vitorioso ao
reforçar determinadas idéias. Lembrando que, na interpretação de Nietzsche, o
sujeito ressentido é o niilista que não age nem reage, é um fraco que quando
busca agir é apenas sob a forma imaginária, ou seja, ““…criando um inimigo que
considera malvado e imaginando uma vingança contra seus valores, o que faz o
ressentido é dar sentido a sua falta de força: o outro é sempre culpado do que
ele não pode, do que ele não é…[14]
Os textos de Paulo são incisivos
no que tange à dicotomia entre o bem e o mal, ao pecado e à esperança da
salvação eterna. Tais idéias serão cruciais para ajudar a definir e acentuar,
de certa forma, os contornos da invenção de um Deus bom e de um Diabo maléfico,
figuras imaginárias que serão de extrema valia para o exercício do poder
disciplinar contra os ímpios e em favor da manutenção do rebanho de fiéis. Um
ponto sobre o qual Nietzsche desce seu martelo: “… as noções de ‘além’, de
‘juízo final’, de ‘imortalidade da alma’, da própria ‘alma’, são instrumentos
de tortura, sistemas de crueldade de que se serviam os sacerdotes para se
converterem em senhores e para manterem o poder…” ··.
A revolta de Nietzsche contra o
cristianismo paulino se justifica. É principalmente com o apóstolo Paulo que a
terra deixa de ser o lugar de expansão da vida. Em Paulo, a terra
transformar-se num mundo ilusório que abriga o mal proveniente do pecado, um
mundo de renúncia das pulsões, um mundo onde brota o sentimento de culpa. O
cristianismo, em nome de Deus, acredita erguer o estandarte do bem e da
verdade, e elege como seu principal alvo o próprio corpo dos indivíduos, esta
alcova de Satanás, este campo profano do qual jorram o desejo e o gozo.
O cristianismo tomou o partido de tudo o que é
fraco, baixo, incapaz, e transformou em um ideal a oposição aos instintos de
conservação da vida saudável; e até corrompeu a faculdade daquelas naturezas
intelectualmente poderosas, ensinando que os valores superiores do intelecto
não passam de pecados, desvios e tentações. [15]
Eis aí um dos principais
paradoxos que podemos pinçar no bojo do cristianismo: o mesmo Deus que
supostamente criou o homem dotado de instintos, agora os reprime, os condena,
os demoniza em nome do bem. E os textos atribuídos a Paulo não deixam dúvida
quanto à importância de valorizar o modo de vida ascético, de vigiar e
penalizar o corpo em favor da alma, em favor da esperança de uma vida
além-túmulo. Com isso, o cristianismo estaria negando e amaldiçoando a terra na
perspectiva de alcançar outro mundo, um mundo sem sofrimentos, um paraíso
eterno.
Sabemos que as práticas de vigilância e punição
sobre o corpo não desaparecem com o advento da Era Moderna, embora se
apresentando encobertas com uma roupagem secularizada. Foucault vai chamar a
atenção sobre este aspecto ao demonstrar o investimento disciplinar exercido
com o propósito de inibir o desejo e a própria expansão da sexualidade. Na
perspectiva foucaultiana, o poder passa a atuar sobre os corpos objetivando
controlá-los, torná-los dóceis a fim de melhor servirem à nova ordem econômica
que se estabelece. O mercado, em certo sentido, emerge como este novo Senhor
que veio substituir o antigo Deus da cristandade, e refletindo a imagem e
semelhança do cristianismo que afirma que o corpo deve ser o templo do Espírito
Santo, a divina Razão também resplandece sobre este mesmo corpo. O corpo agora
deve ser purificado por meio da norma e da disciplina de modo a se constituir
em força de trabalho produtiva. Sendo assim, o corpo encontra-se também
mergulhado no campo político e econômico, pois “…não se trata de cuidar do
corpo, em massa,grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável
mais de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga,
de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica…”[16] E
todo aquele que resistir e desobedecer o que é ordenado e normatizado pelo
“deus-mercado” deve ser destituído e expulso do paraíso do consumo, não deve
existir lugar na sociedade moderna para os que insistem em comer do fruto da
emancipação a fim de afastar-se do rebanho servil, os filhos das trevas devem
ser rechaçados e diabolizados.
No que diz respeito à
diabolização do outro, as idéias cristãs também vieram, sorrateiramente, a
impregnar o mundo moderno. Análogo ao cristianismo, a Modernidade também
procurou não poupar esforços para colocar em prática o exorcismo de todo o mal
que circunda a sociedade de maneira geral, ou até mesmo o mal que porventura
possa se alojar no corpo do sujeito que não se adapta à nova ordem. Daí a
perseguição e o enclausuramento dos loucos, a intolerância para com os estranhos
e diferentes, pois são agentes que se insurgem contra o poder e ameaçam a ordem
da Razão. Estes e outros subversivos devem ser expulsos do jardim e ficar à
mercê do poder disciplinar de modo que o restante do rebanho não seja
contaminado.
Portanto, o mundo moderno com seu
discurso racional, ordenador e punitivo, além de abraçar o dualismo cristão,
também tratou de lançar mão de suas práticas de supressão. O poder deve
expulsar e suprimir os desobedientes, diabolizar e impor o medo aos outros que
não querem perceber a diferença entre o certo e o errado, que não são
suficientemente capazes de distinguir o falso do verdadeiro.
Assim, o sentimento de desamparo,
a insegurança e o próprio medo da morte, podem ser considerados aspectos
relevantes no incremento de uma base psicológica que, até certo ponto, vai
condicionar o modo de interpretar o mundo real. E em concomitância com a
invenção de deuses ou entidades punitivas, brotam discursos doutrinários
objetivando alicerçar a crença em tais deuses, mesmo que seja necessário
diabolizar e perseguir o outro que se distancia de tal crença. Sob a ótica de
uma verdade absoluta, torna-se legítimo impor o medo aos que, ao adorarem
outros deuses, blasfemam contra o Espírito Santo e continuam ao lado do mal e
crucificando simbolicamente o Filho do Altíssimo.
Assim, apesar das tentativas de
matá-lo, o Diabo está bem vivo num cenário em que a Razão e a ciência pareciam
emergir como única fonte de explicação do mundo. Se já não possui todos os
atributos dos tempos medievos, Satã continua sendo um elemento indispensável
para estabelecer o medo e garantir o exercício do poder dos que afirmam estar
ao lado do bem. E quanto aos “outros”?
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[1] Ver DOSTOIEVSKI, Fiódor. Os
irmãos karamazov. Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. 2. ed. Rio de
janeiro: Abril Cultural, 1973.
[2] Ver BAUMAN, Zygmunt. Modernidade
e ambivalência. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999.
[4] Ver NIETZSCHE, Friedrich. Assim
falava zaratustra. Tradução de Eduardo Nunes Fonseca. São Paulo:
Hemus, 1985. p. 10.
[5] Ver FEUERBACH, Ludwig. A
essência do cristianismo. Tradução de José da Silva Brandão. 2. ed. Campinas-SP:
Papirus, 1997. p. 56.
[10] Ver FREUD, Sigmund. O
futuro de uma ilusão. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de
Janeiro: Imago, 1969. vol. XXI. (Edição eletrônicaStandard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.).