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quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Eric Hobsbawn e Richard Horsley: As agitações camponesas do século I e os líderes messiânicos


Este artigo pretende investigar como Jesus se comportou na sociedade de seu tempo, abordar a sua atitude política e social e utilizar-se da corrente historiográfica da Escola dos Annales. Segundo a revolução dos Annales, a interdisciplinaridade passou a ser explorada e outras fontes de estudo passaram a ser consideradas históricas.

Geografia, Arqueologia, Antropologia, Sociologia, Economia, História, entre outras, poderiam juntas alcançar resultados científicos de grande fecundidade para suas respectivas áreas. Quando se desliga Jesus Cristo do seu contexto social, produz-se um mito. Se estudado dentro deste contexto histórico de aguda opressão e profunda crise de valores, cria-se um líder social, um libertador. Jesus, revolucionário social e político, um homem que dedicou sua vida a pregar uma revolução social na Palestina, dirigindo-se aos pobres camponeses e outros oprimidos de seu tempo, subjugados pelo domínio do Império Romano e seus associados locais da elite judaica, chamando os para uma revolução que só teria sucesso se partisse da conscientização da situação de opressão em que viviam.


A figura de Jesus Cristo é uma das mais intrigantes, questionadas e controvertidas de todos os tempos. Sem dúvida alguma, a maior parte dos registros sobre Jesus Cristo está na Bíblia Sagrada, mas há menções feitas por historiadores e estudiosos judeus e não-judeus. Há quem insista que Jesus se restringiu a comunicar uma mensagem religiosa sem cunho político ou ideológico. Se compreendido dentro do contexto político, econômico e social do imperialismo romano de sua época, sua pregação assumiria a expectativa da libertação política e social. Jesus de Nazaré, revolucionário social e político, foi um homem que dedicou sua vida a pregar uma revolução social na Palestina, dirigindo-se aos pobres camponeses e a outros oprimidos de seu tempo (CROSSAN, 1995), subjugados pelo domínio do Império Romano e de seus associados locais da elite judaica, chamando os para uma revolução que só teria sucesso se partisse da conscientização da situação de opressão em que viviam.


Ao longo deste artigo serão abordados temas sobre a cultura, a política, a sociedade e a economia da Palestina do século I no intuito de se poder decifrar Jesus, o homem judeu de Nazaré, o Jesus Histórico que emerge da interação do individuo e contexto.


A PALESTINA NO TEMPO DE JESUS


O termo Palestina, em poucas palavras, significa terra dos filisteus. Há, contudo, segundo Daniel Rops controvérsias sobre a utilização desse termo para designar tal região. Segundo o pensador, o termo designava um povo vencido do qual as terras haviam sido conquistadas. Assim o real nome que os israelitas usavam para indicar a palestina, na linguagem nobre, idioma religioso e histórico, era: País de Canaã. Esse termo servia para designar a terra prometida por Javé e conquistada a expensas de guerras. Portanto, o termo Palestina significa, do ponto de vista religioso, para o povo da época, o País de Canaã, a terra prometida por Javé. Do ponto de vista etimológico, Terra dos filisteus. A Palestina no tempo de Jesus possuía uma extensão de terra mediana, era uma estreita área situada entre a África e a Ásia, funcionando como uma espécie de ponte entre essas regiões. Suas coordenadas geográficas estão nos paralelos de 31 e 33 ao norte e nos meridianos 32 e 34 ao leste.


Com um território menor que o estado do Espírito Santo, possuía uma superfície de cerca de 34.000 Km2 e cerca de 650 mil habitantes. Encontrava-se dividida em áreas menores: Judéia, Samaria e Galiléia, à oeste; Ituréia, ao norte; Gualanítade, Batanéia, Traconítide, Auranítide, Decápole e Peréia, à leste; e Iduméia ao sul. Todo esse território era margeado pelo Mar Mediterrâneo, no extremo oeste. Ao Leste estava o Rio Jordão que desemboca no Mar Morto, ao sul. Entrecortando toda região havia uma cadeia de montanhas e montes com 600 mts de altura, sendo que os mais altos estavam situados na Galiléia e no Hermon. Em 63 a.C., através do general Pompeu, Roma chega ao Oriente Médio. A política expansionista romana teve inicialmente como objetivos básicos a defesa frente a povos vizinhos rivais e a obtenção de mais terras necessárias à agricultura e ao pastoreio, mas logo se revelou uma fonte valiosa de riquezas em metais preciosos e em escravos. Como resultado, em cinco séculos de guerras, a dominação romana se estendeu a grande parte da Europa, da Ásia e da África.


Assim a Palestina passa a fazer parte do Império Romano. Herodes, o Grande (37- 4 a.C.) obtém de Roma o título de Idumeu, rei da Judéia. É no seu reinado, por volta do ano 7 ou 6 a.C., alguns anos antes da morte do Rei Herodes, o Grande (4 a.C.) e durante o governo do imperador romano Augusto, que ocorre nascimento de Jesus de Nazaré. Durante a vida de Jesus, a Palestina foi governada, principalmente, pela Dinastia Herodiana.


Devido a sua posição geográfica estratégica, a Palestina era região de passagem. Por ela circulavam soldados, comerciantes, mensageiros, diplomatas. Essa região possuía importantes centros urbanos, como Cesaréia e Jerusalém, que concentravam indivíduos e atividades econômicas. Como em outras áreas do Império, existiam vias e portos, que facilitavam as comunicações e transporte de mercadorias e pessoas.


A economia da palestina subsistia, basicamente, da agricultura e da atividade pesqueira. Banhada pelo Mediterrâneo, cortada por rios e possuindo lagos, não é difícil constatar a variedade de peixes e seu papel para o abastecimento interno e até exportação. Quanto à pecuária, a região possuía rebanhos de ovelhas, cordeiros e bois. Existia nas pequenas cidades um comércio local (feiras), onde se fazia troca de produto (escambo). A economia monetária, ou seja, a circulação de dinheiro era muito reduzida. Contudo, havia grandes mercados, como o de Jerusalém, com o controle de grandes comerciantes. Eram mercados atacadistas que faziam importações como o mercado do templo. O comércio, tanto interno quanto externo, também era praticado. O comércio interno, pouco conhecido, consistia nas trocas locais e, sobretudo, visava ao abastecimento das grandes cidades. Quanto ao externo, importavam-se produtos de luxo, consumidos pelas elites e pelo Templo. Por outro lado, exportavam-se alimentos – frutas, óleo, vinho, peixes – e manufaturas, como perfumes, além do betume.


A produção baseava-se no trabalho escravo. Os escravos não eram considerados pessoas, mas coisas de que seu dono podia dispor conforme lhe conviesse, comprando os e vendendo-os. Havia escravos por toda parte. Dois terços da população de Corinto era formada por escravos, cerca de 400 mil pessoas. Por não conseguir pagar uma dívida, alguém poderia tornar-se escravo. Ademais, a corte romana obrigava a população a pagar impostos. O sistema de impostos era o canal principal pelo qual o povo era explorado por colonizadores romanos. A situação era aflitiva para a maioria da população, pois, para sustentar seus projetos arquitetônicos, a vida de luxo da corte e os presentes à família imperial, Herodes impôs aos súditos uma carga pesada de impostos que eles só cumpriam com enorme dificuldade. Apesar da presença ameaçadora de suas fortalezas e do aparato de sua cruel polícia secreta, a oposição popular a seu governo fervilhava e quase vinha à tona.


Roma, na época, um império muito extenso e muito preocupado com seus próprios problemas, não estava em condições de ali instalar o aparelho administrativo necessário para um governo direto. O regime era brutal e autocrático. Ao assumir o controle direto da Judéia, mais de dois mil rebeldes foram crucificados. O templo foi saqueado e destruído. Impostos pesados foram criados. A maior parte das fontes históricas (materiais ou literárias) indicam que as relações político-econômicas na Palestina faziam parte do que se chamou de relações redistributivas ou tributárias. Os impostos eram cobrados tanto por romanos quanto por judeus. Os impostos romanos dividiam-se em diretos, cobrados dos produtos da terra (entre 20 a 25%), os de capitalização ou pessoal, que era o denário, e indiretos, que compreendiam os direitos de alfândega, de barreira (na entrada das cidades) e pedágio (pontes, atravessadouros de rios e encruzilhadas).


Esses últimos eram arrendados, por isso muito altos. Os impostos judaicos eram os do templo, destinados à manutenção do santuário e dos sacerdotes; o primeiro dízimo, a décima parte do primeiro produto da terra (ou primícias) e da agropecuária; o segundo dízimo, que deveria ser gasto em festa e beneficência, a ser pago no primeiro, segundo, quarto, quinto anos numa série de sete anos e cobrado do produto da terra e do gado; o terceiro dízimo ou dízimo dos pobres, a ser pago no terceiro e sexto anos, destinado aos órfãos, viúvas e prosélitos; as rendas do quarto ano, que prescrevia que o produtor, ao colher o produto da terra nos três primeiros anos, gastaria o resultado dessa primeira colheita em Jerusalém.


O aparelho de Estado em Jerusalém exercia forte controle sobre a economia de todo o país. A ordem fiscal, a pública, o direito e a justiça constituíam os três setores básicos em que o poder era exercido. Os judeus suportavam muito mal as pesadas imposições romanas. Os romanos garantiam a segurança do transporte do imposto judaico do Templo. A ordem pública era assegurada, internamente, pelos romanos. A sociedade palestina podia ser dividida, naquele período, em quatro grandes grupos: os ricos, grandes proprietários, comerciantes ou elementos provenientes do alto clero; os grupos médios, sacerdotes, pequenos e médios proprietários rurais ou comerciantes; os pobres, trabalhadores em geral, seja no campo ou nas cidades; e os miseráveis, mendigos, escravos ou excluídos sociais, como ladrões.


Contudo, as diferenças sociais na palestina não se pautavam somente na riqueza ou pobreza do indivíduo, mas em diversos outros critérios, como sexo, função religiosa, conhecimento, pureza étnica, entre outros. Em meados do século I, calcula-se entre 50 e 80 milhões os habitantes do Império Romano, dos quais cerca de 90% viviam no campo.


A sociedade era piramidal. A classe alta era composta por funcionários, por detentores do Estado: Sumo Sacerdote, Sinédrio e Estado romano, o rei Herodes, o governador Pôncio Pilatos e a Corte. Esse era o primeiro pólo da classe rica. O segundo estrato da classe rica era constituído pelos proprietários de terra, pelos latifundiários. No próprio Evangelho muitas vezes aparece a referência aos anciãos - famílias tradicionais, donas de terras. Por fim, havia os grandes comerciantes do mercado importador-exportador, do mercado atacadista, sobretudo de Jerusalém. Depois da classe rica, vinham os remediados. Eram os artesãos qualificados dos grandes centros urbanos. Jerusalém deveria ter de 35 a 40 mil habitantes. Nazaré, de 20 a 30 famílias. Toda a Palestina, a sociedade em que Jesus viveu, deveria ter de 600 a 800 mil habitantes.


Por fim, a classe baixa, formada pelo povo. Eram artesãos do interior, diaristas, arrendatários rurais, escravos, criados, e também existia toda a sorte de marginalizados: leprosos (os últimos dos últimos), doentes, mendigos, órfãos, viúvas, estropiados, loucos, possessos. Chamavam de possessas as pessoas que, por causa de sua condição social, ficavam loucas. Isso mostra o nível a que estava reduzido o povo, o grau de deterioração das condições de vida. Jesus certamente pertencia à classe pobre, precisava trabalhar duro para seu sustento. Um carpinteiro, marceneiro em Nazaré, ocuparia algum lugar de nível inferior do grupo médio, um lugar equivalente a um operário da classe média baixa.


JESUS E AS TENSÕES SOCIAIS DO SEU MEIO


A situação social na Galiléia ficou explosiva a partir do governo de Herodes Antipas. As provas extraídas da literatura rabínica e de documentos legais do período indicam que o endividamento rural aumentou de forma significativa em todo o período herodiano, com lavradores desesperados pedindo empréstimos aos funcionários da administração herodiana e à aristocracia sacerdotal (hipotecas sobre as terras). Em muitos casos, essa ação legal transformava aldeãos outrora livres, que cultivavam a terra dos antepassados, em meeiros permanentemente empobrecidos, que ganhavam a vida com dificuldade em vastas propriedades aristocráticas (as quais aumentavam rapidamente) (HORSLEY. 2000).


As agitações camponesas do século I oscilavam entre os líderes messiânicos – que recorriam à violência, mas por trás dela se escondia uma causa divina – e os bandidos – que operaram apenas no âmbito humano. O banditismo social foi um dos fenômenos de maior ocorrência na história, além de ser um dos mais uniformes. Ele apareceu nas sociedades agrárias, onde existia uma enorme quantidade de camponeses e trabalhadores sem terra governados, oprimidos e explorados por representantes de outra classe social: senhores de terra, cidades, governos, juristas ou até mesmo bancos. (HOBSBAWM, 1976).


Em sociedades agrárias, sob certas condições de crise econômica severa, causadas por fatores como fome, altos impostos ou anexação de terras, o banditismo pode atingir proporções epidêmicas. Ele pode surgir também quando se provocam rupturas em uma sociedade tradicional pela imposição de uma nova política ou sistema econômico.


Jesus nasceu nesse contexto de revolta contra Roma. Sua pregação incluiu a resistência ao Império Romano. Por isso, segundo Richard A. Horsley, Jesus só pode ser compreendido dentro do contexto do imperialismo romano de sua época. Em sua vida e em sua missão, influenciou e também se deixou influenciar pela cultura do seu tempo. Ele era judeu e marcado pela vida, costumes e modo de ser dos judeus, ainda que com sua missão vá transcender a história de sua gente, dando à sua doutrina um caráter de universalidade e transcendendo até mesmo aos critérios de tempo e de lugar.


Durante o governo de Antipas cresceu o latifúndio em prejuízo das pequenas propriedades comunitárias que eram a característica do sistema tradicional dos judeus. A produção agrícola da Galiléia começou a orientar-se não mais a partir das necessidades das famílias como antes, mas sim, a partir das exigências do mercado. A arqueologia provou a existência de grandes propriedades que visavam a um maior excedente de produção para poder exportar. Os muitos impostos faziam diminuir a rentabilidade das pequenas propriedades. Quando Jesus Cristo iniciou sua pregação foi visto como mais um dentre os diversos grupos que já possuíam interpretações próprias da lei. Contudo, a mensagem de Cristo mostrou-se revolucionária.


De acordo com o artigo “Democracia e poder”, Jesus imprimiu outra ótica ao poder. Para ele, não se tratava de uma função de mando, e sim de serviço: Os reis das nações as dominam e os que as tiranizam são chamados Benfeitores. Quanto a vós, não deverá ser assim; pelo contrário, o maior dentre vós torne-se como o mais jovem, e o que governa como aquele que serve. [...] Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve![...] (BÍBLIA, Lc, 22, 24-27)


A REVOLUÇÃO SOCIAL DE JESUS NA PALESTINA DO SÉCULO I


É nesse contexto sócio político e religioso que Jesus tentará implantar sua doutrina, pelos caminhos oferecidos pela liderança carismática e da desobediência civil. Desobediência civil é uma forma particular de desobediência, na medida em que é executada com o fim imediato de mostrar publicamente a injustiça da lei e com o fim de induzir o legislador a mudá-la. Como tal é acompanhada por parte de quem a cumpre de justificativas com a pretensão de que seja considerada, não apenas como lícita, mas como obrigatória e seja tolerada pelas autoridades públicas diferentemente de quaisquer outras transgressões. Enquanto a desobediência comum é um ato que desintegra o ordenamento e deve ser impedida ou eliminada a fim de que o ordenamento seja reintegrado em seu estado original, a desobediência civil é um ato que tem em mira, em última instância, mudar o ordenamento, sendo, no final das contas, mais um ato inovador do que destruidor [...].


A proposta de Jesus de Nazaré é a divisão da riqueza. Jesus não é contra a riqueza como tal. Também não é contra a terra. É contra a concentração da terra nas mãos de poucos. Vale lembrar que a relação da propriedade de terra na Palestina nos tempos de Jesus era a situação do latifúndio, da concentração da propriedade da terra. Então sua proposta é a partilha: [...] a terra, a principal fonte de sobrevivência para a população do Império, inclusive aquela da Palestina, era muito mal distribuída... Na Judéia e no Egito a situação da população rural “livre” era mais desfavorável que a dos escravos nas propriedades de senhores romanos. Em consonância com o discurso político moderno, Jesus de Nazaré estava no processo de efetuar a revolução política que transformaria a ordem imperial romana na Palestina. O seu movimento político estava realizando a revolução social nas comunidades rurais da Galiléia (CROSSAN, 1994).


A revolução proposta por Jesus era um processo de longo prazo, amplo e profundo. Ela deveria ocorrer no interior das consciências, exteriorizando-se como transformação radical de toda a existência. Sua meta era realizar o Reino de Deus na Terra. Jesus formulou uma proposta de sociedade ao criticar o modelo predominante na Palestina do século I, quando a riqueza de uns poucos resultava da pobreza de muitos: Isto é, o reino de Deus não é apenas o tema que abarca a declaração profética de Jesus sobre o julgamento contra os governantes romanos e os seus dependentes em Jerusalém, mas esse aspecto de julgamento do reino tinha uma contraparte construtiva de libertação, novas forças e renovação para o povo. No discurso político moderno, no aspecto de julgamento do Reino de Deus, Jesus proclamava que Deus estava no processo de efetuar a “revolução política” que transtornaria a ordem imperial romana na Palestina. Então, no aspecto construtivo, na confiança de que Deus estava cuidando da ordem política dominante, Jesus e o seu movimento estavam realizando a “revolução social” que Deus estava tornando possível e forte nas comunidades rurais da Galiléia [...].


Este é o antigo sonho camponês de igualitarismo radical. O igualitarismo radical do Reino de Deus de Jesus é mais assustador que qualquer outra idéia. Colocando a visão e o programa de Jesus de volta na matriz de onde saiu, o antigo e universal sonho camponês de um mundo justo e igual pode ser concretizado. Por meio de pregação objetiva e popular, contando parábolas e fazendo denúncias, Jesus tinha como projeto despertar a consciência do povo em relação à opressão. O império romano, percebendo a força de sua atuação político revolucionária, mandou crucificá-lo e iniciou um processo de perseguição aos seus seguidores. Muitos movimentos de resistência tinham, na origem, um caráter meramente social, mas ganharam, depois, a dimensão religiosa messiânica. A crescente revolta judaica contra a ocupação romana foi, com freqüência, atribuída ao sempre vivo espírito nacionalista judaico e à sua imorredoura fé na libertação messiânica, mas historicamente é condicionada e ocasionada pela inabilidade dos procuradores e até mesmo de alguns Imperadores.


A atuação de Jesus aconteceu em uma situação social, econômica, política, cultural e religiosa bem configurada. Ele não realizou a sua missão desconhecendo sua época, o que seria impensável para um judeu tão próximo do povo, assim como Jesus demonstrou durante toda a sua vida pública. Um estudo sobre as condições de vida dos camponeses palestinos da época de Jesus, mostra a violência brutal que sofriam. Fraudes, roubos, trabalhos forçados, endividamento, perda da terra através da manipulação das dívidas atingiam a muitos. Existia uma violência epidêmica na Palestina. Jesus não convidava a uma revolução política, mas pregava uma revolução social perigosa. Jesus de Nazaré pretendia uma libertação plena. Tinha um projeto social amplo para atender a todas as pessoas. Contemplava o indivíduo, considerando-o como sujeito e, ao mesmo tempo, coletividade estabelecidas às regras mínimas de convivência, baseadas na caridade. Caridade que não se restringiu a dar coisas. Caridade como compartilhamento de sentimentos e de espaços físicos ou simbólicos, de um exercício de boa convivência, de respeito a si mesmo e ao próximo visto como igual.


A doutrina social de Jesus é, em sua essência, bastante simples, pois parte de princípios e valores que podem ser considerados universais, que visam ao bem viver, daí assimiláveis pelos mais simples do povo, desde que altas autoridades não manipulem ou façam adaptações de seus ensinamentos como tem acontecido ao longo dos séculos.


sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A Morte do judeu Yesua

Cristo está em toda parte: nas obras mais importantes da história da arte, nos roteiros de Hollywood, nos letreiros luminosos de novas igrejas, nas canções evangélicas em rádios gospel, nos best-sellers de auto-ajuda, nos canais de televisão a cabo, nos adesivos de carro, nos presépios de Natal. Onde você estiver, do interior da floresta amazônica às montanhas geladas do Tibete, sempre será possível deparar com o símbolo de uma cruz, pena de morte comum no Império Romano à qual um homem foi condenado há quase 2 mil anos. Para mais de 2 bilhões de pessoas esse homem era o próprio messias (“Cristo”, do grego, o ungido) que ressuscitara para redimir a humanidade.

Embora o mundo inteiro (inclusive os não-cristãos) esteja familiarizado com a imagem de Cristo, até há bem pouco tempo os pesquisadores eram céticos quanto à possibilidade de descobrir detalhes sobre a vida do judeu Yesua (Jesus, em hebraico), o homem de carne e osso que inspirou o cristianismo.

“Isso está começando a mudar”, diz o historiador André Chevitarese, professor de História Antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos especialistas no Brasil sobre o “Jesus histórico” – o estudo da figura de Jesus na história sem os constrangimentos da teologia ou da fé no relato dos evangelhos. Embora tragam detalhes do que teria sido a vida de Jesus, os evangelhos são considerados uma obra de reverência e não um documento histórico.

Chevitarese e outros pesquisadores acreditam que, apesar de não existirem indícios materiais diretos sobre o homem Jesus, arqueólogos e historiadores podem ao menos reconstituir um quadro surpreendente sobre o que teria sido a vida de um líder religioso judeu naquele tempo, respondendo questões intrigantes sobre o ambiente e o cotidiano na Palestina onde ele vivera por volta do século I.

Nazaré, entre 6 e 4 a.C.

Uma aldeia agrícola com menos de 500 habitantes, cuja paisagem é pontuada por casas pobres de chão de terra batida. Segundo os arqueólogos, essa é a cidade de Nazaré na época em que Jesus nasceu, provavelmente entre os anos 6 e 4 a.C., no fim do reinado de Herodes. Isso mesmo: segundo os historiadores, Jesus deve ter nascido alguns anos antes do ano 1 do calendário cristão.

“As pessoas naquele tempo não contavam a passagem do tempo como hoje, por meio da indicação do ano”, explica o historiador da Unicamp Pedro Paulo Funari, colunista do site de História. “O cabeçalho dos documentos oficiais da época trazia apenas como indicação do tempo o nome do regente do período, o que leva os pesquisadores a crer que Jesus teria nascido anos antes do que foi convencionado.”

Se você também está se perguntando por que os historiadores buscam evidências do nascimento de Jesus na cidade de Nazaré – e não em Belém, cidade natal de Jesus, de acordo com os evangelhos de Mateus e Lucas -, é bom saber que, para a maioria dos pesquisadores, a referência a Belém não passa de uma alegoria da Bíblia. Na época, essa alegoria teria sido escrita para ligar Jesus ao rei Davi, que teria nascido em Belém e era considerado um dos messias do povo judeu. Ou seja: a alcunha “Jesus de Nazaré” ou “nazareno” não teria derivado apenas do fato de sua família ser oriunda de lá, como costuma ser justificado.

Mesmo que os historiadores estejam certos ao afirmarem que o nascimento em Belém seja apenas uma alegoria bíblica, o entorno de uma casa pobre na cidade de Nazaré daquele tempo não deve ter sido muito diferente do de um estábulo improvisado como manjedoura. Como a residência de qualquer camponês pobre da região, as moradias eram ladeadas por animais usados na agricultura ou para a alimentação de subsistência.

Se alguém presenciasse o nascimento de Jesus, provavelmente iria deparar com um bebê de feições bem diferentes da criança de pele clara que costuma aparecer nas representações dos presépios. Baseados no estudo de crânios de judeus da época, pesquisadores dizem que a aparência de Jesus seria mais próxima da de um árabe (de cabelos negros e pele morena) que da dos modelos louros dos quadros renascentistas.

Seu nome, Jesus, uma abreviação do nome do herói bíblico Josué, era bastante comum em sua época. Ainda na infância, deve ter brincado com pequenos animais de madeira entalhada ou se divertido com rudimentares jogos de tabuleiro incrustados em pedras.

Quanto à família de Jesus, os pesquisadores não acreditam que ele tenha sido filho único. Afinal, era comum que famílias de camponeses tivessem mais de um filho para ajudarem na subsistência da família. Isso poderia explicar o fato de os próprios evangelhos falarem em irmãos de Jesus, como Tiago, José, Simão e Judas. “As igrejas Ortodoxa e Católica preferiram entender que o termo grego adelphos, que significa irmão, queria dizer algo próximo de discípulo, primo”, diz Chevitarese.

Assim como outros jovens da Galiléia, é provável que ele não tenha tido uma educação formal ou mesmo a chance de aprender a ler e escrever, privilégio de poucos nobres. Ainda assim, nada o impediria de conhecer profundamente os textos religiosos de sua época transmitidos oralmente por gerações.

Política, religião e sexo

Desde aquele tempo, a região em que Jesus vivia já era, digamos, um tanto explosiva. O confronto não se dava, é claro, entre judeus e muçulmanos (o profeta Maomé só iria receber sua revelação mais de cinco séculos depois). A disputa envolvia grupos judaicos e os interesses de Roma, cujo império era o equivalente, na época, ao que os Estados Unidos são hoje.

E, assim como grupos religiosos do Oriente Médio resistem atualmente à ocidentalização dos seus costumes, diversos grupos judaicos da época se opunham à influência romana sobre suas tradições. Na verdade, fazia séculos que os judeus lutavam contra o domínio de povos estrangeiros. Antes de os romanos chegarem, no ano 63 a.C., eles haviam sido subjugados por assírios, babilônios, persas, macedônios, selêucidas e ptolomeus. Os judeus sonhavam com a ascensão de um monarca forte como fora o rei Davi, que por volta do século 10 a.C. inaugurara um tempo de relativa estabilidade. Não à toa, Davi ficaria lembrado como o messias (ungido por Javé) e, assim como ele, outros messias eram aguardados para libertar o povo judeu.

Além do banditismo, havia a resistência inspirada pela religião, principalmente a dos chamados movimentos apocalípticos. De acordo com os seguidores desses movimentos, Israel estava prestes a ser libertado por uma intervenção direta de Deus que traria prosperidade, justiça e paz à região. A questão era saber como se preparar para esse dia.

Alguns grupos, como os zelotes, acreditavam que o melhor a fazer era se armar e partir para a guerra contra os romanos na crença de que Deus apareceria para lutar ao lado dos hebreus. Para outros grupos, como os essênios, a violência era desnecessária e o melhor mesmo a fazer era se retirar para viver em comunidades monásticas distantes das impurezas dos grandes centros. E Jesus, de que lado estava
É quase certo que Jesus tenha tido contato com ao menos um líder apocalíptico de sua época, que preparava seus seguidores por meio de um ritual de imersão nas águas do rio Jordão. Se você apostou em João Batista, acertou.

O curioso é que, para a maioria dos pesquisadores, incluindo aí o padre católico John P. Meier, autor da série sobre o Jesus histórico chamada Um Judeu Marginal, o movimento apocalíptico de João Batista deve ter sido mais popular, em seu tempo, do que a própria pregação de Jesus. Os historiadores acreditam que é bem provável que Jesus, de fato, tenha sido batizado por João Batista nas margens do rio Jordão, e que o encontro deve ter moldado sua missão religiosa dali em diante.

Apesar de não haver nenhuma restrição para que um líder religioso judeu tivesse relações com mulheres em seu tempo, ninguém sabe ainda se entre as práticas espirituais de Jesus estaria o celibato. Da mesma forma, afirmar que ele teve relações com Maria Madalena, como no enredo de livros como O Código Da Vinci, também não passaria de uma grande especulação.

Uma morte marginal

O pesquisador Richard Horsley, professor de Ciências da Religião da Universidade de Massachusetts, em Boston, é categórico: a morte de Jesus na cruz em seu tempo foi muito menos perturbadora para o Império Romano do que se costuma imaginar. Horsley e outros pesquisadores desapontam os cristãos que imaginam a crucificação como um evento que causara, em seu tempo, uma comoção generalizada, como naquela cena do filme O Manto Sagrado em que nuvens negras escurecem Jerusalém e o mundo parece prestes a acabar.

Apesar de ter sido uma tragédia para seus seguidores e familiares, a morte do judeu Yesua deve ter passado praticamente despercebida para quem vivia, por exemplo, no Império Romano. Ou seja: se existisse uma rede de televisão como a CNN, naquele tempo, é bem possível que a morte de Jesus sequer fosse noticiada.
E, caso fosse, dificilmente algum estrangeiro entenderia bem qual a diferença da mensagem dele em meio a tantas correntes do judaísmo do período – assim como poucas pessoas no Ocidente compreendem as diferenças entre as diversas correntes dentro do Islã ou do budismo.

Os pesquisadores sabem, no entanto, que Jesus não deve ter escolhido por acaso uma festa como a Páscoa para fazer sua pregação em Jerusalém. A data costumava reunir milhares de pessoas para a comemoração da libertação do povo hebreu do Egito. No período que antecedia a festa, o ar tornava-se carregado de uma forte energia política. Era quando os judeus pobres sonhavam com o dia em que conseguiriam ser libertados dos romanos.

Em meio às festas religiosas, o comércio da cidade florescia cada vez mais. Vendia-se de tudo por lá, incluindo animais para serem sacrificados no templo. Os mais ricos podiam comprar um cordeiro para ser sacrificado e quem tivesse menos dinheiro conseguia comprar uma pomba no mercado logo em frente. A cura de todos os problemas do corpo e da alma (na época, as doenças eram relacionadas à impureza do espírito) passava pela mediação dos rituais dos sacerdotes do templo.

Não é difícil imaginar a afronta que devia ser para esses líderes religiosos ouvir que um judeu rude da Galiléia curava e livrava as pessoas de seus pecados com um simples toque, sem a necessidade dos sacerdotes. A maioria dos pesquisadores concorda que atos subversivos como esses seriam suficientes para levar alguém à crucificação.

Quase tudo o que os pesquisadores conhecem sobre a crucificação deve-se à descoberta, em 1968, do único esqueleto encontrado de um homem crucificado em Giv’at há-Mivtar, no nordeste de Jerusalém. Após uma análise dos ossos, eles concluíram que os calcanhares do condenado foram pregados na base vertical da cruz, enquanto os braços haviam sido apenas amarrados na travessa.
A raridade da descoberta deve-se a um motivo perturbador: a pena da crucificação previa a extinção do cadáver do condenado, já que o corpo do crucificado deveria ser exposto aos abutres e aos cães comedores de carniça. A idéia era evitar que o túmulo do condenado pudesse servir de ponto de peregrinação de manifestantes. De qualquer forma, a descoberta desse único esqueleto preservado prova que, em alguns casos, o corpo poderia ser reivindicado pelos parentes do morto, o que talvez tenha acontecido com Jesus.

O que aconteceu após sua morte? Para os pesquisadores, a vida do Jesus histórico encerra-se com a crucificação. “A ressurreição é uma questão de fé, não de história”, diz Richard Horsley.

Tudo o que os historiadores sabem é que, apesar de pequeno, o grupo de seguidores de Jesus logo conseguiria atrair adeptos de diversas partes do mundo. E foi um dos novos convertidos, um ex-soldado que havia perseguido cristãos e ganhara o nome de Paulo, que se tornaria uma das pedras fundamentais para a transformação de Jesus em um símbolo de fé para todo o mundo.

Com sua formação cosmopolita, Paulo lutou para que os seguidores de Jesus trilhassem um caminho independente do judaísmo, sem necessidade de obrigar os convertidos a seguirem regras alimentares rígidas ou, no caso dos homens, ser obrigados a fazer a circuncisão. A influência de Paulo na nova fé é tão grande que há quem diga que a mensagem de Jesus jamais chegaria aonde chegou caso ele não houvesse trabalhado com tanto afinco para sua difusão.

Mesmo para quem não acredita em milagres, não há como negar que Paulo e os outros seguidores de Jesus conseguiram uma proeza e tanto. apenas três séculos após sua morte, transformaram a crença de uns poucos judeus da Palestina do século I na religião oficial do Império Romano.

Por essa época, a vida do judeu Yesua já havia sido encoberta pela poderosa simbologia do Cristo: assim como os judeus sacrificavam cordeiros para Javé, o Cristo se tornaria símbolo do cordeiro enviado por Deus para tirar os pecados do mundo. Desde então, a história de boa parte do mundo está dividida entre antes e depois de sua existência.

Seus Evangelhos contam, com algumas variações, a vida de Jesus Cristo. Apresentam-no como filho de Deus que veio à Terra salvar a humanidade. Para os cristãos, esses são textos sagrados, escritos sob inspiração divina. A leitura comparativa dos quatro, no entanto, revela diferenças que podem ter tido um propósito quase publicitário. É essa a conclusão de L. Michael White, diretor do Instituto de Estudos sobre as Origens do Cristianismo da Universidade do Texas, nos Estados Unidos. Em Scripting Jesus (Roteirizando Jesus, em tradução livre), lançado no mês passado nos EUA, White diz que fatos da vida de Jesus narrados nos Evangelhos serviram para fundamentar a "agenda teológica" de seus autores. "Os evangelistas sentiam-se compelidos a preencher os vazios da narrativa oral com fatos adequados a seus objetivos", disse White a ÉPOCA. Para ele, a meta desses narradores era cativar públicos de formação cultural distinta. Os Evangelhos não teriam, portanto, o caráter universal que se atribui a eles.

Segundo White, o texto de Lucas foi escrito para evangelizar povos greco-romanos. Os de Marcos e Mateus, para os judeus. E o de João era destinado aos que faziam a transição de uma seita judaica para uma religião independente – o cristianismo, que em muitos aspectos se opunha ao judaísmo. A necessidade de cativar cada público teria sido responsável por moldar o conteúdo dos Evangelhos. "Como os seguidores de Mateus eram judeus, é sob essa ótica que ele 'apresenta' Jesus", diz White. "Em contraste, os Evangelhos de Lucas e João 'falavam' com audiências não judaicas."

Para comprovar sua teoria, White cita exemplos tirados de cada texto. O Evangelho de Marcos, que teria sido escrito poucos anos depois da queda de Jerusalém, na fracassada revolta dos judeus contra o Império Romano (70 d.C.), afirma que Jesus previu a destruição do Templo, o local mais sagrado para os judeus. Lucas, que precisava se adequar à cultura helênica – habituada a filósofos como Sócrates e Platão –, teria resolvido esse dilema tornando-se um antagonista da tradição judaica. "Seu objetivo é separar Jesus dos judeus", afirma White. "E seu estilo literário é da mais alta qualidade, de modo que qualquer um do mundo greco-romano ficaria confortável com sua leitura."

O exemplo favorito de White para confirmar sua tese é a Paixão de Cristo narrada no Evangelho de João. Embora os quatro situem a crucificação de Cristo na Páscoa, João difere de Lucas, Marcos e Mateus no que diz respeito à Última Ceia. Para João, ela teria ocorrido antes da Páscoa, e não durante. Qual a diferença que isso traz? Segundo White, o objetivo seria confirmar entre os judeus a ideia de Jesus como o "cordeiro de Deus", sacrificado para expiar os pecados da humanidade. O sacrifício do cordeiro pascal celebrava o Êxodo, a passagem do Antigo Testamento em que os judeus, liderados por Moisés, fogem do cativeiro no Egito. "O autor do Evangelho de João mudou intencionalmente a ordem da narrativa para alcançar seu efeito simbólico e metafórico", afirma White. A opinião é endossada por Giovanni Bazzana, especialista em Novo Testamento da Universidade Harvard: "O objetivo principal dos Evangelhos é anunciar que Jesus ressuscitou dos mortos para ser o salvador da humanidade", disse Bazzana a ÉPOCA.

"Mas cada um tinha metas específicas."

Alterar a ordem dos acontecimentos para dar um novo sentido aos mesmos fatos pode parecer um artifício duvidoso do ponto de vista ético, mas não é assim que os especialistas veem a questão. "Os Evangelhos não são jornalismo e não se deve esperar isso deles", diz John Dominic Crossan, um dos maiores pesquisadores religiosos do mundo, no documentário De Jesus a Cristo: os primeiros cristãos, da rede de TV americana PBS. Para White, os autores dos Evangelhos, longe de ser repórteres em busca de verdades factuais, mais se aproximavam de dramaturgos. "Eles fizeram uma recriação dramática da história e analisaram os fatos sob determinado ângulo que os favorecia." André Chevitarese, professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), concorda: "Mais do que biografias, são plataformas de ataques e defesas em torno de Jesus para consolidar as fronteiras entre nós (cristãos) e eles (de outras religiões)". Admitir que os Evangelhos não são biografias de Jesus não significa, porém, que eles tenham sido inventados. "São baseados em antigas tradições orais que foram passadas pelos seguidores de Jesus após sua morte", diz White.

Os historiadores são unânimes em afirmar que os quatro evangelistas bíblicos não escreveram uma só linha de punho próprio. "Não sabemos a real identidade dos autores", diz Bazzana. Ele explica que seus nomes passaram a constar nos textos apenas a partir do século II, com o objetivo de dar credibilidade às escrituras. Sem dúvida, o texto ganhou mais força ao ser atribuído a Mateus e João (apóstolos que conviveram com Jesus) e a Marcos e Lucas, discípulos de Pedro e Paulo, respectivamente. "Esse processo de chama pseudepigrafia e era muito comum no mundo antigo", diz o professor de Harvard.

Nessa tradição, as versões já eram moldadas para se adaptar a seu público. "As histórias eram contadas por meio de performances dramáticas para uma plateia. O que dava certo continuava, o que não funcionava era rejeitado e trocado." Os contadores de histórias também preenchiam as "lacunas", que eram muitas, deixadas pela falta de elementos históricos, para aumentar seu impacto. White cita como exemplos as narrações sobre a Paixão de Cristo – incluindo o papel de Judas Iscariotes como o traidor, que serve para dar efeito dramático à narrativa. Nas epístolas de Paulo, mais antigas que os Evangelhos, Jesus reaparece da morte para os 12 apóstolos, sem menção à morte do suposto traidor, Judas. Os narradores também gostavam de reforçar a divindade de Jesus adequando sua vida às velhas profecias judaicas. Mateus diz que Jesus teria entrado em Jerusalém no lombo de um jumento – exatamente como o profeta Zacarias previra que o Messias chegaria à cidade.

Os Evangelhos são as principais fontes de pesquisa sobre Jesus, mas não são as únicas. Há os evangelhos apócrifos, rejeitados pela Igreja, que não fazem parte da Bíblia. A inclusão dos quatro Evangelhos no cânone da Igreja (quer dizer, sua aceitação como escritos de inspiração divina) não se deu apenas por serem os mais antigos. "Eles eram os mais populares", diz Dale Martin, professor de estudos religiosos da Universidade Yale, dos EUA. Para o autor de Scripting Jesus, há outro motivo. Como o núcleo teológico dos Evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João está na Paixão de Cristo, que demonstraria seu caráter único e divino como filho de Deus, eles dariam mais força a esse dogma. Além disso, os quatro Evangelhos se complementam. O nascimento de Jesus, por exemplo, é contado apenas em Lucas e Mateus. Ainda assim, a historiografia é precária. "Mesmo juntando os quatro, não temos um registro histórico confiável de Jesus", diz White. O que se sabe é que, 2 mil anos atrás, cada texto dos Evangelhos pertencia a um círculo restrito de seguidores.

Mesmo o distanciamento histórico ainda não permite explicar o que fez um homem da Galileia atrair tantos seguidores após sua morte, num contexto em que muitos se diziam profetas e Messias. Em 300 anos, o que começou como uma pequena seita judaica se transformou na religião oficial do Império Romano. "Jesus se tornou o 'filho de Deus', historicamente falando, por milhares de fatores que nunca serão totalmente explicados", diz Dale Martin, de Yale. "Ele inspirou lealdade em seus seguidores, que acreditaram terem-no visto após sua morte."

Os Evangelhos tiveram papel fundamental nisso. Primeiro, levaram adiante a tradição sobre Jesus. Segundo, se encaixaram em várias situações, dando força ao proselitismo cristão. Nos primeiros séculos de cristianismo, diz White, conquistaram de judeus a gregos. No presente, são usados por algumas igrejas evangélicas para fundamentar a teologia da prosperidade, segundo a qual os fiéis são merecedores das riquezas materiais. "São textos com múltiplos significados, usados por seguidores que vão dos kardecistas aos católicos", diz André Chevitarese, da UFRJ. White afirma, porém, que a compreensão histórica e teológica dos Evangelhos não deve levar à conclusão de que Jesus Cristo foi "inventado". Ou que as escrituras são puramente fantasiosas. "Não estou tentando dizer que devemos jogá-las fora", afirma o historiador. "Pelo contrário. Eu as levo muito a sério. Mas não de forma ingênua."



quinta-feira, 19 de maio de 2011

As Hipóteses Sobre "O Filho do Homem"


“Este é o rei dos judeus”
– o título “filho do homem”

na camada histórico-traditiva pré-pascoal

como referência à

tradição vetero-testamentária do rei.

A hipótese de que a fórmula “filho do homem” constituía: (a) um título (b) que Jesus aplicava a si mesmo, (c) baseado na tradição do Antigo Testamento do “rei” como “filho do homem” e (d) que, por isso, assumia-se publicamente como de algum modo relacionado a algum tipo de “rei carismático”, próprio dos movimentos messiânicos populares, (e) tendo por isso sido preso, disso, acusado e por isso, morto, uma vez que atribuir a si o papel de “rei dos judeus” constituía atividade política revolucionária não tolerada pelo poder romano e passível de morte.

Inicialmente, registre-se que não há, na pesquisa, consenso a respeito do significado histórico-traditivo do título “filho do homem”, plausivelmente auto-aplicado a si mesmo pelo próprio Jesus de Nazaré.

Trata-se, pois, aqui, de, digamos assim, muito mais contribuir para o “dissenso” instalado do que propor uma harmonia em torno das propostas vigentes. Até onde se pôde verificar, mas não se foi suficientemente longe, o presente artigo aponta para uma alternativa ainda não sugerida.

Tomada em sua forma canônica, e considerando-se que efetivamente tenha sido aplicada a Jesus já por ele mesmo, a tradição neo-testamentária, a rigor, evangélica, do “filho do homem” revela-se “contaminada” pelas interpretações próprias da história dos efeitos e dos desdobramentos teológicos da crucificação, o que significa que, considerando-se uma sempre plausível multiplicidade de tradições, esse estado traditivo-literário canônico não reflete mais a tradição do período pré-pascoal em seus múltiplos e potenciais estados histórico-traditivos originais.

Todavia, é legítimo pressupor que essa agora canônica configuração traditivo-literária contenha, na forma de “pacotes” de informação, contextual e até semanticamente deslocados, misturados ainda que estejam à massa compacta em que se transformaram os elementos originais agora reunidos em torno de um novo “querigma”, elementos histórico-traditivos da tradição pré-pascoal.

A derivação dinâmica que tem essa nova configuração canônico-traditivo-literária daqueles blocos originais da tradição pré-pascoal faculta indiciariamente, uma tentativa crítica – difícil e arriscada – de recuperação daqueles momentos traditivos, bem como – é o caso – de, por hipótese, sua dependência referencial histórico-traditiva original.

E isso, mesmo considerada a declaração de Richard A. Horsley e John S. Hanson de que os “consensos” em torno de temas histórico-traditivos “duros” relacionados a Jesus de Nazaré reflitam mais os desdobramentos levados a efeito pelas comunidades herdeiras da “fé” do que propriamente o substrato histórico relacionado a Jesus de Nazaré. Não se trata de uma questão fácil, porque, ou se pode simplesmente tomar ingenuamente toda a tradição evangélica como historiografia, ou, no caminho inverso, recusar-se toda ela como desdobramento pós-pascoal.

O que aqui se defende é que, quaisquer que tenham sido os conteúdos da tradição pré-pascoal, mesmo que deslocados de seus respectivos contextos originais e reinstalados em novos contextos significativos, vestígios dela – termos, referências a ações e práticas, temas, personagens, referências – devem ter sobrevivido e sido incorporados em narrativas, essas sim, fruto dos desdobramentos “hermenêuticos” pressupostos.

Dependendo do “tipo” por meio do qual Jesus de Nazaré seja reconstruído, algum grau de consciência de morte iminente pode ser considerado como plausível – por exemplo, no caso de ser admitida a hipótese de que Jesus pertencia a alguma expressão sócio-política próxima das comunidades messiânicas populares, descritas.

Naturalmente que, nesse caso, a morte – e mesmo a crucificação –, com a qual então se contaria, não podia assumir, ainda, a dimensão teológica que, mais tarde, sabemos, receberá. Em todo caso, a lista de exemplos revela-se, nesse sentido, “rigorosa”.

Assumam-se, na versão canônica, como exemplos demonstrativos parciais de que a tradição – em tese original – relacionada à fórmula jesuânica pré-pascoal “filho do homem” deve ser considerada como contaminada pelos efeitos da interpretação teológica da “cruz”, implicando, em termos literários, em flagrantes de vaticinium ex eventu, as seguintes referências mais ou menos explícitas à própria cruz e a seus entornos sintagmático-teológicos:

 Mt 20,28 Mc 10,45 (“tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”3 [ARA]).

 Mt 26,2 (“sabeis que, daqui a dois dias, celebrar-se-á a Páscoa; e o Filho do Homem será entregue para ser crucificado” [ARA]).

 Mt 20,19.20 (“e o entregarão aos gentios para ser escarnecido, açoitado e crucificado; mas, ao terceiro dia, ressurgirá” [ARA]).

 Mt 12,40 (“porque assim como esteve Jonas três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim o Filho do Homem estará três dias e três noites no coração da terra” [ARA]),

 Mt 17,9 (“A ninguém conteis a visão, até que o Filho do Homem ressuscite dentre os mortos” [ARA]; cf. v. 22: “e estes o matarão; mas, ao terceiro dia, ressuscitará” [ARA]).

 Mc 9,9 (“ao descerem do monte, ordenou-lhes Jesus que não divulgassem as coisas que tinham visto, até o dia em que o Filho do Homem ressuscitasse dentre os mortos” [ARA]).

 Mc 9,31 (“porque ensinava os seus discípulos e lhes dizia: O Filho do Homem será entregue nas mãos dos homens, e o matarão; mas, três dias depois da sua morte, ressuscitará.” [ARA]).

 Mc 10,33-34 (“eis que subimos para Jerusalém, e o Filho do Homem será entregue aos principais sacerdotes e aos escribas; condená-lo-ão à morte e o entregarão aos gentios; hão de escarnecê-lo, cuspir nele, açoitá-lo e matá-lo; mas, depois de três dias, ressuscitará” [ARA]).

 Jo 3,3 (“ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do Homem que está no céu” [ARA]).

 Jo 12,34 (“nós temos ouvido da lei que o Cristo permanece para sempre, e como dizes tu ser necessário que o Filho do Homem seja levantado? Quem é esse Filho do Homem?” [ARA])

De um ponto de vista puramente historiográfico, resulta necessário pressupor que o estado dessa tradição literária reflita já a informação dos fatos mencionados – a “morte”, por crucificação, e a “ressurreição” do “filho do homem”. Se, todavia, a fórmula for considerada pré-pascoal, deve-se admitir que, em termos históricos, não se pode relacioná-la, quando e então ainda pré-pascoal, a tais sintagmas teológicos – cruz e ressurreição. Dito em chave teórico-metodológica: a fórmula “filho do homem” não pode ter caráter “cristológico”, quando ainda não havia “cristologia”.

Se, por um lado, a “cristologia” apropriou-se da fórmula, impondo-lhe uma nova configuração histórico-traditiva, de outro lado é necessário conceder validade à pressuposição de que, se a fórmula “filho do homem” fora aplicada a Jesus de Nazaré antes da cruz, há, então, necessariamente, uma dependência referencial não-cristológica que lhe oriente a atualização pré-pascoal.

Uma vez que, por força de eventos posteriores a sua consubstanciação presumivelmente original – a cruz, a ressurreição, a soteriologia, a escatologia, a cristologia –, a tradição do “filho do homem” encontra-se, agora, alterada pela resignificação teológica, resulta ser incontornável a conclusão de que, quando e se alimentada também por essas “atualizações”, a interpretação hodierna dessa mesma fórmula revele-se contaminada pelos mesmos elementos secundários em relação ao estatuto referencial original do título jesuânico pré-pascoal.

Aqui se percebem elementos teórico-metodológicos próximos aos argumentos de Horsley e Hanson com relação ao processo de construção do consenso em torno do qual os eventos pós-pascoais terminaram por sobre determinar a interpretação da tradição pré-pascoal (HORSLEY e HANSON, p. 89ss). No entanto, forçoso é considerar que, talvez, Horsley e Hanson cheguem longe demais, sugerindo que qualquer traço de messianismo e de reivindicação real em Jesus de Nazaré faça parte desse consenso posterior.

Se for o caso de a fórmula “filho do homem” ser, pois, interpretada cristologicamente, por exemplo, fazendo-se com que se refira ao fato de que Jesus de Nazaré fosse, ao mesmo tempo, de um lado, “divino”, e, de outro, “humano”, e que, nesse caso, então, tal fórmula acentuasse justamente esta última dimensão cristológica de Jesus, não se pode, nesse caso, deixar-se de admitir que tal “explicação” pode até revelar faces históricas da tradição próprias do período em que a amálgama entre “Jesus” e “cristologia” se estabelecia, isto é, a partir daquele momento em que o “Jesus histórico” começa a ser substituído pelo “Cristo da fé”, mas, não, absolutamente, faces históricas da tradição anterior ao desenvolvimento dessa mesma cristologia – salvo, naturalmente, na hipótese de Jesus de Nazaré ter-se tomado ele mesmo na condição de um ser celeste encarnado e de tê-lo formal e publicamente exposto.

Em termos históricos, deve-se estar desejoso de e preparado para encontrar fundamentos referenciais disponíveis para as tradições circulantes, de modo que, se original, isto é, se própria das camadas pré-pascoais da tradição, a fórmula “filho do homem” deve fazer referência a elementos traditivos igualmente pré-pascoais e, eventualmente, ainda disponíveis.

E essa é a questão: que elementos pré-pascoais podem ser apontados como possíveis fundamentos para a aplicação da fórmula “filho do homem” a Jesus de Nazaré no sentido de lhe reconfigurar as feições pré-pascoais?

1. Das referências escriturístico-traditivas para a explicação cristológica da fórmula “Filho do Homem”

Uma vez que o estado e o contexto canônico da fórmula “filho do homem” reflitam as “contaminações” cristológicas pós-pascoais, levadas a termo por judeus, cristãos e judeus-cristãos das primeiras décadas da tradição cristã, é compreensível que a busca canonicamente orientada pelas fontes escriturístico-traditivas do agora título cristológico “Filho do Homem” seja dirigida pelo viés teológico-cristológico com que os Evangelhos estruturaram as narrativas que a empregam, a isso somada a carga teológica dos dogmas cristológicos assentados em Nicéia, que, com efeito, norteiam, ainda hoje, o olhar teológico.

Por força dessa orientação evangélica e nicênica, compreende-se como a expressão “filho do homem” faça remeter ao dogma da humanidade/divindade do Cristo. “Filho do Homem”, nesse caso, denuncia o aspecto humano do “Deus” encarnado (cf. Filipenses 2,5-8). Assim, buscou-se a fonte dessa tradição veterotestamentária, de um lado, em Ezequiel, onde se concentram as ocorrências de Ben-´ädäm (“filho de/o homem”) e, de outro, em Daniel (por exemplo, DUQUOC, p. 174).

Em Daniel, a ocorrência é única, e emprega-se aí a fórmula Ben-´ädäm do mesmo modo como em Ezequiel, isto é, trata-se do modo como a divindade se dirige ao seu interlocutor escriturístico: “mas ele me disse: Entende, filho do homem, pois esta visão se refere ao tempo do fim”. Todavia, em Dn 7,13 encontra-se a expressão Kübar ´énäš, traduzida tradicionalmente por “um como o filho do homem”. Eis parte da narrativa:

Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do Homem, e dirigiu-se ao Ancião de Dias, e o fizeram chegar até ele. 14Foi-lhe dado domínio, e glória, e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído.

Sempre à luz da atualização que a fórmula “filho do homem” sofreu a partir das interpretações teológicas pós-pascoais, compreende-se a força que, na qualidade de “grande atrator”, essa passagem exerce sobre o título canônico-evangélico, considerando-se que se deixam gravitar, aí, os elementos teológicos presentes na doutrina cristológica – a origem celeste do “Filho do Homem”, sua relação com a divindade, sua condição próximo-humana e seu “reinado eterno”.

Nesse caso, talvez se possa, de fato, considerar então, que “com sua referência a Dn 7 (...) „Filho do Homem‟ era adequado para expressar a concepção messiânica própria de Jesus” (FABRIS e MAGGIONI, p. 352; cf. DUQUOC, p. 176), desde que, teórico-metodologicamente, trate-se de se considerar o Jesus da tradição já evangélica, a rigor, mais o “Cristo” do que Jesus de Nazaré propriamente. Todavia, se não me tomo vítima de preconceito, resulta muito difícil, em termos historiográficos, conceber que o próprio Jesus pudesse atribuir a si mesmo aspectos que a fórmula “filho do homem” comportará apenas após as interpretações teológicas dos eventos pascoais e pós-pascoais – e isso justamente naquela exata configuração cristológica.

A aproximação teológica à fórmula agora cristológica deixa-se contaminar pela história dos efeitos do título “filho do homem” – e, mais do que isso, empreende esforços para neutralizar aspectos histórico-traditivos concorrentes e não-conformes à formatação dogmática clássica. Por exemplo: “O título Filho do Homem remonta a Jesus. É bem compreensível Jesus ter substituído o título „messias‟ por „Filho do Homem‟. Este evitava as ambíguas interpretações político-nacionalistas ligadas ao título de Messias” (FABRIS e MAGGIONI, p. 352). Não se pode, de fato, descartar a hipótese de que o próprio Jesus atribuíra a si o título “filho do homem”.

Todavia, quando se pretende desarticular o título “filho do homem” das estruturas políticas em torno da qual ele, por hipótese, gravitava, o resultado a que se chega é uma espécie de erasio memoriae das camadas revolucionárias da tradição jesuânica pré-pascoal, um interdito e uma desmaterialização do caráter sócio-político das ações de Jesus de Nazaré, efeito a que se chega por meio da concentração nos aspectos teológico-metafísicos da tradição pós-pascoal. Insisto – é possível, sim, que a tradição evangélica tenha deslocado o sentido e o contexto político original da fórmula “filho do homem”, e isso por força das interpretações teológicas aplicadas sobre eventos pascoais – a cruz e a ressurreição.

No entanto, em termos historiográficos, resulta muito difícil retroprojetar o mesmo fenômeno ao próprio Jesus de Nazaré. Não se pode desconsiderar o fato de que, por exemplo, a tradição lucasiana tenha insistido na incompreensão pré-pascoal absoluta dos discípulos em relação ao “sentido” dos acontecimentos relacionados a Jesus, bem como à sua mensagem como um todo (Lc 24,1-12; 24,13-35; At 1,1-7; 8-12), questão a que, adiante, retornaremos.

Não se deve negligenciar a força teológica com que a pesquisa pelo entendimento do título “filho do homem” se deixa desenvolver. São os aspectos teológicos do termo “filho do homem”, evangélica e nicenicamente atualizado, que terminam por nortear as discussões (que deveriam ser) “críticas” – se Jesus teria ou não aplicado a si mesmo o título “messiânico”, disso depende de ele ter tido de si já a consciência cristológica que a ele se aplicará somente mais tarde (DUQUOC, p. 168ss).

Observando-se a discussão, percebe-se que a interpretação teológico-cristológica de “filho do homem” assentou-se de tal modo sobre a fórmula que assume a pretensão de definir que, se se vai perguntar pela possibilidade de Jesus de Nazaré ter aplicado a si mesmo o título, só se pode conceber uma hipótese em que, nesse, caso, então, Jesus tivesse aplicado a si mesmo aquelas concepções cristológicas que agora gravitam em torno da expressão evangélica, quando o procedimento mais adequado seria presumir-se um estado tal do titulo no período pré-pascoal em que as concepções pós-pascoais ainda dele não se tivessem teologicamente assenhoreado.

Estamos diante de um caso de fixação “hermenêutica” de uma expressão histórica – “filho do homem” significa o que significa, seja depois da “Paixão”, seja antes da “Paixão”, ainda que, em termos historiográficos, os termos pós-passionais não pudessem constituir a órbita percorrida pelo título.

Quando do aprofundamento da pergunta em direção às camadas mais antigas da dependência traditiva do título aplicado a Jesus, “autores sérios (...) perceberam na figura do Filho do Homem, fragmentos de um mito” (DUQUOC, p. 180), nos termos do qual a chave de compreensão reside no fato de que ele carrega em si o mistério da unidade entre o homem e Deus.

Dir-se-á tratar-se de especulações próprias dos ambientes filonianos, bem como de mistérios que apenas Mt 25,31ss revelará (DUQUOC, p. 180). Eventualmente... Alternativamente, podem-se simplificar as coisas, considerando-se que “Filho do Homem” designe, de imediato, “o humilde sofredor como detentor do poder” (BERGER, p. 160).

No entanto, caminhar alguns passos com Gerd Theissen e Annette Merz pode levar a reflexão ao ponto do questionamento fundamental da tradição – o que aqui se pretende. Theissen não chegará a fazê-lo, mas, a partir de seu último parágrafo “historiográfico”, pode-se sugerir uma nova estrada para a pesquisa a respeito da referência histórico-traditiva de “filho do homem”, quando aplicada a si mesma por Jesus de Nazaré – ou, alternativamente, em determinada porção – ou em determinado “momento” – da tradição, quando ainda não influenciada pelas interpretações teológicas da cruz.

Theissen e Merz reservam uma seção de seu Manual para inquirir sobre os possíveis referenciais históricos que podiam sustentar uma auto-referência de Jesus a si mesmo como “filho do homem”. Seu arrazoado parte da pressuposição, assumida, de que o termo tenha, lá e então, duas configurações básicas: a) ou se trata, no uso cotidiano, de uma referência ao “homem comum”, estabelecendo-se assim um uso genérico do termo para o dia-a-dia (THEISSEN e MERZ, p. 569-570), b) ou se trata de uma referência ao uso “visionário” da fórmula, uso estabelecido, desde Daniel 7, na literatura judaica pós-exílica do período tardio (Enoque Etíope 37-71 e 4 Esdras 13 – cf. THEISSEN e MERZ, p. 570-5725).

Nos termos do programa dos autores, trata-se, então, agora, de determinar a qual das duas variantes de uso se deve a sua auto-aplicação por Jesus, de modo que, após um longo arrazoado, assim concluem:

Para a questão da dependência das tradições de Enoque Etíope, cf. BURKETT, p. 121-122; COLLINS e COLLINS, p. 86-94.

“A expressão „Filho do Homem‟ também não era um título sólido antes de Jesus” – concordando com a declaração, cf. a Conclusão em BURKETT, p. 121.

Jesus sempre foi reservado acerca de todos os títulos. A expressão „Filho do Homem‟ também não era um título sólido antes de Jesus, mas foi „carregado‟ com um status de soberania. Em Jesus, ele pôde ocupar aquela posição que em algumas visões apocalípticas estava reservada a uma figura celestial que não era um homem, mas se igualava a um filho do homem. Uma expressão cotidiana que apenas se referia ao homem ou a algum homem foi „messianicamente‟ revalorizada por Jesus. Só por isso ela pôde se tornar a auto-designação característica de Jesus (THEISSEN e MERZ, p. 5796).

Chamo a atenção do leitor para essa curiosa – e reveladora – declaração: “um título (... [que]) foi „carregado‟ com um status de soberania”. Isto é, a uma expressão cotidiana e genérica, por força de seu uso em contexto de literatura de visão, teria sofrido a sobre determinação de uma carga de soberania.

Soberania. Voltaremos a isso. Por ora, convém registrar que Geza Vermes defendeu peremptoriamente o fato de que a expressão “filho do homem” não constitui, sob nenhuma hipótese, um “título”, correspondendo lingüístico-culturalmente ao equivalente – ou, já, à tradução – de circunlocução idiomática aramaica para referência que se faça ou a si mesmo, ou a um terceiro, de modo que, ao empregar a expressão, Jesus tão somente se referia a si mesmo enquanto “eu”, mas por meio de um recurso cultural de sua tradição e cultura aramaicas (VERMÈS, p. 165-196).

Vermes, argumenta que não haveria, na tradição aramaica, testemunho inequívoco do uso de “filho do homem” nesse sentido, e arremata: “aos teólogos incumbe absolutamente o ônus de provar que „o filho do homem‟ é um título” (VERMES, p. 193). Conquanto teólogo seja, não me encontro em posição de decidir a questão na perspectiva aramaica. Todavia, chegaremos a ver, adiante, que a tradição hebraica do Antigo Testamento conhece o uso de “filho do homem” como “título” – ainda que não se trate da tradicional referência a Daniel 7,13, onde, de fato, não se trata disso. O âmbito em que, na tradição do Antigo Testamento, “filho do homem” aparece como “título” gravita em torno de outro tema – do qual Jesus teria disso direta e fatalmente acusado.

2. Da acusação irônica de Jesus de Nazaré como rei dos judeus

Viu-se tratar-se da opinião de Fabris e Maggioni que Jesus teria optado pelo uso do título “filho do homem” para evitar “as ambíguas interpretações político-nacionalistas ligadas ao título de Messias” (FABRIS e MAGGIONI, p. 352). Bem, se lhe perpassa algum grau de historicidade, a tradição evangélica é unânime em considerar que a acusação romana aplicada a Jesus está relacionada à sua identificação como proponente ao “trono”. Durante o interrogatório, a pergunta é incisiva: “és tu o rei dos judeus?” (Mt 27,11; Mc 15,2; Lc 23,3; Jo 18,33 – HORSLEY e HANSON, p. 89).

Tal unanimidade evangélica encontra boa-vontade em Geza Vermes, que aceita a tese da acusação de Jesus e a estabelece em bases “seculares” (VERMES, p. 38), bem como em Paul Winter, que introduz o relatório de sua pesquisa On de Trial of Jesus, asseverando que “Jesus de Nazaré foi julgado e sentenciado à morte por crucificação. Esses são fatos históricos, atestados por autores romanos, judeus e cristãos em documentos existentes” (WINTER, p. 1). No contexto, então, de um julgamento formal, faz todo sentido a unanimidade evangélica quanto à pergunta – “és tu o rei dos judeus?”.

Não parece que se tratasse, então, de uma curiosidade que tivessem as autoridades a respeito de Jesus. Parece correto considerar que a pergunta – “és tu o rei dos judeus?” – funcione melhor como uma inquirição de direito processual, de modo a, por meio dela, se saber se aquele que ali estava, acusado por determinado crime, assumia o ônus e o peso da acusação. Essa interpretação pode ser, por exemplo, corroborada, por outra unanimidade da tradição evangélica – e não apenas sinótica: somos informados de que uma inscrição fora posta acima da cabeça de Jesus, quando e enquanto crucificado: “este é o rei dos judeus” (Mt 27,37 e Lc 23,38), “rei dos judeus” (Mc 15,26) e “Jesus nazareno, rei dos judeus” (Jo 19,19). Conjunto interseção – “rei dos judeus”
Se a pergunta – “és tu o rei dos judeus?” – funciona como cláusula de direito processual no inquérito acerca da acusação feita a Jesus enquanto réu, nesse caso, então, ao menos segundo o testemunho do Evangelho de Marcos, a epígrafe constitui, inequivocamente, a sua declaração de culpa: “E, por cima, estava, em epígrafe, a sua acusação: O REI DOS JUDEUS” (Mc 15,26 [ARA]).

Com a acusação feita a Jesus de apresentar-se como “rei dos judeus” – e a tradição joanina faz questão de fazer constar que as autoridades judaicas advertiram a Roma quanto ao fato de que elas mesmas não aceitavam a designação ali aplicada a Jesus, a qual se devia apenas ao fato de ele próprio, Jesus, tê-la aplicado a si mesmo (Jo 19,21) –, resulta, de um lado, improvável que Jesus tenha escolhido para si o título “filho do homem” pela razão de que isso evitasse que fosse a sua identidade contaminada por questões político-nacionalistas: ter sido capturado e morto pelo fato de ser acusado de se apresentar como “rei dos judeus” parece algo significativamente distante de uma indiferença político-nacionalista.

De outro lado, aquela carga de “soberania” que Theissen e Merz imputam ao termo “filho do homem” parece fazer algum sentido. Aliás, uma vez que estamos analisando justamente a materialização fatal dessa “carga de soberania”, isto é, a acusação de Jesus como “rei dos judeus”, revela-se particularmente significativo o fato de que o Evangelho de Mateus faça os magos anunciarem o nascimento justamente dele – do “rei dos judeus”: “E perguntavam: Onde está o recém-nascido Rei dos judeus?

Porque vimos a sua estrela no Oriente e viemos para adorá-lo” (Mt 2,2). Do mesmo modo como se “compreende” a ação romana diante de um “agitador” pretendente ao trono judeu, nos termos da tradição mateusiana, resulta “compreensível” um por isso mesmo perturbadíssimo Herodes a ordenar a morte de todos os potenciais meninos-Jesus recém-nascidos. Não que se tome como necessariamente “histórica” a passagem – assuma-se é o peso da vinculação do recém-nascido com seu “destino” de rei...

A questão, todavia, resume-se ao fato de se é possível, em termos históricos, reunir num mesmo conjunto histórico-traditivo a reivindicação ao “trono” e o título “filho do homem”. Numa palavra: quando Jesus de Nazaré aplicou a si mesmo o título de “Filho do Homem”, ele estava – conscientemente – assumindo a reivindicação do trono dos judeus, e de forma histórico-traditiva tão clara que qualquer um o reconhecesse, fossem os próprios judeus, fossem os romanos, de quem, naturalmente, Jesus deveria arrancar seu direito?

3. “Filho do Homem” como título relacionado ao “trono”

Em termos historiográficos, a passagem marcosiana conhecida como “o pedido dos filhos de Zebedeu” (Mc 10,32-45) encontra-se (inegavelmente?) contaminada pela tradição pós-pascoal. No seu formato canônico, a narrativa dá conta de que, dirigindo-se a Jerusalém com seus discípulos, Jesus os faz saber que, em lá chegando, seria preso e morto, mas que ressuscitaria. Tendo-o acabado de ouvir, João e Tiago pedem-lhe o direito de se assentarem cada um de um lado dele, em sua glória – o que pressupõe que, então, Jesus estará sentado no “trono do poder”. Jesus não nega que a questão de assentarem-se quem na sua direita e quem na sua esquerda seja uma questão legítima – todavia, ele é posto a dizer que “não me compete concedê-lo; porque é para aqueles a quem está preparado” (Mc 10,32-41). Na seqüência, Jesus faz um, então, interessante comentário admoestativo:

Sabeis que os que são considerados governadores dos povos têm-nos sob seu domínio, e sobre eles os seus maiorais exercem autoridade, Mas entre vós não é assim; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será servo de todos. Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos (Mc 10,42-45).

Abstraindo-a das (inegáveis?) contaminações pós-pascoais, chama atenção o fato de que o modo como a narrativa foi construída torna necessária a consideração de que o “natural” seria esperar que o “Filho do Homem” viesse para ser servido. Todavia, o “próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir”. “O próprio Filho do Homem”, isto é, “esse Filho do Homem”, ou seja – “eu” – tem por padrão de comportamento o contrário do padrão de comportamento dos “que são considerados governadores dos povos”, porque estes “dominam” sobre aqueles sobre quem exercem a sua autoridade, ao passo que Jesus de Nazaré, o “Filho do Homem”, ao contrário, servir-lhes-á.

O modo como o texto está redigido parece não dar margem à interpretação de que ser “Filho do Homem” seja essencialmente alguma coisa de uma ordem “ética” distinta da dos “que são considerados governadores dos povos”, como se “Filho do Homem” fosse algo essencialmente distinto da classe dos “governadores”. Parece ser mais correta a interpretação de que se trata de uma distinção desse “Filho do Homem” em questão, isto é, de Jesus de Nazaré enquanto “Filho do Homem”, e não da idéia em si de “Filho do Homem”.

A favor dessa interpretação está aquela porção da narrativa em que os filhos de Zebedeu pedem para assentarem-se do lado direito e do lado esquerdo de Jesus, em sua glória. Uma vez que, como um todo, a narrativa deve fazer sentido, necessário considerar que é sobre essa atitude dos discípulos que Jesus articula a sua admoestação ético-política.

Considere-se, portanto, a seguinte série condicional:
a) se os discípulos sabem que Jesus se auto-identifica com o “Filho do Homem”; b) se, sabendo-o, consideram que, em sua glória – em seu reino – ele se assentará em lugar de domínio; c) se, considerando o papel de domínio do “Filho do Homem”, Tiago e João pedem que estejam cada um ao seu lado, nos dois lugares mais próximos da ordem de comando; d) se a narrativa nos quer fazer compreender que o pedido de Tiago e João tem por modelo o modus operandi dos governadores dos povos; e) se a isso Tiago e João são levados pelo fato de não terem se dado conta de que, ainda que Jesus se apresente como o “Filho do Homem”, e de que, por isso mesmo, reserve para si, por direito, o “trono”, apesar disso, esse mesmo Jesus, enquanto esse mesmo “Filho do Homem”, sim, com direito ao trono, “vem”, contudo, como um “Filho do Homem” diferente, isto é, que, enquanto “Filho do Homem”, em lugar de ser servido, tenha vindo para servir – se toda essa cadeia condicional fizer sentido, resulta inegável que as idéias de “trono”, “governo”, “domínio”, sejam, todas, inerentes ao próprio título “filho do homem”.

A novidade não está no fato de o “Filho do Homem” ter o governo por direito – a novidade é que, apesar disso, “o próprio Filho do Homem [que teria direito de ser servido] não veio [contudo] para ser servido, mas para servir”.

A essa altura, cabe a referência à interpretação que Milan Machovec dá ao título “filho do homem”. Desprezadas as questões comuns aos comentaristas já citados, vale registrar que, segundo Machovec, enquanto aplicado ao próprio Jesus de Nazaré, o termo “filho do homem” esteve relacionado às expectativas de “transformação” do cenário político-social em que os judeus estavam inseridos, o que se poderia traduzir como “Reino de Deus” (MACHOVEC, p. 118).

O fato de que o título não tenha encontrado grande sucesso para além da tradição propriamente evangélica dever-se-ia, ainda segundo Machovec, à razão de que aquelas transformações imediatas que se aguardavam e para cuja materialização se depositava esperança em Jesus não se terem consubstanciado, de modo que, como efeito de uma profunda frustração psicológico-sociológica, o termo acabou caindo em desuso, sendo superado por outros, de carga teológica renovada (MACHOVEC, p. 115-118).

Apostaria numa razão: “filho do homem” constituía um título por demais restrito ao judaísmo, e não apenas no que diz respeito a seu sentido, mas, inclusive, à sua intencionalidade traditiva e sócio-política – de modo que, uma vez que o desenvolvimento das comunidades cristãs culminará na sua abertura aos gentios, o termo pode ter-se tornado não apenas desatualizado, mas, inclusive, incômodo. Nesse ponto, parecem ilustrativas, de um lado, a narrativa dos “discípulos de Emaús” (Lc 24,31) e, de outro, o registro, no Evangelho de João (19,19), de que as autoridades judaicas não endossaram a reivindicação real de Jesus – ele é que se atribuíra o direito ao cargo...

Uma vez que a realeza de Jesus não se estabelece, o título “Filho do Homem” deve ceder lugar para outros melhor adaptados às “atualizações” teológico-cristológicas da “fé”. Títulos mais “plurais”, digamos assim – em termos paulinos, fazer-se judeu para o judeu, e grego para o grego...

4. “Filho do Homem” como referência ao rei no Antigo Testamento

Talvez não seja necessário pressupor uma “carga de soberania” aplicada ao uso cotidiano do termo “filho do homem”. Talvez estejamos nos aproximando do dia em que as tradicionais abordagens de acesso ao sentido histórico-traditivo de “filho do homem” dêem lugar a uma pesquisa um tanto mais histórico-arqueológica desse sentido. Refiro-me aqui, por exemplo, ao trabalho de Andrew R. Angel, Chaos and the son of man: the Hebrew Chaoskampf tradition in the period 515 BCE to 200 CE. Segundo Angel, o sentido do título “filho do homem” estaria ligado a desdobramentos dinâmicos da tradição da “luta [do deus] contra o [dragão do] caos”, que ele define como presente, sem embargo de outros períodos, entre 515 a.C e 200 d.C.

Não se trata, aqui, de comentar o resultado do trabalho de Angel. Todavia, a relação por ele apontada entre a tradição do Chaoskampf e a fórmula “filho do homem” tem excelente potencial heurístico. Por duas razões, que, a rigor, constituem a mesma razão, desdobrada: a) impossível tratar-se a tradição do Chaoskampf sem se considerar a presença – inexorável – do rei. No Antigo Oriente Próximo, “criação” – logo, Chaoskampf –, constitui uma grade funcional aplicada transignificativamente a contextos de construção e reconstrução de cidades e templos, constituindo-se, no plano sócio-político, da sempre necessária presença de três grandezas concretas: rei, povo e construção.

Além disso, b) há bastantes plausíveis indicativos de que, no Antigo Testamento, logo, na mesma base traditiva em que se situa a tradição do Chaoskampf indicada por Andrew R. Angel, o termo “filhos de Adão” se refira ao conjunto organizado pelo rei, ele incluído, e seu aparelho político – sacerdócio, exército e funcionários, ou seja, a “classe dominante” –, o que, por extensão, provoca no termo “filho de Adão” (= “filho do homem”) um sentido relacionado diretamente ao rei.

Para o termo “filhos de Adão”, remeto para minha pesquisa ainda não publicada, Bünê ´ädäm – os “filhos de Adão” na Bíblia Hebraica, que aponta para Dt 32,8; 2 Sm 7,14; Sl 21,11; 36,8; 45,3; Sl 53,3 = 14,2; 58,2 e 89,48 como ocorrências de “os Bünê-´ädäm como bastante plausivelmente o rei e seus oficiais”. Não vou aprofundar a questão aqui.

Quanto ao termo “filho do homem” (Ben-´ädäm), indica-se para Sl 80,18, que traduzo: “esteja a tua mão sobre o homem da tua direita, sobre o filho do homem que fortaleceste para ti” (Tühî-yädkä `al-´îš yümînekä `al-Ben-´ädäm ´immacTä lläk). É absolutamente plausível que, aí, “filho do homem” – ou “filho de Adão” – refira-se explicitamente ao rei. De fato, referindo-se ao gênero desse salmo, Erhard Gerstenberger considera que se trata de a comunidade em risco de destruição pôr as suas esperanças sobre seu líder – rei ou messias (GERSTENBERGER, p. 106; cf. STEUSSY, p. 52).

John Day admite a possibilidade – e isso numa pesquisa em busca de salmos pré-exílios, para o que se serve da temática real como guia: “é possível também que Sl 80,18 (...) esteja aludindo ao rei” (DAY, 2004, p. 229). Day argumenta que, segundo o Sl 110,1, quem se assenta à direita do deus – cf. “o homem da tua direita” – é ninguém menos do que o rei. Nesse caso, “o filho do homem” é o próprio “homem da direita do deus”, isto é, o rei, o soberano.

A mesma fórmula, e agora diretamente em contexto cosmogônico (o que remete à tese de Andrew R. Angel da relação entre, de um lado, a tradição do Chaoskampf, e, de outro, o título “filho do homem”), pode ser flagrada no Sl 89,21-22: “21aEncontrei David, o meu servo. 21bCom o óleo de minha santidade eu o ungi. 22aCom quem a minha mão estará estabelecida, 22be a quem o meu braço firmará” (RIBEIRO, 2009). Assim como a mão de Yahweh deve estar sobre o “filho do homem” que ele, Yahweh fortaleceu para si (Sl 80), é também a mão de Yahweh que está sobre Davi, seu ungido, estabelecendo-o e firmando-o. Estamos diante da imagética real.

Não fora o fato de ter-se já adiantado a hipótese de leitura (RIBEIRO, 2008), talvez fosse cedo demais o pressupor com base apenas no trabalho de Andrew R. Angel, mas o fato de haver uma relação entre a tradição do Chaoskampf e o título “filho do homem” – isto é, “filho de Adão” – talvez se deva à identidade de “Adão” em Gn 1,1-2,4a como ninguém menos do que o próprio rei, que recebe do deus cosmogônico a incumbência de “sujeitar a terra” e “dominar” sobre seus constituintes vivos (Gn 1,18).

Revela-se, a meu juízo, constrangedoramente anacrônica a interpretação de que aí se faça referência a um conceito de “humanidade” a quem “Deus” houvesse dado a “administração” (ecológica!) do planeta (talvez se trate mais de projeto e desejo do que de base objetiva). Ora, em termos de Antigo Oriente Próximo, falar de “sujeitar a si” e de “dominar sobre” somente parece justificável para a classe dominante.

Ainda há muito trabalho de pesquisa a ser empreendido, mas a relação plausível entre a) “Adão”, como “rei”, em Gn 1,1-2,4a, b) a expressão “filho de Adão” como se referindo ao rei no Sl 80,18, c) a expressão “filhos de Adão” como referência ao rei e seu establishment em passagens do Antigo Testamento, e d) o título “filho do homem” auto-aplicado a Jesus na tradição evangélica – poderia ser ainda esclarecida por meio da pesquisa de Frederick Houk Borsch, The Son of Man in myth and history, segundo a qual o “filho do homem do judaísmo tardio é uma adaptação do Homem Primevo [Primal Man / Urmensch] que também tem muitos atributos reais” (BORSCH, p. 133).

Gravitando em torno do mito do Homem Primevo que detém funções reais, estaria, por sua vez, a idéia, própria da liturgia do “Festival de Outono” de Jerusalém, da relação simbólica entre, de um lado, o rei e, do outro, o deus enquanto rei, de modo que as ações do rei, no festival, tanto representam as ações do deus, quanto as pressupõem (BORSCH, p. 93).

Todavia, não se enfrentará o desafio de encontrar no emaranhado das tradições míticas de um suposto Urmensch cooptado pela tradição real de Jerusalém sem a rejeição da hipótese por John Day, que, todavia, está mais particularmente interessado na imagética de Daniel 7 do que propriamente no significado real do termo “filho do homem” (DAY, 1985, 157ss).

Seja como for, John Day acaba por vincular a imagem do “um como filho do homem” de Daniel 7,13 à imagética de Yahweh-Baal e, ainda por meio das tradições míticas de Ugarit, o “ancião de dias” da mesma passagem à figura de El, arrematando o circuito por meio da referência – agora não mais inusitada – ao ciclo mítico-traditivo da batalha cosmogônica entre o deus e o dragão (DAY, 1985, p. 177), com o que retornamos ao início da presente seção e ao trabalho de Andrew R. Angel sobre a relação entre “filho do homem” e Chaoskampf.

Mesmo a passagem “visionária” e próximo-apocalíptica de Daniel 7,13 dependeria, em última análise, da imagem do “filho do homem” como representante cosmogônico da divindade – o rei.

5. Jesus como “Filho do Homem” e movimento messiânico popular

A fórmula “movimento messiânico popular” constitui uma referência explícita ao capítulo “Pretendentes reais e movimentos messiânicos populares” de Horsley e Hanson (p. 89-124). E, no entanto, excetuando-se uma referência irrelevante à sua ocorrência em Daniel 7,13, o termo “filho do homem” não aparece uma única outra vez em Bandidos, Profetas e Messias. Assim, de um lado, poder-se-ia apoiar-se na pesquisa de Horsley e Hanson para a defesa da hipótese de que, de algum modo e sob alguma caracterização, Jesus pudesse ter participado de algum movimento messiânico popular comum da época, inclusive na forma atuante de um “„rei‟ carismático” (HORSLEY e HANSON, p. 50).

De outro lado, todavia, ao menos quanto a Horsley e Hanson, fica-se a dever quanto à relação entre esse papel de “„rei‟ carismático” e o título “filho do homem”. Mesmo em seu comentário a Marcos (HORSLEY, 2001) e em sua muito recente aproximação ao “Jesus histórico” (HORSLEY, 2010), a relação entre “filho do homem” e “rei” não é apontada. Pelo contrário, Horsley afirma categoricamente que “as primeiras fontes para a morte de Jesus não o apresentam como (reivindicando ser ou sendo aclamado como) um ungido ou um rei durante a sua missão ou em seu clímax em Jerusalém” (HORSLEY, 2010, p. 188).

Com o que nos deparamos com um problema para além da possibilidade de solução em um artigo. De um lado, há plausível tradição ligando uma série de elementos histórico-traditivos – “Adão”, “filho de Adão” (“do homem”), “filhos de Adão” (“do homem”), “rei”, Chaoskampf, cosmogonia. De outro lado, há recorrência evangélica entre o título “filho do homem” e a tradição da acusação de Jesus como “rei dos judeus”.

Por outro lado, apesar de conhecer tanto “movimentos messiânicos populares” quanto tradições de “reis carismáticos” no judaísmo do primeiro século, Horsley nega-se a admitir a materialização em Jesus dessas duas tradições – “filho do homem” e “„rei‟ carismático”. A ênfase “ideológica” – contra-imperialista e pró-popular – estaria de algum modo, operando a disjunção teórica dos dois sintagmas traditivos na figura de Jesus? Por outro lado, a advertência de Jesus, em Marcos 10,43 de que, com sua figura, se tem a emergência de um “Filho do Homem” diferente, um “rei” que, ao contrário de todos os outros, não vem para ser servido, mas para servir? Não seria justamente essa idiossincrasia ideológica, ético-política, uma singularidade histórica que, por isso mesmo, proporcionaria, sustentando-a, a plausibilidade da tradição que a sustenta?

Sustente-se a hipótese em Vermes, que alega basear-se “em um estudo magistral” de Paul Winter – “não foi por uma acusação de ordem religiosa, mas com base em uma acusação de ordem secular que Jesus foi condenado pelo representante do imperador a morrer vergonhosamente na cruz romana” (VERMES, p. 38). E isso não se teria dado sem razão, uma vez que “o simples fato de Jesus ser virtualmente capaz de liderar um movimento revolucionário já teria fornecido motivos suficientes para adotar „medidas preventivas radicais‟.

Corroborando a tese de Vermes, a tradição evangélica guarda memória de alguns eventos e circunstâncias comprometedores, os quais circunscrevem Jesus de Nazaré em um círculo indicativo de ação revolucionária – isto é, revolucionária em relação a Roma. Sem a pretensão de exauri-los:

 Jesus tem no conjunto de seu círculo mais íntimo de seguidores um zelote (VERMÈS, p. 55; HORSLEY e HANSON, p. 186ss), e a ele se poderia, eventualmente acrescentar um sicário (HORSLEY e HANSON, p. 173ss), se admitida a hipótese de essa ser a identidade de “Judas Iscariotes” – “Judas, o sicário”.

 Mais uma vez unanimemente, a tradição evangélica narra, agora, o episódio da “entrada triunfal” de Jesus em Jerusalém – Mc 11,1-10 (“Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor! Bendito o reino que vem, o reino de Davi, nosso pai! Hosana, nas maiores alturas!”; Mt 21,1-17; Lc 19,28-46; Jo 12,12-19 (VERMES, p. 55). Aqui se impõe a referência ao trabalho de Andrew C. Brunson sobre a relação entre o Sl 118 e o Evangelho de João, particularmente a longa discussão que trata sobre a passagem, no Quarto Evangelho, da “entrada” de Jesus em Jerusalém, onde conclui pela intencionalidade de Jesus apresentar-se como “rei de Israel” (BRUNSON, p. 180-223 – o capítulo VI chama-se “King of Israel”).


Não se deixe passar a informação de que, em Marcos (10,32-11,11) e Mateus (20,17-21-17), e mesmo em Lucas, conquanto um tanto desconfigurada (Lucas 18,31-43 e 19,28-44), a narrativa da “entrada triunfal” de Jesus em Jerusalém se dá justamente na seqüência da narrativa do “pedido dos filhos de Zebedeu”, onde se situa aquela relação indicada entre, de um lado, a condição de Jesus como “filho do homem”, e, de outro, a novidade “ético-política” de apresentar-se, esse “filho do homem”, como um “governante” que não vem para ser servido, mas para servir. Aí, estamos diante de um núcleo tradicional relativamente estável.

 Podendo-se pensar em termos de “comunidades paulinas”, entendo que, em primeiro plano, “Lucas” está mais interessado na defesa do “apostolado paulino” em face do conflito aberto com a(s) comunidade(s) jerosolimitana(s), conflito esse que me parece armado em torno da plausivelmente arrostada primazia de Jerusalém, dado o fato de constituir-se de “testemunhas oculares” dos fatos relacionados à vida de Jesus (RIBEIRO, 2008b). Todavia, esse fato certamente põe em relevo justamente aquilo que “Lucas” quer ressaltar – a irrelevância de se tratarem de “testemunhas oculares”, uma vez que embora o fossem, os discípulos não teriam entendido absolutamente nada da mensagem de Jesus. E tal argumento é delineado de modo bastante claro:

a) primeiro, afirmando que os discípulos consideraram loucura de mulheres a notícia da ressurreição de Jesus (Lc 24,11); b) na seqüencia, fazendo aos “néscios e tardos em entendimento” entender o que de fato Jesus quisera dizer, uma vez que estavam os “discípulos de Emaús” carregados de frustração pelo fato de Jesus, de quem eles esperavam a “remissão de Israel”, jazer, agora, morto (Lc 24,21.25); c) depois, pondo na boca dos discípulos reunidos com Jesus ressuscitado a famosa pergunta: “Senhor, será este o tempo em que restaures o reino a Israel?” (Atos 1,6).

Ora, Lc 24,21 e At 1,6 deixam entrever que “Lucas” quer-nos fazer acreditar que as “testemunhas oculares” tinham de Jesus uma idéia muito política – chegando a considerar que ele viesse a ser o responsável pela restauração do “reino” de Israel. O fato de que “Lucas” quer-nos fazer considerar que esse estado de coisa reflete a ignorância dessas testemunhas oculares, preparando o cenário para Pentecostes e a hegemonia do “Espírito Santo” não muda o fato de que, para fazê-lo, “Lucas” deve ser “fiel” ao discurso dessa camada de testemunhas oculares que pretende descaracterizar – e o que elas têm a dizer está posto nessas duas perguntas críticas, que, ao fim e ao cabo, indicam para uma percepção de Jesus, o “Filho do Homem”, como aquele que fosse remir Israel, isto é, restaurar-lhe o reino.

Não se pode compreender com facilidade como, de um lado, segundo Horsley e Hanson, juntos, e Hanson, sozinho, nem a idéia de “messias” nem a idéia de “rei” faziam parte da camada mais antiga da tradição jesuânica, e, de outro, como, segundo Vermès, “a primeira versão judeu-galilaica da vida e do ensinamento de Jesus estar concebida em um espírito político-religioso, o que explicava, pelo menos em parte, a força da característica messiânica neste relato” (VERMÈS, p. 56). “Lucas” trata a esperança frustrada dos discípulos – “Jesus remiria Israel”, “Jesus restaurará o reino de Israel” – como ignorância, mas, ao mesmo tempo, com esse gesto revela a força dessa tradição. Dificilmente se poderá ser mais incisivo do que G. W. Buchanan:

Há aproximadamente dois mil anos atrás, houve um homem, chamado Jesus, um judeu, que viveu na Palestina. Ele foi chamado de “messias”, que significa “rei ungido”; “Filho de Deus”, que é título para um rei; “Filho do Homem”, que é um título mítico para um rei; e que deu a si mesmo o título de “rei”. Isto significa que a pessoa a quem esses títulos foram aplicados estava de algum modo relacionado com a política, embora muitos eruditos têm sido inflexíveis em dizer que não. Entretanto, o foco central da mensagem de Jesus sugere que ele estava muito interessado em um reino em que judeus pudessem entrar (BUCHANAN, p. 12).

Certo – não é pelo fato de Buchanan o dizer que as coisas são como ele diz. Todavia, o acúmulo de indícios não aponta justamente para esse ponto: há uma relação traditiva muito forte, e, eventualmente, muito antiga, talvez, original, vinculando Jesus de Nazaré a alguma forma sua de auto-apresentação política, tornada pública na forma do designativo “real” e tradicional “filho do homem”, que aponta para a sua identidade como reivindicante – de que tipo? – do trono judeu, tendo por isso mesmo sido acusado, condenado e morto? Parece que a resposta que se impõe é sim.