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terça-feira, 22 de novembro de 2011

Yeshu Ha Notzri e sua viagem ao Egito.Algum tipo de menção ao Jesus do Novo Testamento ?

O Talmud.

Em 66 e.c. os judeus ergueram-se contra o poder romano. A resposta imperial foi implacável e conduziu a região a um conflito que durou sete anos. Populações inteiras foram massacradas ou escravizadas e o Templo de Jerusalém foi destruído. No caos que se seguiu, apenas dois movimentos político-religiosos de origem judaica sobreviveram de forma consistente: o cristianismo e o farisaísmo. A persistência do primeiro deveu-se às suas inovações teológicas e a uma política de proselitismo entre os não-judeus. A do segundo à sua incisiva defesa das tradições.

Os fariseus eram um grupamento importante nos anos que antecederam a guerra. Segundo Flávio Josefus tinham “grande confiança das massas” e “todas as preces e ritos sagrados de adoração divina” eram “executados de acordo com sua exposição” . Consideravam-se detentores de normas ancestrais . Gravitando entre partido político e seita religiosa, os fariseus estavam associados aos escribas, o grupo que se dedicava ao estudo e preservação dos textos sagrados e que emergiram na vida política judaica após as reformas de Esdras (V século a.e.c.). Constituíam-se em um grupo dotado de preocupações ordenadoras e preservasionistas, fortalecidos numa era de grandes desafios identitários.

Sua atitude diante do levante é difícil de ser precisada. Não parece, no entanto, que tenham apoiado a rebelião de forma ostensiva. O que é certo é que no pós-guerra entenderam-se, e assim foi aceito por setores substanciais da sociedade judaica, como a corrente de opinião capaz de condensar as ansiedades nacionais e religiosas. Diante da desagregação subseqüente, na qual o cristianismo pretendia erguer-se como a única resposta religiosa possível, os fariseus trabalharam pela sobrevivência do judaísmo.

Os fariseus se consideravam detentores de uma tradição específica, a, assim chamada, Mishnah, literalmente “Ensinamento”. Tratava-se de um conjunto complexo de disposições legais e filosóficas, conhecido também como a Torah oral. Aceitava-se que se constituía em material complementar à Torah escrita e fundamental para sua correta compreensão. Tal tradição não tinha uma aceitação geral no período anterior ao levante. Para os fariseus, no entanto, era a espinha dorsal de uma particular visão de mundo. A sua origem, do ponto de vista mítico, era entendida como associada à revelação de Moisés, tendo sido transmitido por este a Josué, depois aos anciãos, aos profetas, aos homens da Grande Assembléia (os soferim, os escribas), e finalmente aos líderes dos fariseus. A tradição atribui às academias dos mestres Hillel e Shammai o início do processo de organização desse vasto material, ainda em períodos anteriores ao primeiro levante.

Após a guerra, depois de 73, vários sábios estiveram envolvidos no processo de consolidação da Mishnah. Inicialmente os eruditos se reuniram na academia de Jabneh, dirigida por Johannan Ben Zacchai. Na geração seguinte os trabalhos foram conduzidos por diversos intelectuais, entre eles o Rabbi Akiva, nos difíceis momentos do segundo levante judaico. Em torno de 220 a Mishnah teria sido completada por Rabbi Judah o Príncipe, que lhe deu a definitiva organização, em ordens, tratados e capítulos. Foi então estruturada em seis ordens, 63 tratados e 523 capítulos. 11 tratados da ordem Zeraim (leis agrícolas), 12 da ordem Moed (leis relativas a festivais judaicos), 7 da ordem Nezikim, (jurisprudência civil e criminal), 11 da ordem Kodoshim (sobre o santuário e leis alimentares) e 12 da ordem Toharoth (a respeito de pureza e impureza). Todos os sábios que contribuíram para essa versão final da Mishnah, cerca de 150, passaram a ser tradicionalmente conhecidos como tannaim, isto é, os professores .

Com as comunidades judaicas espalhadas por diversas regiões do mundo, e desaparecido o poder centralizador do Templo de Jerusalém, foram os rabbis, através da preservação e estudo da Mishnah, os responsáveis pela manutenção de identidade religiosa do judaísmo. Era esta, na prática, como já afirmamos, a única identidade sobrevivente, entre diversas que pereceram nos dois levantes judaicos e diante do cristianismo, que a negava. Era também a única imbuída de autoridade, tendo sido os sacerdotes depostos de seu poder político pelas legiões romanas. A capacidade dos rabbis em pensar o judaísmo sem o Templo aprofundou a sua liderança . Através da instrumentalização da sua Mishnah, da Torah oral, os rabbis, herdeiros e continuadores dos fariseus, se transformaram no grupo intelectual dominante dentro do judaísmo.

A partir do III século a discussão sobre os conteúdos da Mishnah foi conduzida pelos amoraim, os expositores. Foram eles que começaram a elaborar o Talmud, ou Gemara, isto é o comentário, no caso, sobre a Mishnah. Na Palestina, os principais mestres foram Rabbi Johanan (morto em 279) e Abbahu de Cesarea. Em 425, no entanto, todas as academias judaicas que existiam dentro do Império Romano foram fechadas, por ordem do imperador cristão, e o movimento de exegese mishnaica foi interrompido. Parte decisiva na consolidação desse processo passou a ser desempenhado pela comunidade judaica diaspórica, especialmente a da mesopotâmia. Esta, fora do limes romano, gozou de grande liberdade e prosperidade por séculos. Foi ali que Rab, que havia estudado com Judah o Príncipe na Palestina, fundou, em 219, a Academia de Sura. Nessa instituição, e na academia de Pumbedita, em condições políticas e intelectuais favoráveis, sob os soberanos persas sassânidas, o comentário continuou a ser desenvolvido, incorporando as antigas discussões palestinas e novas abordagens babilônicas. Um texto mais ou menos consolidado foi fixado por Ashi, diretor de Sura por 52 anos, em torno de 427, e consolidado por Rabina, em torno de 499. Aos capítulos da Mishnah, assim, foram acrescentados os comentários dos amoraim. Estes constituem a Gemara, de fato atas de reuniões ou coletâneas de opiniões, que envolvem não apenas afirmações amoraítas, mas tanaíticas e de fontes diversas.

Judeus e Cristãos no Talmud.

Os conflitos entre os primeiros cristãos e os judeus foram intensos. A literatura cristã primitiva denuncia a permanente resistência que as lideranças judaicas, e especialmente os fariseus, sustentaram diante do cristianismo nascente. Os textos judaicos, no entanto, e especialmente o Talmud, parecem ambíguos e obscuros à respeito da natureza desse embate. Os textos cristãos se justificam na oposição ao judaísmo, por isso insistem em denunciar os fariseus. Mas o Talmud se estrutura a partir da exegese de suas tradições. Ele não mostra, assim, uma preocupação especial para com o cristianismo. As reticências contra o pensamento cristão são, na verdade, compartilhadas com relação a todas as religiosidades não-judaicas. Daí o fato de que no Talmud não sejam encontradas referências explícitas ao cristianismo e, no caso que nos interessa, a Jesus. Observemos que a denominação talmúdica normalmente aplicada ao cristão é min, isto é, “herético”. Mas o mesmo epíteto pode ser estendido, por exemplo, ao saduceu ou a qualquer judeu tido por desviante. O termo é precisado “por Rabbi Nahman em nome do Rabbi Bar Avuha”: “Não existem heréticos entre os gentios” . Isto significa que este nome, quando necessário, deve ser aplicado aos judeus convertidos ao cristianismo ou aos dissidentes religiosos judaicos, mas não aos gentios, ou aos gentios tornados cristãos. O que não é judeu não é objeto especial do comentário rabinico.

O Talmud foi elaborado em sua forma final na Babilônia. Embora numerosos, os cristãos da mesopotâmia foram em sua maioria instalados ali após 240, por Shapur I. O soberano sassânida deslocou populações cristãs da Síria, Cilícia e Capadócia, e estas tiveram um desenvolvimento histórico particular na região. Primeiro, não emergiram da comunidade judaica babilônica e assim eram estrangeiras diante desta. Segundo, nunca exerceram poder de Estado, o que as tornava mais uma entre diversas minorias da área. Terceiro, não acompanharam as perspectivas teológicas oriundas do Império Romano. Alguns cristãos mesopotâmicos adotaram o nestorianismo, em 484, mas havia uma forte presença marcionista e gnóstica . Não nos parece, portanto, que o cristianismo tivesse para as comunidades judaicas da mesopotâmia a mesma dimensão que tivera séculos antes para os judeus do mediterrâneo oriental. Mas mesmo entre estes as possíveis críticas ao cristianismo também eram sempre generalizáveis a outros movimentos religiosos. Observemos a intervenção do Rabbi Chia bar Abba no Pesikta Rabbati, uma coleção midráshica medieval fundada em tradições judaicas palestinas dos IV-V séculos: “Se um bastardo (“mamzer”) diz para você: “Existem dois deuses”, responda a ele: Está aqui (Deut. 5,4) escrito não Deuses, mas sim o Senhor, aquele que falou com você cara a cara” . O mamzer é um judeu fruto de qualquer união sexual ilegal e portanto desprovido da plena identidade judaica. Esta crítica teológica é ambígua, e pode tanto ser aplicada a um judeu-cristão, que acredita na divindade do Pai e do Filho, quanto a um judeu tornado sectário do dualismo mazdeísta, ou do maniqueísmo, que crê na análoga potência cósmica do Bem e do Mal. Tende-se assim a dar respostas gerais que deêm conta dos diversos riscos externos que são decorrentes da violação das leis judaicas.

Recorrer ao Talmud para encontrar referências históricas sobre Jesus tem sido uma tarefa difícil, portanto . O Talmud, além do mais, não é um texto que possua uma estrutura narrativa comparável à dos textos cristãos. As discussões contidas na Mishnah e na Gemara são expostas de maneira complexa e pluralista, registrando as diferentes opiniões de diversos rabbis. Os temas são tratados de forma impressiva, mediante associações subjetivas, e as posições registradas o são muitas vezes de forma não congruente com o assunto inicial que se pretende tratar. São reunidos, num mesmo texto, opiniões dos tannaim, dos amoraim, de outras pessoas e fragmentos de folclore. Afirmações peremptórias são sujeitas à crítica de outros eruditos e podem inclusive ser rejeitadas pela maioria em determinada passagem, novamente corroboradas em outra. A lógica básica é, talvez, que a infinitude do pensamento divino traduz-se em infinitude de interpretações, e todas elas seriam movimentos aproximadores, que complementariam, esclareceriam e inovariam a compreensão da teofania do Sinai. A interpretação é “a continuação direta de uma revelação original, e uma extensão do próprio texto”. As palavras da Torah são assim comparadas “a uma figueira que dá frutos perpetuamente” . O Talmud contém atas de reuniões que ocorreram em diferentes tempos e lugares, nas quais sábios refletem livremente sobre a aplicação e o sentido da lei judaica. Não se trata, portanto, de um livro de história. O seu objetivo é a exegese da Torah, a reflexão sobre os infinitos sentidos da revelação do Sinai, a discussão ampla sobre a natureza da condição humana segundo a perspectiva judaica.

Parábolas e histórias diversas fazem parte do Talmud. São contadas ou relembradas pelos rabinos, no decorrer de suas discussões, para reforçar argumentos, ilustrar um tópico, convidar à reflexão. Na lembrança dos que as contam e daqueles que as transcreveram, no entanto, está presente a densidade característica da memória e do mito. Não há precisão no nível da realidade, mas sim no do metafísico e do imaginário. O sentido dessas narrativas está no que elas revelam de essencial, absoluto, transcendente, eterno, não no que possuem de transitório, imanente e histórico. “Um certo Min”, certo dia, questionou o Rabbi Abahu sobre as inconsistências históricas do texto bíblico, onde, às vezes, uma coisa que veio depois é dada como tendo vindo antes e fenômenos análogos. Abahu respondeu que “Para você que não deriva interpretações de justaposição, isto é uma dificuldade, mas para nós que derivamos interpretações de justaposição isto não é uma dificuldade... porque é o capítulo de Absalão justaposto ao capítulo de Gog e Magog? Se alguém perguntar se é possível um escravo se rebelar contra seu mestre, você pode replicar a ele: é possível um filho se rebelar contra seu pai? Isso aconteceu e assim isto irá acontecer” . Assim, as duas histórias, diferentes entre si em grandeza e temporalidade, lidam na verdade com o mesmo fenômeno: a rebelião das nações contra o Eterno.

Jesus é mencionado no Talmud? Muitas dúvidas cercam as respostas possíveis. A nossa tentativa, neste texto, é analisar as dificuldades e possibilidades do tema, especialmente na parábola de Yeshu Ha Notzri e sua viagem ao Egito.

O ciclo de Yeshu Ben Pandera.

As passagens do Talmud que supostamente mencionam Jesus são, como adiantamos, muito duvidosas. Algumas só foram identificadas enquanto tais a partir de tradições cristãs primitivas, por exemplo em Orígenes, citando o filósofo neo-platônico Celso , e de uma leitura católica um tanto ou quanto tendenciosa de seu conteúdo. A Igreja de fato as condenou em 1263 e o próprio Talmud foi colocado no index, por conta delas também, em 1559. Em sua maioria são curtas e pontuais referências a um certo indivíduo chamado de forma alternada Yeshu Ben Pandera ou Ben Stada. Esta personagem é mencionada como sendo um mamzer, um bastardo, que atuou de forma perniciosa na comunidade judaica. Seu pai legal se chamaria Paphos ben Yehudah e sua mãe Stada, ou “Míriam, a cabelereira” . Seu pai verdadeiro, no entanto, seria um legionário romano, de nome Pandera . Os cristãos sustentaram, por séculos, que Ben Pandera continha uma referência blasfema a Jesus de Nazaré. Mas a simples leitura dos textos contribui para inviabilizar essa versão. Na verdade, Paphos ben Yehudah, o pai legal de Ben Pandera, teria vivido, segundo o Talmud, na época da segunda guerra judaica (132-135 e.c.), tendo sido preso junto com o Rabbi Akiva, embora não por razões político-religiosas como este, mas “por assuntos banais” . Ben Pandera, portanto, viveu na época do levante de Bar-Kochba, em torno de 130. O Talmud aprofunda a história, explicando que Ben Stada foi julgado por uma corte judaica, condenado a ser apedrejado e executado na cidade de Lud na véspera da Páscoa . André Chevitarese, em recente artigo, confirma que essa narrativa de fato só começou a circular “entre os judeus helenistas da Diáspora a partir da segunda metade do século II” . Isto é, após a segunda guerra. Assim, embora também chamado Yeshu, um nome bem comum, na verdade, e, nessa época, já célebre, Ben Pandera não é o Jesus de Nazaré. Não são poucos os que adotarão o nome de Jesus para encontrar mais legitimidade em suas pregações, e esse pode ser o caso. Trata-se de uma personagem, portanto, sobre a qual nada sabemos por outras fontes.

A identificação de Ben Pandera com o Jesus do Novo Testamento foi criticada desde há muito como intencionalmente maliciosa, pela óbvia caracterização negativa nela contida . No entanto, devemos argumentar que o Talmud deriva “interpretações de justaposições”. Assim, o ciclo de Ben Pandera pretende estar referido à algum fenômeno que transcende a sua própria história. Relaciona-se, provavelmente, à sempiterna preocupação talmúdica com os marginais diversos, aqueles que transitam entre os mundos judaico e gentio, como o mamzer, filho ilegítimo, ou como o min, herege, e o final trágico que é reservado a todos eles, isto é a morte física ou identitária. Se o assunto está relacionado a Jesus de Nazaré não está explicitamente dito. De fato, quem construiu ou registrou a justaposição foram, de forma documentada, cronistas e intérpretes cristãos. Trata-se de uma interpretação que não está escrita ou sequer é sugerida no Talmud.

Mas é justo também acrescentar que a crença de que a ilegitimidade de nascimento engendra o perverso não é exclusiva dos judeus e estava instalada no imaginário cristão medieval. Observemos o papel simbólico que a prostituta representa como a fonte do mal no Apocalipse (p.ex. 17,1) e a crença medieval de que o Anticristo nascerá de uma anti-virgem, uma prostituta. As origens deste mito também se encontram em período posterior à segunda guerra judaica. Hipólito de Roma, no século III, afirmou que o Anticristo em tudo será semelhante ao Cristo, mas, como o título sugere, invertido, tendo sua identidade fundada no mal. Assim como Cristo foi um “leão por conta de sua realeza e glória...” o Anticristo será “um leão, por conta de sua tirania e violência”. E assim como “o Salvador veio ao mundo na circuncisão, o Anticristo deverá vir da mesma maneira” . Isto é, além de nascer de uma mulher impura, de forma inversa à Maria, o Anticristo nascerá do povo judeu, cuja identidade é anti-identidade, ilegítima.

Yeshu Ha Notzri no Egito.

Mas há outra passagem do Talmud, uma parábola, na qual tem sido sugerida a existência de algum tipo de menção ao Jesus do Novo Testamento. Nela, um dos personagens é denominado Yeshu Ha Notzri. Apenas um entre quatro manuscritos do Talmud contém essa denominação. Isto pode ser explicado quer pela auto-censura da maioria dos copistas, quer por alguma tradição especial da qual algum deles era portador, quer pela simples e silenciosa decisão de acentuar uma idéia ou uma identificação/justaposição. Notzri é de fato um termo bíblico, utilizado, por exemplo, em Jeremias 4,16, e foi traduzido na Bíblia de Jerusalém como “inimigo”. No entanto, o seu sentido mais preciso, tal como utilizado na tradução do Tanach pelo Rabbi Nosson Scherman é “aquele que sitia”. Nos dois casos é clara a necessidade de especificar que este Yeshu possui uma característica especial. A sua qualificação o identifica àqueles que avançam contra o povo judeu, para os sitiar ou destruir, uma idéia forte nas comunidades diaspóricas, especialmente quando diante da autoridade cristã. Além do mais, a palavra pode evocar outras duas: Nazoreu e Nazaré. Poderia assim ser uma tentativa de identificar a personagem quer com o movimento dos nazoreus quer com Jesus de Nazaré. As dificuldades neste último sentido são visíveis, no entanto, mas a tradição de identificar este Yeshu com Jesus não é totalmente insustentável, como veremos. De qualquer maneira, essa parábola não guarda correspondência com o ciclo de Ben Pandera, e as justaposições que contém são explícitas. Ela se inicia com uma afirmação de caráter geral:

“Os Rabbis ensinaram: Sempre deixe a mão esquerda repelir e a mão direita convidar, não como Elisha, que repeliu Gehazi com ambas as mãos e não como Rabbi Joshua ben Perachiah que repeliu Yeshu Ha Notzri com ambas as mãos...”

A história em questão, envolvendo Eliseu e seu servo Giezi está em 2Reis 5, 20-27. Naamã, um arameu, foi curado da lepra por Eliseu. Ofereceu dinheiro ao profeta em troca da cura, e este recusou. O servo de Eliseu, Giezi, aproveitando-se da situação, procurou Naamã secretamente. Alegando vir em nome do profeta e uma falsa razão religiosa, pediu-lhe dinheiro. Naamã, agradecido como estava, deu-lhe dois talentos de prata e duas vestes de gala. Eliseu, no entanto, descobriu o ocorrido e puniu Giezi com a lepra que fora de Naamã. Trata-se de uma parábola ética. Não se coloca em dúvida o erro de Giezi, mas os rabinos parecem concordar que a decisão de Eliseu foi errada, além de desproporcional. Na prática defendem que toda repreensão deve conter em si um movimento equilibrado entre repelir e convidar. Condenar o ato e perdoar a falha, para introduzir o diálogo e impedir a repetição do erro. Trata-se da arte de se relacionar com o outro, quando se tem em mente padrões éticos precisos e de trabalhar pela Justiça. Entramos aqui, portanto, na história de Yeshu Ha Notzri:

“E o Rabbi Joshua ben Perachiah? Quando o Rei Yannai matou nossos Rabbis, Rabbi Joshua ben Perachiah e Yeshu fugiram para Alexandria, no Egito. Quando houve paz, Rabbi Shimon ben Shetach mandou-lhes uma carta: “De Jerusalém, a cidade sagrada, a você Alexandria do Egito. Meu marido permanece em seu meio e eu estou desamparada” Assim, Joshua ergueu-se e voltou. No caminho encontrou uma certa taverna. E nessa taverna o trataram com grande respeito. Então ele disse: “Que linda é esta hospedaria!” Yeshu disse para ele: “Rabbi, ela, a hospedeira, tem olhos apertados”. Joshua disse: “Pecador, é nisto que está pensando?” Joshua então o expulsou. Yeshu veio ante Rabbi Joshua várias vezes e disse: “aceite-me”. Mas Rabbi Joshua não lhe deu atenção. Um dia Rabbi Joshua estava recitando o Shemá e Yeshu veio a ele. Ele estava pronto para aceitá-lo e assinalou a ele com sua mão [esquerda, já que a direita cobria o rosto em concentração]. Yeshu pensou que Rabbi Joshua o estava repelindo. Ele se foi, tomou uma lápide e curvou-se diante dela em adoração. Yeshu disse então a Rabbi Joshua: “Você me ensinou que qualquer um que peque e conduza os outros ao pecado não tem uma oportunidade de se arrepender”. E o Mestre disse: Yeshu Ha Notzri, praticou magia e engano e desviou Israel.”

A história se passa durante o final do reinado do soberano asmoneu Alexandre Yannai (103-76 a.e.c.). Durante seu governo foi movida campanha violenta contra os fariseus, como anotou Flavio Josephus, só encerrada após a sua morte com a ascensão da viúva Salomé Alexandra . Inicialmente, este Yeshu não é Ben Pandera por duas razões. Primeiro, não há uma correspondência temporal, já que esta parábola tem lugar quase duzentos e cinqüenta anos antes. E segundo, considerando a estatura religiosa de Joshua ben Perachiah- é denominado de ”marido” de Jerusalém- jamais poderia ele ter como discípulo um mamzer, como era Ben Pandera. Apesar de tentadora, igualmente, a possibilidade de entende-lo como o Jesus de Nazaré também em princípio não se sustenta, considerando a grande distância temporal. A não ser que consideremos que Jesus de Nazaré não viveu na época declarada no Novo Testamento, mas em outra, anterior, o que é uma especulação sem fundamentação, até onde podemos alcançar com os documentos de que dispomos .

Apesar disso, há nessa parábola um encantamento particular, pelas justaposições, declarada e subentendidas, que provoca. Aos rabinos a atitude de Eliseu parece estruturalmente errada. Não se deve repelir o pecador sem, ao mesmo tempo, deixar um caminho aberto ao arrependimento, isto é, à aproximação. A lepra de Giezi lhes parece excessivamente severa e inútil: não permite que o servo se arrependa, isto é, entenda seu erro e o corrija, e inviabiliza a Eliseu o movimento humano do convite, da proximidade. A rigidez de Eliseu é, portanto, excessiva para o pecado cometido. E no seu pessimismo diante da possibilidade de arrependimento do outro, está a projeção de uma rigidez e intolerância para consigo mesmo já que, afinal de contas, também ele é um humano. A mesma lógica aplica-se a Joshua ben Perachiah.

Aqui, reflete-se abertamente sobre um dos grandes temas judaicos no período posterior à expansão macedônica: o caráter perverso das influências helenísticas. Joshua e Yeshu, com efeito, são judeus observantes- e não poderia ser de outra maneira. Dirigem-se, no entanto- e exclusivamente por razões de perseguição política-, a Alexandria do Egito. Esta cidade era um dos principais centros helenísticos do mediterrâneo oriental. O tema do deslocamento para o Egito quando de perseguições em Judá está presente também na literatura neo-testamentária, Mt 2,13-15, por exemplo. Mas o Talmud insiste que o Egito, embora pudesse representar um abrigo importante, provavelmente por conta de sua importante comunidade judaica, também apresentava perigos consideráveis. “Dez medidas de feitiçaria vieram ao mundo. O Egito recebeu nove medidas, e todo o resto do mundo uma” . No ciclo de Ben Pandera consta a informação de que este trouxe fórmulas mágicas do Egito “em cortes na sua pele” , talvez porque, assim acreditaria séculos depois Rashi, um eminente comentarista talmúdico, os egípcios proibissem a saída de seus livros mágicos do país. Ben Pandera não teve outro meio de levar as formulações senão inscrevendo-as no seu corpo. Essa visão do Egito como a terra da magia e dos livros mágicos é forte na literatura helenística e no mundo antigo. Está na base da importância multi-secular dos textos herméticos, por exemplo, tidos como de lá originados.

Yeshu Ha Notzri, portanto, é entendido como tendo sofrido razoável contaminação religiosa estranha no Egito. Joshua, ao chegar à hospedaria, reconhece a correta execução das formalidades devidas e, como fariseu que é, vê nessa correção argumento suficiente para elogiar o lugar e seus donos. Yeshu, no entanto, faz uma observação ambígua sobre o olhar da dona do estabelecimento, que parece talvez questionar a honestidade do ambiente. A observação de Yeshu, de qualquer forma, demonstra seu interesse pela hospedeira, ou pelo que ela contém em seu interior, pelo que está além do formal. Essa é uma preocupação helenizante, porque implica no reconhecimento e aceitação da ascendência da subjetividade sobre a objetividade legal. A reação de Joshua, embora advinda de uma escrupulosa observância religiosa, é criticada pelo Talmud: ele simplesmente nega e recusa Yeshu de forma absoluta e o expulsa de sua presença. Yeshu o procura várias vezes, para se desculpar, mas Joshua se recusa a vê-lo. Não quer conversar com ele. O está repelindo, portanto, com “ambas as mãos”.

A parábola conclui com a explicação de que Joshua afinal decide aceitar Yeshu, mas parece que tarde demais. De forma marcadamente simbólica, Yeshu procura seu mestre pela última vez na hora em que este recita a declaração de fé judaica, o Shemá: Shemá Israel, Adonai heloheinu, Adonai ehad, “Escuta Ó Israel, o Eterno é nosso Deus, o Eterno é Um”. A tradição estabelece que no momento de proferir essa frase, o judeu deve cobrir os olhos com a mão direita, em concentração, como sinal de aceitação da determinação divina. Como vimos, é esta a mão que convida, que dialoga. Incapaz de mover a mão direita, Joshua acena a Yeshu, aceitando-o, mas o faz com a mão esquerda, que é a mão da repulsa. É claro que para Joshua a utilização da mão esquerda não teria o sentido de repulsão, pois o mandamento divino tinha, para ele, óbvia precedência e não haveria outra mão com a qual pudesse convidar. Esse pequeno incidente, no entanto, adquire gigantesca dimensão com a cumplicidade de Yeshu. Mais uma vez este desconhece o imperativo da Lei, pois parece entender que Joshua deveria ter interrompido o Shemá para aceitá-lo, o que significaria colocar o humano, Yeshu, acima do divino. Suas conclusões sobre o acontecimento são radicais: ele afirma que Joshua lhe ensinou que não há perdão para os erros. Sai então do judaísmo. Como tudo fora da tradição era tido como idolatria ou feitiçaria, ele se torna, numa definição geral e ambígua, idólatra. Yeshu condena toda sua antiga identidade religiosa como intolerante porque Joshua ben Perachiah não o perdoou no momento certo, isto é, no seu momento. O erro de Joshua duplica-se em Yeshu, pois este também recusa o mestre e o seu próprio povo “com ambas as mãos”.

Sob o ângulo da justaposição Yeshu Ha Notzri lembra-nos realmente Jesus de Nazaré, pelo menos na forma como muitos cristãos o entenderão a partir da pregação de Paulo. Ele parece, inclusive, defender uma das teses centrais da literatura paulina: a superioridade do amor sobre a lei. É claro que aqui, mais uma vez, não se trata de uma referência direta ao cristianismo, mas a toda atitude judaica de incorporação de valores estranhos, principalmente helenísticos, ou a todo eventual movimento humano de flexibilização de regras e princípios existentes. “Os Rabbis ensinaram: Sempre deixe a mão esquerda repelir e a mão direita convidar, não ... como Rabbi Joshua ben Perachiah que repeliu Yeshu Ha Notzri com ambas as mãos”. É evidente que a crítica rabínica é clara com relação a Yeshu, pois a sua atitude não é, sob qualquer hipótese, justificável. Assim como Giezi errou ao mentir e enganar, Yeshu não deveria ter feito um comentário tão subjetivo e duvidoso sobre a dona da estalagem e jamais poderia ter interrompido um Shemá, judeu como era, ou mesmo condenado toda uma tradição e um pacto, apenas por conta do erro de um homem. Mas é também uma crítica extensível a Yoshua. E uma advertência aos estudiosos do Talmud. Nenhum mal-entendido teria ocorrido se Joshua tivesse ensinado a Yeshu a verdadeira natureza do perdão, a arte da tolerância que é tão presente em todo corpo textual talmúdico. E era essa a sua função como mestre, isto é, dar o exemplo. De fato, caberia a Yoshua, com sabedoria, saber lidar com o diferente e convidá-lo, com a mão direita, ao diálogo e à prática da Justiça.

Conclusões.

O Talmud não parece conter referências claras ao Jesus histórico. Mas encontramos nele a presença constante da discussão sobre a dinâmica da relação dos judeus com o mundo. Nesse sentido, a parábola de Yeshu Ha Notzri propicia uma reflexão sobre os dramáticos mas recorrentes momentos em que, no contato com a sociedade que os cerca, os judeus absorvem idéias estranhas e as testam no interior do judaísmo. Provavelmente perniciosas, no entanto não devem, como os rabbis advertem, ser entendidas como razão de ruptura, mas como oportunidade para o diálogo e compreensão mais precisa da Lei, ou, talvez mais acertadamente, da Justiça que a suporta. Posição esta cobrada tanto de Yoshua quanto de Yeshu. É muito visível que essa história pode ser justaposta também ao dramático período histórico de rompimento entre as comunidades cristãs e judaicas, num sentido amplo. A parábola de Yeshu Ha Notzri refere-se não apenas aos desentendimentos entre tendências religiosas judaicas, mas também às usuais e recorrentes rupturas entre religiões, grupos humanos, famílias e pessoas. Se não é a história a principal preocupação talmúdica, mesmo assim o Talmud assevera que devemos, seres humanos, aprender a partir da reflexão sobre essa mesma história e seus muitas vezes insensatos momentos.



quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Emmanuel Levinas sobre: À intolerância ao Talmud e a literatura rabínica


O judaísmo frente à intolerância: reflexões teóricas sobre a resistência na história

Tão antigo quanto a humanidade, o fenômeno da intolerância construiu inúmeras representações. Da literatura às manifestações artísticas, da propaganda política ao controle da memória social, dos mitos à religião, veremos ao longo da História, grupos sociais e minorias étnicas sendo submetidos, manipulados, segregados e exterminados a partir da proposital difusão de discursos de poder.

Podemos ainda considerar que a intolerância ao judaísmo e aos judeus, manifestada na formação de pensamentos depreciativos e atitudes sectárias e destrutivas sobre esse povo, representa um dos processos mais longos e ininterruptos da história da marginalidade social.

Com base em tal premissa, o objetivo deste ensaio é refletir acerca dos aspectos ideacionais e práticos da intolerância aos judeus, construídos com base no pensamento religioso de natureza teológica/eclesiástica. Da Idade Média à Modernidade, a intolerância religiosa será apresentada a partir das dimensões concretas que assumiu na História Mediterrânea, tomada em sua essência e perversidade, articulando processos de exclusão e eliminação do ser judaico.

Essas questões evidenciam que todo discurso intolerante possui um projeto de dominação que não indicaria, necessariamente, um golpe político, ou usurpações de poder. Tal artifício de legitimidade do pensamento intolerante baseia-se numa espécie de raciocínio de projeção. Projetam-se sobre os alvos sociais do discurso e práticas intolerantes os males construídos pela própria sociedade ou grupo dominante. No imaginário da intolerância, o oprimido torna-se sempre um opressor, que deve ser combatido.

Tanto em Estado como em sociedade, atitudes concretas são tomadas para comprovar “a razão” ou o “sentido” das violências instituídas: No mundo antigo, temos os estigmas da rebeldia judaica contra o Império Romano, que redundaram em milhares de crucificações por todo o território.

Na Idade Média, o mito do judeu deicida e errante, através da difusão de uma lógica punitiva eterna ao povo do “Antigo Israel”, acusados de haverem supostamente tramado, renegado e traído o Deus que a eles foi revelado. Segundo o pensamento eclesiástico, a verdade e a salvação universais deixaram de estar ao lado do povo judeu quando estes pecaram contra Deus.

Para Paulo de Tarso (Epístola aos Romanos), um novo Israel (Israel Espiritual) e um Novo Testamento surgiam através do cristianismo, sobrepondo-se e anulando a existência do que chamou de “antigo Israel e seu Antigo Testamento” (Israel Carnal). A expressão paulina Verus Israel – O verdadeiro Israel, em configuração cristã, ilustra a gênese do distanciamento histórico que passou a demarcar as tensas relações entre Cristianismo e Judaísmo, até os dias atuais.

Na realidade, em alguns textos dos Pais da Igreja (Patrística), localizamos a idéia de anterioridade do cristianismo em relação ao judaísmo, e de sobreposição religiosa. Em História Eclesiástica, datada de inícios do século IV d.C, o bispo Eusébio de Cesaréia reportara-se aos "testemunhos do Antigo Testamento" para que, em sua hermenêutica, ficasse comprovada a relação mística e religiosa entre Moisés e Jesus.

No livro I De História Eclesiástica, Eusébio discorre sobre a cristianização de Moisés, definindo o judaísmo como obsoleto já desde tempos bíblicos. Defendia que Abraão, Isaac e Jacob já seriam cristãos em seus atos e identidades, e Moisés, um líder que teria se colocado contra costumes a posteriori praticados pelo Judaísmo, como o descanso aos sábados (Shabat), as regras alimentares judaicas (Kashrut) e a circuncisão (Brit-Milá). Segundo Eusébio:

(...) É agora o momento adequado de mostrar que o próprio nome Jesus, como também o de Cristo, foram honrados pelos profetas consagrados de outrora. Primeiro, o próprio Moisés reconheceu como é supremamente augusto e ilustre o nome de Cristo quando transmitiu a tradição dos tipos e símbolos místicos de acordo com o oráculo (...). Assim, evidentemente, ele compreendeu que Cristo era um ser divino. O mesmo Moisés, sob o Espírito divino, antevendo também o título Jesus, igualmente dignifica com certo privilégio de distinção.(...) Mas eles obviamente conheciam o Cristo de Deus, conforme apareceu a Abraão, comungou com Isaac, falou com Jacó e conversou com Moisés e os profetas após ele, conforme já foi demonstrado. (EUSEBIUS, 1992, I; III e IV)

Além dos patriarcas e profetas bíblicos perderem sua definição hebraica, Jesus é entendido como um não judeu. Seria angustiante aos principais líderes eclesiásticos da Idade Média pensar que um Deus adorado pela cristandade pudesse ter sido guiado por princípios judaicos, em suas ações e pretensões com o próximo. O Deus cristão não poderia ser um judeu. Os Pais da Igreja erigiram uma literatura repleta de alegorias interpretativas não apenas de oposição, mas de anulação da cultura judaica, e das heranças judaicas inerentes à formação do Cristianismo.

Lembremos que o cristianismo surge historicamente como uma seita judaica, propagada no interior de sinagogas da Judéia romana. Entre aqueles que viam Jesus como Messias, não havia qualquer intenção de serem abolidos práticas e costumes judaicos cotidianos. Em sua imensa maioria, os cristãos dos primeiros séculos na Judéia eram, assim como Jesus (Yeshua ben Yossef), judeus praticantes das leis mosaicas e devotos à Tora.

Tertuliano, João Crisóstomo, Jerônimo, Eusébio de Cesaréia, Agostinho de Hipona, Gregório Magno, Ambrósio de Milão, intelectuais e autoridades eclesiásticas dos séculos III, IV e V, aprofundaram a lógica de substituição histórica das alianças divinas. Aos judeus, lhes foi rompida a aliança com Deus, uma vez merecedores de um trágico destino diaspórico, por suas crueldades. Para Agostinho de Hipona, o Israel Carnal, representado pelo povo judeu, seria historicamente substituído por um Israel Espiritual, cristão, sem máculas ou posturas traiçoeiras em relação ao próximo, e a Deus.

É importante ressaltar que as leituras alegóricas sobre a Bíblia Hebraica e os Evangelhos não se restringiram a uma doutrina anti-judaica de caráter discursivo. Constata-se que, no âmago do pensamento intolerante de setores do episcopado mediterrâneo, o discurso anti-judaico amadureceu rumo a uma práxis anti-semita, pontualmente localizada quando, em nome da “salvação das almas”, previu-se a destruição dos judeus, de suas práticas, produções textuais, e instituições.

A literatura episcopal fundamentada na Patrística clássica esteve metodologicamente ancorada em interpretações alegóricas e concepções soteriológicas sobre o homem e sua relação com o trascendental. Representou esta literatura, em nosso entendimento, um rearranjo circunstancial entre as novas significações atribuídas às múltiplas realidades mediterrâneas, e o forte legado agostiniano especialmente referente às ilações sobre os judeus e o Judaísmo.

Lembremos que com Agostinho, os judeus já desempenhavam função quase determinante no jogo mitológico-existencial da cristandade, ao terem suas existências pré-condicionadas por questões como o deicídio, a culpabilidade perene, as inextinguíveis condições carnal, errante e diaspórica, e a aproximação com a identidade herética. Agostinho apresentava ainda a necessidade de opressão, perseguição ou conversão obrigatória dos elementos sociais desviantes, práticas interpretadas como provas de um amor divino incondicional e piedoso às criaturas historicamente condenadas.

Seguindo a lógica de teóricos como Raoul Girardet, Maria Luiza Tucci Carneiro sustenta que o mito encontra-se na base das retóricas intolerantes

como a representação deturpada de fatos ou personagens reais que, repetida constantemente, induz o indivíduo a elaborar uma interpretação falsa de um momento histórico ou de um grupo. O mito induz a acreditar numa realidade que não é verdadeira e, desta situação, se valem os teóricos (...) a que interpretam os fatos reais de forma distorcida de acordo com os interesses do grupo a que servem. Tais idéias, no entanto, para se transformarem em práxis, necessitam de ter a sua disposição meios adequados de circulação: é quando a doutrina se manifesta como discurso.

Afirmamos assim que o discurso episcopal exacerbou tais pragmatismos agostinianos, repensando a questão judaica com base na mescla entre velhas e novas dicotomias, ambivalências e rótulos. Tais concepções sobre o real (Cristo-AntiCristo; bem-mal; céu-inferno; pureza-pecado; mundo sublime -mundo vil, saúde-doença, etc.) tornariam imóveis os papéis sociais então distribuídos, principalmente em relação ao problemas das conversões obrigatórias e suas prováveis resistências.

Nesse sentido, nos deparamos com um conjunto denso e complexo de alegorias, metáforas e falsos conceitos, que reforçam a hipótese do uso da linguagem como duplo instrumento de opressão, atuando em nível real e simbólico. Esse discurso de poder tornava o outro impotente perante as imagens construídas, pérfido em suas “invenções”, perdendo quaisquer possibilidades de aceitação ou de existência social / espiritual.

Sucessivos desterros, conversões forçadas, confisco de bens, punições físicas e assassinatos em massa; Aos cristãos/Cristandade, representados pelas Igrejas e Monarquias Européias, a teologia patrística articulada dos séculos IV ao VII legou a responsabilidade de expandir a verdade universal, salvando a humanidade de um mal supostamente presente e sempre ameaçador.

Nas epístolas de Agostinho redigidas aos heréticos do Norte da África (Donatistas, Pagãos e Judeus), os poderes benignos da Igreja, aliados às forças das leis imperiais, preocupados com o destino da humanidade, poderiam fazer uso da perseguição, textualmente definida como “prova de amor”.

No anseio de concretização do chamado “cristianismo militante”, converter ou exilar os elementos propagadores do mal seriam algumas das soluções vislumbradas. “Os filhos pagando eternamente pelos crimes de seus pais”: com esta expressão de Agostinho, a Igreja medieval encontrava legitimidade suficiente para desestruturar a existência judaica no mundo mediterrâneo.

Jean Delumeau, em seus estudos sobre o fenômeno do medo no Ocidente medieval, analisa também algumas das principais fontes do ódio ou da intolerância ao elemento judaico. Ao enfocarmos especificamente o mundo mediterrâneo da Alta Idade Média, esse ódio, que para o autor, seria um desdobramento do medo perante o desconhecido, manifestou-se, historicamente, em importantes componentes comportamentais.

Percebe-se a hostilidade da coletividade cristã – ou parte dela – frente a uma minoria tida como empreendedora, e considerada, acima de tudo, inassimilável. Conforme já destacara Carlo Ginzburg em alguns de seus trabalhos, o hibridismo e a diferença inerentes ao que denominamos como ethos judaico ultrapassariam, em nosso entendimento, aos limiares toleráveis de convivência cultural em sociedade.

As hostilidades supracitadas poderiam ser expressas, a exemplo, nas atitudes tomadas pelas instâncias formais e doutrinárias de poder. O medo aqui se manifestaria pela projeção da imagem do mal absoluto em sociedade sobre a figura do judeu empreendedor, resistente, e disseminador, via proselitismo, de uma fé já historicamente condenada. Esse mal, como será estudado a seguir, só poderia ser de fato extirpado caso frontalmente combatido.

Na literatura episcopal de origem hispano-visigoda, por exemplo, os recursos da invenção, da projeção e da generalização são amplamente utilizados para definir a marginalidade judaica do converso. Inseridos nas categorias de “povo deicida”, de “perfídia” e “mal absoluto”, os judeus batizados peninsulares – De Discretione Iudaeorum - tornavam-se efetivamente, uma questão a ser resolvida.

Lugares da resistência à intolerância: o Talmud e a literatura rabínica

Segundo Marc-Alain Ouaknin, “la question centrale du judaïsme est celle delínterpretation et le Talmud est le lieu du conflit des interpretation". Para todos os discursos intolerantes, encontramos expressões que se contrapõem aos esquemas de dominação instituídos. Assim, em meio aos aparentes silêncios dos sujeitos alvos da intolerância, é imperativo ao historiador contemporâneo conceder lugar para os chamados “discursos da resistência”.

A intolerância ao elemento judaico pode ser explicada, em muitos casos, como a não compreensão e oposição às visões de mundo produzidas pelo Judaísmo Rabínico (IV ao XVI), em sua expressão literária mais conhecida e difundida pelas comunidades judaicas em todo o mundo: o Talmud.

A historiografia medievalista até hoje permaneceu silenciosa quanto às inflexões da cultura rabínico-talmúdica sobre o universo social do judeus e dos conversos de origem judaica. Chegam sequer a apontar o Talmud como possibilidade para o estudo do anti-semitimo, latente entre os séculos VI e VII, ou antes, como fundamento filosófico e exegético da resistência dos judeus batizados.

Para Jacob Neusner, o Talmud marca a inserção de uma historicidade ocidental ao Judaísmo mishnaico, mais restrito ao mundo oriental da Palestina, sendo peça indispensável na análise da História do próprio Ocidente Medieval.

De difícil tipificação literária, o Talmud reúne 25 mil páginas de pensamento rabínico divididas entre 63 volumes temáticos, produzidos nos séculos IV e V d.C, por academias ao norte da Judéia e Babilônia. O Talmud pode ser compreendido como conjunto hermenêutico (Guemará), dialógico-reflexivo (Haggadah) e normativo (Halachá) de discussões sobre o real, o trascendental e o homem, enquanto código de éticas e lições de condutas judaicas em sociedade.

Sua polêmica heteroglossia, oposta a uma visão estritamente teológica de mundo, abriu espaço para uma subversão de ordens estabelecidas. Com seu teor interpretativo, podemos considerar que o Talmud ordenou e dinamizou simbolicamente as existências judaicas no medievo e na modernidade.

Podemos inclusive associar tais espaços de subversão, abertos pela literatura rabínica, à condição judaica de pária social, conforme propôs Anita Novinsky em ensaio sobre a censura e as minorias:

Durante milênios os judeus foram párias, animados por um sentimento do indeterminado, do heterodoxo. Eles formam um grupo que em potencial tinha todas as condições para se opor a uma ordem preestabelecida. Hannah Arendt reconheceu no judeu pária essa capacidade para recusar o mundo. Privados de seus direitos políticos, muitos judeus conseguiram libertar-se, mas apenas individualmente, como homens. Excluídos de toda participação política imediata, realizam essa integração por meio da arte e de sua própria criatividade, como artistas ou intelectuais rebeldes. O que é fundamental nessa tradição clandestina do judeu, sempre um ‘excluído’, é a força de sua posição crítica.” (NOVINSKY, 2002, p. 32)

A polissemia e a heteroglossia, adjetivações adequadas ao entendimento dos significados culturais do Talmud, também foram discutidas, em profundidade filosófica, por Emmanuel Levinas. O autor, em diversas leituras e interpretações de tratados do Talmud da Babilônia, buscou transmitir aos seus leitores que, longe do consenso esperado de textos ditos “moralizantes” ou “edificantes”, o Talmud constitui-se como conflito de interpretações sobre o real humano e a incomensurabilidade do transcendental, do divino.

O poder simbólico e heterodoxo inscrito nos comentários talmúdicos evidencia um sentido de “contra-revelação” ao propósito da teologia cristã, em textos que apresentavam diversas escolas filosóficas de pensamento, representadas pelos Rabis, dialogando sobre problemas de ordem ontológica, espiritual ou exegética, sem que necessariamente se alcançasse um resultado normativo.

No Talmud, como em toda a literatura rabínica circundante (Midrashim), o ato de discutir, manifestar o intelecto, suplantavam integralmente a tendência ao autoritarismo ideológico ou teológico. Esta dinâmica talmúdica veio então reforçar a autoridade dos Rabinos na diáspora judaica. As discussões enunciavam sempre a manutenção do locus central de irradiação do imaginário rabínico – a sinagoga. Contra essa instituição e suas práticas congregacionais, versaram algumas das principais homilias do bispo de Antioquia João Crisóstomo que, em 387 d.C, relacionou a Sinagoga à condição pecaminosa de promiscuidade sexual, corrupção e lascívia, estigmas sempre recorrentes no imaginário anti-semita europeu:

Muitos, eu sei, respeitam os judeus e pensam que seu atual modo de vida é digno de louvor. É por isso que desejo por ao chão tal opinião mortal. Eu disse que a sinagoga não era melhor do que um teatro (...); Lupanar e teatro, a sinagoga é também antro de salteadores e covil de bestas. (...) Vivendo para o ventre, a boca sempre escancarada, os judeus não se conduzem melhor que os porcos e os bodes, na sua lúbrica grosseria e no excesso de sua glutoneria. Só sabem fazer uma coisa: empanturrar-se e embriagar-se. (...) Porém, sob inúmeras circunstâncias, os judeus dizem que eles, da mesma maneira, respeitam a Deus. Deus proiba-me de dizer isso, nenhum judeu adora a Deus ! Quem o afirmou? O filho de Deus o afirmou! Por ter dito: ‘Se vocês quisessem conhecer meu Pai, deveriam conhecer a mim. Mas vocês não conhecem nem a mim, nem a meu Pai.’ Poderia eu citar um testemunho mais verídico do que o Filho de Deus? (MIGNE,1857, V. 48 E 49)

Emmanuel Levinas encontrou diversas alusões ao ímpeto libertário judaico tão temido por eclesiásticos medievais como João Crisóstomo. O Talmud alerta que o poder rabínico, como quaisquer outras formas de poder (políticos ou não) criadas pelos homens, poderia ser questionado, enfrentado, ou mesmo negado pela própria comunidade.

Importante textos talmúdicos abordam, em parábolas, a questão das relações sociais de produção à luz de princípios éticos que deveriam ordenar uma espécie de “convivência conciliatória” entre trabalhadores e senhores, estando esses últimos obrigados a reconhecer os direitos e a insubmissão do outro à lógica do mesmo. Em audaciosas passagens, Rabinos aconselham suas comunidades a nutrirem ódio e cautela pelo poder em sua natureza, e não se aproximarem jamais das autoridades políticas, consideradas evasivas e indiferentes aos problemas reais da população. Nos tratados Avot, Shabat e Pessachim, encontramos ainda a obrigatoriedade de contestação às ordenações de governos que por ventura, obrigassem seus súditos a cometer atos ilícitos, criminosos.

Nesse sentido, o Talmud referenda simbolicamente a possibilidade de um descontentamento social sobre uma ordem política considerada maléfica. Abre-se a possibilidade, no judaísmo rabínico, da recusa dessa ordem, ou antes, a recusa do poder do homem sobre o homem. Para o Talmud, aí residiria a raiz de todo o mal. Caso caracterizadas como opressoras ou corruptas, as autoridades poderiam ser renegadas, contestadas, ou mesmo substituídas por outras mais benéficas para a comunidade. Para a lógica talmúdica, se um líder fosse autoritariamente imposto, sem considerar o consenso da coletividade, estaria fadado ao fracasso.

O historiador Yehuda Bauer, em artigo intitulado “Anti-Semitism as an European and World Problem” entende que a consciência crítica de liberdade religiosa e política defendida pelos judeus da diáspora com base na literatura rabínica foi alvo, por séculos, de reações de incompreensão e rechaço. Para Bauer, a cultura judaica medieval erigiu três pilares éticos de base democrática, incompatíveis com as lógicas de poderes teocráticos, fundamentalistas, ou totalitários. Seriam eles:1) todos os homens são livres; 2) todos os homens são iguais, e as mesmas leis devem servir a todos; 3) todos os homens têm direito de reivindicar poder e criticar o soberano.

Para a relação entre Talmud, revolução e liberdade, Levinas, na mesma ótica de Bauer, afirma que a literatura rabínica, entre parábolas e alegorias, mostra-se intransigente em relação ao ócio e à paralisia social, tanto para aqueles que não saberiam recusar uma ordem política, ou mesmo sequer “questionar o ordem do Rei”.

Nesse sentido, por diversas vezes na História, o Talmud, foi considerado como literatura anti-cristã e diabólica. Sua leitura foi proibida, seus leitores banidos, e suas edições queimadas em praça pública, por imperadores, papas, monarcas europeus (medievais e modernos) e governos totalitários contemporâneos.

Sobre os judeus e o Talmud afirma Napoleão Bonaparte:

Os judeus são um povo vilão, poltrão e cruel. São lagartas, gafanhotos que devastam os campos. (...) O mal provém principalmente dessa compilação indigesta chamada Talmud, onde se encontra, ao lado de suas verdadeiras tradições bíblicas, a moral mais corrompida, a partir do momento em que se trata de suas relações com os cristãos. (...) Não pretendo subtrair à maldição com que foi fulminada essa raça que parece ter sido a única a ser excetuada da redenção, mas gostaria de deixá-la sem condições para propagar o mal (...). o bem é feito lentamente, e uma massa de sangue viciado só melhora com o tempo. (...) Quando entre cada três casamentos, houver um entre judeu e francês, o sangue dos judeus deixará de ter um caráter particular (...). (POLIAKOV, 1974, p. 196)

Sobre a censura à produção intelectual judaica, mesmo que religiosa, a reflexão da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro fornece alguns esclarecimentos:

a repressão às idéias e aos intelectuais integrou projetos políticos articulados em diferentes momentos da nossa história. (...) o intelectual ativo - aquele que escrevia e divulgava suas idéias ‘revolucionárias’ – sempre foi tratado pelas instituições vigilantes como um ‘herege’, um ‘homem maldito’, um ‘bandido’. Por ultrapassar os limites do permitido, foi repreendido, julgado e punido. Os livros apreendidos como ‘armas do crime’, transformaram-se em prova material da trama articulada contra o regime e que, segundo os homens do poder, poderiam desequilibrar a ordem imposta. (CARNEIRO, 2002, p. 20-21)

A título de conclusão parcial ao tema, entendemos que a violência, originária de sectarismos religiosos, seria o similar a um estado de ódio socialmente instituído e quase incontrolável. Para pensadores como o escritor e acadêmico argelino Mohammed Arkoun, quando a intolerância é substituída pelo ódio não haveria mais volta, exatamente porque os discursos passariam a adotar três critérios que, somados, seriam fatais para o diálogo entre os homens: violência, sagrado e verdade.

Esse tripé elaborado pelo sectarismo religioso, faz a intolerância assumir o poder de um mito, e como todo mito, adquire feições perenes e deixa as sociedades que a construíram marcadas para sempre. É um quadro desalentador para todos nós, porque corrobora a hipótese de ser o anti-semitismo, um fenômeno historicamente renitente. Fenômeno que parece adquirir sempre novas roupagens, parece supostamente justificar-se com “novas causas”, mas na realidade, reacende velhos estigmas profundamente arraigados ao imaginário social, sem perspectivas de extinção.