A vida de Jesus Cristo apresentada no Novo Testamento consiste numa
transposição detalhada do mito egípcio dos deuses Osíris e Hórus,
conseqüentemente não podendo ser caracterizada como verdade histórica.
Inicialmente, o autor descreve e comenta o que é possível se conhecer acerca do
mito de Osíris e Hórus principalmente a partir das fontes originais
hieroglíficas e pictográficas. Em seguida, examina os principais argumentos
utilizados pelos defensores da idéia de um “Jesus mítico” derivado dos relatos
religiosos do antigo Egito. O objetivo central do trabalho é o de verificar a
plausibilidade de tais argumentos, analisando se realmente são válidos como
prova de que o Jesus dos Evangelhos é, na verdade, um mito.
Em junho de 2007 foi lançado no serviço Google Vídeo da Internet um
documentário independente denominado Zeitgeist, produzido pelo
diretor norte-americano Peter Joseph. Devido ao seu
conteúdo agressivo, polêmico e intrigante, tornou-se, em poucos meses, um
fenômeno de audiência (8 milhões de acessos somente até novembro daquele ano).
O filme se divide em duas partes, a primeira das quais foi
ironicamente intitulada “The Greatest Story Ever Told” (A Maior
História Já Contada), em referência a uma das mais célebres obras
cinematográficas sobre a história de Jesus Cristo. Nessa seção o diretor
trabalha a idéia de que o Jesus divino da fé cristã é um híbrido literário,
astrológico e mitológico. De acordo com o filme, a biografia de Jesus nos
evangelhos canônicos teria sido construída a partir da junção de aspectos
variados de uma grande quantidade de lendas da antigüidade. A tese do autor é a
de que o culto a Jesus faz parte de um estratagema especificamente forjado nos
primeiros séculos da era cristã pelas autoridades seculares e religiosas com o
intuito de sujeitar e explorar os povos.
O presente artigo pretende explorar um dos mais importantes mitos
relacionados pelo documentário Zeitgeist como prototípicos
da história de Jesus descrita nos evangelhos: a lenda egípcia dos deuses Osíris
e Hórus. A primeira parte do trabalho contém uma tentativa de reconstrução do
mito egípcio a partir das fontes originais hieroglíficas e pictóricas
disponíveis na atualidade pelo esforço de arqueólogos e egiptólogos. Também são
aproveitadas observações de diversos autores especializados em mitologia
egípcia.
Traçado o resumo do mito de Osíris e Hórus em seus aspectos mais
importantes, o artigo investiga, na seqüência, os principais argumentos
utilizados na defesa de que a história do Jesus adorado pelos cristãos deriva
da narrativa egípcia, cujos registros são vários séculos mais antigos do que os
evangelhos. A análise pretende levantar o que existe de plausível nessas
colocações e o que pode ser descartado a partir da comparação dos aspectos de
uma narrativa com os da outra. O objetivo final é o de verificar se os
argumentos são válidos como prova de que o Jesus dos evangelhos é, na verdade, um
mito.
O principal expoente dentre os autores que advogam a tese do “Cristo
mítico” com base no estudo do mito de Osíris e Hórus, é o egiptologista inglês Gerald Massey, cujos argumentos
foram publicados, pela primeira vez, no final do século 19. Três obras suas são
citadas como fontes para o documentário Zeitgeist. Outros
estudiosos que igualmente se opõem à veracidade histórica do Jesus da fé devido
à suposta derivação da narrativa egípcia também foram pesquisados para este
artigo, mas como suas colocações praticamente transcrevem o material produzido
de antemão por Massey, a análise tomou como objeto majoritariamente a obra
deste último autor.
O tema é, sem dúvida, importante para os dias de hoje. O cristianismo é
a maior religião do planeta em número de adeptos. Sua legitimação depende da
total veracidade dos eventos da vida de Jesus Cristo narrados nos evangelhos,
tornando-se óbvias as implicações de uma desconstrução da unidade narrativa
evangélica que revele a história bíblica como não passando de expressão mítica.
Diante da acusação feita contra o cristianismo como sendo um instrumento de
controle e coação das massas, usado pelos poderes políticos e eclesiásticos, torna-se
extremamente relevante verificar se a história que serve de base àquela
religião é verossímil e merece confiança.
Uma tentativa de reconstrução do mito
de Osíris e Hórus
O culto funerário do deus Osíris, no qual o deus Hórus e outras
divindades do panteão egípcio tomam parte relevante, ganhou enorme
preponderância no Egito a partir da fase histórica denominada de Médio Império
(2160-1580 a.C.). Ele enfatiza dois dos elementos mais especialmente focados
pela religiosidade humana: a ressurreição e o juízo pós-morte.
Antes que se esboce aqui o mito em questão, será extremamente útil para
o propósito deste trabalho esclarecer que a literatura religiosa do antigo
Egito foi trazida à luz de forma bastante fragmentária pelas descobertas
arqueológicas, e, portanto, não apresenta uma conveniente sistematização das
narrativas mitológicas desenvolvidas nessa região em passado tão distante, que
remonta a milhares de anos antes de Cristo. Em não poucos casos, do estudo e
comparação dos textos encontrados nos papiros, paredes, colunas e objetos
extrai-se significação enigmática ou mesmo algum grau de contradição entre as
informações. Para uma idéia dessa dificuldade, observem-se os seguintes
comentários:
Os Textos da Pirâmide exprimem quase exclusivamente
as concepções relativas ao destino do rei depois da morte. Apesar do esforço
dos teólogos, a doutrina não está perfeitamente sistematizada. Descobre-se certa
oposição entre concepções paralelas e, por vezes, antagônicas.
As grandes composições religiosas, tais como o Livro dos Mortos, chegaram até nós
num triste estado e estão cheias de enigmas; a sua fraseologia, as suas
metáforas extravagantes, os seus jogos etimológicos se chocam, quando não são
ininteligíveis ou destituídos de sentido. Muitas figuras divinas foram
transformadas pela mitologia até ficarem irreconhecíveis.
Tal situação por si já constitui uma barreira colossal à tentativa de
encontrar uma contrapartida no mito egípcio de Osíris e Hórus para os diversos
detalhes da vida de Jesus. Destacado esse ponto, passa-se agora à recuperação
do mito egípcio em suas linhas gerais.
Osíris e Hórus eram, em princípio, adorados como divindades solares. Há
vários exemplos de representação desses deuses tanto identificados com o disco
solar, quanto levando o disco solar sobre a cabeça. Além disso, freqüentemente
esses deuses são tomados um pelo outro.
A narrativa do mito osiriano pode ser reconstituída apenas
de forma fragmentária a partir das fontes antigas, principalmente dos textos e
imagens do chamado Livro dos Mortos. Esses textos apresentam Osíris como
sendo previamente mortal e tendo sido assassinado pelo seu invejoso irmão, o
deus Set. Ísis é a esposa sofredora que localiza o corpo sem vida do marido e
coabita com ele por meio de feitiçaria, concebendo uma criança: o deus Hórus.
Esse filho é criado pela deusa longe das vistas de Set, em um lugar secreto
entre os pântanos de papiro do delta do Nilo.
Novo ato do drama tem início quando Set, descobrindo o esconderijo,
aprisiona mãe e filho em uma casa, da qual ambos escapam ajudados pelo deus Thot. Em sua fuga, são
protegidos por sete escorpiões, um dos quais pica seu filho, que vem a morrer.
Então ela e sua irmã Néftis clamam a ajuda do deus Rá, o qual envia Thot com
palavras mágicas que restauram Hórus à vida e à saúde.
Interessante como possa parecer, a lenda da ressurreição de Hórus é um
episódio periférico em relação ao ponto central do mito: a ressurreição de
Osíris. Certos autores sugerem que a força de apelo do mito está na crença de
que Osíris fora inicialmente um ser humano (o rei do Egito, conforme a
exposição de Plutarco) que foi morto de maneira vil, mas ressuscitou para ser o
senhor supremo do mundo inferior, o grande juiz dos mortos.
Uma tradição sobre a ressurreição de Osíris informa que seu corpo foi
reconstituído por Ísis, Hórus e Anúbis, agindo sob instruções do deus Thot:
Boa porção de cerimônias mágicas parecem ter sido introduzidas no
processo, as quais, por sua vez, passaram a ser utilizadas pelos sacerdotes no
caso de todo egípcio morto em conexão com o embalsamamento e sepultamento do
morto na esperança da ressurreição. Osíris, entretanto, foi reputado como a
causa principal da ressurreição humana, sendo ele capaz de conferir vida após a
morte por havê-la alcançado.
Com relação ao retorno de Osíris à vida, é notável a ênfase dada ao
respeito filial de Hórus pela memória do pai assassinado, atitude cuja
lembrança conquistou muita honra entre os egípcios. Saussaye informa que foi
Hórus quem fixou os detalhes da mumificação do deus, estabelecendo o padrão
para todo filho egípcio piedoso. A esse respeito, ele foi considerado o
“auxiliador dos mortos” (tal como havia sido o auxiliador de Osíris), e tido
como o mediador entre eles e os juízes do Duat. Assim, os seres
humanos passaram a ansiar pela assistência de Hórus após a morte como guia ao
mundo inferior, e também por sua atuação como mediador no juízo a favor deles.
Após a ressurreição de Osíris, ocorre uma batalha entre Hórus e Set pelo
trono do falecido rei. Essa batalha é vencida por Hórus, que então desce à
terra dos mortos para dar a Osíris a boa notícia de sua coroação como legítimo
sucessor do pai.
Finalmente, há um aspecto bastante interessante em relação à morte de
Osíris e a vitória de Hórus sobre as forças do mal, encarnadas em Set. A
história de Osíris e Hórus era reencenada em cada processo de morte e sucessão
do rei no trono do Egito. No entanto, Osíris progressivamente tornou-se o
modelo exemplar não somente para os soberanos, mas também para cada indivíduo.
Seguindo o seu exemplo, os falecidos conseguem transformar-se em “almas”, ou
seja, em seres espirituais perfeitamente integrados.
Análise da comparação de Jesus com
Osíris e Hórus
Traçado um esboço geral do mito de Osíris e Hórus em seus aspectos mais
importantes, passa-se agora à menção e análise dos principais argumentos pelos
quais diversos autores têm proposto que a narrativa encontrada nos evangelhos
acerca de Jesus Cristo deve ser encarada como uma recuperação posterior do mito
egípcio.
Para S. Brandon, “em termos de fenomenologia das religiões, Osíris é uma prefiguração
de Cristo como deus morto e ressuscitado, e como salvador, embora sua morte não
fosse interpretada em sentido soteriológico”. De acordo com esse argumento,
retomando o mito do deus Osíris – que passou pelo estágio humano, foi morto de
maneira violenta e ressuscitou, passando a ser o juiz-salvador da humanidade –,
os evangelhos também apresentariam um deus-homem (Jesus Cristo) que morre de
forma chocante e ressurge para ser juiz-salvador do mundo.
Seria incorreto negar a existência de certa semelhança. No entanto,
alguns contrastes em detalhes fundamentais de ambas as histórias são
irreconciliáveis:
1) No mito egípcio, Osíris é filho de uma divindade inferior, Geb (o
deus da terra), amante de Nut, que é a esposa infiel de Rá, o chefe supremo dos
deuses. Outros quatro irmãos gêmeos são com ele gestados – Ísis, Néftis,
“Hórus, o ancião”, e Set, sendo que Ísis é a consorte de Osíris desde o ventre
materno. De Osíris e Ísis nasce o deus “Hórus, o filho”, enquanto o deus Anúbis
nasce de um relacionamento extraconjugal de Osíris com sua irmã Néftis. Esse
complicado emaranhado politeísta no qual Osíris se encontra envolvido, bem como
a marcante atribuição aos deuses de caracteres naturalistas e de paixões humana
inferiores – especialmente do sexo adúltero e incestuoso – destoa radicalmente
da singularidade exclusivista e da moralidade de Cristo nos evangelhos. Ele é
descrito como Deus, junto com Deus-Pai (João 1:1-3), e, em sua encarnação, como
o único de sua espécie (do grego monoguenês, cf. João 3:16).
Quanto a Ele não há referência a consortes ou descendentes, pois sua
encarnação se deu pelo propósito específico da redenção do mundo (João 3:17).
Sua ética conjugal exclui a possibilidade do adultério como algo tolerável
entre os homens (Mateus 19), do que se deduz que tal prática é incompatível com
a divindade.
2) O Osíris “humano” antes do assassinato é identificado com o
primeiro faraó do Egito, responsável pela organização do reino temporal. Mas
Jesus Cristo, em sua encarnação, nasce e é criado no modesto ambiente de uma
família judaica pobre. Em nenhum momento de sua vida e ministério terrestres
Ele reivindica para si trono temporal, uma vez que seu reino não estaria neste
mundo, sendo de outra natureza (João 18:36).
3) A mais importante diferença entre Osíris e Jesus Cristo diz
respeito à missão soteriológica de cada um. Não há espaço para a doutrina da
expiação do pecado no culto egípcio, enquanto ela é o ponto central da religião
judaico-cristã. Osíris é enganado e assassinado por seu irmão Set, ao passo que
Jesus Cristo é senhor de sua morte, conhecendo-a de antemão e voluntariamente
rumando em direção a ela. Osíris é salvador da humanidade apenas no sentido da
sua ressurreição, que abre precedente para as demais ressurreições;
relativamente à sua fase humana não há referência a qualquer missão redentiva,
e, ao tornar-se o grande juiz dos mortos no mundo inferior, outros deuses é que
defendem a alma do defunto perante ele. Por outro lado, a salvação provida por
Cristo é bem mais ampla: Ele sela sua posição como salvador do mundo por
ocasião da consumação de sua morte, a qual substitui a humanidade culpada no
castigo pelos pecados, apagando-os (1 Coríntios 15:3); pela graça de Deus os
seres humanos que confessam seus pecados e aceitam o sacrifício expiatório de
Cristo são tornados justos e, por ocasião do juízo, poderão comparecer
irrepreensíveis perante a divindade (1 João 1:9); a obra salvífica de Jesus
prossegue no Céu após a sua ressurreição, onde Ele realiza um ministério
intercessor a favor dos pecadores com base ainda no seu sacrifício (Hebreus
7:25). No culto osiriano, por outro lado, sem o benefício da expiação, o
falecido simplesmente tem suas obras pesadas numa balança diante de Osíris pelo
deus Anúbis.
4) Decorrendo da questão exposta acima, emerge uma quarta
divergência: no Livro dos Mortos não existe uma única linha que
permita supor a possibilidade de a alma vir a se perder por ocasião do juízo.
No Novo Testamento, ao contrário, a previsão de perdição eterna para os que não
aceitarem o plano divino é constante e incisiva (Mateus 25:31-46; Marcos 16:16;
2 Tessalonicences 1:7-9).
Outro argumento diretamente relacionado a Osíris vem do professor de
mitologia comparada Joseph Campbell, e é, para dizer o mínimo, indigno
do renome desse especialista. Sempre tomando como base o texto de Plutarco (De Iside et
Osiride), o autor sugere que a transformação de Ísis em andorinha
– quando esta sobrevoa com lamentações a árvore que envolve o sarcófago com o
corpo de Osíris recém descoberto – constitui uma antecipação da imagem do
Espírito Santo descendo, corporificado numa pomba, sobre Jesus no seu batismo.
O fundamento para tal analogia é por demais frágeis.
Não é apenas com Osíris que Jesus Cristo é comparado. Muitas colocações
que vinculam a narrativa evangélica à religião egípcia se centralizam na figura
de “Hórus, o filho”. Antes de abordá-los será proveitoso considerar uma
observação mencionada pelo erudito ateu John G. Jackson, destacado
defensor da idéia do “Cristo mítico”:
“Em linhas gerais, o deus-sol Hórus pode ser distinguido de seu
homônimo, o filho de Osíris, pela posse de certos títulos que variam de acordo
com as províncias ou cidades nas quais ele era adorado. Com o passar do tempo,
cada uma das diferentes formas do deus-sol Hórus, diferenciada das outras por
um distinto epíteto, veio a ser considerada como uma divindade independente, e
freqüentemente encontramos muitas divindades duplicadas sendo adoradas
contemporaneamente, como se elas não tivessem relação uma com a outra, em
períodos posteriores da história do Egito.”
A consideração acima leva à conclusão de que a recuperação na atualidade
do mito original de Hórus, dada a diversidade de formas (com suas
características peculiares) desse deus adoradas pelos egípcios ao longo dos
séculos, é tarefa complicadíssima que não pode ser satisfeita senão de modo
imperfeito. Feita essa ressalva, continua-se a análise.
Para começar, Campbell afirma que a figura de Maria como mãe da criança
salvadora já era encontrada na história de Ísis e Hórus. “O antigo modelo para
a Madona, na verdade, é Ísis amamentando Hórus”, diz o especialista em
mitologia comparada. Tal afirmação merece crédito, pelo menos em parte. É fato
arqueologicamente comprovado que o culto à deusa Ísis foi incorporado à
religião romana e sobreviveu até o início da oficialização do cristianismo por
Constantino, no quarto século d.C., havendo templos dedicados à deusa Ísis em
cidades como Roma e Pompéia. Quando o culto a Maria, fundado em
premissas extra-bíblicas, começou a estabelecer-se em definitivo na igreja
cristã do início da Idade Média, ele acabou por incorporar certos elementos
do culto de Ísis e de outras deusas, e, de certa forma, passou mesmo a
identificar-se com esses cultos. Dessa forma, não é extraordinário que as
esculturas medievais da virgem Maria amamentando o menino Jesus guardem grande
semelhança com as esculturas de Ísis amamentando seu filho Hórus. No entanto,
esse sincretismo tardio não pode ser usado como evidência de que a história do
nascimento de Jesus é uma repetição modificada da história do nascimento de
Hórus, já que a adoração a Maria é uma prática estranha à Bíblia. Quanto à
identificação de Maria com Ísis com base no fato de haver engravidado de Deus,
três aspectos enfraquecem significativamente o argumento: 1) a diferença
brutal entre a forma como aconteceu a concepção em cada uma das narrativas; 2) o fato de que
Maria dos evangelhos é a humilde serva humana que aceita passivamente uma
determinação divina, enquanto Ísis é uma poderosa deusa que deliberadamente
coabita com um deus em estado de passividade; e3) Maria é uma
virgem ainda não desposada, enquanto Ísis é a esposa que já vivia maritalmente
com seu esposo divino antes que Set o matasse.
Considera-se, a partir de agora, os principais pontos abordados na
comparação do evangelho com o mito osiriano feita por Gerald Massey,
ferrenho promotor da tese de que o culto a Jesus Cristo é uma continuação da
religião solar egípcia. Um dos primeiros argumentos que figuram em Ancient
Egypt, Light of the Worlddirige a atenção para a iconografia cristã
primitiva e medieval, que consagrou as imagens de Jesus (e, evidentemente, de
Maria e dos diversos outros santos) com o halo redondo de luz sobre a cabeça, o
que seria uma reminiscência do disco solar sobre a cabeça de Rá e Hórus. Há
grande probabilidade de o argumento, como no caso anterior, ser procedente, mas
apenas em relação à religião cristã desenvolvida a partir do século quarto, não
à dos tempos apostólicos. Pode-se assegurar documentalmente que Constantino
cristianizou o Império Romano por meio da fusão da religião de Cristo com o culto
aos deuses tradicionalmente venerados pelo povo. Dessa forma, à semelhança do
que ocorreu no caso de Maria, o culto à divindade solar foi perpetuado no
império através da adoração a Jesus Cristo. Uma vez que a cultura religiosa
romana havia assimilado elementos do culto egípcio, não é difícil admitir que
alguns desses elementos, quando efetuada a mescla com o cristianismo, tenham
realmente sido transferidos à pessoa divina de Cristo. Mas vale ressaltar uma
vez mais: tal sincretismo, muito posterior ao relato dos evangelhos, não pode
ser usado como argumento comprometedor da veracidade histórica da narrativa da
vida de Jesus.
Alguns raciocínios de Massey são tão complicados – e, por vezes,
inusitados –, que se tornam difíceis de acompanhar. Por exemplo, ele assegura
que a palavra grega Cristós (ungido) deriva de uma
antiga palavra egípcia para múmia, krst. Sua pretensão é a de que o
ritual do embalsamamento e mumificação, que encontra no mito do deus-defunto
Osíris seu grande modelo e protótipo, é repetido simbolicamente na unção de
Jesus em duas ocasiões: em seu batismo e, mais especialmente, no episódio da
unção em Betânia (Marcos 14:1-9), no qual o próprio Cristo afirma que Maria
Madalena o havia ungido para a sua sepultura (v. 8). Massey acredita que, assim
como a mumificação (processo no qual se utilizava grande quantidade de óleos
aromáticos) prenunciava no mito egípcio a ressurreição luminosa de Osíris como
rei-juiz e a inauguração do ministério de guia e intercessão de Hórus,
igualmente na história “mítica” de Jesus sua unção abre para Ele o caminho para
uma nova e luminosa fase divina a partir da ressurreição.
Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que a palavra Cristós é
o termo grego utilizado como sinônimo para a palavra hebraica Mashiah (Messias,
ungido), que, em diversas passagens do Antigo Testamento, refere-se à pessoa de
Cristo com séculos de antecipação. Mesmo que se pudesse comprovar de forma
cabal (e não é) uma derivação etimológica do termo grego a partir da palavra
egípcia, isso não seria evidência comprometedora do evangelho, pois Cristós
é apenas o sinônimo para a palavra hebraica mais antiga. Em segundo lugar,
o autor parece tentar encaixar de forma um tanto forçada os detalhes da
narrativa dos evangelhos no ritual de mumificação de Osíris. Entretanto, ambos
os episódios citados por Massey possuem nos evangelhos significação toda
particular, e as delicadas nuances envolvidas em cada um deles reduzem
sensivelmente a possibilidade de que derivem do mito da unção da múmia
osiriana.
Outro ponto em que Massey insiste repetidamente é o de que Hórus no mito
aparece em dois estágios de idade, infante e adulto, sem que haja qualquer
menção do que ocorreu no período transcorrido entre esses estágios. “Era um
mistério genuinamente egípcio o de um menino que, aos 12 anos de idade
transforma-se, de repente, em um adulto de 30”, afirma o egiptólogo, tentando
estabelecer um vínculo com o fato de a Bíblia silenciar quanto aos eventos
transcorridos durante os anos da juventude e início da maturidade de Jesus.
Como ele pode saber, entretanto, que o Hórus do mito tinha exatamente 12 anos
quando foi restaurado à vida (o último evento mencionado antes que ele apareça
como o vingador de seu pai) e 30 quando de sua batalha contra Set?
Aparentemente, o autor está apenas especulando ao explorar de modo forçado uma
coincidência que parece secundária.
Também se afigura como pura especulação a denúncia feita por Massey de
que a história de Jesus é um híbrido literário onde teriam sido enxertados
certos aspectos da astrologia egípcia, à qual o mito osiriano se encontrava
amalgamado. Para o autor, a escolha do número 12 para quantificar os discípulos
que acompanharam Jesus em seu ministério indica uma clara referência dos
escritores dos evangelhos aos signos do zodíaco egípcio. Massey afirma que
Hórus, como o deus solar, é a figura central do esquema astrológico,
funcionando como um “professor” dos outros deuses. Suas considerações podem ser
sintetizadas no seguinte trecho:
“Nós queremos, então, mostrar que os típicos 12, chamados apóstolos ou
discípulos, numa linguagem mais antiga, originaram-se de 12 personagens que
representavam doze poderes estelares na mitologia astronômica, aos quais foram
dados tronos para serem governantes em 12 signos do zodíaco ou no céu. Estes
são designados como os 12 preservadores ou salvadores do tesouro da luz. Eles
formam o ciclo de 12 deuses menores em torno do deus-sol no cume do monte.”
A fragilidade da argumentação astrológica acima descrita é flagrante,
uma vez que o aparecimento do horóscopo é tardio no Egito. Foi apenas no
período dos Ptolomeus (323 a 31 a.C.) que os egípcios adotaram o esquema
astrológico do zodíaco babilônico, e isto pela via indireta grega. É impossível
indicar com exatidão – e isto o próprio Massey reconhece – os deuses do panteão
egípcio que compunham o zodíaco, pois os vestígios arqueológicos apontam em
diversas direções. Assim, ora temos Hórus incluído na lista, ora fora dela. Rá está
presente em algumas representações, em outras não. A lista sugestiva de Massey
exclui Thot, que, no entanto, aparece em diversos círculos zodiacais. Não se
pode afirmar com segurança, portanto, que o Jesus dos evangelhos é o Hórus
solar do zodíaco egípcio.
Diversos argumentos na obra de Massey não podem ser levados a sério, tão
desprovidos estão de fundamento sensato. Uma última colocação do autor,
no entanto, merece ser explorada: com base no mito osiriano recontado por
Plutarco, o autor defende que assim como a morte de Osíris é precedida pela
traição executada por alguém muito próximo a ele (seu irmão gêmeo Set), também
a morte de Jesus é precedida nos evangelhos pela traição perpetrada por alguém
muito próximo (seu discípulo Judas). Ainda de acordo com ele, ambos os
traidores desejam auferir vantagem de seu reprovável ato, e, em ambas as
narrativas, a traição acontece em meio a um banquete, que é a “última
ceia”. Não se pode negar que haja similaridades, como também não se deve
ignorar a probabilidade de tais semelhanças constituírem meras coincidências, e
não necessariamente impliquem numa recontagem da história anterior. De qualquer
modo, existem diferenças marcantes nesse caso: 1) Set trama e
executa a morte de Osíris, enquanto Judas trai seu mestre sem vistas à sua
morte; 2) no mito egípcio não há em Set, ao ocupar o trono do irmão morto, o
mínimo traço de consciência pesada, enquanto a história do remorso e suicídio
de Judas é um evento importante nos evangelhos; e 3) o banquete dos
deuses referido por Plutarco, na medida em que é uma ocasião de lazer festivo
regado a muita bebida embriagante, parece diametralmente oposto à singela,
restrita e reverente ceia pascal que antecede a prisão de Jesus, cujo
significado espiritual é um aspecto vital no Novo Testamento.
Conclusão
A comparação da história de Jesus narrada nos evangelhos com a história
de Osíris e Hórus destacada na religião do Egito permite concluir o seguinte:
as tentativas de atribuir ao relato neo-testamentário a condição de
transposição literária do antigo mito egípcio simplesmente não se sustentam.
Em primeiro lugar, o mito egípcio tal como era conhecido na época do
Antigo Império não se deixa recompor senão de modo muito fragmentário e cheio
de lacunas. Diferentes tradições do mito desenvolveram-se paralelamente e
sabe-se que, ao longo dos séculos, o mito sofreu alterações que muito
provavelmente devem ter contribuído para descaracterizar sensivelmente a
história original. O único relato contendo uma sistematização do mito provindo
da antigüidade é uma obra tardia do primeiro século d.C. para descaracterizar
sensivelmente a história original.
Em segundo lugar, muitos dos argumentos utilizados pelos advogados da
idéia do “Jesus Mítico” concentram-se em aspectos de uma fase da religião
cristã em que os princípios bíblicos sofreram um processo de mescla com
elementos da cultura religiosa do Império Romano, à qual, por sua vez, já se
haviam amalgamado diversos aspectos cultuais de outras nações, inclusive a
egípcia. Nesse caso, a presença de certos detalhes da religião egípcia
misturadas ao culto cristão após o quarto século não servem de argumento válido
contra a veracidade histórica da narrativa da vida de Jesus segundo aparece nos
evangelhos.
Finalmente, a análise das comparações específicas dos eventos narrados
no Novo Testamento com o mito egípcio de Osíris e Hórus revela muita
especulação e conclusões mal fundamentadas por parte dos defensores da tese do
“Jesus mítico”. Gerald Massey, que, mais de um século após a sua morte,
continua sendo o grande expoente desse grupo traçou paralelos tão forçados, que
chegam a ser absurdos. Quando algumas das semelhanças por ele apontadas
realmente procedem em relação a um evento ou doutrina, têm-se, ao mesmo tempo,
diversos outros aspectos tão completamente diferentes, que relegam aquelas
similaridades ao terreno das coincidências. Além disso, dentro da bibliografia
pesquisada para este artigo, uma leitura das obras que apresentam o Jesus
divino do cristianismo como derivando do mito osiriano (desde Massey no século
19, até, por exemplo, Tom Harpur, que ainda vive nos dias atuais), revela uma
característica marcante em todas elas: a quase total ausência de referências às
fontes documentais originais.
Sendo assim, o presente estudo permite concluir que a veracidade
histórica dos eventos narrados nos quatro evangelhos do Novo Testamento acerca
da vida de Jesus Cristo, adorado como Deus pelos cristãos durante os últimos 2
mil anos de história, não pode ser contraditada com base na comparação entre
esses eventos e a mitologia egípcia.