O sacrifício humano é um tema mórbido e assustador para o homem moderno, posto que de difícil compreensão. Analisarei o pensamento dos povos antigos ao conceber a imolação de um ser humano num ritual religioso. Farei uma comparação entre Israel e Grécia. Analisarei o caso do sacrifício dos sete filhos do rei Saul, próximo ao final do reinado de seu sucessor, o rei Davi, em paralelo com os ritos catárticos gregos, especialmente o do mago Epimênides. Buscando, pelo método da história comparada, conceitos que ajudem a responder o difícil caso israelita: O único sacrifício humano recebido por YAWEH no Antigo Testamento. Analisando os conceitos gregos de míasma e fármakon, os quais serão úteis para entender este obscuro caso. Será interessante notar como tanto em Israel, como na Grécia, o sacrifício humano se inscreve numa tradição legal. Assim, estarei tratando de dois casos de sacrifício humano que seguem as leis antigas e não de casos marginais ou ilegais de sacrifício humano.
Os objetivos serão: 1) Estudar um pouco da extensa teoria geral do sacrifício, que seja útil ao nosso tema; 2) Compreender o sacrifício dos sete filhos de Saul de acordo com uma interpretação lógico-sistemática da Bíblia Sagrada; 3) Comparar o sacrifício humano em Israel e na Grécia; 4) Analisar os conceitos de míasma e fármakon, esboçando comparações; 5) Importar conceitos gregos de sacrifício para Israel, a fim de entender o pensamento dos antigos a respeito de sacrifício humano.
Embora a História envolva sempre um retorno ao passado como conseqüência lógica deste estudo, o tema tem relevância atual. Ouvimos falar de sacrifícios humanos em ritos satanistas, especialmente na África do Sul, a qual possui uma delegacia especializada para resolver tais assuntos. Tem-se conhecimento também de casos de auto-imolação no Islamismo com os homens bomba, conforme amplamente divulgado na mídia. Assim, justifica-se o tema pela sua relevância para compreensão de fenômenos atuais.
O problema que se levanta só pode ser entendido a partir do texto base, o qual passo a citar: 1- E houve, em dias de Davi, uma fome de três anos, de ano em ano; e Davi consultou ao Senhor, e o Senhor lhe disse: É por causa de Saul e da sua casa sanguinária, porque matou os gibeonitas. 2- Então, chamou o rei dos gibeonitas e lhes falou (ora os gibeonitas não eram dos filhos de Israel, mas do resto dos amorreus, e os filhos de Israel lhes tinham jurado, porém Saul procurou feri-los no seu zelo pelos filhos de Israel e de Judá). 3- Disse, pois, Davi aos gibeonitas: Que quereis que eu vos faça? E que satisfação vos darei, para que abençoeis a herança do Senhor? 4- Então, os gibeonitas lhe disseram: Não é por prata nem ouro que temos questão com Saul e com sua casa; nem tampouco pretendemos matar pessoa alguma em Israel. E disse ele: Que é, pois, que quereis que vos faça? 5- E disseram ao rei: Quanto ao homem que nos destruiu e procurou que fôssemos assolados, sem que pudéssemos subsistir em termo algum de Israel, 6- de seus filhos se nos dêem sete homens, para que os enforquemos ao Senhor, em Gibeá de Saul, o eleito do Senhor. E disse o rei: Eu os darei. 7- Porém o rei poupou a Mefibosete, filho de Jônatas, filho de Saul, por causa do juramento do Senhor, que entre eles houvera, entre Davi e Jônatas, filho de Saul. 8- Porém tomou o rei os dois filhos de Rispa, filha de Aiá, que tinha sido de Saul, a saber, a Armoni e a Mefibosete, como também os cinco filhos da irmã de Mical, filha de Saul, que tivera de Adriel, filho de Barzilai, meolatita. 9- E os entregou na mão dos gibeonitas, os quais os enforcaram no monte, perante o Senhor; e caíram estes sete juntamente; e foram mortos nos dias da sega, nos primeiros dias, no princípio da sega das cevadas. 10- Então, Rispa, filha de Aiá, tomou um pano de cilício, e estendeu-lho sobre uma penha, desde o princípio da sega, até que destilou a água sobre eles do céu, e não deixou que as aves do céu se aproximassem deles de dia, nem os animais do campo de noite. 11- E foi dito a Davi o que fizera Rispa, filha de Aiá, concubina de Saul. 12- Então, foi Davi e tomou os ossos de Saul, e os ossos de Jônatas, seu filho, dos moradores de Jabes-Gileade, os quais os furtaram da rua de Bete-Seã, onde os filisteus os tinham pendurado, quando os filisteus feriram a Saul em Gilboa. 13- E fez subir dali os ossos de Saul e os ossos de Jônatas, seu filho; e ajuntaram também os ossos dos enforcados. 14- Enterraram os ossos de Saul e de Jônatas, seu filho, na terra de Benjamim, em Zela, na sepultura de Quis, seu pai, e fizeram tudo o que o rei ordenara; e, depois disso, Deus se aplacou para com a terra. ”
Lanço aqui duas questões norteadoras para o trabalho, a fim de esclarecer o problema. Em primeiro lugar, deve-se questionar por que Deus aceitaria um sacrifício humano se na Sua Lei havia a proibição do sacrifício de crianças a Moloque: “E da tua semente não darás para a fazer passar pelo fogo perante Moloque; e não profanarás o nome de teu Deus. Eu sou o Senhor”.
Este era o terrível sacrifício de crianças imoladas nos braços aquecidos da estátua de bronze. Neles, a pele e as carnes das crianças se dissolviam no calor do metal, causando morte horrenda. Todo o culto a Moloque ou Moleque foi proscrito em Israel pelo seu caráter cruel. Tal deus também era conhecido como o “príncipe do vale das lágrimas”.
Além dessa primeira questão, devemos saber, em segundo lugar, por que o crime de Saul foi punido nos filhos, se havia na Lei o princípio jurídico da incontagibilidade da pena “Os pais não morrerão pelos filhos, nem os filhos, pelos pais, cada qual morrerá pelo seu pecado”.
Lembremos que a proibição de não sacrificar filhos estava inscrita na Lei Mosaica, localizada no capítulo concernente às uniões abomináveis, sendo parte do Direito de Família. Recordemo-nos de que o princípio jurídico da incontagibilidade da pena é próprio do Direito Penal. Temos de saber ainda, que os conceitos de crime e pecado só foram separados na Revolução Francesa. Neste período da História, devemos analisar a religião e o direito de forma conectada. Assim, o sacrifício humano passa a ser para nós um problema de direito e não somente de religião antiga.
Este é um texto realmente intrigante e profundo. Portanto, formulei quatro hipóteses ao trabalho, com as quais trabalharei: 1a) A passagem supracitada encontra-se em contradição com o restante do texto legal do Direito Mosaico; 2a) A passagem acima é uma exceção ao restante do Direito Mosaico; 3a) Esta é uma passagem bíblica onde houve um grave descumprimento da Lei ou; 4a) A passagem supramencionada não está em contradição com o restante do texto legal do Direito Mosaico, sendo parte da tradição normativa israelita, no momento em que se entende a natureza jurídica do sacrifício humano.
Se a primeira hipótese estiver correta, a conclusão é simples: O texto bíblico apresenta falhas de coerência lógico-sistemática. Se a segunda hipótese estiver correta, será necessário saber qual é a brecha legal que o texto mosaico possui, a fim de permitir um sacrifício tão violento. Se a terceira hipótese estiver correta, saberemos que a Lei foi descumprida ou pelo desespero da falta de chuvas, ou por simples vingança do rei Davi aos descendentes da antiga dinastia, aproveitando-se de evento calamitoso. Se a quarta hipótese estiver correta, deveremos compreender em que hipótese legal encaixar-se-ia um sacrifício humano na Lei Mosaica.
Meu embasamento teórico será a chamada Bíblia Sagrada e livros de historiadores que tratem da Grécia ou de Israel. O método será o histórico-comparativo como falei acima e o método dialético.
O tema é sobremodo profundo, porém como o espaço é pequeno, tecerei apenas breves comentários. Inicialmente cumpre dizer que Israel atravessava a maior seca até então registrada. Aproximadamente um século depois, haveria uma seca maior que esta no reinado de Acabe, a qual duraria três anos e meio (1 Rs 17:1; 1 Rs 18:1-2; Tg 5:17-18). Lembremos que muitos povos antigos sacrificaram seres humanos em épocas de crise, por conta do desespero.
A “consulta ao Senhor” feita para descobrir a causa do problema não fica clara no texto. No contexto israelita, poderia ser pelos sonhos, por Urim e Tumim ou por profetas (1 Sm 28:6). As consultas na Grécia eram feitas no oráculo de Delfos.
Por toda a Lei Mosaica havia penas de morte, as quais eram executadas, a fim de que a terra não fosse suja pela maldade; os cananeus foram vítimas de uma punição divina por causa de sua conduta, fazendo com que a terra os “vomitasse” como diz o texto bíblico (Lv 18:24-30). A terra pura atrairia chuvas e frutos (Lv 26:3-6). Na legislação grega, o homicídio deixou de ser uma questão de vingança privada, pelo medo da instalação do ciclo fatal de homicídios e vinganças, o qual destruiria a pólis. Tal crime era objeto de impureza para toda a comunidade e um ataque ao próprio grupo social. Por conseguinte, vemos o ordenamento jurídico grego tomando para si a responsabilidade e o dever de punir. Deste modo, a chamada “justiça mecânica” (popularmente conhecida como “justiça com as próprias mãos”) não seria realizada e a paz estaria assegurada. Havia também, no contexto helênico o pensamento que de tempos em tempos, deveria acontecer um sacrifício humano para limpar uma certa “sujeira espiritual”. Até o séc. V, a polis ateniense possuía um grupo de homens sustentados para tal fim.
É curioso notar como na Grécia havia todo um aparato estatal com vistas à purificação.
O conceito grego de “míasma” pode nos esclarecer este sacrifício humano em Israel. Na língua grega, míasma é uma mancha que provém do crime, indicando também para a própria pessoa criminosa ou um opróbrio. Esta mancha é algo metafísico que pode atrair a maldição dos deuses. Esta só poderia ser limpa por um sacrifício humano. O dionisismo, especialmente o orfismo, caracteriza-se pela instituição de processos purificatórios. Temos como exemplo grego, o mago Epimênides, o qual é convocado para expulsar o míasma de Atenas após o assassinato dos Cilonides. Sobre ele, nos fala Jean-Pierre Vernant: “Promotor de ritos catárticos, é também um adivinho inspirado cujo saber, diz-nos Aristóteles, descobre o passado, não o futuro: seu dom de dupla visão faz conhecer, com efeito, as falhas antigas; desvela os crimes ignorados cuja impureza engendra, nos indivíduos e nas cidades, um estado de perturbação e de enfermidade, o delírio frenético da mania, com seu cortejo de desordens, de violências e assassínios”.
As falhas antigas em Israel eram conhecidas pelo dom da palavra do conhecimento (1a Co 12:8). Fica então a pergunta: Será que o pensamento israelita via o crime como algo que poderia sujar a terra, tal qual o conceito grego de míasma? A resposta é sim. Por diversas passagens da Lei, há este pensamento sendo expresso. Desta forma, cito um desses textos como exemplo: “Com nenhuma destas coisas vos contaminareis, porque em todas estas coisas se contaminaram as gentes que eu lanço fora de diante da vossa face. Pelo que a terra está contaminada; e eu visitarei sobre ela a sua iniqüidade, e a terra vomitará os seus moradores. Porém vós guardareis os meus estatutos e os meus juízos, e nenhuma dessas abominações fareis nem o natural, nem o estrangeiro que peregrina entre vós; porque todas estas abominações fizeram os homens desta terra, que nela estavam antes de vós; e a terra foi contaminada. Para que a terra não vos vomite, havendo-a vós contaminado, como vomitou a gente que nela estava antes de vós. Porém qualquer que fizer dessas abominações, as almas que as fizerem serão extirpadas do seu povo. Portanto, guardareis o meu mandado, não fazendo nenhum dos estatutos abomináveis que se fizeram antes de vós, e não vos contamineis com eles. Eu sou o Senhor, vosso Deus”.
Assim, se as penas de morte em Israel forem entendidas como sacrifícios humanos para purificar a terra, como muitas vezes sugere o texto bíblico, respondemos uma das questões acima: As penas de morte eram sacrifícios humanos combinados na Lei Mosaica; esta era a sua natureza jurídica. Tanto no contexto grego como no israelita a ira de Deus ou dos deuses era aplacada com sangue. Portanto, não se trata de vingança dos gibeonitas, muito menos uma forma de ressarcir danos, mas a utilização do supremo sacrifício purificatório em épocas de crise.
Indubitavelmente devemos entender o pensamento dos israelitas quanto à importância de uma aliança, o que é de suma importância para o presente trabalho. Alianças assemelham-se a contratos, mas não são exatamente iguais. É provável que as alianças tivessem sido os precursores dos contratos atuais. Modernamente, podemos fazer contratos com pessoas físicas e/ou jurídicas e desfazê-los mediante uma rescisão contratual, ou mesmo através de Ação de Rescisão Contratual, quando buscamos a tutela jurisdicional do Estado. Será que uma aliança poderia ser desfeita com a mesma facilidade?
Para responder esta questão, devemos ter uma noção de teologia das alianças. Na Bíblia, Deus faz oito alianças com Seu povo, a saber: 1a) Aliança adâmica; 2a) Aliança noaica pré-diluviana; 3a) Aliança noaica pós-diluviana; 4a) Aliança abrâmica; 5a) Aliança mosaica; 6a) Aliança davídica; 7a) Aliança salomônica e; 8a) Aliança cristã. Da primeira à sétima, temos as sete alianças do Antigo Testamento, as quais são resumidas pelo Novo Testamento como a “Antiga Aliança”. A oitava aliança é a do Novo Testamento. De acordo com o pensamento judaico-cristão somente Deus poderia fazer uma aliança com os homens. Todas estas alianças foram seladas com sangue e toda quebra de alianças seladas com sangue no mundo antigo gerava mortes como punição.
Vemos exemplo disso no livro do profeta Jeremias, quando o povo quebra a chamada Antiga Aliança (Jr 31:31-32): “Porque assim diz o Senhor: Teu quebrantamento é mortal, e a tua chaga é dolorosa. Não há quem defenda a tua causa; para que possas ser curado, não tens remédios nem emplasto. Todos os teus amantes se esqueceram de ti e não perguntam por ti; porque te feri com ferida de inimigo e com castigo de cruel, pela grandeza de tua maldade e multidão de teus pecados. Por que gritas em razão do teu quebrantamento? Tua dor é mortal. Pela grandeza de tua maldade e pela multidão de teus pecados, eu fiz estas coisas”.
Os “amantes” são aqui vistos como outros deuses na dimensão religiosa, ou outras nações no nível político. A quebra da aliança consistia, neste caso, numa idolatria persistente e em alianças com outras nações, o que foi continuamente proibido na Lei Mosaica (Dt 20:1-20) e nos profetas (Is 30:1-8), pois alianças com outros povos indicavam para alianças com os deuses dessas nações. No entanto, os homens poderiam fazer alianças entre si, como parte do Direito Mosaico. O casamento é um bom exemplo de aliança entre os homens e o seu descumprimento gerava morte, como é o caso do adultério; onde haveria uma pena a ser suportada não só pela mulher adúltera, mas também pelo homem adúltero (Lv 20:10; Dt 22:22).
Não nos esqueçamos de que no passado Josué fez aliança com os Gibeonitas (Js 9:1-27). E, embora enganado pelo povo da terra de Canaã, com o qual estavam proibidos de fazer pacto, lembremos que o juramento não pôde ser descumprido, “porquanto os príncipes da congregação lhes juraram pelo Senhor, Deus de Israel...”(Js 9:18a). Como Deus é eterno, a aliança também seria. Assim, apesar das muitas reclamações advindas do clamor popular (Js 9:18b), os próprios líderes disseram: “Nós juramos-lhes pelo Senhor, Deus de Israel; pelo que não podemos tocar-lhes” (Js 9:19).
Interessante notar que a cidade de Gibeão foi, logo em seguida, sitiada por cinco reis cananeus de cidades confederadas que se sentiram traídos pelos gibeonitas; e o povo israelita foi obrigado a defendê-la, iniciando-se uma grande guerra (Js 10:1-43).
Se já vimos exemplos práticos de alianças, vejamos como estas eram constituídas no mundo antigo. Quando dois reis desejavam fazer uma aliança, eles cortavam animais ao meio e organizavam as metades dos animais frente a frente com sua respectiva metade cortada, de modo a formar um “caminho de sangue”.
Os reis passavam duas vezes pelo caminho de sangue, como que tacitamente declarando: “Eu serei fiel a ti nesta vida e depois dela”. Após isso, liam-se os termos da aliança, e, jurando, declaravam-se direitos e deveres. Uma maldição era imprecada para aquele que descumprisse os seus votos. Os dois selavam o acordo com um “corte da aliança”, no qual os representantes de ambos os povos cortavam os pulsos e os uniam, a fim de que o sangue dos aliançados se misturasse. Com tal corte haveria a lembrança do pacto de sangue por causa da cicatriz. Depois, faziam uma refeição a partir do sacrifício. Dali em diante, o nome dos aliançados seria misturado. Suas posses passariam a ser propriedade comum e deveriam ajudar o aliançado que passasse necessidade. Deveriam ser fiéis um ao outro e defender-se mutuamente em caso de guerra e até a morte se necessário. O inimigo de um tornar-se-ia inimigo do outro. A aliança de sangue era supostamente indissolúvel e só a morte poderia pôr fim aos votos. É importante notar que a expressão hebraica para fazer uma aliança (ou fazer um concerto) poderia ser literalmente traduzida por “cortar um concerto”. A idéia do sangue derramado é clara e patente aos nossos olhos.
A partir daqui, vemos que uma aliança (de sangue) havia sido quebrada por Saul. E, toda quebra de alianças seladas com sangue no mundo antigo gerava mortes como punição. Assim, estamos falando de uma pena de morte executada sobre um criminoso, a qual possuía o poder purificatório do sacrifício humano. Sobre este poder purificatório, é importante trazer um vocábulo da cultura grega, o fármakon. Fámakon significa veneno ou remédio e, embora pareça contraditório, a palavra possui os dois sentidos ao mesmo tempo.
A medicina já comprovou que a diferença entre o remédio e o veneno está apenas na quantidade. Desta maneira, sabemos que veneno de cobra em pequenas doses pode curar determinadas enfermidades, enquanto que grandes quantidades de remédio podem matar, se ministradas em excesso. Fármakon é a vítima sacrificial. Ele é o veneno que está matando a comunidade, mas também será o remédio que a curará, quando for sacrificado. Vemos aqui a proximidade da palavra míasma e fámakon, pois este significa veneno e aquele significa além de mancha, a própria pessoa criminosa. A pessoa culpada pela crise da comunidade traz novamente a paz para a mesma quando ritualmente sacrificada pelo farmakós (jarmaküs), o feiticeiro. Não é sem razão que a palavra feitiçaria (jarmakeßa - farmakéia) possui a mesma raiz de fármakon.
Cumpre agora resolver a segunda questão. Vale explicar que o termo “filhos” no hebraico também pode se referir aos netos, o que torna o trabalho interpretativo ainda mais difícil. Especialmente porque Davi poupa Mefibosete, neto de Saul, a fim de não quebrar um outro juramento (1 Sm 18:3-4; 20:8-43; 23:14-18), evitando incorrer em outra maldição. Isto demonstra a presença de netos de Saul no sacrifício implícita e explicitamente no texto. Saul é chamado de “eleito do Senhor”, enquanto na verdade é um eleito do povo e apenas ratificado pela divindade, como deixou claro o juíz-profeta Samuel, quando o povo pediu um rei para si (1 Sm 8:1-22): “E disse o Senhor a Samuel: Ouve a voz do povo em tudo quanto te disser, pois não te tem rejeitado a ti; antes, a mim me tem rejeitado, para eu não reinar sobre ele”.
Assim, vemos aqui o princípio da substituição sacrificial, de modo que toda a comunidade é substituída em sua culpa pela vítima sacrificial. Neste sentido vemos a substituição sacrificial no mito grego das bacantes, quando Penteu é sacrificado, mas é o substituto de toda uma comunidade culpada. Resta saber se ocorre neste caso uma dupla substituição sacrificial, ou seja, o pai sendo substituído pelos filhos, o que contrariaria a Lei Mosaica com seu princípio da incontagibilidade da pena (Dt 24:16). Na verdade, a resposta a esta questão é mais simples que a primeira, pois o próprio texto nos diz que a casa de Saul era “sanguinária”. Assim, estavam sendo punidos pelos seus próprios crimes. Vale lembrar que na Grécia o sacrifício humano não possuía exatamente a mesma natureza jurídica que em Israel. Entre os helenos, o sacrifício humano não era pena de morte, mas apenas ritual religioso. Desta forma, não se procurava o culpado, mas a substituição sacrificial operava diretamente. A natureza jurídica do rito sacrificial grego era apenas religiosa, no entanto, ainda ligada à esfera jurídica, pois ocorria em função dos crimes de sangue. Precisa-se questionar se não havia em Davi nenhum desejo de vingança sobre os seus inimigos, os descendentes de Saul. O rei parece tomar a mesma postura dos gibeonitas: Desejo de purificação. Isto é evidenciado pelo último ato de misericórdia do rei, a saber, o enterro dos cadáveres. Da mesma forma que Rispa, filha de Aiá, concubina de Saul; Davi promove o sepultamento dos imolados. Era motivo de grande vergonha ser devorado por animais após a morte, o que denotava a morte dos ímpios.
Na Grécia havia a mesma preocupação de enterro adequado, com o cumprimento dos ritos fúnebres, temendo os helenos o retorno do antepassado e um possível tormento espiritual. Mas a questão ainda não se resolve, pois a Lei Mosaica comina expressamente que os cadáveres dos sacrificados (condenados à pena de morte) deveriam ser enterrados com urgência.
Vejamos o texto da legal: “Quando também em alguém houver pecado, digno do juízo de morte, e haja de morrer, e o pendurares num madeiro, o seu cadáver não permanecerá no madeiro, mas certamente o enterrarás no mesmo dia, porquanto o pendurado é maldito de Deus; assim, não contaminarás a tua terra, que o Senhor, teu Deus, te dá em herança”.
Já que o ordenamento jurídico realmente estipulava que os cadáveres deveriam ser enterrados no mesmo dia, não podemos tomar isto por base para afirmar a inocência de Davi e o estrito cumprimento da Lei. No entanto, neste dia do enterro houve um detalhe que pode nos dar um esclarecimento: Ele enterrou os ossos de Jônatas e de seu pai, o rei Saul. O enterro de Jônatas já seria esperado, pois Davi e este eram aliados. Entretanto, o sepultamento de Saul não fazia parte das suas obrigações. Por conseguinte, concluímos que o rei não somente cumpriu as suas obrigações legais e contratuais da aliança com Jônatas, mas também teve um último ato de misericórdia com o seu inimigo, que tanto procurou a sua morte.
Lembremos que os filhos de Saul foram sacrificados “perante o Senhor; e caíram estes sete juntamente; e foram mortos nos dias da sega, nos primeiros dias, no princípio da sega das cevadas”.
Aqui está a conexão clara entre o sacrifício e as colheitas, evidenciando um suposto poder destes para gerar a prosperidade.
O mesmo pensamento está presente na cultura grega, onde o sangue era espalhado pelos campos, como se possuísse o poder de fertilizá-los. De acordo com o exposto, fica ainda uma última questão: Não poderiam os gibeonitas, ou mesmo Davi liberarem os filhos de Saul de tamanha violência através de um simples ato de perdão judicial ou anistia? A resposta é dada pela própria lei em Lv 17:11: “Porque a alma da carne está no sangue, pelo que vô-lo tenho dado sobre o altar, para fazer expiação pela vossa alma, porquanto é o sangue que fará expiação pela alma”.
A epístola aos Hebreus é ainda mais taxativa no capítulo 9, versículo 22: “E quase todas as coisas, segundo a lei, purificam-se com sangue; e sem derramamento de sangue não há remissão”.
Desta forma, vemos que a Lei exige sangue para ocorrer a expiação, ou seja, para que a ira da divindade seja desviada para a vítima sacrificial. No caso israelita, vemos que os sete criminosos foram enforcados, não havendo um explícito derramar de sangue, nem mesmo seu derramamento sobre as colheitas. Porém, o valor do sacrifício está no espasmo mortal.
Por mais derradeiro que possa expressar algumas conclusões. Em primeiro lugar, nota-se que a passagem supracitada não se encontra em contradição com o restante do texto legal do Direito Mosaico. Nem mesmo se pode cogitar que houve uma exceção ao restante do texto legal israelita. Pudemos claramente perceber que na passagem bíblica supracitada não houve nenhum grave descumprimento da Lei. Vemos ao contrário que a mesma foi cumprida integralmente, havendo ainda, um último ato de misericórdia de Davi para com Saul. Então podemos afirmar que a passagem supramencionada não está em contradição com o restante do texto legal do Direito Mosaico, sendo parte da tradição normativa israelita, no momento em que se entende a natureza jurídica do sacrifício humano como pena de morte.
Tais normas podem ainda soar como absurdas para o homem moderno, após tantos clamores pelos direitos humanos, a começar pelo Marquês de Beccaria em seu famoso livro “Dos delitos e das penas”, o qual revolucionou o Direito Penal. Também pode parecer estranho vermos conceitos jurídicos misturados com conceitos religiosos, especialmente depois do pensamento de Maquiavel, o qual concebeu a separação entre Igreja e Estado.
Entretanto, retornamos na linha do tempo para um período muito anterior ao nosso, quando o Direito e a religião se misturavam e toda abstração jurídica, tinha de surgir primeiro de uma abstração religiosa. Assim raciocinava o homem daquela época. Somente conseguiremos entender o pensamento antigo, quando nos despirmos de toda a nossa bagagem cultural, de todos os nossos esquemas de conhecimento. Não podemos negar os benefícios da humanização das penas no mundo moderno, mas tal raciocínio nos impede de entender o direito antigo e de pensar como se concebia a justiça no passado.
Após o enterro dos cadáveres vemos que “Deus se aplacou para com a terra”. Isto nos mostra claramente que o sacrifício foi recebido pela divindade. Se foi recebido pela divindade, a qual enviou chuvas, é porque foi realizado segundo suas prescrições e leis. Dura lex sed lex (15).