Josefo
Jesus como homem sábio e mestre é uma das imagens mais presentes nos evangelhos. Ao fim do sermão do monte as "multidões maravilhavam-se de seu ensino porque as ensinava como tendo autoridade, e não como os escribas" (Mateus 7:27). Também na sinagoga de Cafarnaum (Marcos 1:22). Em uma das mais antigas confissões do credo da Igreja Primitiva, Jesus é chamado de profeta poderoso em palavras e atos (Lucas 24:19; Atos 2:22 e 10:38). A fonte Q, assim chamada por conter material comum a Mateus e Lucas, não encontrado em Marcos, é formada basicamente por ditos e ensinos. Na literatura apócrifa temos também importantes testemunhos dessa imagem. O Evangelho de Tomé, que data provavelmente da primeira metade do sec. II, é composto de 114 ditos e ensinos de Jesus (em significativa parte paralelos aos evangelhos sinóticos.
Mara Bar Serapion (73 DC - 150 DC)
A (provável) menção a Jesus se dá em uma carta de exortação a excelência da sabedoria que sobrevive mesmo com as injustiças e eventual morte que sofre o sábio. Jesus é comparado a Pitágora e Sócrates.
"O que diremos, quando os sabíos são arrastados pelas mãos dos tiranos, e sua sabedoria os leva a perda da liberdade, e são despojados por causa de sua inteligência superior,sem a oportunidade de se defender? Mas eles não devem ser objeto de pena. Pois qual benefício obtiveram os atenienses por condenarem Socrátes a morte, uma vez que eles receberam em troca fome e peste? Ou os cidadãos de Samos por lançar Pitágoras as chamas? Num instante seu território se viu coberto de areia. Que vantagem obtiveram os judeus matando seu sábio Rei. Logo depois, seu reino foi destruido. Pois com justiça Deus vingou esses três sábios. Pois os atenienses morreram de fome, o povo de Samos foi coberto pelo mar, e os judeus, desolados e expelidos de seu reino, vagam dispersos por todas as terras. Socrates não morreu, por causa de Platão, ou Pitagoras, por causa da Estátua de Hera, nem tampouco o Sábio Rei, continuou a viver nos ensinamentos que transmitiu."
Professor Gerd Theissen , da Universidade de Heidelberg (Alemanha), eProfessora Annete Merz, Universidade de Utrecht (Holanda), fazem uma descrição da fonte:
"Curiosamente, o testemunho pagão supostamente mais antigo sobre Jesus é pouco conhecido. Encontra-se numa carta pessoal do estóico sírio, originário de Samosata, Mara Bar Serapion, que escreveu de uma prisão romana (em lugar desconhecido) ao filho Serapion. A carta tem por conteúdo numerosos conselhos e advertências que Mara faz ao filho em face de sua possível condenação"
Theissen e Merz observam que a datação da carta é controversa. A referência a dispersão dos judeus pode ser encaixada na Revolta de Bar Kochba (135 DC), ou na destruição de Jerusalém (70 DC). Ele acrescenta, que há na carta uma menção a fuga dos cidadãos anti-romanos da cidade de Samosata para Selêucia, que parece ser idêntico ao da destruição e expulsão do Rei Antioco IV de Comagene (que tinha por capital Samosata) pelos romanos no ano de 73 DC, relatado do Josefo em Guerras Judaicas 7:219-243.
Ainda segundo Theissen e Merz, "os dados sobre Pitagoras, os sâmios e os atenienses são historicamente muito imprecisos. Talvez Mara considere o filósofo e o escultor Pitagorá a mesma pessoa".
Mara não menciona Jesus pelo nome. A associação é feita baseada nas características:
1) Ele era judeu
2) Era um sábio
3) Ele era um "Rei"
4) Ele continuou vivo por meio de seus ensinamentos
5) Ele foi morto por seu povo
6) O reino judeu foi destruído após sua morte.
1) Jesus era judeu;
2) Era considerado como um sábio ou filósofo (Luciano; Evangelho de Tomé 13: Tu és como um sábio filósofo);
3) Era o "Rei dos Judeus"; (Titulus Crucis nos quatro evangelhos)
4) Seus seguidores mantiveram vivo seus ensinamentos após sua morte, e mesmo depois da destruição de Jerusalém. Trinta anos após a morte de Jesus, estavam solidamente estabelecidos em Roma ( Tácito, Suetônio).
5) Jesus foi morto sob Pôncio Pilatos, mas as autoridades do Templo exerceram uma papel importante. De qualquer forma, a pregação cristã logo tendeu a minimizar a responsabilidade romana e enfatizar a judia.
6) Cerca de 40 anos depois da morte de Jesus, Jerusalém foi destruida. (Elemento também presente na pregação cristã).
A identificação do sábio Rei referido por Mara com Jesus de Nazaré não é completamente certa. Contudo, que outro "candidato" preenche esses requisitos? Josefo lista quase uma dezena de pretendentes messiânicos, mas eles foram mortos pelos romanos, e seus ensinamentos, quando existiram, não sobreviveram a sua morte. Judas Galileu, inspirador dos zelotes e outros radicais anti-romanos, manteve seguidores após sua morte. Contudo, até onde se sabe, se ele foi executado, o foi pelos romanos e não pelos judeus; não foi chamado de "Rei dos Judeus"; e seu movimento não sobreviveu a queda de Jerusalém e, portanto, a época em que Mara escreveu.
Como observa FF Bruce (1910-1990), ex-Professor das Universidades de Sheffield e Manchester:
"Este escritor dificilmente poedria ter sido cristão; tal fosse o caso , haveria declarado que o Cristo continuou vivo e que ressuscitou dos mortos. Maior probabilidadee há de que fosse um filósofo gentio, pioneiro no que se veio depois tornar rotina comum - colocar Jesus em pedestal de igualdade com os grandes sábios de antanho".
Tudo indica que Mara foi influênciado pela pregação cristã, embora se mantivesse como pagão pois faz referência em alguns lugares da carta a "nossos deuses". Era, possivelmente, um simpatizante do cristianismo.
Theissen e Merz
Thiessen e Merz complementam,
"Mara permite reconhecer em alguns pontos uma perspectiva externa em sua avaliação de Jesus e do cristianismo:
Na série de paradigmas de Mara, Jesus aparece como um de três sábios Mara não sabe nada da ressureição de Jesus, ou a reinterpreta tacitamente no sentido de sua cosmovisão caracterizada em sua carta da seguinte forma "A vida do homem, meu filho, sai do mundo, seu louvor e seus dons permanecem na eternidade". Isso se aplica da mesma forma a Socrátes como a Jesus. Para Mara, Jesus é importante sobretudo como novo legislador. Ele continua a viver em suas leis. Ao que parece, Mara vê os cristãos como aqueles que vivem segundo a lei do Rei Sábio, o que explica bem a postura do estóico em relação a eles"
Professor Robert Van Voorst, Western Theological Seminary, acrescenta:
"A mais antiga referência filosófica ao cristianismo de que se tem conhecimento, a carta de Mara Bar revela a atração que o cristianismo era capaz de exercer sobre alguns intelectuais. As observações positivas a Cristo e ao Cristianismo, no entanto, não devem ser lidas como um endosso, da mesma forma como sua menção a Sócrates e Pitágoras significam que ele era adepto de suas respectivas escolas filosóficas"
Admitindo a provável menção a Jesus de Nazaré como sábio Rei em Mara Bar Serapion, temos um retrato que é semelhante a descrição de Galeno e, até mesmo, com o de Luciano de Samosata (Samosata, inclusive, fica na mesma região daonde Mara é proveniente). Jesus é visto como um filósofo, que deixou leis e ensinamentos, que foi executado, mas cujo legado permanece, tendo díscipulos que vivem segundo suas leis. Luciano interpretou essas tradições de forma depreciativa aos cristãos. Galeno de forma positiva, embora condescencente. Mara, por sua vez, também as toma de maneira positiva, mas vê em Cristo um modelo de sabedoria.
Luciano de Samosata (125-180 DC, aproximadamente), escreveu a biografia zombeteira de um converso ao cristianismo e depois apóstata, Proteus Peregrino, em "A Passagem do Peregrino". Proteus era um fílosofo adepto da corrente cínica (não confundir com a concepção moderna, pejorativa, do termo). Os cínicos acreditavam que a felicidade dependia do desapego aos bens materiais e convenções sociais (status, poder..). O texto que menciona Jesus, como o "sofista crucificado" que era adorado pelos cristãos é apresentado abaixo:
“Foi então que ele [Proteus] conheceu a maravilhosa doutrina dos cristãos, associando-se a seus sacerdotes e escribas na Palestina. (...) E o consideraram como protetor e o tiveram como legislador, logo abaixo do outro [legislador], aquele que eles ainda adoram, o homem que foi crucificado na Palestina por dar origem a este culto.(...) Os pobres infelizes estão totalmente convencidos, que eles serão imortais e terão a vida eterna, desta forma eles desprezam a morte e voluntariamente se dão ao aprisionamento; a maior parte deles. Além disso, seu primeiro legislador os convenceu de que eram todos irmãos, uma que vez que eles haviam transgredido, negando os deuses gregos, e adoram o sofista crucificado vivendo sob suas leis." (Passagem do Peregrino, 11 e 13)
Segundo Luciano, Peregrino (100-165 DC), fugiu de sua cidade em sua juventude, acusado de matar seu pai. Tornou-se então um filosofo itinerante, tendo contato com várias idéias e filosofias. Quando estava na Palestina, ele se converteu ao cristianismo. Entre os cristãos, obteve rapidamente grande prestígio, se tornando "profeta", "presbítero", "chefe de sinagoga", compondo livros e os comentando, sendo reverenciado como mestre, legislador e até como um deus ("logo abaixo logo abaixo do outro, aquele que eles ainda adoram, o homem que foi crucificado na Palestina por dar origem a este culto"). Em suma, Luciano acusa Peregrino de usar seus conhecimentos de filosofia para abusar da credulidade dos cristãos. Ainda na Palestina, Peregrino é preso, e na cadeia recebe a atenção e cuidado de seus companheiros cristãos, que, segundo Luciano, "tudo fizeram para livra-lo, mas como isso não foi possível, dispensaram assistência constante para com ele" (Passagem do Peregrino 12) . Entretanto, o governador romano, também admirador da filosofia, o libertou após algum tempo. Anos depois, Peregrino rompeu com o cristianismo, tornando-se discípulo do renomado filósofo cínico Agatobulo, de Alexandria (Egito). Em seguida, ele viveu em várias cidades reunindo um grande grupo de seguidores, envolvendo-se em atividades anti-romanas. Em 161 DC, ele anunciou que se imolaria em uma fogueira nos jogos olímpicos seguintes, o que ocorreu no ano 165. Luciano, que presenciou o evento, escreveu então a "biografia" de Proteus por volta do ano 175.
O relato de Luciano é bastante hostil em relação a Peregrino, que tinha contudo seus admiradores, mesmo entre os letrados e ilustres. Luciano faz referência no texto ao filósofo Theagênes de Patras, ardoroso defensor de Proteus. Também o autor e gramático romano Aulio Gelio (125-180 DC), relata em seu livro "As Noites Áticas", que visitando Atenas, foi encontrar várias vezes o fílósofo Peregrino, chamado Proteus, um "homem de dignidade e coragem, que vivia fora da cidade" e que ouviu de Proteus "muitas coisas verdadeiras, úteis e nobres". É justamente para tentar refutar essa percepção, que parecia ser bastante popular, que Luciano escreve.
O texto estabelece paralelos entre Peregrino e Jesus, a quem Luciano retrata como um filósofo, sofista e primeiro legislador e mestre dos cristãos, acusado e preso (e realmente executado) como criminoso e acusado de envolvimento em ações contra Roma. Luciano não nega a reputação de Proteus como filósofo, nem seu conhecimento e credenciais, o que ele ataca é o uso que ele faz da filosofia, aproveitando-se da credulidade das pessoas. Da mesma forma, não é posta em dúvida a reputação de Jesus como filósofo, mas o fato de que os crédulos cristãos o elevaram injustificadamente a condição de grande legislador e digno de adoração, como também fizeram com Peregrino. Assim, a visão de Luciano em relação a Jesus, era de um simples sofista ou filósofo, que ensinou seus seguidores a abandonar os deuses gregos, condenado e crucificado como criminoso, a quem pessoas humildes e simplórias, como os cristãos, tinham como Deus e supremo legislador.
Luciano observa que Proteus tinha grande reputação, muitos discípulos e notaveis admiradores. Ele relata que entre alguns filósofos cínicos, a admiração a Proteus já começava a se transformar num verdadeiro culto. Considerando a comparação que Luciano faz entre Cristo e Proteus, pode ser inferido que Jesus também tivesse uma reputação de meste e sábio bastante disseminada, mesmo entre os mais instruídos. Aqui, é útil lembrar o comentário do Prof. Mark Alan Powell (Trinity Lutheran Seminar)- em relação a frase do celebrado Testemunho Flaviano de que Jesus era "um homem sábio" - de que pode implicar tanto como um elogio a qualidade de seus ensinos, quanto de que ele era um fílosofo, mestre ou rabi por profissão ou ofício.
Professor David Flusser (1917-2000), da Universidade Hebraica, comenta
"A palavra grega para "sábio" tem uma raiz comum com o termo grego "sofista" termo este que não possuia então a conotação negativa atual (...) O autor grego Luciano de Samosata (nascido em 120 e falecido após 180 DC) refere-se similarmente a Jesus como "o sofista crucificado".
Mas alguém tão crítico do cristianismo como Luciano, poderia considerar Jesus como um filíosofo ou sábio?
De qualquer forma, Luciano alude ao reconhecimento comum de Jesus como sofista/filósofo, legislador e mestre dos cristãos. Mas, para aprimorar nossa resposta, temos que ler "nas entrelinhas" o que Luciano escreve, e também comparar suas opinões com outros críticos do cristianismo daquele período.
Um ponto interessante é o cuidado que os cristãos dedicavam aos seus. John Dominic Crossan (De Paul University) e Jonathan Reed (La Verne University), citam o ensaio de Luciano de Samosata chamado "Da Amizade", no que se refere a assistência de Demétrio a Antífilo na prisão:
"Pediu-lhe que não tivesse medo, e dividindo sua capa em duas, vestiu-se com uma parte e deu outra metade a Antífilo, depois de lhe desvestir das roupas rasgadas e fétidas que usava. Daí para frente compartilhou sua vida em tudo, cuidando dele com carinho: trabalhando de manhã até o meio-dia como estivador no porto, ganhamdo bom dinheiro. Ao retorno de seu trabalho, dava parte de seu salário para o guarda, tornando-o tratável e pacífico. O que restava era suficiente para manutenção de seu amigo. Passava as tardes com Antífilo, com afeição, de noite durmia junto a porta da prisão onde arranjara um colchão de folhas para si (Da Amizade, 30-31)
Luciano também menciona serviços assistências como os oferecidos ao profeta cristão peregrino, mas nesse caso com certo menosprezo:
[Peregrino] recebia toda a forma de atenção, não esporádica mas assídua. Desde o amanhecer viúvas idosas e crianças orfãs podiam ser vistas esperando perto da prisão, enquanto seus oficiais dormiam junto a ele depois de subornar os guardas. Traziam-lhe refeições elaboradas e livros sagrados de onde liam passagens em voz alta. O notável Peregrino - pois ainda conservava esse nome - era chamado por ele de "o novo Sócrates" (Passagem do Peregrino, 12)" .
Apesar do evidente menosprezo de Luciano aos cristãos, retratados como criaturas ingênuas e iludidas, a comparação com a atidude de Antífilo e Demetrio mostra suas virtudes. Eles ajudam um dos seus na prisão, com carinho, provendo roupas e comida, e até subornam os guardas, para permitir que Peregrino pudesse ser assistido (assim como Demétrio cuidou de Antífilo na prisão). Tais atitudes eram consideradas virtuosas, assim como a coragem mesmo diante da morte que os cristãos demonstravam. O problema não reside na falta de virtude dos cristãos, mas em sua (suposta) ingenuidade (que permite que qualquer espertalhão se aproveitasse). Mas teriam sido as virtudes apreendidas com os ensinos do "primeiro legislador"?
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Cerca de 100 anos após Luciano ter escrito a Passagem do Peregrino, o fílosofo neoplatônico Porfírio de Tiro (232-305 DC), elaborou um violentos ataque a religião cristã, chamado Adversus Christianos ("Contra os Cristãos") em 15 volumes, e uma defesa a religião pagã, "Da filosofia dos oráculos". Estas obras não sobreviveram, mas partes significativas são citadas por autores cristãos posteriores como Eusébio, Metódio, Macário de Magnésia e Santo Agostinho. Em sua crítica aos cristãos Porfirio observa:
"O que nós diremos agora, certamente surpreenderá alguns. Pois os deuses declararam que Cristo foi muito piedoso, e se tornou imortal, e que eles prezam sua memória. Mas, os cristãos, no entanto, são impuros, contaminados e chafurdam no erro. E muitas outras coisas, dizem os deuses contra os cristãos.
Mas a aqueles que questionaram [deusa] Hecate se Cristo era Deus, ela respondeu: Tu conheces a condição da alma imortal (...) a alma a qual tu te refere e de um homem reconhecido por sua piedade, eles [os cristãos] o adoram porque são ignorantes da verdade (...) este homem virtuoso, assim, Hecate afirma que sua alma, como a alma de outros homens bons, foi coroada com a imortalidade, e que os cristãos, em sua ignorância, o adoram".
Agostinho observa também outra afirmação de Porfirio: "Os homens sábios entre os hebreus, dentre os quais esse Jesus, como ouviste dos oráculos de Apolo citados acima, acabaram transformando pessoas religiosas nestes demônios impíos e espíritos menores, ainda que eles tenham ensinado na verdade a veneração aos deuses celestes e especialmente a Deus Pai".
Trifo, um filósofo judeu que protagonizou um debate com São Justino Martir, por volta de 130-140 DC, afirma que tomou "conhecimento e leu com atenção os preceitos dos evangelhos cristãos, os considerou maravilhosos e grandes, de tal forma que suspeitava que ninguém seria capaz de cumpri-los"; No entanto, lamentava o fato de que os cristãos "dizendo serem piedosos, e considerando-se melhores que os outros, não haviam se separado dos impíos, ou alterado seu modo de vida em relação aos gentios, não observam as festas e o sabath, não se submetem ao rito da circunsição; e, mais, colocam suas esperanças sobre um homem que foi crucificado, e ainda assim esperam obter bençãos de Deus, mesmo não obedecendo seus mandamentos. Vocês não leram que serão apartados do seu povo, aqueles que não se circuncidarem no oitavo dia? (...) Mas vocês, desprezando os mandamentos, rejeitando seus deveres em consequencia, e tentando convencer a si mesmos que conhecem a Deus, quando, no entanto, não cumprem os deveres daqueles que são tementes a Deus"
Na mesma linha, a visão de Galeno, contemporâneo de Luciano, e médico da corte do Imperador Marco Aurélio também pode nos ajudar a entender a percepção de pagãos cultos dos ensinos e pessoa de Jesus, como veremos com mais detalhes adiante. Mais ou menos na mesma época em que Luciano escreveu, Galeno observou, em seu sumário da República de Platão (a obra esta perdida, mas o fragmento é preservado em citações de autores árabes), que os cristãos assim como "a maioria das pessoas não eram capazes de seguir uma linha contínua de raciocinio", no entanto, "mesmo extraindo sua fé de parábolas e milagres, agiam como aqueles que filosofavam". Galeno elogia também o fato dos cristãos desprezarem a morte, se dedicarem a abstnência e controle na sexualidade, comida e bebida, e sua ânsia pela justiça "assim como os verdeiros filósofos". Claramente, apesar de criticar os da "escola de Cristo" por serem pessoas simplórias e pouco letradas, que aceitam tudo pela Fé, tem em alta conta os valores morais extraidos do seu evangelho de "parábolas e milagres". Os ensinos de Cristo permitem aos seus discipulos atingirem as virtudes fundamentais de coragem, temperança e justiça.
Então, tanto o contemporâneo de Luciano, Galeno, quanto Porfírio, cem anos depois, e Trifo, quarenta anos antes, apontam alguns dos "defeitos" dos cristãos. Os quatro destacam o fato dos cristãos serem pessoas simplórias, até mesmo ingênuas. Mas o mais importante é o fato dos Cristãos deixarem de adorar os deuses gregos, tal como os outros gentios, ou não seguirem as leis mosaícas, tais como os judeus e prosélitos do judaísmo, era imperdoável. Logo, temos um eco das críticas de Luciano aos cristãos que "adoravam ao sofista crucificado" a ponto de cometerem a grave transgressão de abandonar os deuses gregos e costumes ancestrais, bem como de sua excessiva credulidade.
Por outro lado, Trifo, Galeno e Porfirio, reconhecem, em maior ou menor grau, os méritos dos cristãos e de seu líder. Porfirio chega a dizer que Jesus foi um homem e virtuoso e sábio, querido até mesmo pelos deuses. Trifo, reconhece os ideais elevados dos preceitos éticos dos evangelhos. Galeno admira o fato de que os seguidores de Cristo, embora inaptos a compreensão do raciocínio filosófico, eram virtuosos e se comportavam como filósofos fossem. Nisso temos um eco de Luciano, que é menos generoso que os outros, os cristãos, embora ingênuos, são corajosos diante da morte e são extremados em cuidar dos seus em situação adversa.
O grande desafio dessas afirmações para os apologistas cristãos, é que, ainda que reconhecendo alguns méritos nos evangelhos e na figura de Jesus, eles questionavam porque os cristãos transformavam um simples filosofo ou mestre (na melhor das hipóteses) em Deus, e, principalmente, porque eles romperam com os deveres cívicos, a religião e práticas de seus antepassados para seguir os preceitos do Evangelho. Vemos aqui como era difícil a vida dos primeiros cristãos.
J. P. Meier avalia o valor da fonte:
"Luciano sabe que o "sofista" reverenciado pelos cristãos - os nomes Jesus ou Cristo nunca são usados - foi executado na Palestina e, como Josefo, ele especifica a forma da morte, crucificação. Como Tácito, ele supõe que este mesmo crucificado introduziu a nova religião chamada cristianismo. Como Plínio, ele conta que os cristãos adoram seu fundador crucificado. Mais uma vez, ficamos sabendo o que um pagão culto do século II poderia conhecer sobre Jesus, mas sem dúvida Luciano reflete a informação que corria na época".
Galeno
Claudio Galeno ou Galeno de Pergamo (129-199 DC), iniciou-se na filosofia no ano 143. Quatro anos depois, ele passou a se interessar pela anatonia, e após a morte de seu pai, foi estudar medicina em Esmirna, Corinto e Alexandria. Em 157 DC ele se tornou médico da Escola de Gladiadores em Pergamo. Já no ano 161, ele deixou Pergamo e foi para Roma, onde trabalhou por cerca de 40 anos como Médico da Corte Imperial, nos reinados de Marco Aurélio, Cômodo e Sétimo Severo. Neste período, ele escreveu numerosos tratados, sobre vários assuntos, como anatomia, medicina e filosofia.
Galeno fez quatro breves referências aos cristãos em seus escritos:
"Pode-se ensinar coisas novas com mais facilidade aos seguidores de Moisés ou Cristo do que aos médicos e filósofos que se apegam a suas escolas" (De pulsuum differentiis, iii.3)
"Melhor seria apresentar alguma demonstração, boa ou má, mas uma razão suficiente, a fim de que logo e desde o início não se ouça falar - como quem se põe na Escola de Moisés ou de Cristo - de leis não demonstraveis e justamente na área em que são menos apropriadas" (De pulsuun differentiis, ii. 4) "
O parágrafo abaixo é encontrado apenas em citações em arábico:
"Se eu tivesse em mente aqueles que ensinam a seus pupilos da mesma forma que os discípulos de Moisés e Cristo ensinam os deles - pois eles os ordenam a aceitar tudo pela Fé-- Eu não teria dado uma definição."
Assim como esta referência, do Sumário elaborado por Galeno da República de Platão, (uma obra perdida), que é encontrado apenas em citações em textos em árabe.
"A maioria das pessoas não é capaz de acompanhar qualquer demonstração racional contínua; Assim, eles precisam de parábolas, para seu próprio benefício (...) Da mesma forma, nos vemos hoje essas pessoas chamadas de cristãos, que extraem sua fé de parábolas e milagres, ainda que algumas vezes agindo da mesma maneira (daqueles que filosofam). Pois seu desprezo da morte (e suas consequências) nos é manifesto todos os dias, assim como sua continência em coabitar. Por que eles incluem não só homens, mas também mulheres que se dedicam ao celibato, assim como numerosos indivíduos que, em auto-disciplina e auto controle em questões de bebida e comida, e por sua sedenta busca pela justiça, que atingiram uma condição não inferior a dos verdadeiros filósofos"
Galeno foi contemporâneo de Luciano de Samosata e Celso. Assim como estes, foi crítico do que ele considerava a falta de bases racionais da fé dos cristãos. Contudo, ele também reconheceu alguns méritos da nova religião.
Prof. Margareth Y. MacDonald, da St. Francis University (Canadá), observa que o último texto de Galeno, (o mais longo, e mais relevante) se baseia em uma fonte arábica traduzida e publicada por Richard Walzer em "Galen on Jews and Christians" (Londres, Oxford University, 1949). Ainda que exista o risco teórico do texto se tratar ou conter interpolações cristãs, os estudiosos, como Stephen Benko e Robert L. Wilken, tem tratado o texto, consistentemente, como genuíno. Em vista da autenticidade do texto não ser contestada seriamente, passamos agora a análise de seu conteúdo.
Margareth Mac Donald:
"Ainda que Galeno tenha sido crítico da falta de uma base racional para as crenças cristãs, sua rigorosa devoção a abstnência o levou a descrever seu modo de vida como característico daqueles que eram filósofos. O fato que Galeno se referia ao cristianismo como escola filosófica e não superstição, como outros critícos haviam feito, nos lembra a aceitação que os primeiros cristãos podem ter recebido no mundo greco-romano, mesmo nos círculos elitizados"
Professor Stephen Benko, Universidade do Estado da California
"Poderíamos listar ainda mais apologistas, mas o ponto central já esta claro: estes cristãos queriam que a igreja fosse respeitada como um dos muitos movimento filosóficos existentes.
Galeno realmente considerava a igreja dessa forma, marcando assim uma mudança substancial da visão dos pagãos relativa ao cristianismo. Para Galeno, os cristãos não eram conspiradores perigosos ou canibais abomináveis, mas seguidores de uma escola filosófica. Dessa forma, Galeno (embora não o público em geral) conferiu ao cristianismo uma certa respeitabilidade, e os cristãos tornaram-se socialmente aceitáveis. Entretanto, Galeno não estava satisfeito com a filosofia cristã. Ela lhe parecia sem uma base racional, ainda que os cristãos se apegassem a um modo de vida peculiar. Para o cientista e estudioso, acostumado a demonstrar a verdade e rejeitar evidências "de ouvir falar", esta aceitação de tudo pela fé parecia infantil e primitiva.
(...) Ainda assim, Galeno foi um observador simpático ao cristianismo. Ainda que ele criticasse a falta de treinamento filosófico dos cristãos, ele apreciava suas virtudes morais. Ele louva a coragem deles diante da morte, sua aceitação da privação física, e sua continua busca pela justiça. Segundo Galeno, a despeito de suas limitações, os cristãos agiam como verdadeiros filósofos"
Prof. Robert M. Grant, da Universidade de Chicago, também observa a insatisfação de Galeno com as bases racionais e filosóficas do cristianismo, e também seu louvor ao comportamento moral dos cristãos.
"Galeno escreve em três ocasiões diferentes, sobre leis não demonstradas aceitas pelos discípulos de Moisés e Cristo, possivelmente entre 176-180, mas já diferencia os cristãos por volta de 180. Ainda que não fossem filósofos, eles desprezavam a morte, exerciam auto-controle na sexualidade, comida e bebida, e buscavam a justiça. Walzer compara a admiração de Galeno por escravos incultos que em 185 foram torturados mas não trairam seus mestres. Ainda mais importante, Galeno trata o comportamento dos cristãos de forma similar ao encontrado nas "Exortações atribuidas a Pitágoras", que ele lia duas vezes por dia; Eles favoreciam não só o desapego de Epicuro da raiva, mas sua pureza no que concerne a glutonaria, luxúria, embriaguez, intromissão e inveja. Por essa época, ditos morais Pitagóricos eram atribuidos ao autor cristão Sextus".
Galeno, a respeito de suas reservas quanto a solidez filosófica e racionais do cristianismo, tinha os valores morais da nova religião em alta conta, e atribuia isso ao ensinos encontrados nos evangelhos. A "Escola de Cristo" conseguia transformar pessoas simplórias em seres humanos disciplinados, corajosos e ansiosos pela justiça, "verdadeiros filósofos".
Sobre o impacto que a figura de Cristo e seus ensinos tiveram, vale observar que algumas décadas depois de Galeno, já em meados do século III, Mani (216-276 DC), um filósofo que vivia na distante Mesopotâmia (atual Iraque), então sob dominio do Império Parto, fundaria um sistema religioso que combinava ensinos de Jesus, Zoroastro e Buda, chamado Maniqueismo, que rapidamente se tornaria popular entre as elites do Império Romano, e se expandiria da China ao confins ocidentais do mundo Romano nos séculos seguintes.
Outro caso é citado por John P. Meier, que observa que já no início do século III, o Imperador Alexandre Severo (222 a 235 DC), mantinha em sua capela particular imagens de vários imperadores divinizados, de Alexandre Magno e de vários homens santos, como Apolônio de Tiana, Jesus Cristo, Abraão e Orfeu [33]. Meier faz a significativa ressalva de que a fonte dessa informação é a problematica e, muitas vezes, pouco confíavel, "História Augusta" - uma coleção de biografias de Imperadores entre Adriano (117-138) e Numeriano (283-284), supostamente escrita por seis diferentes autores no início do séc. IV, hoje considerada pelos estudiosos como produto de um único autor por volta do final do século IV [33][34]. No entanto, apesar de suas limitações "Historia Augusta" ainda é uma das fontes principais ( e as vezes a única) de informações históricas para muitos os Imperadores Romanos dos séculos II e III, mesmo para figuras como Marco Aurélio, Adriano, Antonino Pio e Lucio Vero, trazendo informações que variam do "preciso e acurado até o evidentemente fictício"
Concluindo, é fato que os cristãos nos séculos II e III foram vistos com desconfiança e hostilidade pelas elites judaicas e greco-romanas. O cristianismo era, na visão de muitos observadores externos, uma superstição; nova emaligna (Suetônio, De Vita Nero, 16:2), depravada e irracional (Plínio, Cartas 10:96) e "daninha" (Tácito, Anais 15:44).
No entanto, esta não é história completa. Temos em Galeno um eco do Jesus o "homem sábio" de Josefo, e da surpresa de Plínio, que mesmo sendo hostil ao cristianismo e o considerando uma "superstição irracional e sem medida", nada encontrou além de pessoas que se reuniam para cantar hinos ao seu Mestre se comprometendo "sob juramento, não com algum crime, mas a abandonar o furto, o roubo, o adultério, a infidelidade e não se apossar dos bens a eles confiados".
Ao passo que muitos dos membros da elite do Império frequentemente tinham uma visão pejorativa dos cristãos, os seus méritos não passaram desapercebidos. Vemos em Galeno, um membro distinto da elite romana, a continuidade de uma tendência, já incipiente em observadores anteriores de ver algumas virtudes no cristianismo, principalmente na figura de Cristo como Mestre de verdades morais. E que se intensificaria um pouco mais (em críticos como Porfírio). Nesse contexto, é possível entender Josefo se referindo a Jesus como "homem sábio" e mestre.
O Jesus Mestre e Sábio é apenas uma das facetas de sua personalidade, o elemento que parece mais ter chamado a atenção de observadores simpáticos ou neutros. Não nos atrevemos, no entanto, a descrever tal figura na sua totalidade, pois, suspeitamos, parafraseando aqui o evangelho, "que nem toda a tinta e papel do mundo seriam suficientes".