Mostrando postagens com marcador John Day. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador John Day. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 27 de julho de 2011

De pregador itinerante a Filho de Deus

O general romano Hermógenes estava estacionado com seus soldados em frente aos muros de Constantinopla, então a capital do império. Sentia-se preocupado. Fora incumbido pessoalmente pelo imperador Constâncio de prender um líder rebelde local, mas encontrara a cidade tomada por lutas de rua e parcialmente em chamas. Hermógenes decidiu pernoitar fora de Constantinopla para preparar seus próximos movimentos. Durante a noite, porém, a casa em que dormia foi descoberta por populares. Eles a incendiaram e arrastaram o militar para as ruas, onde foi surrado até morrer.

A morte de Hermógenes, ocorrida em 342, mostra o grau de enfrentamento e divisão que varreu o Império Romano durante o ciclo que entrou para a história como a controvérsia ariana. O que começou como um erudito debate teológico sobre Jesus se transformou numa questão de estado que durou cerca de 70 anos, rachou a sociedade da época e quase a arrastou para a guerra civil. O conflito só terminou quando um dos dois lados conseguiu empurrar o outro para a ilegalidade e a lata de lixo da história. A vitória teve um alcance que extrapolou, em muito, o próprio Império Romano. Pois foi durante aquele redemoinho histórico que se estabeleceu, na Igreja antiga, o dogma da identidade entre o carpinteiro Jesus de Nazaré e o Deus a quem ele chamava de Pai.

A controvérsia ariana é um drama, cheio de conspiração e de viradas inesperadas (veja arte ao longo do texto). Mas suas origens estão, na verdade, na pluralidade de pensamento que caracterizou o início do cristianismo, quatro séculos antes.

Após a morte de Jesus, seus seguidores espalharam-se pelo mundo. As primeiras comunidades cristãs surgiriam em cidades da Palestina, da Síria, da Ásia menor, da Grécia e até em Roma. "Devido à própria diversidade geográfica, esse grupos entraram em contato com diferentes idéias religiosas já existentes: alguns sofreram influências do judaísmo, outros do mundo grego".

Na segunda metade do século 1, algumas comunidades escreveram suas memórias da vida e dos ensinos de Jesus, criando os primeiros evangelhos. Os evangelhos atribuídos a Marcos, Mateus, Lucas e João serão depois considerados inspirados, e incorporados à Bíblia, enquanto outros, como o de Tomé, serão rejeitados. Neles já se refletem as diferenças entre as comunidades. "No evangelho de Marcos a narrativa só começa quando Jesus é reconhecido como filho de Deus, no batismo. Um outro grupo, porém, vai descrever sua infância, para afirmar que ele já era especial desde o nascimento. Não é que um texto queira negar o outro, mas sim ir além".

Ele conta que entre as idéias dos primeiros seguidores de Jesus estava a de que ele seria um profeta e libertador escatológico. Ou um enviado de Deus e, portanto, seu filho. "As pessoas exploravam diferentes maneiras de compreendê-lo", diz a americana Elaine Pagels, professora da Universidade Princeton, especialista no cristianismo primitivo e autora de "O Evangelho Desconhecido de Tomé".

Pagels diz que Marcos, Mateus e Lucas consideravam Jesus um ser humano com uma missão especial. "Eles o vêem como um messias, ou um rei enviado por Deus. Mas o rei Davi fora chamado de messias também. Só as cartas de Paulo e o evangelho de João é que falam diretamente sobre a divindade de Jesus", afirma.

Como alguém podia ser um cristão devoto e pensar que Jesus não é Deus? Uma possibilidade vem se revelando por meio da pesquisa dos manuscritos do Mar Morto, descobertos em 1947. No livro "Rei e Messias", o estudioso inglês Cristopher Rowland, de Oxford, explica que muitos viam Jesus como um "mediador angélico". Para esses cristãos Jesus era "aquele que, como o anjo de Deus no Antigo Testamento, foi enviado para revelar e cumprir a vontade de Deus, que está no céu".

O debate sobre a Bíblia

A disputa entre as diferentes visões sobre Jesus se refletiu também na discussão sobre a formação do livro sagrado dos cristãos
• 30 d.C.

Crucificação de Jesus

• Década de 50

Escritos do apóstolo Paulo

• 50-70

Escrita do evangelho de Tomé

• 70-90

Escrita dos evangelhos das comunidades de Marcos, Mateus e Lucas

• 90-100

Escrita do evangelho da comunidade de João

• Século 2

O número de evangelhos escritos por diferentes comunidades cristãs chega às dezenas. Irineu, bispo de Lião, denuncia boa parte desses grupos e seus textos como heréticos

• 144

Marcião, importante líder cristão, propõe um cânone bíblico composto por apenas um evangelho e as cartas de Paulo. Ele é denunciado como herege

• 170

Taciano escreve uma versão condensada dos evangelhos, que é recusada

• Século 3

Intenso debate teológico sobre a figura de Jesus

• 318

Início da controvérsia ariana

• 325

Reunidos no concílio de Nicéia, bispos escolhem uma fórmula que é contrária ao arianismo

• 367

Em seu esforço para combater o arianismo, o bispo Atanásio faz a primeira lista dos textos que compõem o novo testamento

• 381

Concílio de Constantinopla, convocado pelo imperador Teodoro, bane os bispos arianos

• 382

Concílio em Roma confirma a lista de Atanásio

Outros acreditavam que Jesus tivesse se tornado angelical ao ser elevado aos céus. Paulo Nogueira explica que "na tradição apocalíptica judaica, quando um homem subia aos céus, tinha que se transformar em anjo ou seria fulminado". Mas o caso de Jesus é diferente. "Ele seria maior do que os anjos, pois sobe aos céus para morar com Deus e governar o universo com ele, tornando-se um vice-regente ", diz.

E a diversidade de pontos de vista sobre Jesus só aumentaria com o tempo. A região do Mediterrâneo Oriental era um cadinho de povos e idéias. A cultura mais influente era a grega, com sua tradição de racionalismo e filosofia. À medida que o cristianismo penetrava nesse mundo, o encontro entre o pensamento grego e as escrituras da nova religião dava origem a formas mais sofisticadas de teologia cristã. "As discussões especulativas, que eram próprias das escolas filosóficas, foram transferidas para a teologia cristã". As escolas de teologia de certa forma foram sucessoras das academias filosóficas".

No início do século 4, as cidades de Antioquia e de Alexandria haviam se firmado como os dois grandes centros teológicos da cristandade, mas com diferentes tradições intelectuais. Em Antioquia era forte a influência aristotélica, e privilegiava-se uma leitura mais literal da Bíblia. Em Alexandria predominava uma releitura de Platão. E tendia-se a interpretar os textos bíblicos como alegorias.

A polêmica ariana teve início em 312 quando Ário, um popular padre de Alexandria, começou a pregar que Jesus não era igual a Deus, mas sim criado por ele e subordinado a ele. Alexandre, o bispo de Alexandria, considerou essa posição herética e em 318 puniu-o com o exílio. Mas o padre não era propriamente o autor de tais idéias; ele as absorvera em parte durante seus anos como estudante de teologia em Antioquia. E de maneira geral, a doutrina da subordinação de Jesus ao Pai era uma crença forte na parte oriental do Império Romano. "Não estava claro que a doutrina de subordinação fosse herética", explica Richard Rubenstein, autor de "Quando Jesus se Tornou Deus", o livro que inspirou esta reportagem. "Esse foi um dos fatores que fez com que a luta durasse tanto."

Ário partiu para a cidade de Nicomédia para receber o apoio de Eusébio, um antigo colega de estudos em Antioquia que se tornara bispo influente da igreja oriental. Começava a disputa entre arianos e antiarianos.

Uma divisão na Igreja era tudo o que o então imperador Constantino não queria. Ao contrário, seu objetivo era restaurar os dias de paz e grandeza do império, que se ressentia dos momentos difíceis do século anterior.

No início dos anos 220, tribos germânicas e soldados persas haviam invadido as fronteiras da Europa e da Ásia, e imposto aos legionários derrotas sem precedentes. Para sustentar o exército romano, os impostos foram duplicados sucessivas vezes, o preço dos alimentos subiu e a inflação explodiu. Em 70 anos, 17 generais diferentes tomaram o poder. O povo era impelido em massa para a escravidão e o banditismo assolava o império. Por volta de 290, porém, a crise parecia superada, ou superável. O imperador Diocleciano se propõe a trazer de volta a grandeza de Roma, e decreta a partir de 303 uma perseguição ampla, mas malsucedida, aos cristãos.

Diocleciano morre e em 312 o poder vai parar nas mãos de Constantino. Mesmo sem se batizar, Constantino é um cristão convicto. Cessa as perseguições, restitui à Igreja os bens confiscados, e abre a ela os cofres públicos. Constantino queria transformar o cristianismo numa ideologia oficial, capaz de trazer unidade a um império marcado pelo medo da dissolução e pelas diferenças regionais, especialmente entre a porção ocidental, que falava latim, e a oriental, que falava grego.

Buscando conciliação, ele convocou em 325 um concílio de bispos na cidade de Nicéia, o qual presidiu pessoalmente. Os bispos aprovaram uma fórmula conhecida como credo de Nicéia, que afirmava explicitamente que Jesus e Deus compartilhavam a "mesma essência". Foi uma derrota dos arianos.

Após o concílio, o bispo Eusébio de Nicomédia caiu nas graças de Constantino, que também se aproximou de Ário. As idéias de Ário foram declaradas corretas em concílios posteriores, e ele morreu bem no dia em que seria formalmente reintegrado à Igreja por ordem expressa do imperador. Sua morte não terminou o conflito, pois suas idéias eram apoiadas pela maior parte dos bispos da região de fala grega do império, enquanto seus adversários (o bispo Alexandre e seu discípulo e sucessor, Atanásio) tinham o apoio da parte latina da Igreja.

Rubenstein explica que a divisão era um reflexo das diferenças culturais. "A igreja do Oriente ainda se via, em alguma medida, como uma continuação do judaísmo e da cultura grega. Já a visão do grupo niceno era mais radical, e defendia uma ruptura com as heranças grega e judaica."

Na tela, um homem de muitas faces

Durante o século 20 o cinema mostrou várias versões sobre a personalidade do carpinteiro de Nazaré. Inicialmente com uma reverência que parecia beirar o temor. "Nos primeiros filmes Jesus era mostrado só de longe, não se via seu rosto", explica o professor de literatura Antônio Carlos Fester, que dá palestras em que analisa as diferentes formas como Cristo foi retratado na telona. "Isso só acontece, no cinema americano, com o 'Rei dos Reis', em 1927.

"Ex-membro da comissão de justiça e paz de São Paulo - sobre a qual está lançando um livro -, Fester é um católico cinéfilo, e criou, em meio a sua coleção de centenas de DVDs, uma sessão com dúzias de filmes onde Cristo é retratado como personagem principal ou coadjuvante. A partir da coleção, conseguiu detectar alguns padrões. "Existe um Jesus no cinema que é uma figura convencional, quase acadêmica." É o caso de filmes como o "Jesus de Nazaré", de Franco Zefirelli. "Os padres gostam muito desse filme porque é muito completo do ponto de vista biográfico. Embora seja preciso lembrar que os evangelhos não foram escritos como biografias", ressalta. Nestas obras é comum vê-lo como um homem de gestos pausados, bastante sério e com alguma pompa. Ao mesmo tempo há bastante ênfase nos milagres, recriados de forma impactante. É como se a parte divina do personagem fosse a sua totalidade.

Com o tempo, surgiu um Jesus mais pessoal. Em "A Maior História de Todos os Tempos", de George Stevens (onde o papel fica a cargo de Max von Sidow), ressalta-se a sua identidade como judeu praticante. Em "O Evangelho Segundo São Mateus", de Pasolini (que foi elogiado pelo Vaticano), mostra-se um cristo atuante, confrontando as autoridades temporais e religiosas da sua época. "A Última Tentação de Cristo", de Martin Scorsese, mostra uma progressiva descoberta de sua tarefa messiânica, intermeada com sentimentos de paixão amorosa, medo, dúvida. "Essa linha de filmes causa estranhamento e faz pensar sobre quem foi esse homem e qual sua mensagem", diz.

Essas diferenças sobressaíam-se na maneira como viam Jesus. "Os arianos tinham uma visão mais otimista da natureza humana, e viam Jesus como um exemplo moral. Tendiam a ressaltar seus aspectos de Filho, que o mostravam mais como um irmão mais velho do que uma figura paterna." Já os nicenos eram mais pessimistas quanto ao caráter pecador da humanidade, e consideravam que só um Jesus que estivesse no mesmo nível de Deus poderia vencer o pecado e a morte. Também viam a Igreja como o elemento mais importante de salvação, uma instituição que deveria resistir até mesmo ao fim do Império Romano - o que acabou acontecendo.

Por duas vezes, durante a controvérsia, o poder imperial esteve nas mãos dos arianos (um deles o Constâncio que enviou seu general Hermógenes para morrer nas mãos do povo de Constantinopla). Mas o bispo Atanásio de Alexandria revelou-se um adversário à altura. Durante quatro décadas, atazanou sem parar seus inimigos, recorrendo até mesmo à violência. Morreu em 373, pouco antes de a maré virar a seu favor. Em 378, as legiões romanas, sob o comando do imperador ariano Valente, foram arrasadas pelos godos na batalha de Adrianópolis. O império, mais uma vez, estava no fundo do poço. Ambrósio, bispo antiariano de Milão, fez um comentário severo: "Esse é o julgamento de Deus sobre os arianos". Teodósio I, o sucessor de Valente, conseguiu afastar por algum tempo o perigo das invasões . Durante uma viagem à Itália, aproximou-se dos bispos da igreja latina, e em fevereiro de 380 publicou um edito que promulgava a ortodoxia nicena como lei. A seguir, proibiu que os arianos celebrassem cultos em qualquer igreja e removeu-os dos bispados mais importantes.

Teodósio convocou um concílio em Constantinopla, em 381, que reafirmou o credo niceno, com algumas variações. Por fim veio a ordem para queimar os documentos arianos, cuja posse era crime mortal. "Depois de 70 anos de lutas internas que culminaram com o desastre de Adrianópolis, Teodósio apareceu num estágio histórico semelhante a Napoleão ou Stalin: uma figura autoritária cuja missão era consolidar a revolução cristã, preservar e adaptar a religião às realidades sociais existentes e, ao mesmo tempo, incorporá-la à estrutura do poder governamental", escreve Rubenstein.

Mas não foi o fim dos debates sobre a natureza de Cristo. No século 5 começou a impor-se nas igrejas da Síria Ocidental, Armênia, Egito e Etiópia a corrente monofisista, que privilegiava seu aspecto divino. No Ocidente subsistiu uma visão que afirmava a plena humanidade de Jesus. Mas sem torná-lo menos divino, pois o concílio de Constantinopla afirmou a crença num Deus trinitário, composto de três pessoas que partilhavam uma só substância divina. E Jesus, identificado com a segunda pessoa da trindade, foi reconhecido como Deus encarnado.

1 - Em Alexandria, o padre Ário afirma em seus sermões que Jesus é subordinado a Deus, e não o próprio Deus. Bom pregador e poeta, Ário torna-se uma figura popular.
2 - Alexandre, o bispo de Alexandria, convoca Ário para explicar suas idéias, as quais julga incorretas. Ele o excomunga e bane de Alexandria.
3 - Ário foge para Antioquia onde o bispo local, Eusébio, é seu amigo e figura poderosa na região oriental do império. Eusébio convoca um concílio, uma reunião de bispos para debater a doutrina, o qual conclui que as idéias de Ário não são heréticas.
4 - Preocupado com a divisão entre adeptos e adversários de Ário, o imperador Constantino convoca um concílio na cidade de Nicéia. Alexandre comparece levando seu pupilo Atanásio, que será o grande adversário dos arianos. O líder dos arianos é Eusébio. Os participantes criam um credo que condena indiretamente as idéias arianas. Ário se recusa a validar o credo e é expulso. Eusébio pouco depois será exilado.
5 - Numa reviravolta, Constantino chama Eusébio de volta do exílio e o nomeia seu conselheiro particular. Sob o patrocínio de Eusébio é convocado um novo concílio que considera as idéias de Ário corretas. Constantino exige que o bispo Alexandre readmita Ário a sua igreja em Alexandria.
6 - Alexandre se recusa terminantemente a readmitir Ário e morre pouco depois. Atanásio se torna bispo de Alexandria. Ele organiza uma resistência por vezes violenta contra os partidários de Ário.
7 - O imperador funda uma nova capital, Constantinopla. Atanásio é furiosamente perseguido e acusado de organizar o espancamento de cristãos arianos. Ele não nega as acusações, mas vai até Constantinopla falar com o imperador, a quem consegue impressionar favoravelmente.
8 - Ário escreve a Constantino reclamando que ainda não foi reintegrado à sua igreja. Constantino se sente ofendido pelo tom da carta e responde chamando-o de inimigo da religião. Ário vai a Constantinopla e se reaproxima de Constantino, que se dispõe a ajudá-lo diretamente a voltar para Alexandria.
9 - Os arianos organizam um concílio na cidade de Tiro, que condena Atanásio. Mas ele foge do Egito e é exonerado de seu posto e excomungado.
10 - Num concílio em Constantinopla, Ário apresenta sua própria versão do credo que, embora diferente do credo aprovado em Nicena, é julgado ortodoxo. O concílio ordena que ele receba a comunhão na principal igreja de Constantinopla, como forma de abrir o caminho à sua volta para Alexandria. Mas ele morre subitamente poucas horas antes da missa. Constantino também morre e o império é dividido entre seus filhos. Constante, que defende os antiarianos, fica com a Itália, e Constâncio, que protegerá os arianos, com a parte oriental do império.
11 - Ocorrem lutas violentas entre adeptos das duas correntes por todo o Mediterrâneo oriental. Tropas do exército desembarcam em Alexandria para prender Atanásio, mas ele foge para Roma. Eusébio, no auge do poder, se torna bispo de Constantinopla.
12 - Eusébio morre. Os adeptos de Atanásio tentam entronizar como novo bispo um dos seus, Paulo. Isso gera lutas violentas em Constantinopla, inclusive incêndios. Constâncio envia um general para prender Paulo, mas o militar morre espancado por uma multidão. As metades oriental e ocidental do império estão cindidas. Constante ameaça Constâncio com o uso da força para defender Atanásio. Risco de uma guerra civil entre Constante e seu irmão.
13 - Constâncio se torna o único líder do império e vê os adeptos de Atanásio como uma ameaça à estabilidade. Ele força a convocação de um outro concílio que adota um credo para subsitituir o de Nicéia. Mas ele morre pouco depois.
14 - O trono romano passa por vários ocupantes em poucos anos, enquanto o império sofre fortes reveses militares. Um general, Teodósio, consegue estabilizar a situação.
15 - Teodósio se aproxima dos bispos do ocidente e publica um edito defendendo o credo niceno. Ele ordena a perseguição dos arianos e consolida o cristianismo como religião oficial do império. É a vitória dos ortodoxos.
----------------
Para ler:

• "Quando Jesus se tornou Deus", Richard Rubenstein. Fisus Editora, 2001.

• "Além de Toda Crença - O Evangelho Desconhecido de Tomé", Elaine Pagels. Objetiva, 2003.

• "História do Movimento Cristão Mundial", Dale Irvin. Paulus, 2004.

• "Rei e Messias", John Day (org.). Paulinas, 2005

• "O Nascimento do Cristianismo", John Dominic Crossan. Paulinas, 2005

quinta-feira, 19 de maio de 2011

As Hipóteses Sobre "O Filho do Homem"


“Este é o rei dos judeus”
– o título “filho do homem”

na camada histórico-traditiva pré-pascoal

como referência à

tradição vetero-testamentária do rei.

A hipótese de que a fórmula “filho do homem” constituía: (a) um título (b) que Jesus aplicava a si mesmo, (c) baseado na tradição do Antigo Testamento do “rei” como “filho do homem” e (d) que, por isso, assumia-se publicamente como de algum modo relacionado a algum tipo de “rei carismático”, próprio dos movimentos messiânicos populares, (e) tendo por isso sido preso, disso, acusado e por isso, morto, uma vez que atribuir a si o papel de “rei dos judeus” constituía atividade política revolucionária não tolerada pelo poder romano e passível de morte.

Inicialmente, registre-se que não há, na pesquisa, consenso a respeito do significado histórico-traditivo do título “filho do homem”, plausivelmente auto-aplicado a si mesmo pelo próprio Jesus de Nazaré.

Trata-se, pois, aqui, de, digamos assim, muito mais contribuir para o “dissenso” instalado do que propor uma harmonia em torno das propostas vigentes. Até onde se pôde verificar, mas não se foi suficientemente longe, o presente artigo aponta para uma alternativa ainda não sugerida.

Tomada em sua forma canônica, e considerando-se que efetivamente tenha sido aplicada a Jesus já por ele mesmo, a tradição neo-testamentária, a rigor, evangélica, do “filho do homem” revela-se “contaminada” pelas interpretações próprias da história dos efeitos e dos desdobramentos teológicos da crucificação, o que significa que, considerando-se uma sempre plausível multiplicidade de tradições, esse estado traditivo-literário canônico não reflete mais a tradição do período pré-pascoal em seus múltiplos e potenciais estados histórico-traditivos originais.

Todavia, é legítimo pressupor que essa agora canônica configuração traditivo-literária contenha, na forma de “pacotes” de informação, contextual e até semanticamente deslocados, misturados ainda que estejam à massa compacta em que se transformaram os elementos originais agora reunidos em torno de um novo “querigma”, elementos histórico-traditivos da tradição pré-pascoal.

A derivação dinâmica que tem essa nova configuração canônico-traditivo-literária daqueles blocos originais da tradição pré-pascoal faculta indiciariamente, uma tentativa crítica – difícil e arriscada – de recuperação daqueles momentos traditivos, bem como – é o caso – de, por hipótese, sua dependência referencial histórico-traditiva original.

E isso, mesmo considerada a declaração de Richard A. Horsley e John S. Hanson de que os “consensos” em torno de temas histórico-traditivos “duros” relacionados a Jesus de Nazaré reflitam mais os desdobramentos levados a efeito pelas comunidades herdeiras da “fé” do que propriamente o substrato histórico relacionado a Jesus de Nazaré. Não se trata de uma questão fácil, porque, ou se pode simplesmente tomar ingenuamente toda a tradição evangélica como historiografia, ou, no caminho inverso, recusar-se toda ela como desdobramento pós-pascoal.

O que aqui se defende é que, quaisquer que tenham sido os conteúdos da tradição pré-pascoal, mesmo que deslocados de seus respectivos contextos originais e reinstalados em novos contextos significativos, vestígios dela – termos, referências a ações e práticas, temas, personagens, referências – devem ter sobrevivido e sido incorporados em narrativas, essas sim, fruto dos desdobramentos “hermenêuticos” pressupostos.

Dependendo do “tipo” por meio do qual Jesus de Nazaré seja reconstruído, algum grau de consciência de morte iminente pode ser considerado como plausível – por exemplo, no caso de ser admitida a hipótese de que Jesus pertencia a alguma expressão sócio-política próxima das comunidades messiânicas populares, descritas.

Naturalmente que, nesse caso, a morte – e mesmo a crucificação –, com a qual então se contaria, não podia assumir, ainda, a dimensão teológica que, mais tarde, sabemos, receberá. Em todo caso, a lista de exemplos revela-se, nesse sentido, “rigorosa”.

Assumam-se, na versão canônica, como exemplos demonstrativos parciais de que a tradição – em tese original – relacionada à fórmula jesuânica pré-pascoal “filho do homem” deve ser considerada como contaminada pelos efeitos da interpretação teológica da “cruz”, implicando, em termos literários, em flagrantes de vaticinium ex eventu, as seguintes referências mais ou menos explícitas à própria cruz e a seus entornos sintagmático-teológicos:

 Mt 20,28 Mc 10,45 (“tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”3 [ARA]).

 Mt 26,2 (“sabeis que, daqui a dois dias, celebrar-se-á a Páscoa; e o Filho do Homem será entregue para ser crucificado” [ARA]).

 Mt 20,19.20 (“e o entregarão aos gentios para ser escarnecido, açoitado e crucificado; mas, ao terceiro dia, ressurgirá” [ARA]).

 Mt 12,40 (“porque assim como esteve Jonas três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim o Filho do Homem estará três dias e três noites no coração da terra” [ARA]),

 Mt 17,9 (“A ninguém conteis a visão, até que o Filho do Homem ressuscite dentre os mortos” [ARA]; cf. v. 22: “e estes o matarão; mas, ao terceiro dia, ressuscitará” [ARA]).

 Mc 9,9 (“ao descerem do monte, ordenou-lhes Jesus que não divulgassem as coisas que tinham visto, até o dia em que o Filho do Homem ressuscitasse dentre os mortos” [ARA]).

 Mc 9,31 (“porque ensinava os seus discípulos e lhes dizia: O Filho do Homem será entregue nas mãos dos homens, e o matarão; mas, três dias depois da sua morte, ressuscitará.” [ARA]).

 Mc 10,33-34 (“eis que subimos para Jerusalém, e o Filho do Homem será entregue aos principais sacerdotes e aos escribas; condená-lo-ão à morte e o entregarão aos gentios; hão de escarnecê-lo, cuspir nele, açoitá-lo e matá-lo; mas, depois de três dias, ressuscitará” [ARA]).

 Jo 3,3 (“ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do Homem que está no céu” [ARA]).

 Jo 12,34 (“nós temos ouvido da lei que o Cristo permanece para sempre, e como dizes tu ser necessário que o Filho do Homem seja levantado? Quem é esse Filho do Homem?” [ARA])

De um ponto de vista puramente historiográfico, resulta necessário pressupor que o estado dessa tradição literária reflita já a informação dos fatos mencionados – a “morte”, por crucificação, e a “ressurreição” do “filho do homem”. Se, todavia, a fórmula for considerada pré-pascoal, deve-se admitir que, em termos históricos, não se pode relacioná-la, quando e então ainda pré-pascoal, a tais sintagmas teológicos – cruz e ressurreição. Dito em chave teórico-metodológica: a fórmula “filho do homem” não pode ter caráter “cristológico”, quando ainda não havia “cristologia”.

Se, por um lado, a “cristologia” apropriou-se da fórmula, impondo-lhe uma nova configuração histórico-traditiva, de outro lado é necessário conceder validade à pressuposição de que, se a fórmula “filho do homem” fora aplicada a Jesus de Nazaré antes da cruz, há, então, necessariamente, uma dependência referencial não-cristológica que lhe oriente a atualização pré-pascoal.

Uma vez que, por força de eventos posteriores a sua consubstanciação presumivelmente original – a cruz, a ressurreição, a soteriologia, a escatologia, a cristologia –, a tradição do “filho do homem” encontra-se, agora, alterada pela resignificação teológica, resulta ser incontornável a conclusão de que, quando e se alimentada também por essas “atualizações”, a interpretação hodierna dessa mesma fórmula revele-se contaminada pelos mesmos elementos secundários em relação ao estatuto referencial original do título jesuânico pré-pascoal.

Aqui se percebem elementos teórico-metodológicos próximos aos argumentos de Horsley e Hanson com relação ao processo de construção do consenso em torno do qual os eventos pós-pascoais terminaram por sobre determinar a interpretação da tradição pré-pascoal (HORSLEY e HANSON, p. 89ss). No entanto, forçoso é considerar que, talvez, Horsley e Hanson cheguem longe demais, sugerindo que qualquer traço de messianismo e de reivindicação real em Jesus de Nazaré faça parte desse consenso posterior.

Se for o caso de a fórmula “filho do homem” ser, pois, interpretada cristologicamente, por exemplo, fazendo-se com que se refira ao fato de que Jesus de Nazaré fosse, ao mesmo tempo, de um lado, “divino”, e, de outro, “humano”, e que, nesse caso, então, tal fórmula acentuasse justamente esta última dimensão cristológica de Jesus, não se pode, nesse caso, deixar-se de admitir que tal “explicação” pode até revelar faces históricas da tradição próprias do período em que a amálgama entre “Jesus” e “cristologia” se estabelecia, isto é, a partir daquele momento em que o “Jesus histórico” começa a ser substituído pelo “Cristo da fé”, mas, não, absolutamente, faces históricas da tradição anterior ao desenvolvimento dessa mesma cristologia – salvo, naturalmente, na hipótese de Jesus de Nazaré ter-se tomado ele mesmo na condição de um ser celeste encarnado e de tê-lo formal e publicamente exposto.

Em termos históricos, deve-se estar desejoso de e preparado para encontrar fundamentos referenciais disponíveis para as tradições circulantes, de modo que, se original, isto é, se própria das camadas pré-pascoais da tradição, a fórmula “filho do homem” deve fazer referência a elementos traditivos igualmente pré-pascoais e, eventualmente, ainda disponíveis.

E essa é a questão: que elementos pré-pascoais podem ser apontados como possíveis fundamentos para a aplicação da fórmula “filho do homem” a Jesus de Nazaré no sentido de lhe reconfigurar as feições pré-pascoais?

1. Das referências escriturístico-traditivas para a explicação cristológica da fórmula “Filho do Homem”

Uma vez que o estado e o contexto canônico da fórmula “filho do homem” reflitam as “contaminações” cristológicas pós-pascoais, levadas a termo por judeus, cristãos e judeus-cristãos das primeiras décadas da tradição cristã, é compreensível que a busca canonicamente orientada pelas fontes escriturístico-traditivas do agora título cristológico “Filho do Homem” seja dirigida pelo viés teológico-cristológico com que os Evangelhos estruturaram as narrativas que a empregam, a isso somada a carga teológica dos dogmas cristológicos assentados em Nicéia, que, com efeito, norteiam, ainda hoje, o olhar teológico.

Por força dessa orientação evangélica e nicênica, compreende-se como a expressão “filho do homem” faça remeter ao dogma da humanidade/divindade do Cristo. “Filho do Homem”, nesse caso, denuncia o aspecto humano do “Deus” encarnado (cf. Filipenses 2,5-8). Assim, buscou-se a fonte dessa tradição veterotestamentária, de um lado, em Ezequiel, onde se concentram as ocorrências de Ben-´ädäm (“filho de/o homem”) e, de outro, em Daniel (por exemplo, DUQUOC, p. 174).

Em Daniel, a ocorrência é única, e emprega-se aí a fórmula Ben-´ädäm do mesmo modo como em Ezequiel, isto é, trata-se do modo como a divindade se dirige ao seu interlocutor escriturístico: “mas ele me disse: Entende, filho do homem, pois esta visão se refere ao tempo do fim”. Todavia, em Dn 7,13 encontra-se a expressão Kübar ´énäš, traduzida tradicionalmente por “um como o filho do homem”. Eis parte da narrativa:

Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do Homem, e dirigiu-se ao Ancião de Dias, e o fizeram chegar até ele. 14Foi-lhe dado domínio, e glória, e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído.

Sempre à luz da atualização que a fórmula “filho do homem” sofreu a partir das interpretações teológicas pós-pascoais, compreende-se a força que, na qualidade de “grande atrator”, essa passagem exerce sobre o título canônico-evangélico, considerando-se que se deixam gravitar, aí, os elementos teológicos presentes na doutrina cristológica – a origem celeste do “Filho do Homem”, sua relação com a divindade, sua condição próximo-humana e seu “reinado eterno”.

Nesse caso, talvez se possa, de fato, considerar então, que “com sua referência a Dn 7 (...) „Filho do Homem‟ era adequado para expressar a concepção messiânica própria de Jesus” (FABRIS e MAGGIONI, p. 352; cf. DUQUOC, p. 176), desde que, teórico-metodologicamente, trate-se de se considerar o Jesus da tradição já evangélica, a rigor, mais o “Cristo” do que Jesus de Nazaré propriamente. Todavia, se não me tomo vítima de preconceito, resulta muito difícil, em termos historiográficos, conceber que o próprio Jesus pudesse atribuir a si mesmo aspectos que a fórmula “filho do homem” comportará apenas após as interpretações teológicas dos eventos pascoais e pós-pascoais – e isso justamente naquela exata configuração cristológica.

A aproximação teológica à fórmula agora cristológica deixa-se contaminar pela história dos efeitos do título “filho do homem” – e, mais do que isso, empreende esforços para neutralizar aspectos histórico-traditivos concorrentes e não-conformes à formatação dogmática clássica. Por exemplo: “O título Filho do Homem remonta a Jesus. É bem compreensível Jesus ter substituído o título „messias‟ por „Filho do Homem‟. Este evitava as ambíguas interpretações político-nacionalistas ligadas ao título de Messias” (FABRIS e MAGGIONI, p. 352). Não se pode, de fato, descartar a hipótese de que o próprio Jesus atribuíra a si o título “filho do homem”.

Todavia, quando se pretende desarticular o título “filho do homem” das estruturas políticas em torno da qual ele, por hipótese, gravitava, o resultado a que se chega é uma espécie de erasio memoriae das camadas revolucionárias da tradição jesuânica pré-pascoal, um interdito e uma desmaterialização do caráter sócio-político das ações de Jesus de Nazaré, efeito a que se chega por meio da concentração nos aspectos teológico-metafísicos da tradição pós-pascoal. Insisto – é possível, sim, que a tradição evangélica tenha deslocado o sentido e o contexto político original da fórmula “filho do homem”, e isso por força das interpretações teológicas aplicadas sobre eventos pascoais – a cruz e a ressurreição.

No entanto, em termos historiográficos, resulta muito difícil retroprojetar o mesmo fenômeno ao próprio Jesus de Nazaré. Não se pode desconsiderar o fato de que, por exemplo, a tradição lucasiana tenha insistido na incompreensão pré-pascoal absoluta dos discípulos em relação ao “sentido” dos acontecimentos relacionados a Jesus, bem como à sua mensagem como um todo (Lc 24,1-12; 24,13-35; At 1,1-7; 8-12), questão a que, adiante, retornaremos.

Não se deve negligenciar a força teológica com que a pesquisa pelo entendimento do título “filho do homem” se deixa desenvolver. São os aspectos teológicos do termo “filho do homem”, evangélica e nicenicamente atualizado, que terminam por nortear as discussões (que deveriam ser) “críticas” – se Jesus teria ou não aplicado a si mesmo o título “messiânico”, disso depende de ele ter tido de si já a consciência cristológica que a ele se aplicará somente mais tarde (DUQUOC, p. 168ss).

Observando-se a discussão, percebe-se que a interpretação teológico-cristológica de “filho do homem” assentou-se de tal modo sobre a fórmula que assume a pretensão de definir que, se se vai perguntar pela possibilidade de Jesus de Nazaré ter aplicado a si mesmo o título, só se pode conceber uma hipótese em que, nesse, caso, então, Jesus tivesse aplicado a si mesmo aquelas concepções cristológicas que agora gravitam em torno da expressão evangélica, quando o procedimento mais adequado seria presumir-se um estado tal do titulo no período pré-pascoal em que as concepções pós-pascoais ainda dele não se tivessem teologicamente assenhoreado.

Estamos diante de um caso de fixação “hermenêutica” de uma expressão histórica – “filho do homem” significa o que significa, seja depois da “Paixão”, seja antes da “Paixão”, ainda que, em termos historiográficos, os termos pós-passionais não pudessem constituir a órbita percorrida pelo título.

Quando do aprofundamento da pergunta em direção às camadas mais antigas da dependência traditiva do título aplicado a Jesus, “autores sérios (...) perceberam na figura do Filho do Homem, fragmentos de um mito” (DUQUOC, p. 180), nos termos do qual a chave de compreensão reside no fato de que ele carrega em si o mistério da unidade entre o homem e Deus.

Dir-se-á tratar-se de especulações próprias dos ambientes filonianos, bem como de mistérios que apenas Mt 25,31ss revelará (DUQUOC, p. 180). Eventualmente... Alternativamente, podem-se simplificar as coisas, considerando-se que “Filho do Homem” designe, de imediato, “o humilde sofredor como detentor do poder” (BERGER, p. 160).

No entanto, caminhar alguns passos com Gerd Theissen e Annette Merz pode levar a reflexão ao ponto do questionamento fundamental da tradição – o que aqui se pretende. Theissen não chegará a fazê-lo, mas, a partir de seu último parágrafo “historiográfico”, pode-se sugerir uma nova estrada para a pesquisa a respeito da referência histórico-traditiva de “filho do homem”, quando aplicada a si mesma por Jesus de Nazaré – ou, alternativamente, em determinada porção – ou em determinado “momento” – da tradição, quando ainda não influenciada pelas interpretações teológicas da cruz.

Theissen e Merz reservam uma seção de seu Manual para inquirir sobre os possíveis referenciais históricos que podiam sustentar uma auto-referência de Jesus a si mesmo como “filho do homem”. Seu arrazoado parte da pressuposição, assumida, de que o termo tenha, lá e então, duas configurações básicas: a) ou se trata, no uso cotidiano, de uma referência ao “homem comum”, estabelecendo-se assim um uso genérico do termo para o dia-a-dia (THEISSEN e MERZ, p. 569-570), b) ou se trata de uma referência ao uso “visionário” da fórmula, uso estabelecido, desde Daniel 7, na literatura judaica pós-exílica do período tardio (Enoque Etíope 37-71 e 4 Esdras 13 – cf. THEISSEN e MERZ, p. 570-5725).

Nos termos do programa dos autores, trata-se, então, agora, de determinar a qual das duas variantes de uso se deve a sua auto-aplicação por Jesus, de modo que, após um longo arrazoado, assim concluem:

Para a questão da dependência das tradições de Enoque Etíope, cf. BURKETT, p. 121-122; COLLINS e COLLINS, p. 86-94.

“A expressão „Filho do Homem‟ também não era um título sólido antes de Jesus” – concordando com a declaração, cf. a Conclusão em BURKETT, p. 121.

Jesus sempre foi reservado acerca de todos os títulos. A expressão „Filho do Homem‟ também não era um título sólido antes de Jesus, mas foi „carregado‟ com um status de soberania. Em Jesus, ele pôde ocupar aquela posição que em algumas visões apocalípticas estava reservada a uma figura celestial que não era um homem, mas se igualava a um filho do homem. Uma expressão cotidiana que apenas se referia ao homem ou a algum homem foi „messianicamente‟ revalorizada por Jesus. Só por isso ela pôde se tornar a auto-designação característica de Jesus (THEISSEN e MERZ, p. 5796).

Chamo a atenção do leitor para essa curiosa – e reveladora – declaração: “um título (... [que]) foi „carregado‟ com um status de soberania”. Isto é, a uma expressão cotidiana e genérica, por força de seu uso em contexto de literatura de visão, teria sofrido a sobre determinação de uma carga de soberania.

Soberania. Voltaremos a isso. Por ora, convém registrar que Geza Vermes defendeu peremptoriamente o fato de que a expressão “filho do homem” não constitui, sob nenhuma hipótese, um “título”, correspondendo lingüístico-culturalmente ao equivalente – ou, já, à tradução – de circunlocução idiomática aramaica para referência que se faça ou a si mesmo, ou a um terceiro, de modo que, ao empregar a expressão, Jesus tão somente se referia a si mesmo enquanto “eu”, mas por meio de um recurso cultural de sua tradição e cultura aramaicas (VERMÈS, p. 165-196).

Vermes, argumenta que não haveria, na tradição aramaica, testemunho inequívoco do uso de “filho do homem” nesse sentido, e arremata: “aos teólogos incumbe absolutamente o ônus de provar que „o filho do homem‟ é um título” (VERMES, p. 193). Conquanto teólogo seja, não me encontro em posição de decidir a questão na perspectiva aramaica. Todavia, chegaremos a ver, adiante, que a tradição hebraica do Antigo Testamento conhece o uso de “filho do homem” como “título” – ainda que não se trate da tradicional referência a Daniel 7,13, onde, de fato, não se trata disso. O âmbito em que, na tradição do Antigo Testamento, “filho do homem” aparece como “título” gravita em torno de outro tema – do qual Jesus teria disso direta e fatalmente acusado.

2. Da acusação irônica de Jesus de Nazaré como rei dos judeus

Viu-se tratar-se da opinião de Fabris e Maggioni que Jesus teria optado pelo uso do título “filho do homem” para evitar “as ambíguas interpretações político-nacionalistas ligadas ao título de Messias” (FABRIS e MAGGIONI, p. 352). Bem, se lhe perpassa algum grau de historicidade, a tradição evangélica é unânime em considerar que a acusação romana aplicada a Jesus está relacionada à sua identificação como proponente ao “trono”. Durante o interrogatório, a pergunta é incisiva: “és tu o rei dos judeus?” (Mt 27,11; Mc 15,2; Lc 23,3; Jo 18,33 – HORSLEY e HANSON, p. 89).

Tal unanimidade evangélica encontra boa-vontade em Geza Vermes, que aceita a tese da acusação de Jesus e a estabelece em bases “seculares” (VERMES, p. 38), bem como em Paul Winter, que introduz o relatório de sua pesquisa On de Trial of Jesus, asseverando que “Jesus de Nazaré foi julgado e sentenciado à morte por crucificação. Esses são fatos históricos, atestados por autores romanos, judeus e cristãos em documentos existentes” (WINTER, p. 1). No contexto, então, de um julgamento formal, faz todo sentido a unanimidade evangélica quanto à pergunta – “és tu o rei dos judeus?”.

Não parece que se tratasse, então, de uma curiosidade que tivessem as autoridades a respeito de Jesus. Parece correto considerar que a pergunta – “és tu o rei dos judeus?” – funcione melhor como uma inquirição de direito processual, de modo a, por meio dela, se saber se aquele que ali estava, acusado por determinado crime, assumia o ônus e o peso da acusação. Essa interpretação pode ser, por exemplo, corroborada, por outra unanimidade da tradição evangélica – e não apenas sinótica: somos informados de que uma inscrição fora posta acima da cabeça de Jesus, quando e enquanto crucificado: “este é o rei dos judeus” (Mt 27,37 e Lc 23,38), “rei dos judeus” (Mc 15,26) e “Jesus nazareno, rei dos judeus” (Jo 19,19). Conjunto interseção – “rei dos judeus”
Se a pergunta – “és tu o rei dos judeus?” – funciona como cláusula de direito processual no inquérito acerca da acusação feita a Jesus enquanto réu, nesse caso, então, ao menos segundo o testemunho do Evangelho de Marcos, a epígrafe constitui, inequivocamente, a sua declaração de culpa: “E, por cima, estava, em epígrafe, a sua acusação: O REI DOS JUDEUS” (Mc 15,26 [ARA]).

Com a acusação feita a Jesus de apresentar-se como “rei dos judeus” – e a tradição joanina faz questão de fazer constar que as autoridades judaicas advertiram a Roma quanto ao fato de que elas mesmas não aceitavam a designação ali aplicada a Jesus, a qual se devia apenas ao fato de ele próprio, Jesus, tê-la aplicado a si mesmo (Jo 19,21) –, resulta, de um lado, improvável que Jesus tenha escolhido para si o título “filho do homem” pela razão de que isso evitasse que fosse a sua identidade contaminada por questões político-nacionalistas: ter sido capturado e morto pelo fato de ser acusado de se apresentar como “rei dos judeus” parece algo significativamente distante de uma indiferença político-nacionalista.

De outro lado, aquela carga de “soberania” que Theissen e Merz imputam ao termo “filho do homem” parece fazer algum sentido. Aliás, uma vez que estamos analisando justamente a materialização fatal dessa “carga de soberania”, isto é, a acusação de Jesus como “rei dos judeus”, revela-se particularmente significativo o fato de que o Evangelho de Mateus faça os magos anunciarem o nascimento justamente dele – do “rei dos judeus”: “E perguntavam: Onde está o recém-nascido Rei dos judeus?

Porque vimos a sua estrela no Oriente e viemos para adorá-lo” (Mt 2,2). Do mesmo modo como se “compreende” a ação romana diante de um “agitador” pretendente ao trono judeu, nos termos da tradição mateusiana, resulta “compreensível” um por isso mesmo perturbadíssimo Herodes a ordenar a morte de todos os potenciais meninos-Jesus recém-nascidos. Não que se tome como necessariamente “histórica” a passagem – assuma-se é o peso da vinculação do recém-nascido com seu “destino” de rei...

A questão, todavia, resume-se ao fato de se é possível, em termos históricos, reunir num mesmo conjunto histórico-traditivo a reivindicação ao “trono” e o título “filho do homem”. Numa palavra: quando Jesus de Nazaré aplicou a si mesmo o título de “Filho do Homem”, ele estava – conscientemente – assumindo a reivindicação do trono dos judeus, e de forma histórico-traditiva tão clara que qualquer um o reconhecesse, fossem os próprios judeus, fossem os romanos, de quem, naturalmente, Jesus deveria arrancar seu direito?

3. “Filho do Homem” como título relacionado ao “trono”

Em termos historiográficos, a passagem marcosiana conhecida como “o pedido dos filhos de Zebedeu” (Mc 10,32-45) encontra-se (inegavelmente?) contaminada pela tradição pós-pascoal. No seu formato canônico, a narrativa dá conta de que, dirigindo-se a Jerusalém com seus discípulos, Jesus os faz saber que, em lá chegando, seria preso e morto, mas que ressuscitaria. Tendo-o acabado de ouvir, João e Tiago pedem-lhe o direito de se assentarem cada um de um lado dele, em sua glória – o que pressupõe que, então, Jesus estará sentado no “trono do poder”. Jesus não nega que a questão de assentarem-se quem na sua direita e quem na sua esquerda seja uma questão legítima – todavia, ele é posto a dizer que “não me compete concedê-lo; porque é para aqueles a quem está preparado” (Mc 10,32-41). Na seqüência, Jesus faz um, então, interessante comentário admoestativo:

Sabeis que os que são considerados governadores dos povos têm-nos sob seu domínio, e sobre eles os seus maiorais exercem autoridade, Mas entre vós não é assim; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será servo de todos. Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos (Mc 10,42-45).

Abstraindo-a das (inegáveis?) contaminações pós-pascoais, chama atenção o fato de que o modo como a narrativa foi construída torna necessária a consideração de que o “natural” seria esperar que o “Filho do Homem” viesse para ser servido. Todavia, o “próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir”. “O próprio Filho do Homem”, isto é, “esse Filho do Homem”, ou seja – “eu” – tem por padrão de comportamento o contrário do padrão de comportamento dos “que são considerados governadores dos povos”, porque estes “dominam” sobre aqueles sobre quem exercem a sua autoridade, ao passo que Jesus de Nazaré, o “Filho do Homem”, ao contrário, servir-lhes-á.

O modo como o texto está redigido parece não dar margem à interpretação de que ser “Filho do Homem” seja essencialmente alguma coisa de uma ordem “ética” distinta da dos “que são considerados governadores dos povos”, como se “Filho do Homem” fosse algo essencialmente distinto da classe dos “governadores”. Parece ser mais correta a interpretação de que se trata de uma distinção desse “Filho do Homem” em questão, isto é, de Jesus de Nazaré enquanto “Filho do Homem”, e não da idéia em si de “Filho do Homem”.

A favor dessa interpretação está aquela porção da narrativa em que os filhos de Zebedeu pedem para assentarem-se do lado direito e do lado esquerdo de Jesus, em sua glória. Uma vez que, como um todo, a narrativa deve fazer sentido, necessário considerar que é sobre essa atitude dos discípulos que Jesus articula a sua admoestação ético-política.

Considere-se, portanto, a seguinte série condicional:
a) se os discípulos sabem que Jesus se auto-identifica com o “Filho do Homem”; b) se, sabendo-o, consideram que, em sua glória – em seu reino – ele se assentará em lugar de domínio; c) se, considerando o papel de domínio do “Filho do Homem”, Tiago e João pedem que estejam cada um ao seu lado, nos dois lugares mais próximos da ordem de comando; d) se a narrativa nos quer fazer compreender que o pedido de Tiago e João tem por modelo o modus operandi dos governadores dos povos; e) se a isso Tiago e João são levados pelo fato de não terem se dado conta de que, ainda que Jesus se apresente como o “Filho do Homem”, e de que, por isso mesmo, reserve para si, por direito, o “trono”, apesar disso, esse mesmo Jesus, enquanto esse mesmo “Filho do Homem”, sim, com direito ao trono, “vem”, contudo, como um “Filho do Homem” diferente, isto é, que, enquanto “Filho do Homem”, em lugar de ser servido, tenha vindo para servir – se toda essa cadeia condicional fizer sentido, resulta inegável que as idéias de “trono”, “governo”, “domínio”, sejam, todas, inerentes ao próprio título “filho do homem”.

A novidade não está no fato de o “Filho do Homem” ter o governo por direito – a novidade é que, apesar disso, “o próprio Filho do Homem [que teria direito de ser servido] não veio [contudo] para ser servido, mas para servir”.

A essa altura, cabe a referência à interpretação que Milan Machovec dá ao título “filho do homem”. Desprezadas as questões comuns aos comentaristas já citados, vale registrar que, segundo Machovec, enquanto aplicado ao próprio Jesus de Nazaré, o termo “filho do homem” esteve relacionado às expectativas de “transformação” do cenário político-social em que os judeus estavam inseridos, o que se poderia traduzir como “Reino de Deus” (MACHOVEC, p. 118).

O fato de que o título não tenha encontrado grande sucesso para além da tradição propriamente evangélica dever-se-ia, ainda segundo Machovec, à razão de que aquelas transformações imediatas que se aguardavam e para cuja materialização se depositava esperança em Jesus não se terem consubstanciado, de modo que, como efeito de uma profunda frustração psicológico-sociológica, o termo acabou caindo em desuso, sendo superado por outros, de carga teológica renovada (MACHOVEC, p. 115-118).

Apostaria numa razão: “filho do homem” constituía um título por demais restrito ao judaísmo, e não apenas no que diz respeito a seu sentido, mas, inclusive, à sua intencionalidade traditiva e sócio-política – de modo que, uma vez que o desenvolvimento das comunidades cristãs culminará na sua abertura aos gentios, o termo pode ter-se tornado não apenas desatualizado, mas, inclusive, incômodo. Nesse ponto, parecem ilustrativas, de um lado, a narrativa dos “discípulos de Emaús” (Lc 24,31) e, de outro, o registro, no Evangelho de João (19,19), de que as autoridades judaicas não endossaram a reivindicação real de Jesus – ele é que se atribuíra o direito ao cargo...

Uma vez que a realeza de Jesus não se estabelece, o título “Filho do Homem” deve ceder lugar para outros melhor adaptados às “atualizações” teológico-cristológicas da “fé”. Títulos mais “plurais”, digamos assim – em termos paulinos, fazer-se judeu para o judeu, e grego para o grego...

4. “Filho do Homem” como referência ao rei no Antigo Testamento

Talvez não seja necessário pressupor uma “carga de soberania” aplicada ao uso cotidiano do termo “filho do homem”. Talvez estejamos nos aproximando do dia em que as tradicionais abordagens de acesso ao sentido histórico-traditivo de “filho do homem” dêem lugar a uma pesquisa um tanto mais histórico-arqueológica desse sentido. Refiro-me aqui, por exemplo, ao trabalho de Andrew R. Angel, Chaos and the son of man: the Hebrew Chaoskampf tradition in the period 515 BCE to 200 CE. Segundo Angel, o sentido do título “filho do homem” estaria ligado a desdobramentos dinâmicos da tradição da “luta [do deus] contra o [dragão do] caos”, que ele define como presente, sem embargo de outros períodos, entre 515 a.C e 200 d.C.

Não se trata, aqui, de comentar o resultado do trabalho de Angel. Todavia, a relação por ele apontada entre a tradição do Chaoskampf e a fórmula “filho do homem” tem excelente potencial heurístico. Por duas razões, que, a rigor, constituem a mesma razão, desdobrada: a) impossível tratar-se a tradição do Chaoskampf sem se considerar a presença – inexorável – do rei. No Antigo Oriente Próximo, “criação” – logo, Chaoskampf –, constitui uma grade funcional aplicada transignificativamente a contextos de construção e reconstrução de cidades e templos, constituindo-se, no plano sócio-político, da sempre necessária presença de três grandezas concretas: rei, povo e construção.

Além disso, b) há bastantes plausíveis indicativos de que, no Antigo Testamento, logo, na mesma base traditiva em que se situa a tradição do Chaoskampf indicada por Andrew R. Angel, o termo “filhos de Adão” se refira ao conjunto organizado pelo rei, ele incluído, e seu aparelho político – sacerdócio, exército e funcionários, ou seja, a “classe dominante” –, o que, por extensão, provoca no termo “filho de Adão” (= “filho do homem”) um sentido relacionado diretamente ao rei.

Para o termo “filhos de Adão”, remeto para minha pesquisa ainda não publicada, Bünê ´ädäm – os “filhos de Adão” na Bíblia Hebraica, que aponta para Dt 32,8; 2 Sm 7,14; Sl 21,11; 36,8; 45,3; Sl 53,3 = 14,2; 58,2 e 89,48 como ocorrências de “os Bünê-´ädäm como bastante plausivelmente o rei e seus oficiais”. Não vou aprofundar a questão aqui.

Quanto ao termo “filho do homem” (Ben-´ädäm), indica-se para Sl 80,18, que traduzo: “esteja a tua mão sobre o homem da tua direita, sobre o filho do homem que fortaleceste para ti” (Tühî-yädkä `al-´îš yümînekä `al-Ben-´ädäm ´immacTä lläk). É absolutamente plausível que, aí, “filho do homem” – ou “filho de Adão” – refira-se explicitamente ao rei. De fato, referindo-se ao gênero desse salmo, Erhard Gerstenberger considera que se trata de a comunidade em risco de destruição pôr as suas esperanças sobre seu líder – rei ou messias (GERSTENBERGER, p. 106; cf. STEUSSY, p. 52).

John Day admite a possibilidade – e isso numa pesquisa em busca de salmos pré-exílios, para o que se serve da temática real como guia: “é possível também que Sl 80,18 (...) esteja aludindo ao rei” (DAY, 2004, p. 229). Day argumenta que, segundo o Sl 110,1, quem se assenta à direita do deus – cf. “o homem da tua direita” – é ninguém menos do que o rei. Nesse caso, “o filho do homem” é o próprio “homem da direita do deus”, isto é, o rei, o soberano.

A mesma fórmula, e agora diretamente em contexto cosmogônico (o que remete à tese de Andrew R. Angel da relação entre, de um lado, a tradição do Chaoskampf, e, de outro, o título “filho do homem”), pode ser flagrada no Sl 89,21-22: “21aEncontrei David, o meu servo. 21bCom o óleo de minha santidade eu o ungi. 22aCom quem a minha mão estará estabelecida, 22be a quem o meu braço firmará” (RIBEIRO, 2009). Assim como a mão de Yahweh deve estar sobre o “filho do homem” que ele, Yahweh fortaleceu para si (Sl 80), é também a mão de Yahweh que está sobre Davi, seu ungido, estabelecendo-o e firmando-o. Estamos diante da imagética real.

Não fora o fato de ter-se já adiantado a hipótese de leitura (RIBEIRO, 2008), talvez fosse cedo demais o pressupor com base apenas no trabalho de Andrew R. Angel, mas o fato de haver uma relação entre a tradição do Chaoskampf e o título “filho do homem” – isto é, “filho de Adão” – talvez se deva à identidade de “Adão” em Gn 1,1-2,4a como ninguém menos do que o próprio rei, que recebe do deus cosmogônico a incumbência de “sujeitar a terra” e “dominar” sobre seus constituintes vivos (Gn 1,18).

Revela-se, a meu juízo, constrangedoramente anacrônica a interpretação de que aí se faça referência a um conceito de “humanidade” a quem “Deus” houvesse dado a “administração” (ecológica!) do planeta (talvez se trate mais de projeto e desejo do que de base objetiva). Ora, em termos de Antigo Oriente Próximo, falar de “sujeitar a si” e de “dominar sobre” somente parece justificável para a classe dominante.

Ainda há muito trabalho de pesquisa a ser empreendido, mas a relação plausível entre a) “Adão”, como “rei”, em Gn 1,1-2,4a, b) a expressão “filho de Adão” como se referindo ao rei no Sl 80,18, c) a expressão “filhos de Adão” como referência ao rei e seu establishment em passagens do Antigo Testamento, e d) o título “filho do homem” auto-aplicado a Jesus na tradição evangélica – poderia ser ainda esclarecida por meio da pesquisa de Frederick Houk Borsch, The Son of Man in myth and history, segundo a qual o “filho do homem do judaísmo tardio é uma adaptação do Homem Primevo [Primal Man / Urmensch] que também tem muitos atributos reais” (BORSCH, p. 133).

Gravitando em torno do mito do Homem Primevo que detém funções reais, estaria, por sua vez, a idéia, própria da liturgia do “Festival de Outono” de Jerusalém, da relação simbólica entre, de um lado, o rei e, do outro, o deus enquanto rei, de modo que as ações do rei, no festival, tanto representam as ações do deus, quanto as pressupõem (BORSCH, p. 93).

Todavia, não se enfrentará o desafio de encontrar no emaranhado das tradições míticas de um suposto Urmensch cooptado pela tradição real de Jerusalém sem a rejeição da hipótese por John Day, que, todavia, está mais particularmente interessado na imagética de Daniel 7 do que propriamente no significado real do termo “filho do homem” (DAY, 1985, 157ss).

Seja como for, John Day acaba por vincular a imagem do “um como filho do homem” de Daniel 7,13 à imagética de Yahweh-Baal e, ainda por meio das tradições míticas de Ugarit, o “ancião de dias” da mesma passagem à figura de El, arrematando o circuito por meio da referência – agora não mais inusitada – ao ciclo mítico-traditivo da batalha cosmogônica entre o deus e o dragão (DAY, 1985, p. 177), com o que retornamos ao início da presente seção e ao trabalho de Andrew R. Angel sobre a relação entre “filho do homem” e Chaoskampf.

Mesmo a passagem “visionária” e próximo-apocalíptica de Daniel 7,13 dependeria, em última análise, da imagem do “filho do homem” como representante cosmogônico da divindade – o rei.

5. Jesus como “Filho do Homem” e movimento messiânico popular

A fórmula “movimento messiânico popular” constitui uma referência explícita ao capítulo “Pretendentes reais e movimentos messiânicos populares” de Horsley e Hanson (p. 89-124). E, no entanto, excetuando-se uma referência irrelevante à sua ocorrência em Daniel 7,13, o termo “filho do homem” não aparece uma única outra vez em Bandidos, Profetas e Messias. Assim, de um lado, poder-se-ia apoiar-se na pesquisa de Horsley e Hanson para a defesa da hipótese de que, de algum modo e sob alguma caracterização, Jesus pudesse ter participado de algum movimento messiânico popular comum da época, inclusive na forma atuante de um “„rei‟ carismático” (HORSLEY e HANSON, p. 50).

De outro lado, todavia, ao menos quanto a Horsley e Hanson, fica-se a dever quanto à relação entre esse papel de “„rei‟ carismático” e o título “filho do homem”. Mesmo em seu comentário a Marcos (HORSLEY, 2001) e em sua muito recente aproximação ao “Jesus histórico” (HORSLEY, 2010), a relação entre “filho do homem” e “rei” não é apontada. Pelo contrário, Horsley afirma categoricamente que “as primeiras fontes para a morte de Jesus não o apresentam como (reivindicando ser ou sendo aclamado como) um ungido ou um rei durante a sua missão ou em seu clímax em Jerusalém” (HORSLEY, 2010, p. 188).

Com o que nos deparamos com um problema para além da possibilidade de solução em um artigo. De um lado, há plausível tradição ligando uma série de elementos histórico-traditivos – “Adão”, “filho de Adão” (“do homem”), “filhos de Adão” (“do homem”), “rei”, Chaoskampf, cosmogonia. De outro lado, há recorrência evangélica entre o título “filho do homem” e a tradição da acusação de Jesus como “rei dos judeus”.

Por outro lado, apesar de conhecer tanto “movimentos messiânicos populares” quanto tradições de “reis carismáticos” no judaísmo do primeiro século, Horsley nega-se a admitir a materialização em Jesus dessas duas tradições – “filho do homem” e “„rei‟ carismático”. A ênfase “ideológica” – contra-imperialista e pró-popular – estaria de algum modo, operando a disjunção teórica dos dois sintagmas traditivos na figura de Jesus? Por outro lado, a advertência de Jesus, em Marcos 10,43 de que, com sua figura, se tem a emergência de um “Filho do Homem” diferente, um “rei” que, ao contrário de todos os outros, não vem para ser servido, mas para servir? Não seria justamente essa idiossincrasia ideológica, ético-política, uma singularidade histórica que, por isso mesmo, proporcionaria, sustentando-a, a plausibilidade da tradição que a sustenta?

Sustente-se a hipótese em Vermes, que alega basear-se “em um estudo magistral” de Paul Winter – “não foi por uma acusação de ordem religiosa, mas com base em uma acusação de ordem secular que Jesus foi condenado pelo representante do imperador a morrer vergonhosamente na cruz romana” (VERMES, p. 38). E isso não se teria dado sem razão, uma vez que “o simples fato de Jesus ser virtualmente capaz de liderar um movimento revolucionário já teria fornecido motivos suficientes para adotar „medidas preventivas radicais‟.

Corroborando a tese de Vermes, a tradição evangélica guarda memória de alguns eventos e circunstâncias comprometedores, os quais circunscrevem Jesus de Nazaré em um círculo indicativo de ação revolucionária – isto é, revolucionária em relação a Roma. Sem a pretensão de exauri-los:

 Jesus tem no conjunto de seu círculo mais íntimo de seguidores um zelote (VERMÈS, p. 55; HORSLEY e HANSON, p. 186ss), e a ele se poderia, eventualmente acrescentar um sicário (HORSLEY e HANSON, p. 173ss), se admitida a hipótese de essa ser a identidade de “Judas Iscariotes” – “Judas, o sicário”.

 Mais uma vez unanimemente, a tradição evangélica narra, agora, o episódio da “entrada triunfal” de Jesus em Jerusalém – Mc 11,1-10 (“Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor! Bendito o reino que vem, o reino de Davi, nosso pai! Hosana, nas maiores alturas!”; Mt 21,1-17; Lc 19,28-46; Jo 12,12-19 (VERMES, p. 55). Aqui se impõe a referência ao trabalho de Andrew C. Brunson sobre a relação entre o Sl 118 e o Evangelho de João, particularmente a longa discussão que trata sobre a passagem, no Quarto Evangelho, da “entrada” de Jesus em Jerusalém, onde conclui pela intencionalidade de Jesus apresentar-se como “rei de Israel” (BRUNSON, p. 180-223 – o capítulo VI chama-se “King of Israel”).


Não se deixe passar a informação de que, em Marcos (10,32-11,11) e Mateus (20,17-21-17), e mesmo em Lucas, conquanto um tanto desconfigurada (Lucas 18,31-43 e 19,28-44), a narrativa da “entrada triunfal” de Jesus em Jerusalém se dá justamente na seqüência da narrativa do “pedido dos filhos de Zebedeu”, onde se situa aquela relação indicada entre, de um lado, a condição de Jesus como “filho do homem”, e, de outro, a novidade “ético-política” de apresentar-se, esse “filho do homem”, como um “governante” que não vem para ser servido, mas para servir. Aí, estamos diante de um núcleo tradicional relativamente estável.

 Podendo-se pensar em termos de “comunidades paulinas”, entendo que, em primeiro plano, “Lucas” está mais interessado na defesa do “apostolado paulino” em face do conflito aberto com a(s) comunidade(s) jerosolimitana(s), conflito esse que me parece armado em torno da plausivelmente arrostada primazia de Jerusalém, dado o fato de constituir-se de “testemunhas oculares” dos fatos relacionados à vida de Jesus (RIBEIRO, 2008b). Todavia, esse fato certamente põe em relevo justamente aquilo que “Lucas” quer ressaltar – a irrelevância de se tratarem de “testemunhas oculares”, uma vez que embora o fossem, os discípulos não teriam entendido absolutamente nada da mensagem de Jesus. E tal argumento é delineado de modo bastante claro:

a) primeiro, afirmando que os discípulos consideraram loucura de mulheres a notícia da ressurreição de Jesus (Lc 24,11); b) na seqüencia, fazendo aos “néscios e tardos em entendimento” entender o que de fato Jesus quisera dizer, uma vez que estavam os “discípulos de Emaús” carregados de frustração pelo fato de Jesus, de quem eles esperavam a “remissão de Israel”, jazer, agora, morto (Lc 24,21.25); c) depois, pondo na boca dos discípulos reunidos com Jesus ressuscitado a famosa pergunta: “Senhor, será este o tempo em que restaures o reino a Israel?” (Atos 1,6).

Ora, Lc 24,21 e At 1,6 deixam entrever que “Lucas” quer-nos fazer acreditar que as “testemunhas oculares” tinham de Jesus uma idéia muito política – chegando a considerar que ele viesse a ser o responsável pela restauração do “reino” de Israel. O fato de que “Lucas” quer-nos fazer considerar que esse estado de coisa reflete a ignorância dessas testemunhas oculares, preparando o cenário para Pentecostes e a hegemonia do “Espírito Santo” não muda o fato de que, para fazê-lo, “Lucas” deve ser “fiel” ao discurso dessa camada de testemunhas oculares que pretende descaracterizar – e o que elas têm a dizer está posto nessas duas perguntas críticas, que, ao fim e ao cabo, indicam para uma percepção de Jesus, o “Filho do Homem”, como aquele que fosse remir Israel, isto é, restaurar-lhe o reino.

Não se pode compreender com facilidade como, de um lado, segundo Horsley e Hanson, juntos, e Hanson, sozinho, nem a idéia de “messias” nem a idéia de “rei” faziam parte da camada mais antiga da tradição jesuânica, e, de outro, como, segundo Vermès, “a primeira versão judeu-galilaica da vida e do ensinamento de Jesus estar concebida em um espírito político-religioso, o que explicava, pelo menos em parte, a força da característica messiânica neste relato” (VERMÈS, p. 56). “Lucas” trata a esperança frustrada dos discípulos – “Jesus remiria Israel”, “Jesus restaurará o reino de Israel” – como ignorância, mas, ao mesmo tempo, com esse gesto revela a força dessa tradição. Dificilmente se poderá ser mais incisivo do que G. W. Buchanan:

Há aproximadamente dois mil anos atrás, houve um homem, chamado Jesus, um judeu, que viveu na Palestina. Ele foi chamado de “messias”, que significa “rei ungido”; “Filho de Deus”, que é título para um rei; “Filho do Homem”, que é um título mítico para um rei; e que deu a si mesmo o título de “rei”. Isto significa que a pessoa a quem esses títulos foram aplicados estava de algum modo relacionado com a política, embora muitos eruditos têm sido inflexíveis em dizer que não. Entretanto, o foco central da mensagem de Jesus sugere que ele estava muito interessado em um reino em que judeus pudessem entrar (BUCHANAN, p. 12).

Certo – não é pelo fato de Buchanan o dizer que as coisas são como ele diz. Todavia, o acúmulo de indícios não aponta justamente para esse ponto: há uma relação traditiva muito forte, e, eventualmente, muito antiga, talvez, original, vinculando Jesus de Nazaré a alguma forma sua de auto-apresentação política, tornada pública na forma do designativo “real” e tradicional “filho do homem”, que aponta para a sua identidade como reivindicante – de que tipo? – do trono judeu, tendo por isso mesmo sido acusado, condenado e morto? Parece que a resposta que se impõe é sim.