O general romano Hermógenes estava estacionado com seus soldados em frente aos muros de Constantinopla, então a capital do império. Sentia-se preocupado. Fora incumbido pessoalmente pelo imperador Constâncio de prender um líder rebelde local, mas encontrara a cidade tomada por lutas de rua e parcialmente em chamas. Hermógenes decidiu pernoitar fora de Constantinopla para preparar seus próximos movimentos. Durante a noite, porém, a casa em que dormia foi descoberta por populares. Eles a incendiaram e arrastaram o militar para as ruas, onde foi surrado até morrer.
A controvérsia ariana é um drama, cheio de conspiração e de viradas inesperadas (veja arte ao longo do texto). Mas suas origens estão, na verdade, na pluralidade de pensamento que caracterizou o início do cristianismo, quatro séculos antes.
Após a morte de Jesus, seus seguidores espalharam-se pelo mundo. As primeiras comunidades cristãs surgiriam em cidades da Palestina, da Síria, da Ásia menor, da Grécia e até em Roma. "Devido à própria diversidade geográfica, esse grupos entraram em contato com diferentes idéias religiosas já existentes: alguns sofreram influências do judaísmo, outros do mundo grego".
Na segunda metade do século 1, algumas comunidades escreveram suas memórias da vida e dos ensinos de Jesus, criando os primeiros evangelhos. Os evangelhos atribuídos a Marcos, Mateus, Lucas e João serão depois considerados inspirados, e incorporados à Bíblia, enquanto outros, como o de Tomé, serão rejeitados. Neles já se refletem as diferenças entre as comunidades. "No evangelho de Marcos a narrativa só começa quando Jesus é reconhecido como filho de Deus, no batismo. Um outro grupo, porém, vai descrever sua infância, para afirmar que ele já era especial desde o nascimento. Não é que um texto queira negar o outro, mas sim ir além".
Ele conta que entre as idéias dos primeiros seguidores de Jesus estava a de que ele seria um profeta e libertador escatológico. Ou um enviado de Deus e, portanto, seu filho. "As pessoas exploravam diferentes maneiras de compreendê-lo", diz a americana Elaine Pagels, professora da Universidade Princeton, especialista no cristianismo primitivo e autora de "O Evangelho Desconhecido de Tomé".
Como alguém podia ser um cristão devoto e pensar que Jesus não é Deus? Uma possibilidade vem se revelando por meio da pesquisa dos manuscritos do Mar Morto, descobertos em 1947. No livro "Rei e Messias", o estudioso inglês Cristopher Rowland, de Oxford, explica que muitos viam Jesus como um "mediador angélico". Para esses cristãos Jesus era "aquele que, como o anjo de Deus no Antigo Testamento, foi enviado para revelar e cumprir a vontade de Deus, que está no céu".
O debate sobre a Bíblia
A disputa entre as diferentes visões sobre Jesus se refletiu também na discussão sobre a formação do livro sagrado dos cristãos
• 30 d.C.
Outros acreditavam que Jesus tivesse se tornado angelical ao ser elevado aos céus. Paulo Nogueira explica que "na tradição apocalíptica judaica, quando um homem subia aos céus, tinha que se transformar em anjo ou seria fulminado". Mas o caso de Jesus é diferente. "Ele seria maior do que os anjos, pois sobe aos céus para morar com Deus e governar o universo com ele, tornando-se um vice-regente ", diz.
No início do século 4, as cidades de Antioquia e de Alexandria haviam se firmado como os dois grandes centros teológicos da cristandade, mas com diferentes tradições intelectuais. Em Antioquia era forte a influência aristotélica, e privilegiava-se uma leitura mais literal da Bíblia. Em Alexandria predominava uma releitura de Platão. E tendia-se a interpretar os textos bíblicos como alegorias.
A polêmica ariana teve início em 312 quando Ário, um popular padre de Alexandria, começou a pregar que Jesus não era igual a Deus, mas sim criado por ele e subordinado a ele. Alexandre, o bispo de Alexandria, considerou essa posição herética e em 318 puniu-o com o exílio. Mas o padre não era propriamente o autor de tais idéias; ele as absorvera em parte durante seus anos como estudante de teologia em Antioquia. E de maneira geral, a doutrina da subordinação de Jesus ao Pai era uma crença forte na parte oriental do Império Romano. "Não estava claro que a doutrina de subordinação fosse herética", explica Richard Rubenstein, autor de "Quando Jesus se Tornou Deus", o livro que inspirou esta reportagem. "Esse foi um dos fatores que fez com que a luta durasse tanto."
Uma divisão na Igreja era tudo o que o então imperador Constantino não queria. Ao contrário, seu objetivo era restaurar os dias de paz e grandeza do império, que se ressentia dos momentos difíceis do século anterior.
No início dos anos 220, tribos germânicas e soldados persas haviam invadido as fronteiras da Europa e da Ásia, e imposto aos legionários derrotas sem precedentes. Para sustentar o exército romano, os impostos foram duplicados sucessivas vezes, o preço dos alimentos subiu e a inflação explodiu. Em 70 anos, 17 generais diferentes tomaram o poder. O povo era impelido em massa para a escravidão e o banditismo assolava o império. Por volta de 290, porém, a crise parecia superada, ou superável. O imperador Diocleciano se propõe a trazer de volta a grandeza de Roma, e decreta a partir de 303 uma perseguição ampla, mas malsucedida, aos cristãos.
Rubenstein explica que a divisão era um reflexo das diferenças culturais. "A igreja do Oriente ainda se via, em alguma medida, como uma continuação do judaísmo e da cultura grega. Já a visão do grupo niceno era mais radical, e defendia uma ruptura com as heranças grega e judaica."
Teodósio convocou um concílio em Constantinopla, em 381, que reafirmou o credo niceno, com algumas variações. Por fim veio a ordem para queimar os documentos arianos, cuja posse era crime mortal. "Depois de 70 anos de lutas internas que culminaram com o desastre de Adrianópolis, Teodósio apareceu num estágio histórico semelhante a Napoleão ou Stalin: uma figura autoritária cuja missão era consolidar a revolução cristã, preservar e adaptar a religião às realidades sociais existentes e, ao mesmo tempo, incorporá-la à estrutura do poder governamental", escreve Rubenstein.
Mas não foi o fim dos debates sobre a natureza de Cristo. No século 5 começou a impor-se nas igrejas da Síria Ocidental, Armênia, Egito e Etiópia a corrente monofisista, que privilegiava seu aspecto divino. No Ocidente subsistiu uma visão que afirmava a plena humanidade de Jesus. Mas sem torná-lo menos divino, pois o concílio de Constantinopla afirmou a crença num Deus trinitário, composto de três pessoas que partilhavam uma só substância divina. E Jesus, identificado com a segunda pessoa da trindade, foi reconhecido como Deus encarnado.
1 - Em Alexandria, o padre Ário afirma em seus sermões que Jesus é subordinado a Deus, e não o próprio Deus. Bom pregador e poeta, Ário torna-se uma figura popular.
Para ler:
A morte de Hermógenes, ocorrida em 342, mostra o grau de enfrentamento e divisão que varreu o Império Romano durante o ciclo que entrou para a história como a controvérsia ariana. O que começou como um erudito debate teológico sobre Jesus se transformou numa questão de estado que durou cerca de 70 anos, rachou a sociedade da época e quase a arrastou para a guerra civil. O conflito só terminou quando um dos dois lados conseguiu empurrar o outro para a ilegalidade e a lata de lixo da história. A vitória teve um alcance que extrapolou, em muito, o próprio Império Romano. Pois foi durante aquele redemoinho histórico que se estabeleceu, na Igreja antiga, o dogma da identidade entre o carpinteiro Jesus de Nazaré e o Deus a quem ele chamava de Pai.
A controvérsia ariana é um drama, cheio de conspiração e de viradas inesperadas (veja arte ao longo do texto). Mas suas origens estão, na verdade, na pluralidade de pensamento que caracterizou o início do cristianismo, quatro séculos antes.
Após a morte de Jesus, seus seguidores espalharam-se pelo mundo. As primeiras comunidades cristãs surgiriam em cidades da Palestina, da Síria, da Ásia menor, da Grécia e até em Roma. "Devido à própria diversidade geográfica, esse grupos entraram em contato com diferentes idéias religiosas já existentes: alguns sofreram influências do judaísmo, outros do mundo grego".
Na segunda metade do século 1, algumas comunidades escreveram suas memórias da vida e dos ensinos de Jesus, criando os primeiros evangelhos. Os evangelhos atribuídos a Marcos, Mateus, Lucas e João serão depois considerados inspirados, e incorporados à Bíblia, enquanto outros, como o de Tomé, serão rejeitados. Neles já se refletem as diferenças entre as comunidades. "No evangelho de Marcos a narrativa só começa quando Jesus é reconhecido como filho de Deus, no batismo. Um outro grupo, porém, vai descrever sua infância, para afirmar que ele já era especial desde o nascimento. Não é que um texto queira negar o outro, mas sim ir além".
Ele conta que entre as idéias dos primeiros seguidores de Jesus estava a de que ele seria um profeta e libertador escatológico. Ou um enviado de Deus e, portanto, seu filho. "As pessoas exploravam diferentes maneiras de compreendê-lo", diz a americana Elaine Pagels, professora da Universidade Princeton, especialista no cristianismo primitivo e autora de "O Evangelho Desconhecido de Tomé".
Pagels diz que Marcos, Mateus e Lucas consideravam Jesus um ser humano com uma missão especial. "Eles o vêem como um messias, ou um rei enviado por Deus. Mas o rei Davi fora chamado de messias também. Só as cartas de Paulo e o evangelho de João é que falam diretamente sobre a divindade de Jesus", afirma.
Como alguém podia ser um cristão devoto e pensar que Jesus não é Deus? Uma possibilidade vem se revelando por meio da pesquisa dos manuscritos do Mar Morto, descobertos em 1947. No livro "Rei e Messias", o estudioso inglês Cristopher Rowland, de Oxford, explica que muitos viam Jesus como um "mediador angélico". Para esses cristãos Jesus era "aquele que, como o anjo de Deus no Antigo Testamento, foi enviado para revelar e cumprir a vontade de Deus, que está no céu".
O debate sobre a Bíblia
A disputa entre as diferentes visões sobre Jesus se refletiu também na discussão sobre a formação do livro sagrado dos cristãos
• 30 d.C.
Crucificação de Jesus
• Década de 50
Escritos do apóstolo Paulo
• 50-70
Escrita do evangelho de Tomé
• 70-90
Escrita dos evangelhos das comunidades de Marcos, Mateus e Lucas
• 90-100
Escrita do evangelho da comunidade de João
• Século 2
O número de evangelhos escritos por diferentes comunidades cristãs chega às dezenas. Irineu, bispo de Lião, denuncia boa parte desses grupos e seus textos como heréticos
• 144
Marcião, importante líder cristão, propõe um cânone bíblico composto por apenas um evangelho e as cartas de Paulo. Ele é denunciado como herege
• 170
Taciano escreve uma versão condensada dos evangelhos, que é recusada
• Século 3
Intenso debate teológico sobre a figura de Jesus
• 318
Início da controvérsia ariana
• 325
Reunidos no concílio de Nicéia, bispos escolhem uma fórmula que é contrária ao arianismo
• 367
Em seu esforço para combater o arianismo, o bispo Atanásio faz a primeira lista dos textos que compõem o novo testamento
• 381
Concílio de Constantinopla, convocado pelo imperador Teodoro, bane os bispos arianos
• 382
Concílio em Roma confirma a lista de Atanásio
Outros acreditavam que Jesus tivesse se tornado angelical ao ser elevado aos céus. Paulo Nogueira explica que "na tradição apocalíptica judaica, quando um homem subia aos céus, tinha que se transformar em anjo ou seria fulminado". Mas o caso de Jesus é diferente. "Ele seria maior do que os anjos, pois sobe aos céus para morar com Deus e governar o universo com ele, tornando-se um vice-regente ", diz.
E a diversidade de pontos de vista sobre Jesus só aumentaria com o tempo. A região do Mediterrâneo Oriental era um cadinho de povos e idéias. A cultura mais influente era a grega, com sua tradição de racionalismo e filosofia. À medida que o cristianismo penetrava nesse mundo, o encontro entre o pensamento grego e as escrituras da nova religião dava origem a formas mais sofisticadas de teologia cristã. "As discussões especulativas, que eram próprias das escolas filosóficas, foram transferidas para a teologia cristã". As escolas de teologia de certa forma foram sucessoras das academias filosóficas".
No início do século 4, as cidades de Antioquia e de Alexandria haviam se firmado como os dois grandes centros teológicos da cristandade, mas com diferentes tradições intelectuais. Em Antioquia era forte a influência aristotélica, e privilegiava-se uma leitura mais literal da Bíblia. Em Alexandria predominava uma releitura de Platão. E tendia-se a interpretar os textos bíblicos como alegorias.
A polêmica ariana teve início em 312 quando Ário, um popular padre de Alexandria, começou a pregar que Jesus não era igual a Deus, mas sim criado por ele e subordinado a ele. Alexandre, o bispo de Alexandria, considerou essa posição herética e em 318 puniu-o com o exílio. Mas o padre não era propriamente o autor de tais idéias; ele as absorvera em parte durante seus anos como estudante de teologia em Antioquia. E de maneira geral, a doutrina da subordinação de Jesus ao Pai era uma crença forte na parte oriental do Império Romano. "Não estava claro que a doutrina de subordinação fosse herética", explica Richard Rubenstein, autor de "Quando Jesus se Tornou Deus", o livro que inspirou esta reportagem. "Esse foi um dos fatores que fez com que a luta durasse tanto."
Ário partiu para a cidade de Nicomédia para receber o apoio de Eusébio, um antigo colega de estudos em Antioquia que se tornara bispo influente da igreja oriental. Começava a disputa entre arianos e antiarianos.
Uma divisão na Igreja era tudo o que o então imperador Constantino não queria. Ao contrário, seu objetivo era restaurar os dias de paz e grandeza do império, que se ressentia dos momentos difíceis do século anterior.
No início dos anos 220, tribos germânicas e soldados persas haviam invadido as fronteiras da Europa e da Ásia, e imposto aos legionários derrotas sem precedentes. Para sustentar o exército romano, os impostos foram duplicados sucessivas vezes, o preço dos alimentos subiu e a inflação explodiu. Em 70 anos, 17 generais diferentes tomaram o poder. O povo era impelido em massa para a escravidão e o banditismo assolava o império. Por volta de 290, porém, a crise parecia superada, ou superável. O imperador Diocleciano se propõe a trazer de volta a grandeza de Roma, e decreta a partir de 303 uma perseguição ampla, mas malsucedida, aos cristãos.
Diocleciano morre e em 312 o poder vai parar nas mãos de Constantino. Mesmo sem se batizar, Constantino é um cristão convicto. Cessa as perseguições, restitui à Igreja os bens confiscados, e abre a ela os cofres públicos. Constantino queria transformar o cristianismo numa ideologia oficial, capaz de trazer unidade a um império marcado pelo medo da dissolução e pelas diferenças regionais, especialmente entre a porção ocidental, que falava latim, e a oriental, que falava grego.
Buscando conciliação, ele convocou em 325 um concílio de bispos na cidade de Nicéia, o qual presidiu pessoalmente. Os bispos aprovaram uma fórmula conhecida como credo de Nicéia, que afirmava explicitamente que Jesus e Deus compartilhavam a "mesma essência". Foi uma derrota dos arianos.
Após o concílio, o bispo Eusébio de Nicomédia caiu nas graças de Constantino, que também se aproximou de Ário. As idéias de Ário foram declaradas corretas em concílios posteriores, e ele morreu bem no dia em que seria formalmente reintegrado à Igreja por ordem expressa do imperador. Sua morte não terminou o conflito, pois suas idéias eram apoiadas pela maior parte dos bispos da região de fala grega do império, enquanto seus adversários (o bispo Alexandre e seu discípulo e sucessor, Atanásio) tinham o apoio da parte latina da Igreja.
Rubenstein explica que a divisão era um reflexo das diferenças culturais. "A igreja do Oriente ainda se via, em alguma medida, como uma continuação do judaísmo e da cultura grega. Já a visão do grupo niceno era mais radical, e defendia uma ruptura com as heranças grega e judaica."
Na tela, um homem de muitas faces
Durante o século 20 o cinema mostrou várias versões sobre a personalidade do carpinteiro de Nazaré. Inicialmente com uma reverência que parecia beirar o temor. "Nos primeiros filmes Jesus era mostrado só de longe, não se via seu rosto", explica o professor de literatura Antônio Carlos Fester, que dá palestras em que analisa as diferentes formas como Cristo foi retratado na telona. "Isso só acontece, no cinema americano, com o 'Rei dos Reis', em 1927.
"Ex-membro da comissão de justiça e paz de São Paulo - sobre a qual está lançando um livro -, Fester é um católico cinéfilo, e criou, em meio a sua coleção de centenas de DVDs, uma sessão com dúzias de filmes onde Cristo é retratado como personagem principal ou coadjuvante. A partir da coleção, conseguiu detectar alguns padrões. "Existe um Jesus no cinema que é uma figura convencional, quase acadêmica." É o caso de filmes como o "Jesus de Nazaré", de Franco Zefirelli. "Os padres gostam muito desse filme porque é muito completo do ponto de vista biográfico. Embora seja preciso lembrar que os evangelhos não foram escritos como biografias", ressalta. Nestas obras é comum vê-lo como um homem de gestos pausados, bastante sério e com alguma pompa. Ao mesmo tempo há bastante ênfase nos milagres, recriados de forma impactante. É como se a parte divina do personagem fosse a sua totalidade.
Com o tempo, surgiu um Jesus mais pessoal. Em "A Maior História de Todos os Tempos", de George Stevens (onde o papel fica a cargo de Max von Sidow), ressalta-se a sua identidade como judeu praticante. Em "O Evangelho Segundo São Mateus", de Pasolini (que foi elogiado pelo Vaticano), mostra-se um cristo atuante, confrontando as autoridades temporais e religiosas da sua época. "A Última Tentação de Cristo", de Martin Scorsese, mostra uma progressiva descoberta de sua tarefa messiânica, intermeada com sentimentos de paixão amorosa, medo, dúvida. "Essa linha de filmes causa estranhamento e faz pensar sobre quem foi esse homem e qual sua mensagem", diz.
Essas diferenças sobressaíam-se na maneira como viam Jesus. "Os arianos tinham uma visão mais otimista da natureza humana, e viam Jesus como um exemplo moral. Tendiam a ressaltar seus aspectos de Filho, que o mostravam mais como um irmão mais velho do que uma figura paterna." Já os nicenos eram mais pessimistas quanto ao caráter pecador da humanidade, e consideravam que só um Jesus que estivesse no mesmo nível de Deus poderia vencer o pecado e a morte. Também viam a Igreja como o elemento mais importante de salvação, uma instituição que deveria resistir até mesmo ao fim do Império Romano - o que acabou acontecendo.
Essas diferenças sobressaíam-se na maneira como viam Jesus. "Os arianos tinham uma visão mais otimista da natureza humana, e viam Jesus como um exemplo moral. Tendiam a ressaltar seus aspectos de Filho, que o mostravam mais como um irmão mais velho do que uma figura paterna." Já os nicenos eram mais pessimistas quanto ao caráter pecador da humanidade, e consideravam que só um Jesus que estivesse no mesmo nível de Deus poderia vencer o pecado e a morte. Também viam a Igreja como o elemento mais importante de salvação, uma instituição que deveria resistir até mesmo ao fim do Império Romano - o que acabou acontecendo.
Por duas vezes, durante a controvérsia, o poder imperial esteve nas mãos dos arianos (um deles o Constâncio que enviou seu general Hermógenes para morrer nas mãos do povo de Constantinopla). Mas o bispo Atanásio de Alexandria revelou-se um adversário à altura. Durante quatro décadas, atazanou sem parar seus inimigos, recorrendo até mesmo à violência. Morreu em 373, pouco antes de a maré virar a seu favor. Em 378, as legiões romanas, sob o comando do imperador ariano Valente, foram arrasadas pelos godos na batalha de Adrianópolis. O império, mais uma vez, estava no fundo do poço. Ambrósio, bispo antiariano de Milão, fez um comentário severo: "Esse é o julgamento de Deus sobre os arianos". Teodósio I, o sucessor de Valente, conseguiu afastar por algum tempo o perigo das invasões . Durante uma viagem à Itália, aproximou-se dos bispos da igreja latina, e em fevereiro de 380 publicou um edito que promulgava a ortodoxia nicena como lei. A seguir, proibiu que os arianos celebrassem cultos em qualquer igreja e removeu-os dos bispados mais importantes.
Teodósio convocou um concílio em Constantinopla, em 381, que reafirmou o credo niceno, com algumas variações. Por fim veio a ordem para queimar os documentos arianos, cuja posse era crime mortal. "Depois de 70 anos de lutas internas que culminaram com o desastre de Adrianópolis, Teodósio apareceu num estágio histórico semelhante a Napoleão ou Stalin: uma figura autoritária cuja missão era consolidar a revolução cristã, preservar e adaptar a religião às realidades sociais existentes e, ao mesmo tempo, incorporá-la à estrutura do poder governamental", escreve Rubenstein.
Mas não foi o fim dos debates sobre a natureza de Cristo. No século 5 começou a impor-se nas igrejas da Síria Ocidental, Armênia, Egito e Etiópia a corrente monofisista, que privilegiava seu aspecto divino. No Ocidente subsistiu uma visão que afirmava a plena humanidade de Jesus. Mas sem torná-lo menos divino, pois o concílio de Constantinopla afirmou a crença num Deus trinitário, composto de três pessoas que partilhavam uma só substância divina. E Jesus, identificado com a segunda pessoa da trindade, foi reconhecido como Deus encarnado.
1 - Em Alexandria, o padre Ário afirma em seus sermões que Jesus é subordinado a Deus, e não o próprio Deus. Bom pregador e poeta, Ário torna-se uma figura popular.
2 - Alexandre, o bispo de Alexandria, convoca Ário para explicar suas idéias, as quais julga incorretas. Ele o excomunga e bane de Alexandria.
3 - Ário foge para Antioquia onde o bispo local, Eusébio, é seu amigo e figura poderosa na região oriental do império. Eusébio convoca um concílio, uma reunião de bispos para debater a doutrina, o qual conclui que as idéias de Ário não são heréticas.
4 - Preocupado com a divisão entre adeptos e adversários de Ário, o imperador Constantino convoca um concílio na cidade de Nicéia. Alexandre comparece levando seu pupilo Atanásio, que será o grande adversário dos arianos. O líder dos arianos é Eusébio. Os participantes criam um credo que condena indiretamente as idéias arianas. Ário se recusa a validar o credo e é expulso. Eusébio pouco depois será exilado.
5 - Numa reviravolta, Constantino chama Eusébio de volta do exílio e o nomeia seu conselheiro particular. Sob o patrocínio de Eusébio é convocado um novo concílio que considera as idéias de Ário corretas. Constantino exige que o bispo Alexandre readmita Ário a sua igreja em Alexandria.
6 - Alexandre se recusa terminantemente a readmitir Ário e morre pouco depois. Atanásio se torna bispo de Alexandria. Ele organiza uma resistência por vezes violenta contra os partidários de Ário.
7 - O imperador funda uma nova capital, Constantinopla. Atanásio é furiosamente perseguido e acusado de organizar o espancamento de cristãos arianos. Ele não nega as acusações, mas vai até Constantinopla falar com o imperador, a quem consegue impressionar favoravelmente.
8 - Ário escreve a Constantino reclamando que ainda não foi reintegrado à sua igreja. Constantino se sente ofendido pelo tom da carta e responde chamando-o de inimigo da religião. Ário vai a Constantinopla e se reaproxima de Constantino, que se dispõe a ajudá-lo diretamente a voltar para Alexandria.
9 - Os arianos organizam um concílio na cidade de Tiro, que condena Atanásio. Mas ele foge do Egito e é exonerado de seu posto e excomungado.
9 - Os arianos organizam um concílio na cidade de Tiro, que condena Atanásio. Mas ele foge do Egito e é exonerado de seu posto e excomungado.
10 - Num concílio em Constantinopla, Ário apresenta sua própria versão do credo que, embora diferente do credo aprovado em Nicena, é julgado ortodoxo. O concílio ordena que ele receba a comunhão na principal igreja de Constantinopla, como forma de abrir o caminho à sua volta para Alexandria. Mas ele morre subitamente poucas horas antes da missa. Constantino também morre e o império é dividido entre seus filhos. Constante, que defende os antiarianos, fica com a Itália, e Constâncio, que protegerá os arianos, com a parte oriental do império.
11 - Ocorrem lutas violentas entre adeptos das duas correntes por todo o Mediterrâneo oriental. Tropas do exército desembarcam em Alexandria para prender Atanásio, mas ele foge para Roma. Eusébio, no auge do poder, se torna bispo de Constantinopla.
12 - Eusébio morre. Os adeptos de Atanásio tentam entronizar como novo bispo um dos seus, Paulo. Isso gera lutas violentas em Constantinopla, inclusive incêndios. Constâncio envia um general para prender Paulo, mas o militar morre espancado por uma multidão. As metades oriental e ocidental do império estão cindidas. Constante ameaça Constâncio com o uso da força para defender Atanásio. Risco de uma guerra civil entre Constante e seu irmão.
13 - Constâncio se torna o único líder do império e vê os adeptos de Atanásio como uma ameaça à estabilidade. Ele força a convocação de um outro concílio que adota um credo para subsitituir o de Nicéia. Mas ele morre pouco depois.
14 - O trono romano passa por vários ocupantes em poucos anos, enquanto o império sofre fortes reveses militares. Um general, Teodósio, consegue estabilizar a situação.
15 - Teodósio se aproxima dos bispos do ocidente e publica um edito defendendo o credo niceno. Ele ordena a perseguição dos arianos e consolida o cristianismo como religião oficial do império. É a vitória dos ortodoxos.
----------------Para ler:
• "Quando Jesus se tornou Deus", Richard Rubenstein. Fisus Editora, 2001.
• "Além de Toda Crença - O Evangelho Desconhecido de Tomé", Elaine Pagels. Objetiva, 2003.
• "História do Movimento Cristão Mundial", Dale Irvin. Paulus, 2004.
• "Rei e Messias", John Day (org.). Paulinas, 2005
• "O Nascimento do Cristianismo", John Dominic Crossan. Paulinas, 2005
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