Nos primórdios da era cristã havia duas escolas principais de interpretação legal, fundadas respectivamente por Shammai e Hillel. À escola de Shammai tradicionalmente é atribuída uma interpretação mais rígida do que à escola de Hillel – não apenas na aplicação das leis individuais, mas também na postura, em relação à lei como um todo. Os discípulos de Shammai consideravam a quebra da lei (por ação ou omissão) uma quebra da lei como tal, enquanto os discípulos de Hillel ensinavam que o julgamento divino estava relacionado à preponderância do bem ou do mal, na vida inteira da pessoa.
Uma das afirmações mais bem conhecidas de Hillel é sua resposta a um homem que lhe pediu para resumir toda a lei no menor número possível de palavras. Hillel disse: “Aquilo que para você é detestável, não o faça aos outros, isso é toda a lei, todo o resto é comentário”. Essa citação da regra de ouro negativa como resumo da lei podia ser interpretada de maneiras que muitos fariseus teriam considerado perigosas. Mesmo se não foi essa a intenção de Hillel, pode ter encorajado alguém a argumentar, ao defrontar-se com um mandamento específico da lei, que este era obrigatório apenas até o ponto de evitar o sofrimento do próximo ou promovia o seu bem. Isso, segundo a opinião prevalente entre os rabinos, introduzia um critério subjetivo ilícito; era muito melhor que as pessoas, ao serem confrontadas com um mandamento da lei, obedecessem a ela simplesmente porque era um mandamento do Santo: não há porque perguntar por quê.
Que tipo de fariseu era Paulo? A pergunta não é fácil de responder. De acordo com Atos 22.3, ele foi instruído na escola de Gamaliel, e a tradição posterior faz de Gamaliel o sucessor de Hillel e líder da sua escola, e às vezes até seu filho ou neto. Mas as tradições mais antigas que refletem algumas recordações diretas do homem e seu ensino não estabelecem nenhum vínculo entre ele e a escola de Hillel. Em vez disso, falam de pessoas que pertenciam à escola de Gamaliel, como se ele tivesse fundado a sua própria.
Há certa dificuldade em distinguir as tradições sobre esse Gamaliel daquelas sobre um professor posterior com o mesmo nome (Gamaliel II, c. 100 d.C.), mas as tradições que pressupõe que o templo ainda estava de pé, certamente se referem ao Gamaliel anterior. Dizia-se que, “quando Rabban Gamaliel mais velho morreu, a glória da Tora cessou, e pureza e separação morreram” – o que quase equivale a dizer que ele foi o último dos verdadeiros fariseus, já que “separação” (heb. p’rîsût) vem da mesma raiz de “fariseus” e pode até ser traduzido por “farisaísmo”. Ente as regulamentações que lhe são atribuídas, está uma que liberaliza a lei do novo casamento após o divórcio.
Tanto nas tradições rabínicas como no Novo Testamento Gamaliel aparece como membro do Sinédrio. Lucas relata que, no estágio inicial da igreja em Jerusalém, os apóstolos foram acusados perante esse tribunal de desobedecer a sua orientação anterior de não ensinar publicamente no nome de Jesus. Quando alguns membros do tribunal queriam tomar medidas extremas contra eles, “um fariseu, chamado Gamaliel, mestre da lei, acatado por todo o povo” (At 5.34), lembrou seus colegas de outros movimentos no passado recente que pareciam ser perigosos por um tempo curto, mas logo entraram em colapso. E ele acrescentou (v. 38s):
Isso certamente é doutrina típica dos fariseus. As pessoas podem desobedecer a Deus, mas sua vontade triunfará mesmo assim. A vontade do ser humano não é cerceada, mas o que ele quer é superado por Deus, quando realiza os seus propósitos. Nas palavras de um rabino posterior, o fabricante de sandálias Yohanan, “todo ajuntamento em prol do céu será confirmado, mas o que não é em prol do céu no fim não será confirmado”. Que Gamaliel seguiu a linha atribuída a ele por Lucas é o que devíamos esperar.
No entanto, se essa era a linha de Gamaliel, certamente não era a de Paulo. Na maioria das questões, por exemplo, na esperança da ressurreição e nos métodos de exegese bíblica, Paulo provavelmente foi um aluno apto e um seguidor fiel do seu professor. Até se chegou a pensar que um aluno de Gamaliel do qual não se diz o nome, mas que apresentou “descaramento em questões de estudo” e tentou refutar seu professor, era ninguém menos que Paulo. Se esse é o caso (o que é bastante incerto), então a tradição reflete a desaprovação com o posterior abandono do caminho rabínico por Paulo; não preserva uma recordação da conduta de Paulo, enquanto esteve aos pés de Gamaliel. Em um aspecto, porém, Paulo desviou-se do exemplo do seu mestre: ele repudiou o a idéia de que uma política de contemporização era a mais adequada em relação aos discípulos de Jesus. Em sua cabeça, esse novo movimento constituía uma ameaça mais mortal a tudo o que ele aprendera a valorizar do que Gamaliel parecia capaz de entender. Além disso, o temperamento de Paulo parece ter sido bem diferente do de Gamaliel: em contraste com a paciência e tolerância de estadista de Gamaliel, Paulo era caracterizado, em suas próprias palavras, por uma superabundância de zelo – que, realmente, ele nunca perdeu de todo.
Como o objeto do seu zelo eram as tradições dos ancestrais – a antiga lei de Israel e sua interpretação como era ensinada na escola de Gamaliel – não devemos ficar surpresos de saber que ele estava insatisfeito com a idéia dos seguidores de Hillel de que um mera preponderância do bem sobre o mal, na vida de alguém, era suficiente para lhe conseguir um veredito favorável, no dia do julgamento. Nesse ponto, pelo menos, ele parece ter se inclinado mais para a posição dos seguidores de Shammai de que a lei tinha de ser obedecida em sua totalidade. Que essa era a postura de Paulo está implícito mais tarde, quando ele diz aos seus convertidos na Galácia, que estavam sendo pressionados a adotar certas exigências legais do judaísmo, que eles não podiam pensar que, se escolhessem essa maneira de ser aceitos por Deus, podiam escolher os que quisessem entre os mandamentos divinos: “Testifico a todo homem que se deixa circuncidar, que está obrigado a guardar toda a lei” (Gl 5.3). Essa atitude em relação à lei determinou a atitude hostil de Paulo em relação aos seguidores de Jesus e seu ensino.
Uma das afirmações mais bem conhecidas de Hillel é sua resposta a um homem que lhe pediu para resumir toda a lei no menor número possível de palavras. Hillel disse: “Aquilo que para você é detestável, não o faça aos outros, isso é toda a lei, todo o resto é comentário”. Essa citação da regra de ouro negativa como resumo da lei podia ser interpretada de maneiras que muitos fariseus teriam considerado perigosas. Mesmo se não foi essa a intenção de Hillel, pode ter encorajado alguém a argumentar, ao defrontar-se com um mandamento específico da lei, que este era obrigatório apenas até o ponto de evitar o sofrimento do próximo ou promovia o seu bem. Isso, segundo a opinião prevalente entre os rabinos, introduzia um critério subjetivo ilícito; era muito melhor que as pessoas, ao serem confrontadas com um mandamento da lei, obedecessem a ela simplesmente porque era um mandamento do Santo: não há porque perguntar por quê.
Que tipo de fariseu era Paulo? A pergunta não é fácil de responder. De acordo com Atos 22.3, ele foi instruído na escola de Gamaliel, e a tradição posterior faz de Gamaliel o sucessor de Hillel e líder da sua escola, e às vezes até seu filho ou neto. Mas as tradições mais antigas que refletem algumas recordações diretas do homem e seu ensino não estabelecem nenhum vínculo entre ele e a escola de Hillel. Em vez disso, falam de pessoas que pertenciam à escola de Gamaliel, como se ele tivesse fundado a sua própria.
Há certa dificuldade em distinguir as tradições sobre esse Gamaliel daquelas sobre um professor posterior com o mesmo nome (Gamaliel II, c. 100 d.C.), mas as tradições que pressupõe que o templo ainda estava de pé, certamente se referem ao Gamaliel anterior. Dizia-se que, “quando Rabban Gamaliel mais velho morreu, a glória da Tora cessou, e pureza e separação morreram” – o que quase equivale a dizer que ele foi o último dos verdadeiros fariseus, já que “separação” (heb. p’rîsût) vem da mesma raiz de “fariseus” e pode até ser traduzido por “farisaísmo”. Ente as regulamentações que lhe são atribuídas, está uma que liberaliza a lei do novo casamento após o divórcio.
Tanto nas tradições rabínicas como no Novo Testamento Gamaliel aparece como membro do Sinédrio. Lucas relata que, no estágio inicial da igreja em Jerusalém, os apóstolos foram acusados perante esse tribunal de desobedecer a sua orientação anterior de não ensinar publicamente no nome de Jesus. Quando alguns membros do tribunal queriam tomar medidas extremas contra eles, “um fariseu, chamado Gamaliel, mestre da lei, acatado por todo o povo” (At 5.34), lembrou seus colegas de outros movimentos no passado recente que pareciam ser perigosos por um tempo curto, mas logo entraram em colapso. E ele acrescentou (v. 38s):
"Agora, vos digo: dai de mão a estes homens, deixai-os; porque, se este conselho ou esta obra vem de homens, perecerá; mas, se é de Deus, não podereis destruí-los, para que não sejais, porventura, achados lutando contra Deus".
Isso certamente é doutrina típica dos fariseus. As pessoas podem desobedecer a Deus, mas sua vontade triunfará mesmo assim. A vontade do ser humano não é cerceada, mas o que ele quer é superado por Deus, quando realiza os seus propósitos. Nas palavras de um rabino posterior, o fabricante de sandálias Yohanan, “todo ajuntamento em prol do céu será confirmado, mas o que não é em prol do céu no fim não será confirmado”. Que Gamaliel seguiu a linha atribuída a ele por Lucas é o que devíamos esperar.
No entanto, se essa era a linha de Gamaliel, certamente não era a de Paulo. Na maioria das questões, por exemplo, na esperança da ressurreição e nos métodos de exegese bíblica, Paulo provavelmente foi um aluno apto e um seguidor fiel do seu professor. Até se chegou a pensar que um aluno de Gamaliel do qual não se diz o nome, mas que apresentou “descaramento em questões de estudo” e tentou refutar seu professor, era ninguém menos que Paulo. Se esse é o caso (o que é bastante incerto), então a tradição reflete a desaprovação com o posterior abandono do caminho rabínico por Paulo; não preserva uma recordação da conduta de Paulo, enquanto esteve aos pés de Gamaliel. Em um aspecto, porém, Paulo desviou-se do exemplo do seu mestre: ele repudiou o a idéia de que uma política de contemporização era a mais adequada em relação aos discípulos de Jesus. Em sua cabeça, esse novo movimento constituía uma ameaça mais mortal a tudo o que ele aprendera a valorizar do que Gamaliel parecia capaz de entender. Além disso, o temperamento de Paulo parece ter sido bem diferente do de Gamaliel: em contraste com a paciência e tolerância de estadista de Gamaliel, Paulo era caracterizado, em suas próprias palavras, por uma superabundância de zelo – que, realmente, ele nunca perdeu de todo.
Como o objeto do seu zelo eram as tradições dos ancestrais – a antiga lei de Israel e sua interpretação como era ensinada na escola de Gamaliel – não devemos ficar surpresos de saber que ele estava insatisfeito com a idéia dos seguidores de Hillel de que um mera preponderância do bem sobre o mal, na vida de alguém, era suficiente para lhe conseguir um veredito favorável, no dia do julgamento. Nesse ponto, pelo menos, ele parece ter se inclinado mais para a posição dos seguidores de Shammai de que a lei tinha de ser obedecida em sua totalidade. Que essa era a postura de Paulo está implícito mais tarde, quando ele diz aos seus convertidos na Galácia, que estavam sendo pressionados a adotar certas exigências legais do judaísmo, que eles não podiam pensar que, se escolhessem essa maneira de ser aceitos por Deus, podiam escolher os que quisessem entre os mandamentos divinos: “Testifico a todo homem que se deixa circuncidar, que está obrigado a guardar toda a lei” (Gl 5.3). Essa atitude em relação à lei determinou a atitude hostil de Paulo em relação aos seguidores de Jesus e seu ensino.