Estudo sobre o fenômeno da profecia e glossolalia no cristianismo primitivo a partir da primeira Carta aos Coríntios. O movimento cristão emergiu como uma seita judaica, mas amadureceu em um contexto greco-romano, sendo profundamente alterado pela cultura e tradições ocidentais. Por um lado, sofreu as influências das antigas tradições israelitas e do judaísmo do período do Segundo Templo, sendo herdeiro tanto das diversas manifestações revelatórias extáticas, apocalípticas, escatológicas e sapienciais, quanto da inteligibilidade e da autoridade como critérios de verificação da profecia. Por outro lado, sofreu também as influências das tradições greco-romanas. O interessante é compreender estruturalmente, a partir de 1Co 14.1-19, o conceito de profecia e glossolalia no entendimento de Paulo e da comunidade de Corinto no primeiro século, em um contexto greco-romano e judaico. Uma análise cuidadosa dessas compreensões permitirá afirmar a existência ou não de uma ligação entre os fenômenos da glossolalia e profecia cristãs e a fala inspirada e as tradições proféticas e oraculares greco-romanas, que produza paralelos convincentes tanto no que diz respeito aos fenômenos quanto aos conceitos teológicos. Considerando também os aspectos antropológico e sociológico da pesquisa sobre os fenômenos, abordarei questões mais amplas como, por exemplo, se a profecia e a glossolalia em 1Co 14 estão estruturalmente ligadas ao conceito de estado de consciência alterado, defendido por antropólogos, ou se há uma associação do êxtase e da possessão com os contextos sociais dos coríntios.
Definir a natureza do dom da profecia e da glossolalia no Novo Testamento e o modo como eram praticados pelas comunidades cristãs no tempo da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios torna-se um desafio. Observei que muitas são as evidências da profecia cristã primitiva dentro do Novo Testamento, mas poucas as fontes diretas. Tomei como referência para pesquisa a perícope de 1Co 14.1-19, dentro do bloco dos capítulos 12 a 14. Apesar de ser marcado pelo propósito e pelo vocabulário paulino, dele puode deduzir conceitos e práticas da profecia e glossolalia nas comunidades cristãs do primeiro século, especialmente em Corinto.
A leitura preliminar de 1Co 14.1-19 az depreender uma divergência entre a concepção de Paulo acerca de profecia e fala inspirada e a compreensão dos coríntios. Uma das justificativas para tal divergência encontra-se na própria gênese do movimento cristão. Começando sua existência na Palestina Judaica, imersa por séculos nas tradições israelita judaicas, cujo centro são as Escrituras, o movimento cristão emergiu como uma seita judaica, mas amadureceu em um contexto greco-romano, sendo profundamente alterado pela cultura e tradição ocidentais. Em pouco tempo, atraiu ele gentios de tal forma que, no fim do primeiro século, era em grande parte não-judaico.
Pelo fato de nossa mais explícita fonte de informação sobre a profecia e a glossolalia no cristianismo primitivo (1Co 12-14) vir, predominantemente, de um ambiente helenístico, torna-se imprescindível conhecer distintamente as tradições proféticas e oraculares Greco-romanas.
Mas, também, por reconhecermos que o cristianismo primitivo começou na Palestina judaica, sendo herdeiro por séculos da tradição profético-revelatória israelita judaica, é necessário aprofundar o conhecimento dessa influência, que parece ter sido enfaticamente teológica e não histórica, dado que o judaísmo experimentou uma aguda helenização durante os três primeiros séculos anteriores ao nascimento de Jesus e à religião cristã. Neste sentido, o movimento bíblico-teológico, particularmente encorajado pela descoberta dos manuscritos do Mar Morto em 1947, contribuiu para valorizar a herança israelita-judaica do cristianismo primitivo.
Uma vez que o profeta cristão primitivo é alguém que medeia uma mensagem oral ou escrita recebida de fontes sobrenaturais, necessário se faz adentrarmos nas noções de transe de possessão e.transe de visão, ou, como é chamado no contexto religioso, êxtase. Para analisar os conceitos antropológicos modernos de estados alterados de consciência e os contextos sociais em que florescem o êxtase e a possessão, tomamos como referência, além de vários artigos sobre o assunto, a obra de Felicitas Goodman, Speaking in tongues, e a de Ioan Lewis, Êxtase religioso: um estudo antropológico da possessão por espírito e do xamanismo. Tais contribuições fornecem subsídios para o estudo e ajudam a compreender, em parte, o fenômeno da glossolalia hoje.
Assim, para analisar o fenômeno da profecia e da glossolalia no cristianismo primitivo, por um lado, aprofundarei o estudo sobre a influência do Antigo Testamento, das tradições judaicas do primeiro século e da cultura greco-romana na concepção profética de Paulo e da comunidade cristã de Corinto. Por outro, abordarei os conceitos de profecia e glossolalia a partir da Antropologia e da Sociologia.
Tomando por base os estudos da pesquisa recente, algumas questões são levantadas em relação à profecia e à glossolalia na Primeira Carta aos Coríntios, tais como: até que ponto a concepção paulina de profecia em Corinto representa uma continuidade ou uma ruptura com a tradição profética judaica exílica e pós-exílica? De que maneira o conceito helenístico
de inspiração, enquanto fenômeno estritamente religioso, influencia a compreensão e a prática da profecia e da fala inspirada na comunidade paulina do primeiro século? A primazia da profecia sobre a glossolalia e o critério distintivo da edificação da assembléia em Corinto constituem marcas exclusivamente paulinas ou fazem parte do ambiente da profecia nas comunidades cristãs do primeiro século? Do ponto de vista antropológico, a profecia e a glossolalia em 1Co 14 podem ser entendidas segundo o conceito de estado alterado de consciência.? Do ponto de vista sociológico, procurando relacionar a incidência do êxtase com a ordem social, poderíamos aplicar-lhes as noções deinstituição centralizada e cultos periféricos?
Para descrever o fenômeno da profecia e da glossolalia e estabelecer o seu background, utilizarei fontes literárias canônicas e não canônicas, teses de mestrado, de doutorado e artigos publicados em jornais e periódicos especializados.
A profecia israelita antiga
Lindblom, depois de uma acurada pesquisa sobre experiência profética em várias religiões e culturas, diz que um aspecto que caracteriza toda profecia é a crença em algum tipo de revelação originária do mundo divino. Entre todos os desígnios, reais ou ilusórios, históricos ou místicos, de relacionar o divino com o humano, tem um lugar próprio a experiência profética. A profecia implica uma relação entre a eternidade e o tempo, um diálogo entre Deus e o homem, conclui Neher.
Para Neher, a profecia não pode contentar-se com uma revelação que, lúcida e misteriosamente, permaneça íntima e oculta. A profecia não pode limitar-se a descobrir a voz divina, o seu silêncio, na natureza exterior e em seus espetáculos, nem sequer na natureza interior e em suas emoções; não é contemplação nem oração. Superando o marco de uma comunhão pessoal, a experiência profética atravessa o ser humano para dar-se aos demais. Isto é o que caracteriza a profecia entre os demais modos de revelação.
Segundo David Aune, para os judeus palestinos do último período do Segundo Templo, que se concluiu com a tomada de Jerusalém pelos romanos em 70 d.C., a profecia era um fenômeno que pertencia ou ao passado distante ou ao futuro escatológico. Mas uma vez que os grupos apocalípticos e as seitas acreditavam que o fim dos tempos era iminente, para eles, a profecia poderia fazer parte da experiência presente.
Com a canonização das Escrituras Hebraicas no século I a.C., a profecia israelita clássica ou escrita (que aflorou durante a crise assíria na metade do oitavo século e desapareceu pouco depois da dissolução da monarquia judaica no sexto século) adquiriu o status de única, sacrossanta e paradigmática. Isto criou uma descontinuidade entre a profecia canônica e as formas subseqüentes de revelação profética que emergiram durante o período do Segundo Templo (516 a.C. 70 d.C.), impedindo ambas as formas de fala profética de serem cumpridas satisfatoriamente.
Dentre as muitas diferentes formas de revelação praticadas no Israel Antigo, destaca-se a profecia inspirada. Sua busca, no mundo antigo, devia-se ao anseio de minimizar a imprevisibilidade e a falta de controle absoluto inerentes à vida do ser humano.
No Israel Antigo e na Grécia, profecia inspirada e adivinhação oracular consistiam em mensagens verbais compreensíveis, cujo conteúdo não derivava da mente humana, mas do mundo sobrenatural, trazido através de canais inspirados que podiam ser designados como um profeta. Tanto a profecia quanto a adivinhação podiam ser solicitadas ou não. O oráculo profético proclama o desejo e o conselho do deus em resposta a questões gerais ou em referência a uma particular situação de uma das pessoas que buscava conselho.
A freqüência das condenações nos textos bíblicos à adivinhação aponta para o fato de que era largamente praticada ao longo de toda a história de Israel. A religião popular do antigo Israel é raramente refletida nas Escrituras Judaicas e, quando aparecem, são em contexto condenatório de práticas proibidas.
Segundo Aune, o primeiro profeta israelita apareceu em nossas fontes no século XI a.C. Esse tipo de profeta, exemplificado por figuras tais como Samuel, Elias e Eliseu, apresenta as características de homem santo, sábio, operador de milagres e prognosticador (1Sm 9; Rs 17; 2Rs 1.2-17; 6.1-7, 8-10; 13.14-21; 20.1-11). Eles estavam associados a lugares santos e rituais religiosos e podiam combinar os papéis de sacerdote e profeta, como Samuel. Itinerantes, moviam-se com certa liberdade, aparentemente vivendo das ofertas que lhes eram oferecidas por aqueles a quem serviam. Profetas seniors recebiam o título de pai e presidiam grupos proféticos cujos membros eram chamados de filhos dos profetas. Tanto Samuel quanto Elias presidiram associações desse tipo. Tais profetas freqüentemente profetizavam em grupo. Tinham uma vestimenta distintiva de pele de ovelha e um manto.
As atividades oraculares dos profetas israelitas antigos do tipo xamanístico eram associadas de forma próxima, mas não inseparável, dos lugares santos e rituais religiosos. Como Samuel, os últimos profetas, Ezequiel e Jeremias, eram associados ao sacerdócio. Sacerdotes e profetas eram sempre mencionados juntos, como se dividissem uma esfera comum de atividade. Esta associação, contudo, é atestada somente para a região de Judá e a cidade de Jerusalém. Muitos salmos, que eram certamente parte do ritual do templo, parecem ter uma origem profética (Sl 20; 21; 50; 60; 72; 75; 82; 85.8-13; 89.19-37; 108; 110; 132.11-18). Além disso, alguns profetas clássicos, como Joel, Naum, Habacuque e Zacarias, parecem ter usado formas litúrgicas como um veículo literário para as suas profecias.
Com base nessas evidências, parece provável que existisse, no período pré-exílico, um relacionamento formal entre alguns profetas e o culto do templo de Jerusalém. Alguns profetas eram, sem dúvida, membros assalariados do quadro de pessoal do templo, sob a autoridade direta dos sacerdotes. O templo também provia um centro para profetas não formalmente associados ao culto exercitarem seus dons, como no caso de Jeremias. É largamente sustentado que os cantores no templo pós-exílico foram os sucessores das associações proféticas do templo pré-exílico. Entretanto, nenhuma associação profética estava ativa no templo pós-exílico.
Há muitas referências a profetas israelitas que transportam mensagens divinas de Javé para os monarcas. Numerosos exemplos nas cartas de Mari ilustram a importância no pensamento do Oriente Próximo de envio de mensagens oraculares aos reis. Particularmente em tempos de guerra ou antes de iminentes batalhas, profetas eram comissionados para entregar aos reis israelitas oráculos não solicitados, embora na maioria das vezes fossem inquiridos pelos governantes. Grande grupo de profetas de Baal era consultado permanentemente por Acabe e Jezabel (1Rs 18.19; 2Rs 3.13).
O fenômeno da profecia livre, em contraste com as profecias dos templos e das cortes, desenvolveu-se dramaticamente durante a metade do oitavo século a.C., especialmente com a atividade dos profetas Amós e Oséias em Israel e Miquéias e Isaías em Judá. Profetas livres não faziam parte do quadro dos funcionários da corte nem do templo. A função das autoridades reais e cúlticas era manter e preservar os tradicionais valores e costumes sociais e religiosos de Israel. Os profetas livres, entretanto, à margem das instituições da sociedade israelita, tentavam provocar tanto mudanças sociais quanto religiosas.
O movimento profético que havia florescido de várias formas desde o início da monarquia israelita parece ter chegado ao fim no período seguinte, com o exílio babilônico. Seus últimos representantes, segundo David Hill, foram Ageu, Zacarias e a figura indistinta de Malaquias.
Na verdade, difundiu-se uma opinião de que a profecia havia cessado no judaísmo durante o quinto século que antecedeu a vinda de Cristo, retornando com a ascensão do cristianismo. A razão para essa compreensão pode ter sua raiz no conceito deuteronomista de profecia que veio dominar o pensamento religioso no início do período pós-exílico. De acordo com a posição deuteronomista, diz Robert Wilson, verdadeiros profetas eram aqueles cujos oráculos eram eficazes e cujas predições se verificavam. Este princípio tinha inicialmente aumentado a autoridade de profetas deuteronomistas, como Jeremias, cujas advertências de catástrofe haviam se cumprido.
Nesses estudo, ao contrário, adotei a posição de David Aune, segundo a qual a profecia israelita não desapareceu. Em vez disso, como todas as instituições sociais e religiosas, sofreu várias mudanças radicais durante o período do Segundo Templo (516 a.C . 70 d.C). Definida como mensagens inteligíveis de Deus em linguagem humana através da mediunidade humana inspirada, profecia, segundo Aune, pode assumir uma larga variedade de formas: apocalíptica, escatológica, clerical e sapiencial.
A conclusão a que cheguei nesse estudo é que a literatura apocalíptica é um dos vários meios de revelação do judaísmo antigo, assim como a profecia clássica do Antigo Testamento também o é. Consideramos a apocalíptica uma continuidade da profecia israelita ao lado de tantas outras manifestações revelatórias.
O fenômeno oracular
Os oráculos desempenham um papel significativo na religião dos gregos e romanos. Os gregos não costumavam colecionar revelações divinas em formas escritas, como selo de autoridade e permanência. Na visão greco-romana, ao contrário da compreensão de alguns segmentos do judaísmo antigo, afirma Aune, a revelação divina não era usualmente limitada ao passado, mas um meio regular e contínuo para determinar a vontade dos deuses em quase todas as questões concebíveis.
Oráculos, na definição de Aune, são mensagens ou declarações dos deuses em linguagem humana, geralmente em resposta a perguntas. O termo oráculo é também usado para o local onde tais mensagens são requeridas e recebidas. As predições oraculares eram recebidas de várias formas, segundo Helmut Koester por meio de sonhos (característica dos santuários de Asclépio); médiuns humanos (como Pítia em Delfos e as sibilas); animais
(como as pombas de Zeus na árvore sagrada de Dodona); jornada aos mundos subterrâneos (como nos oráculo dos Mortos em Éfira e no oráculo de Trofônio em Lebadéia); ou alguma manipulação, como o lançamento de sortes. Embora Apolo se tornasse a divindade mais importante dos oráculos, muitos outros deuses eram consultados.
O termo mantis era o mais usual entre os gregos para designar os praticantes de adivinhação, e pode ser traduzido por adivinhador, prognosticador, visionário ou menos apropriadamente, segundo Aune, profeta.
Durante o período helenístico (350 a.C.50 d.C.), os grandes santuários oraculares experimentaram um moderado, mas contínuo declínio, alcançando sua maior queda no início do período romano (50 a.C.). Isso aconteceu especialmente com Delfos, que era o centro político e religioso da anfictionia dos Estados Gregos e lugar para onde as delegações eram enviadas a fim de receber a confirmação de planos de fundação de novas colônias ou a aprovação de novas constituições estaduais, conforme Koester. Mais tarde (século II d.C.), quando os santuários oraculares locais alcançaram nova importância, poucos daqueles que foram locais famosos no passado ainda funcionavam. E os oráculos passaram a operar não mais para delegações de várias cidades greco-romanas, mas para pessoas com preocupações individuais e problemas privados. Mesmo assim, os oráculos não perderam sua importância diante dos reis helenísticos e mais tarde dos imperadores romanos, que se voltaram mais para a regulamentação de assuntos sagrados, legais e pessoais, até mesmo como fiadores de transações legais.
Existe uma fundamental diferença de significado entre o termo profhte,ia (profecia), utilizado na terminologia cristã primitiva e o mesmo termo utilizado no vasto mundo greco-romano. Para o cristianismo primitivo, profecia era uma manifestação padrão de recepção do Espírito e a habilidade de transmitir as mensagens recebidas via inspiração, ou seja, era a fala inspirada de pregadores carismáticos. No mundo helenístico, tal habilidade era denominada mantikh. Segundo Forbes, a profecia era uma posição oficial na hierarquia dos centros oraculares, e nada tinha a ver com a fala inspirada. Há, portanto, uma diferença significativa na compreensão de profecia entre a cultura cristã e a helenística. De acordo com esta última, o termo profhth,j equivalia apenas a um comunicador, que nada tinha a ver com o processo oracular.
Segundo Ashton, o conceito de oráculo acrescenta ao conceito de profecia o que os alemães chamam de Sitz im Leben, isto é, um lugar cultural. Na Grécia pré-clássica e clássica, e também na era helenística, o santuário oracular era um lugar sagrado no qual todas as pessoas buscavam conselhos e palavras reconfortantes do deus que acreditava-se – ali habitava. Era um centro social e político muito importante. O que deu autoridade aos .profetas que ministram nesses santuários foi o status de que falavam em nome da divindade.
A profecia cristã primitiva
Algumas das mais antigas e importantes evidências da profecia cristã primitiva são as cartas de Paulo. Hill se pergunta se Paulo pode ser apropriadamente chamado de profeta. Para o autor, Paulo é um profeta baseado no fato de que ele recebeu revelações, sentiu-se sob a compulsão divina para proclamar em palavras ou cartas o que recebeu. Ele não chamou a si mesmo de profeta, possivelmente, porque a função de apóstolo do Novo Testamento equivalia à do profeta do Antigo Testamento.
Para Grudem, um leitor casual também podia associar naturalmente os profetas do Novo Testamento aos do Antigo Testamento, inclusive na questão da autoridade. Contudo, para o autor, aqueles que são vistos como mensageiros divinamente autorizados no Novo Testamento são mais freqüentemente chamados de .apóstolos, e não de .profetas. Isto é relevante na medida em que, se os apóstolos do Novo Testamento são equivalentes aos profetas do Antigo Testamento, então os profetas do Novo Testamento podem, freqüentemente, ser alguma coisa bastante diferente.
No que diz respeito à afirmação de que Paulo nunca se autodenominou profeta, Sandnes apresenta três argumentos que nos impediriam de considerá-lo um profeta. 1. O primeiro e mais importante é que o evangelho de Paulo foi um cumprimento de promessas proféticas do Antigo Testamento. Em Rm 1.1-2, mostra-se a compreensão de Paulo a respeito de si mesmo e dos profetas veterotestamentários: os profetas pré-disseram o que ele agora proclama. 2. O apostolado de Paulo foi definitivamente de base cristológica, ou seja, seu comissionamento advém de uma revelação de Cristo. 3. Tal comissionamento foi destinado às nações, portanto, além do limite do povo da aliança. Disto se conclui que o ministério apostólico de Paulo, em sua totalidade, não pode ser suficientemente descrito apenas a partir de categorias pré-moldadas ou de funções oficiais, nem mesmo aquelas atribuídas aos profetas.
Quanto à relação entre o apostolado e a profecia, Sandnes afirma que Paulo queria que os coríntios reconhecessem as similaridades, mas também as diferenças entre os primeiros profetas cristãos e o mistério pregado por Paulo. Tanto o apóstolo quanto os primeiros profetas cristãos tiveram a tradição de avpoka,luyij (revelação) na base das suas pregações, mas a natureza de suas revelações diferia. Avpoka,luyij em Paulo era a revelação de Cristo, que o chamou a uma dedicação total à pregação do evangelho. Já os primeiros profetas cristãos contavam com uma pontual, mas contínua recepção de revelações. O caráter fundamental do mistério revelado a Paulo foi fundamental para a edificação da Igreja. Por isso, o seu comissionamento fez dele um missionário itinerante, enquanto os profetas cristãos primitivos exerciam seus carismas principalmente nas liturgias cristãs, entre cristãos convertidos. Mesmo Ágabo, descrito por Lucas como um profeta itinerante (At 11.27-28; 21.10-14), valeu-se de uma comunidade cristã já existente como núcleo principal da audiência de seus oráculos. A discussão do tema da profecia em 1Co 12-14 nos faz supor que este era também o caso dos profetas nas congregações paulinas.
Esses pontos de diferença entre Paulo e os primeiros profetas cristãos sugerem, segundo o autor, que existem dois tipos diferentes de profecia no Novo Testamento: a do apóstolo-profeta e a dos primeiros profetas cristãos. O apóstolo-profeta seria, de certa maneira, o sucessor dos profetas canônicos vetero-testamentários, enquanto os primeiros profetas cristãos estariam incluídos no vasto fluxo da profecia israelita do Antigo Testamento, do judaísmo e do mundo greco-romano.
A profecia tem uma característica inegável: é pública. Os casos de revelações individuais não são considerados profecia, como também não o é o compartilhar visões. Para Paulo, profecia é uma revelação pública de uma experiência revelatória normalmente imediatamente inspirada e, em circunstâncias normais, publicamente proclamada.
Quanto ao caráter de predição da profecia, tanto Paulo quanto Lucas concordam nesse aspecto. Embora isto não apareça de forma clara na Primeira Carta aos Coríntios, há textos em que a predição é compreendida por Paulo como uma das funções da profecia, por exemplo, em Rm 1.2; 9.25ss e 1Co 15.4,54. David Aune defende que Paulo predisse tanto eventos terrenos quanto escatológicos. No contexto de Gl 5.21b, a palavra predição é apropriadamente expressa pelo termo grego prole,gw. Também de particular interesse é o fato de que Paulo reivindica ter profetizado enquanto estava com eles. Paulo usa os termos prole,gw e proeipei/n para predição em 1 Ts 3.4; 4.6 e Gl 5.21, dando assim forte evidência de que ele via a predição como parte da função de seu próprio apostolado.
O que distingue a profecia de outros tipos de discurso, tanto para Hill quanto para Grudem, são as suas respectivas funções. Profecia tem a ver com revelação, não com desenvolvimento humano de prévia revelação ou outro material.
O êxtase
Muitos termos relativos ao fenômeno da profecia e da glossolalia não são definidos com precisão. Aplicados a idéias ou coisas distintas, geram mal-entendidos e incompreensão. O termo êxtase é um dessas palavras sobrecarregadas, afirma Guillaume. Alguns o utilizam para designar estados e ações que mudam e evoluem constantemente, violentas agitações do corpo, canto, dança, frenesi controlado ou não, inspiração, arrebatamentos inefáveis, visões e alucinações. Todas essas manifestações do sentimento e da emoção humana foram reunidas sob a denominação geral de êxtase, cuja etimologia significa propriamente estar fora de si ou fora de seus sentidos, em geral aplicada aos estados de espírito exaltados ou de alegria. Robert Wilson também concorda com a posição de Guillaume quando afirma que os estudiosos têm sido imprecisos no uso do termo êxtase. Embora prevaleça a indefinição do termo em suas obras, muitos parecem compreender o êxtase como o meio pelo qual a comunicação divino-humana opera.
Os antropólogos raramente utilizam o termo êxtase em suas obras ao falar de intermediários divino-humanos, observa Wilson. E quando o termo é empregado, ele é usualmente visto como uma forma de transe religioso. Transe é a palavra usada pelos antropólogos e psicólogos para descrever o estado fisiológico e psicológico, tipicamente marcado pela sensibilidade reduzida ao estímulo, perda ou alteração do conhecimento do que está acontecendo e substituição da atividade voluntária pela automática. Na verdade, o termo entre os antropólogos abarca aquilo que se refere ao tipo de comportamento, e não o processo pelo qual acontece a comunicação entre o mundo humano e divino.
Lindblom usa o termo êxtase .quando a inspiração cresceu tão forte que a pessoa inspirada perdeu totalmente o controle de si mesmo. A corrente normal da vida mental é interrompida. As faculdades mentais comum, e algumas vezes as forças físicas são colocadas fora de função. O autor descreve muitos diferentes graus e tipos de êxtase e de experiência revelatória, o que também é confirmado por David Aune que oferece uma tipologia de estados alterados de consciência, além das simples alternativas de extáticos e não-extáticos.
Grudem acrescenta algo importante em relação ao êxtase. Segundo seu entendimento, o fato de alguém profetizar em um estado excitado, ou falando com uma emoção forte, ou tendo um alto nível de concentração ou consciência do sentido de suas palavras, ou ainda tendo uma percepção forte da presença e trabalho de Deus em sua mente, não se considera ser estados suficientemente anormais para requerer o uso do termo êxtase.
Felicitas Goodman, estudando as condições nas quais o glossolalista se coloca, adverte quanto à necessidade de se proceder a uma conceituação e exploração sistemática da atividade mental para se chegar a uma definição adequada dos termos. Segundo a pesquisadora, quando uma pessoa foi removida da consciência da realidade comum que a circunda, ela está em um estado mental alterado. O estado do glossolalista, na sua concepção, é um estado alterado de consciência.
Ioan Lewis, por sua vez, ressalta que, apesar da influência da autoridade eclesiástica estabelecida, o êxtase religioso sempre exerceu forte atração dentro e à margem do cristianismo. Do ponto de vista sociológico, o autor aborda o fenômeno do êxtase como o
mais decisivo e profundo de todos os dramas religiosos; em sua opinião, a tomada do homem pela divindade é fato de alguma forma encorajado em todas as religiões, variando conforme as condições sociais particulares.
Lewis classifica os cultos de possessão em centrais ou periféricos. Os cultos centrais tendem a fortalecer e legitimar por meio do êxtase a autoridade dos líderes religiosos que anseiam pelo poder e estabelecer a moralidade pública. Os cultos periféricos, ao contrário, não desempenham nenhum papel na sustentação do código moral das sociedades. Nesses cultos, os espíritos tendem a .possuir. preferencialmente as mulheres, que, como minorias jurídicas, ocupam, em certo sentido, posição periférica na sociedade, funcionando, assim, como auxílio aos fracos e oprimidos que, de outra forma, contam com poucos meios efetivos para atender seus interesses e reivindicações por atenção e resposta.
Glossolalia, inspiração e entusiasmo helenísticos
Uma das formas de expressão da glossolalia é o balbuciar de palavras ou sons sem interconexão ou sentido. Vários paralelos deste fenômeno são encontrados em diferentes períodos e lugares da história das religiões. O dom de línguas, a glossolalia, pode facilmente encontrar paralelo no mundo religioso popular Helenístico.
As artes mânticas, desde a adivinhação técnica até a adivinhação inspirada, assim como os oráculos, foram características integrais da vida religiosa e social em todo o período Greco-romano. O conhecimento do futuro era indispensável para reduzir os riscos inerentes em uma grande variedade de atividades humanas.
Uma das formas de recepção desses oráculos era a comunicação da divindade por meio de um médium humano, como Pítia em Delfos e as Sibilas. Pítia foi uma sacerdotisa (mantij) que, sobre o tripé de Apolo (que representava o trono divino), entrava em transe e, neste estado, proclamava seus oráculos em uma linguagem que parecia uma mistura de um grego truncado e incoerente e uma vocalização ininteligível, relata Forbes. A fala de Pítia era .interpretada. pelo profh,thj, que a transmitia ao interrogador em forma oracular hexamétrica e, se requerido, podia levar uma cópia escrita.
Parke e Wormell relatam que Pítia, antes de o perguntador entrar, já estava em estado alterado ou êxtase, sob a influência de Apolo. O profeta, então, fazia a pergunta do inquiridor verbalmente ou por escrito. A resposta de Pítia podia variar em grau de coerência e inteligibilidade. O profeta transmitia a resposta de forma reduzida, e ditava para o inquiridor escrever, se desejasse.
Forbes destaca a importância de se distinguir claramente entre um tipo de balbucio incoerente, fenômeno ininteligível no nível lingüístico, e a obscuridade dos pronunciamentos oraculares de Pítia. Tal obscuridade, segundo o autor, não é, de forma alguma, uma questão de inteligibilidade lingüística, mas simplesmente o fato de que seus oráculos eram formulados em termos enigmáticos de um tipo de alusão literária e metáfora.
Se estabelecermos um paralelo com a glossolalia cristã, veremos também que não é fácil descrever o conteúdo liberado por aqueles que falam em línguas. Goodman, ao tentar transcrever as gravações em áudio do material coletado em sua pesquisa de campo, concluiu que a glossolalia é uma língua desconhecida, que lembra o som de instrumentos musicais tocados sem harmonia.
David Aune se mostra crítico às opiniões que consideram o entusiasmo de Pítia uma possessão demoníaca. O transe de possessão é considerado um estado no qual um espírito estrangeiro invade a personalidade do intermediário. Quando os oráculos são apresentados como discurso direto de uma divindade oracular, o estado físico-psicológico do transe de possessão é pressuposto. Uma forma popular antiga de compreensão que está nas origens das habilidades oraculares de Pítia era a de que um deus ou um demônio tomava posse de seu órgão de fala para fornecer respostas oraculares. O mundo dos antigos era povoado por uma multidão de deuses e demônios, e acreditava-se que os seres sobrenaturais exerciam influência sobre os humanos de várias maneiras, por exemplo, por meio de visões e transes. Contudo, raramente encontramos nos escritores gregos, anteriores a Cristo, expressões claras de que um demônio tenha entrado num profeta ou adivinhador e falado através de seus órgãos. A idéia de que Pítia era possuída por um demônio ao pronunciar os oráculos de Apolo aparece pela primeira vez em Plutarco, que, em base a argumentos racionalistas, rejeita a sacerdotisa afirmando ser um canal indigno da comunicação divina.
As religiões mistéricas também constituem uma fonte importante para a compreensão do fenômeno da glossolalia praticada na comunidade de Corinto no tempo de Paulo. Forbes, citando Eurípedes (Bacchae), descreve uma fala extática com violentas manifestações físicas, típicas das celebrações dionisíacas, como gritos dos adoradores em frenesi, danças enérgicas, balançar frenético da cabeça e cabelos em desordem. O ritmo é marcado ao som de tambores, címbalos e flautas. Os gritos invocatórios representam títulos alternativos para a divindade. Aclamado como o deus dos oráculos, a profecia é parte regular do ritual.
Dentre os gritos de adoração popular a Dioniso, um que se apresenta com aparência extática e é entendido como fenômeno da glossolalia é o Bacchic tongues [Línguas Báquicas], que se dirige àqueles que não têm parte nos ritos báquicos. Os coros são chamados satíricos e destinados a expulsar todos aqueles que não são iniciados nos mistérios da comédia, que constituem parte do festival de Dioniso.
A adoração a Cibele também é caracterizada por festivais com adoração orgiástica, frenesi, danças ao ritmo de tambores, címbalos e flautas e cabelos desfeitos. Esses rituais não enfatizam necessariamente o estado alterado de consciência, como acontece com os participantes dos rituais de Dionísio.
Segundo Forbes, Fílon permanece como uma exceção na compreensão de inspiração no mundo helenístico. Para o autor, a natureza da inspiração e do entusiasmo em Fílon deve ser entendida a partir de duas categorias. A primeira evidência está no próprio Fílon, que atesta ter sido tomado pelo frenesi, manifestando os sintomas visíveis da inspiração. A segunda advém da sua visão idiossincrática acerca da natureza do frenesi filosófico, que ele considera uma inspiração divina.
Os primeiros sintomas de inspiração, segundo Fílon, são mentais, e localizadas dentro do indivíduo. Mas transbordam para um reino visível, onde são comumente incompreendidos.
Para ele, a inspiração dá acesso a formas de conhecimento antes indisponíveis. Fílon usa o termo possessão divina. não para descrever experiências psicológicas, mas para indicar o que ele mesmo vivenciou e chama de experiência profética. Neste sentido, a experiência profética de possessão do filósofo não é acompanhada por gritos e danças violentas ou outros movimentos; o que é considerado inspiração é a contemplação, não o frenesi.
Fílon regularmente associa a verdadeira sabedoria do filósofo à possessão do Espírito divino, que está, por sua vez, ligado à profecia. Segundo Forbes, para Fílon, o Espírito divino repousa apenas brevemente sobre a cabeça dos homens comuns, mas, sobre o verdadeiro sábio, menos dominado pela carne, o Espírito repousa por muito tempo. Baseados numa teologia similar a esta, os elitistas de Corinto pareciam reivindicar a sabedoria e a maturidade não disponíveis aos menos talentosos.
Em obra recente, Paulo Nogueira diz que o fenômeno do falar em línguas é apenas parte do complexo do êxtase cultural cristão primitivo. Está no contexto do culto, embora não se reduza a ele, como é comum em muitas abordagens.
Hoje, pesquisas de campo como a de Goodman afirmam que a glossolalia não é um comportamento diário comum, mas um estado alterado de consciência. Baseada no contexto cúltico de sua pesquisa de campo em comunidades pentecostais, a autora afirma que o fenômeno é compreendido como um dom do Espírito, e os membros que falam em línguas sentem-se arrebatados, exaltados e gozam, a seguir, de uma forte sensação de prazer e bem estar. Algumas pessoas sentem como se sua língua fosse tomada; têm o impulso para falar, mas não compreendem o que falam; ouvem as suas palavras, mas não as distinguem; outras cantam em línguas, vêem uma grande luz ou dançam; as manifestações do Espírito são, pois, diferentes. Dessa forma, o batismo no Espírito vem sobre a pessoa e o Espírito a toma como habitação, como seu tabernáculo. Trata-se, segundo os fiéis, de uma inspiração divina, de uma possessão por um ser sobrenatural.
Quanto às formas de se alcançar o estado mental alterado, existem três possibilidades, segundo Goodman: algumas pessoas podem alcançar a dissociação espontaneamente; outras aprendem. a entrar em transe; e ainda há aquelas que são induzidas por meio de determinadas estratégias: o jejum e o uso de drogas, por exemplo, ajudam a preparar a mente e o corpo da pessoa para o estado de transe.
No momento crucial de romper em vocalização, informa Goodman, toda energia é drenada para alcançar esse estado extremamente difícil. A vocalização continua muito vigorosa por um breve momento e em seguida menos energia é absorvida; o excedente pode ser utilizado novamente para o comportamento cinético previamente adquirido. Gradual ou precipitadamente a energia disponível torna-se reduzida, a dissociação enfraquece, a pessoa suspira, abre os olhos e reverte à linguagem corrente.
A profecia e a glossolalia na comunidade paulina de Corinto: a questão dos paralelos
A ênfase de David Aune em considerar não só as tradições revelatórias e proféticas israelita-judaicas, mas também as tradições proféticas e oraculares greco-romanas para entender o fenômeno da profecia cristã primitiva justifica o nosso cuidado em abordar a profecia em Corinto no século I a partir de seu quadro estrutural, e não isoladamente.
O fato de nossa principal fonte de informação sobre a profecia cristã no primeiro século (1Co 12-14) vir de um contexto predominantemente helenístico leva muitos a afirmarem que as influências da cultura greco-romana são determinantes. Aqueles que defendem esta posição argumentam que Paulo, em 1Co 12-14, define a natureza da profecia e da glossolalia para distingui-las das experiências religiosas pré-cristãs da congregação de Corinto.
A pesquisa feita tem revelado que não são muitos os paralelos existentes entre a profecia cristã e o mundo helenista. No que diz respeito à adivinhação, por exemplo, no cristianismo primitivo, ela dependia predominantemente da inspiração, enquanto no mundo greco-romano, ela era predominantemente técnica. Há pouca ou quase nenhuma informação sobre o papel dos adivinhadores no spiritual underworld (submundo espiritual) do período helenístico para que se faça uma comparação proveitosa e, como vimos, o manticismo tem apresentado mais contrastes do que semelhanças entre as duas culturas, o que mostra a distância entre a profecia cristã e seu contexto helenístico.
John Penney também concorda que a tentativa de encontrar um substrato helenístico para profecia do Novo Testamento enfrenta sérias dificuldades. O autor argumenta que o uso dos termos profh,thj (profeta) e profhtei,a (profecia) no Novo Testamento é distinto de seu uso no mundo helenístico: neste prevalece não o conceito de inspiração, e sim o de um conjunto de serviços religiosos e civis. O termo helenístico ma,ntij é usado, no primeiro século, para descrever a adivinhação inspirada, mas sobretudo a técnica, enquanto a profecia do Novo Testamento dependia quase exclusivamente da inspiração. Geralmente, profecia inspirada e oráculos espontâneos eram considerados pelo mundo helenístico como práticas de um passado distante, e a adivinhação técnica, típica do período em estudo, era quase que totalmente evitada pela comunidade cristã. Por fim, conclui o autor, a profecia greco-romana era fortemente institucionalizada em estruturas sociais abrangentes, enquanto a profecia cristã era menos estruturada, mais espontânea e pouco integrada à comunidade.
Para Penney, as tradições greco-romanas não servem para entender nem a profecia cristã em geral, nem a situação de Corinto em particular, pois são muitas as diferenças. A profecia cristã é herdeira da profecia judaica, afirma o autor, e o problema de Corinto é o elitismo espiritual de alguns coríntios, conclui o mesmo.
O propósito e o efeito da profecia autêntica, em Paulo, é edificar a comunidade como um todo (1Co 14. 4,5,17), exortá-la, confortá-la (vv. 3,31) e encorajá-la (v. 31). Para Thiselton, Paulo insiste que profetizar é realizar atos de fala inteligível, articulada e comunicativa, os quais têm um efeito positivo nos outros, transformando a comunidade inteira. A profecia, segundo o autor, equivale à pregação, proclamação e ensino, a fim de que se promova pastoralmente a apropriação da verdade do evangelho e de suas promessas em contextos específicos para ajudar os outros.
Grudem considera a profecia do Novo Testamento um fenômeno plural. Aponta diferenças, por exemplo, entre a profecia nas igrejas paulinas e a profecia nos círculos cristãos palestinenses. Reconhece a particularidade da profecia de Tessalônica e distingue pregadores missionários proféticos, profetas itinerantes (At 11.21 e Didaquê), comunidades proféticas (epístolas paulinas e Apocalipse), profetas profissionais e ocasionais e outros tipos. Mas destaca dois tipos principais de profecia. O primeiro é chamado de palavras verdadeiras com autoridade divina, por exemplo, Mt 10.19-20 (e paralelos), Ef 2.20; 3.5, Apocalipse, Didaquê 11.7 e talvez At 13.2. O segundo, de menor autoridade do que o primeiro tipo, verifica-se em comunidades como a de Corinto, a dos discípulos em Tiro (At 21.4), a dos Tessalonicenses (1Ts 5.19-21), provavelmente a dos discípulos em Éfeso (At 19.6), e talvez a de Ágabo (At 11.28 ). Para o autor, a profecia de Ágabo em At 21.10-11 exemplifica os dois tipos de profecia.
Grudem ressalta a importância de distinguir entre a avaliação subjetiva do profeta acerca de sua própria autoridade e as avaliações de sua autoridade feitas por outros. A diferença entre essas avaliações pode resultar num conflito de autoridade. Segundo o autor, o manto da atividade profética havia sido transferido dos profetas canônicos para os apóstolos. Muitos aspectos da consciência apostólica de Paulo estão presentes nos profetas do Antigo Testamento, afirma Max Turner. Em 1Ts 5.20-21, por exemplo, Paulo teria sugerido a separação do joio do trigo: Não desprezeis as profecias; julgai todas as coisas, retende o que é bom.. Parece que Paulo fazia distinção entre a qualidade dos diversos oráculos proféticos do cristianismo primitivo. Se for assim, o apóstolo, desta maneira, estaria relativizando a autoridade dos profetas de Corinto, subordinando-os a si (1Co 14.37-38).
Há indícios de que, pelo menos na visão de Paulo, os profetas em Corinto não falavam com autoridade divina comparável a dos profetas canônicos do Antigo Testamento, uma vez que suas palavras não eram exatas, nem havia reconhecimento de tal autoridade por parte dos demais membros. E por atribuir à profecia a função de edificar, exortar e confortar a assembléia (1Co 14.3), por submetê-la a julgamento (1Co 14.29) e afirmar que .os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas. (1Co 14.32), parece que, na compreensão de Paulo, a profecia pode acontecer fora de um estado dissociativo ou extático.
Lewis, ao discorrer sobre possessão pela divindade da parte do ma,ntij no mundo helenístico ou do profh,thj ou profh/tij no Novo Testamento, distingue a possessão periférica da possessão central. Ele afirma que o xamã, no início de sua carreira, possui pelo menos um espírito que o permite controlar outros espíritos, ou ter conhecimento dos mesmos. Paulo revela em suas cartas ser possuído por um único espírito, o Espírito Santo.
Quando alude à possibilidade da existência de um espírito diferente, enviado por um diferente evangelho. (2Co 11.14), segundo Ashton, ele está ironizando.
Lewis identifica dois aspectos na vocação do xamã: uma luta longa e dolorosa e um chamado visionário. Ashton compara certos aspectos da vida de Paulo com o fenômeno do xamanismo. O autor procura semelhanças entre a gênese da vocação de Paulo e a dos antigos xamãs. Sua conclusão é a de que tais semelhanças são meras coincidências, mas tal estudo é valioso na medida em que traz novas luzes à pesquisa sobre a história do cristianismo primitivo e sobre a carreira de Paulo, revelando aspectos freqüentemente ignorados.
Wilson, à semelhança de Lewis, emprega as categorias intermediário central e intermediário periférico no estudo das religiões. A primeira categoria desempenha seu papel no culto central, é considerada oficial e está ligada ao mundo sobrenatural, ao contrário da segunda. Ambas as categorias, contudo, exibem padrões estereotípicos de fala e comportamento, sugerindo que tais padrões são culturalmente aprendidos. A mediação periférica tem várias funções:
1. obter um status social; 2. trazer mudança social; 3. manter a estabilidade social. Os intermediários centrais são primariamente responsáveis por manter a ordem social e promover o bem estar da comunidade.
Na opinião de Lewis, os cultos periféricos estão apenas a alguns passos de distância das religiões moralistas e centralizadoras que surgem em circunstâncias de aguda dilaceração social e que freqüentemente empregam a possessão como experiência religiosa suprema. A possessão pela divindade torna-se então o objetivo explícito e os membros são abertamente encorajados a atingir a comunhão extática. É também a expressão por meio da qual aqueles que aspiram à posição de liderança religiosa competem pelo poder e autoridade.
Mas até que ponto a preferência pelo êxtase (no caso, pela glossolalia) não revelaria, dentro da comunidade de Corinto, a disputa interna, entre pelo menos dois grupos, por status social? Podemos supor que o grupo dos espirituais, refletindo a posição filosófica de Fílon, transmitida por Apolo, ansiava pelo êxtase (manifesto na glossolalia) como afirmação de sua sabedoria superior e expressão da predileção divina para legitimar uma posição privilegiada do grupo e a autoridade sobre os demais. Ou seja, os dons espirituais seriam alvo da disputa entre membros do próprio grupo periférico. Essa situação não estava presente nos grupos observados por Lewis.
Goodman concebe a glossolalia como um estado de dissociação. Segundo a pesquisadora, há pessoas que, com a ajuda de várias técnicas, dissociam-se da realidade ordinária que as rodeia. A saída do mundo da consciência representa um padrão de comportamento humano observável em várias regiões e que se manifesta em maior ou menor grau de acordo com as condições pessoais, varia de uma sociedade para outra e pode servir como base para algumas atividades, como a dança e o canto. Neste estado de consciência alterada, algumas pessoas têm visões, outras falam.
Ignorando a literatura etnográfica, a maioria dos teólogos cristãos está convencida da exclusividade do comportamento da glossolalia na Igreja Cristã, afirma Goodman. Forbes diz que tais interpretações freqüentemente baseiam-se em estudos de casos pessoais. Para o autor, o uso de paralelos culturais possibilita investigar não apenas a ligação entre o cristianismo primitivo e seu contexto, mas também os fatores que o diferenciam de seu contexto. Investigando os paralelos do mundo helenístico, Forbes conclui que, exceto no caso de Fílon de Alexandria, o fenômeno da religião popular helenística não constitui uma fonte de inspiração para o cristianismo. O autor argumenta que, no Novo Testamento, e em nosso estudo sobre a comunidade paulina de Coríntios, não há uma única indicação de que a glossolalia tenha sido induzida artificialmente, como nas religiões pagãs, seja por bebidas alcoólicas, narcóticos, danças em frenesi, fórmulas de repetição rítmicas ou automutilação. Os gritos nos cultos de Dioniso, por exemplo, são causa ou elemento motivador do êxtase, e não seu efeito. No Novo Testamento, ao contrário, o êxtase é anterior à fala glossolálica; ou seja, a glossolalia é um sinal externo de uma condição interna.
Outro aspecto a ser discutido é o da semelhança ou não entre a glossolalia e a linguagem comum falada ou as linguagens angelicais (1Co 13.1). Paulo Nogueira, referindo-se à experiência descrita no livro dos Atos dos Apóstolos, diz que as línguas, no cristianismo paulino, não tinham a finalidade de ser uma proclamação pública do Evangelho, e muito menos se referiam ao falar de línguas estrangeiras. Em 1Co 13.1, por exemplo, ao se referir explicitamente à língua dos anjos, o apóstolo Paulo o faria a partir do contexto religioso da apocalíptica judaica e da descrição do culto celestial como paralelo ao culto terreno.
Tanto Paulo Nogueira quanto Max Turner concordam ao reconhecer em 1Co 13.1 uma referência à glossolalia como língua angelical, no entanto, Turner concebe as línguas também como xenolalia, supondo que Paulo provavelmente teve algum contato com o tipo de tradição encontrada em Atos 2.
Para Fee, Paulo e os coríntios concebiam o dom das línguas como linguagens dos anjos por dois motivos. Primeiro, porque há fontes judaicas que levam a acreditar que os anjos possuíam linguagens próprias (ou dialetos) e que, por meio do Espírito, poder-se-ia falar esses dialetos (Test. de Jó 48-50). Segundo, porque o sentido de espiritualidade da comunidade de Corinto a levava a acreditar que já haviam experimentado algo da existência angelical, o que se pode perceber, por exemplo, a partir de expressões que ordenam ou rejeitam a vida sexual (1Co 7.1-7; 11.2-16), ou que recusam uma futura existência corporal (1Co 15.12,35).
Forbes, no que diz respeito às línguas angelicais, diz que, para alguns, 1Co 13.1 somente será entendido como um paralelo de 1Co 14.7-8, no que se refere às coisas inanimadas que emitem sons, como a flauta e a harpa. Este caso tenta convencer com referência à crença em línguas divinas no mundo helenístico, ou à crença de línguas angelicais expressas em algumas obras intertestamentárias judaicas. Eles acreditam que o Testamento de Jó e o Apocalipse de Sofonias fornecem o paralelo substancial mais próximo para a glossolalia no cristianismo primitivo e reivindicam que o conceito de línguas divinas ou angelicais é um importante link que une os vários fenômenos. Aqueles que desejam argumentar que Paulo pretende que seus leitores compreendam somente as linguagens angelicais são forçados a ignorar, em 1Co 13.1, .as línguas dos homens.. Aqueles que desejam argumentar em favor da linguagem humana defendem que a expressão as línguas dos anjos, no mesmo versículo, é apenas uma hipérbole.
Para Paulo Nogueira, o contexto mais próximo da glossolalia no cristianismo primitivo é o misticismo apocalíptico. É no âmbito religioso que o elemento extático se desenvolve no judaísmo do período, por exemplo, as línguas dos anjos citadas nos manuscritos do Mar Morto. O conteúdo dos louvores dos cânticos para o sacrifício do sábado apresenta uma linguagem densa, o que parece ser indício dos limites da linguagem humana para expressar as coisas celestiais. A referência às línguas dos anjos. (também chamadas línguas de conhecimento.) contrapõe-se à língua humana (língua do pó.) em 4 Q400 frag. 2,7-11. Mas, segundo o autor, a presença da glossolalia aqui não é dada como certa.
Referindo-se ao Apocalipse de Paulo, datado do século II d.C., Nogueira aponta para a referência explícita de um paralelismo entre o culto terreno e o celestial, tal como um é feito no céu, da mesma forma o outro na terra., e para um testemunho raro de descrição da língua divina e angelical como uma espécie de .hebraico celestial este como mistificação da língua divina, falada por Jesus e pelos profetas, língua da Torá, além do seu aspecto misterioso de língua oriental, conclui o autor.
Goodman declara que não há dados suficientes na literatura sobre o assunto que possam assegurar que a glossolalia é semelhante ou não à linguagem comum falada. Ela insiste que a glossolalia é um padrão de vocalização, um automatismo de fala produzido no substrato de uma dissociação de ultra-excitação (hyperarousal), reflexo direto de processos neurofisiológicos observados em pessoas com estado mental alterado. Para a autora, parece tratar-se de uma necessidade psicológica equiparar vocalização e fala: os humanos têm uma necessidade urgente de compreender o que experimentam, de explicar novos fenômenos em termos do que já conhecem. Assim, estão convencidos de que, ao escutarem uma língua, viva ou morta, ela pode ser compreendida caso haja alguém que a conheça (xenoglossia). O fato de a glossolalia não apresentar a estrutura de superfície de um código simbólico e lingüístico de uma estrutura lingüística profunda, mas sim um artefato de dissociação super ativada (hyperarousal), confirma, segundo a pesquisadora, a hipótese de que a glossolalia tem em sua estrutura profunda uma dissociação super ativada.
Devido à rejeição quase universal da parte dos pentecostais e carismáticos quanto à afirmação de que o dom das línguas supõe o êxtase ou transe, foram feitos testes do nível de consciência e da habilidade de desempenhar tarefas mentais durante a glossolalia. A conclusão foi a de que o glossolalista é receptivo às informações externas e capaz de processá-las e reagir a elas durante os encontros de glossolalia. O falar em línguas pode acompanhar o transe, mas certamente não requer um estado de consciência alterado significativo ou uma dissociação (além daquela envolvida, por exemplo, em dirigir um carro e pensar sobre qual restaurante escolher).
Mark Cartledge oferece-nos um artigo que traz um debate entre Goodman e William J. SamarIn: Samarin aponta os limites da pesquisa de Goodman, uma vez que ela não considerou a literatura do movimento pentecostal, mas somente os estudos da ciência comportamental. Caso o fizesse, diz o autor, ela teria percebido que a dissociação algumas vezes pode acompanhar a glossolalia, mas não pode ser considerada causa do falar em línguas. Algumas pessoas falam em línguas sem entrar em êxtase.
Cartledge cita outros autores que discordam da tese de Goodman, por exemplo, N. P. Spanos, E.C. Hewitt, W. K. Bartlett e T. Moyle. Em geral, tais autores argumentam que os estados alterados de consciência nem sempre acompanham a glossolalia, ainda que um dado intercultural favoreça tal afirmação. Além disso, o estudo de Goodman não seria propriamente sobre a glossolalia, mas sobre como casos de dissociação ou estados alterados de consciência se relacionam com a glossolalia. A maioria dos pesquisadores concorda com as afirmações de SamarIn: Intrigante é o relato do testemunho da conversão de uma mulher na cidade do México, apresentado por Goodman, o que sugere que nem sempre a glossolalia está ligada à dissociação:
Comigo, eu ajoelho para orar, eu sinto o contato e eu falo em línguas, eu posso estar lavando louça, se eu estou sozinha ou com os outros. Isto pode acontecer comigo no supermercado, ou caminhando na estrada, onde quer que seja, não importa, pois é a mesma bênção que o Senhor me dá aqui e na Igreja.
No caso da comunidade de Corinto, em 1Co 14.18, Paulo agradece a Deus por falar em línguas mais do que todos os coríntios. Parece-nos que, para Paulo, a glossolalia era uma rica experiência espiritual e uma prática constante, o que nos leva a questionar sobre a presença de um fenômeno dissociativo. Possivelmente, Paulo falava em línguas em grande parte do seu tempo para a sua edificação, o que supõe que a glossolalia nem sempre é caracterizada como um estado alterado de consciência.