sábado, 29 de outubro de 2016
sexta-feira, 28 de outubro de 2016
Jesus Histórico. Uma Brevíssima Introdução - André Leonardo Chevitarese e Pedro Paulo A. Funari
Segunda Edição Revista e Ampliada, Jesus Histórico, uma brevíssima introdução
O livro pode ser adquirido em vendas@klineeditora.com
quarta-feira, 26 de outubro de 2016
sábado, 22 de outubro de 2016
quinta-feira, 20 de outubro de 2016
Fé na Verdade - Daniel Dennett
1. É a ciência uma religião?
É a matemática realmente uma religião? E a ciência? Hoje em dia ouve-se muitas vezes dizer que a ciência é “apenas” mais uma religião. Há algumas semelhanças interessantes. A ciência oficial, tal como a religião oficial, tem as suas burocracias e hierarquias entre funcionários, as suas instalações grandiosas e esotéricas sem qualquer utilidade aparente para os leigos, as suas cerimônias de iniciação. Tal como uma religião decidida a alargar a sua congregação, a ciência tem uma enorme falange de missionários — que não se chamam a si mesmos missionários, mas professores.
Eis uma fantasia engraçada: um observador mal informado presencia o trabalho de equipe, intrincado e formal, necessário para preparar uma pessoa para a parafernália esotérica de uma tomografia axial computadorizada — um exame T.A.C. — e supõe tratar-se de uma cerimônia religiosa, um sacrifício ritual, porventura, ou a investidura de um novo arcebispo. Mas estas semelhanças são superficiais. E quanto às semelhanças mais profundas que têm sido defendidas? A ciência, tal como a religião, tem as suas ortodoxias e as suas heresias, não tem? Não é afinal a crença no poder do método científico um credo, tal como os credos religiosos, no sentido em que em última análise é de uma questão de fé, tão incapaz de confirmação independente ou fundamento racional como qualquer outro credo religioso? Repare-se que a pergunta ameaça autodestruir-se: ao contrastar a fé com a confirmação independente e com o fundamento racional, negando que a ciência como um todo possa usar os seus próprios métodos para assegurar o seu próprio triunfo, a pergunta presta homenagem a esses mesmos métodos. Parece existir uma assimetria curiosa: os cientistas não apelam à autoridade de quaisquer líderes religiosos quando os seus resultados são contestados, mas muitas religiões atuais adorariam poder garantir o aval da ciência. Algumas dessas religiões têm nomes que manifestam esse desejo: os cientistas cristãos e os cientologistas, por exemplo. Temos também uma palavra para a veneração da ciência: “cientificismo”. Acusam-se de cientificismo aqueles cuja atitude entusiástica perante as proclamações da ciência é muito semelhante às atitudes do devoto: em vez de ser cauteloso e objetivo, tem uma postura de adoração, é acrítico ou até fanático.
Se o summum bonum ou máximo bem dos cientistas é a verdade, se os cientistas fazem da verdade o seu Deus, como já foi defendido, não será esta uma atitude tão situada quanto o culto de Jeová, de Maomé, ou do Anjo Moroni? Não, a nossa fé na verdade é, verdadeiramente, a nossa fé na verdade — uma fé partilhada por todos os membros da nossa espécie, mesmo que exista grande divergência nos métodos admitidos para a obter. A assimetria acima referida é real: a fé na verdade tem uma primazia que a distingue de todas as outras fés.
2. O primado da verdade
Neste preciso momento, há bilhões de organismos neste planeta a jogar às escondidas. Mas para eles não se trata apenas de um jogo. É uma questão de vida ou de morte. Não se enganarem, não cometerem erros, tem sido de uma importância primordial para todos os seres vivos deste planeta desde há mais de 3 bilhões de anos; por isso, estes organismos desenvolveram milhares de formas diferentes de descobrir como é o mundo em que vivem, distinguindo os amigos dos inimigos, os alimentos dos companheiros e ignorando, em grande medida, o resto. É para eles importante não estarem mal informados acerca destas matérias — mas, regra geral, não se dão conta disto. Eles são os beneficiários de um equipamento delicadamente concebido para captar bem o que interessa, mas quando o seu equipamento funciona mal e capta as coisas mal, não têm, regra geral, recursos para se darem conta disto, quanto mais para o lamentarem. Eles limitam-se a prosseguir, inconscientemente. A diferença entre a aparência e a realidade das coisas é um hiato tão fatal para eles quanto o pode ser para nós, mas eles não se apercebem, em grande medida, disso. O reconhecimento da diferença entre a aparência e a realidade é uma descoberta humana. Algumas das outras espécies (alguns primatas, alguns cetáceos, talvez até algumas aves) reconhecem, aparentemente, o fenômeno da “crença falsa” — o engano. Mostram alguma sensibilidade aos erros dos outros e talvez até alguma sensibilidade aos seus próprios erros enquanto erros, mas não têm a capacidade de reflexão necessária para refletir nesta possibilidade, razão pela qual não podem usar esta sensibilidade para conceber deliberadamente correções ou aperfeiçoamentos nos seus próprios instrumentos de busca e dissimulação. Esse tipo de superação do hiato entre a aparência e a realidade é um ardil que só nós, os seres humanos, dominamos.
Somos a espécie que descobriu a dúvida. A comida armazenada será suficiente para o Inverno? Terei feito os cálculos mal? Estará a minha companheira a enganar-me? Deveríamos ter ido para Sul? Será seguro entrar nesta caverna? As outras criaturas são muitas vezes visivelmente inquietadas pelas suas próprias incertezas acerca destas mesmas questões, mas, porque não podem, na verdade, colocar-se a si mesmas estas perguntas, não podem articular, perante si próprias, os seus dilemas, nem tomar medidas para aperfeiçoar o seu controle da verdade. Estão encurraladas num mundo de aparências, fazendo com elas o melhor que podem, raramente se preocupando (se é que alguma vez o fazem) com a questão de saber se as aparências correspondem à realidade.*1
Só nós podemos ser arruinados pela dúvida e só nós fomos impelidos por essa inquietação epistêmica a procurar uma cura: melhores métodos de procurar a verdade. Ao desejar um conhecimento mais adequado das nossas reservas de comida, dos nossos territórios, famílias e inimigos, descobrimos os benefícios de falar sobre isso com os outros, de fazer perguntas e de transmitir conhecimentos: inventamos a cultura. Depois, inventamos a medição e a aritmética, os mapas e a escrita. Estas inovações nas áreas da comunicação e do registro arrastam já consigo um ideal: a verdade. O sentido de fazer perguntas é encontrar respostas verdadeiras; o sentido da medição é medir de forma precisa; o sentido de produzir mapas é encontrar o caminho para o nosso destino. Pode existir uma Ilha dos Daltônicos (para usar a enorme dose habitual de liberdade poética de Oliver Sacks), mas não uma Ilha das Pessoas Que Não Reconhecem os Seus Próprios Filhos. A Terra dos Mentirosos só poderá existir nos enigmas dos filósofos; não há tradições de Sistemas de Calendários Falsos para registrar erradamente a passagem do tempo. Em suma, é evidente que o objetivo da verdade existe em todas as culturas humanas.
Na verdade, o dizer não faria realmente sentido sem o ideal da verdade. Mas assim que o dizer a verdade foi inventado, descobriram-se igualmente formas de explorar este pressuposto: sobretudo, a mentira. Como Talleyrand cinicamente afirmou em tempos, a linguagem foi inventada para podermos esconder os nossos pensamentos uns dos outros. Dizer a verdade é, e tem de ser, o pano de fundo de toda a comunicação genuína, incluindo a mentira. Afinal, o dolo só funciona quando aquele que pretende enganar tem a reputação de dizer a verdade.*2 A adulação não conduziria a nada sem o pressuposto inicial de dizer a verdade: arrulhar como uma pomba ou grunhir como um porco teriam as mesmas probabilidades de captar as boas graças de alguém.
O mundo dos animais não humanos descobriu muitas vezes a possibilidade da publicidade falsa. Onde existem espécies venenosas, avisando os possíveis predadores com as suas cores brilhantes, existem muitas vezes espécies não venenosas que imitam estas cores brilhantes, obtendo assim proteção barata graças à prática do engano. Mas aqueles que fazem às vezes de mentirosos entre os animais descobriram também uma forma de fazer valer a verdade: o princípio de Zahavi. Como defendeu o biólogo Amotz Zahavi, só a publicidade cara mostra claramente a sua credibilidade porque não pode ser imitada. Por exemplo, na competição do acasalamento os pretendentes com chifres incômodos, caudas de pavão ou outras desvantagens óbvias estão na realidade a dizer: “sou tão bom que posso suportar estes custos enormes e, mesmo assim, sobreviver”. Quem quiser competir é obrigado a sustentar estes custos extravagantes, senão fica sem acasalar. Assim, as espécies não humanas são muitas vezes conduzidas pelo caminho que conduz diretamente ao verídico; entre os animais, somos os únicos a apreciar a verdade por si mesma. E, graças à ciência que criamos ao procurar a verdade, somos também os únicos que podemos ver por que razão a verdade, apesar de não ser admirada ou até mesmo concebida, é um ideal que constrange as atividades perceptivas e comunicativas de todos os animais.
Nós, seres humanos, usamos as nossas capacidades comunicacionais não apenas para dizer a verdade, mas também para fazer promessas e ameaças, para regatear e contar histórias, para divertir, mistificar e originar transes hipnóticos ou, simplesmente, para brincar — mas a rainha de todas estas atividades é a de dizer a verdade, e foi para esta atividade que inventamos utensílios cada vez melhores. Juntamente com os nossos utensílios para a agricultura, a construção, a guerra e o transporte, criamos uma tecnologia da verdade: a ciência.
3. A ciência como a tecnologia da verdade
Tente desenhar uma linha reta, ou um círculo, “à mão”. A não ser que tenha um talento artístico considerável, o resultado não será grande coisa. Mas com uma régua e um compasso, por outro lado, poderá eliminar praticamente as fontes da instabilidade humana e obter um resultado satisfatório, limpo e objetivo, sempre igual.
É a linha realmente reta? Quão reta? Em resposta a estas questões desenvolvemos testes cada vez mais precisos, seguidos de testes da precisão desses testes, e assim por diante, consolidando o nosso progresso em direção a uma cada vez maior precisão e objetividade. Os cientistas são tão vulneráveis ao raciocínio caprichoso, tão passíveis de serem tentados por motivos baixos, tão subornáveis, crédulos e desleixados como o resto da humanidade. Os cientistas não se consideram santos; nem sequer fingem ser sacerdotes (de quem, de acordo com a tradição, se espera melhores resultados do que os obtidos por todos nós na luta contra a tentação e a fraqueza moral). Os cientistas acham-se tão fracos e falíveis quanto qualquer outra pessoa, mas ao reconhecer essas mesmas fontes de erro em si mesmos e nos grupos a que pertencem, conceberam complicados sistemas para atar as suas próprias mãos, impedindo energicamente que as fragilidades morais e os preconceitos contaminem os seus resultados.
Não são apenas os instrumentos, os utensílios físicos próprios da atividade, que foram concebidos para resistir ao erro humano. A organização dos métodos está também sob pressão da seleção rigorosa a favor de cada vez mais fidedignidade e objetividade. O exemplo clássico é a experiência na qual nem as pessoas sujeitas ao teste nem os próprios cientistas que fazem o teste sabem quem está a tomar o fármaco que se pretende testar e quem está a tomar uma substância inativa, de maneira a que nenhuns desejos e pressentimentos subliminares possam influenciar a percepção dos resultados. A concepção estatística quer das experiências individuais quer de conjuntos de experiências faz assim parte da prática geral de tentativas de rotina nas quais investigadores independentes procuram reproduzir essas experiências, o que por sua vez faz parte de uma tradição — imperfeita, mas reconhecida — de publicação dos resultados positivos e negativos.
O que inspira a fé na aritmética é o fato de centenas de escrevinhadores, trabalhando independentemente no mesmo problema, chegarem todos à mesma resposta (excetuando aqueles poucos cujos erros podem ser encontrados e identificados de forma pacífica para todos). Esta objetividade incomparável encontra-se também na geometria e nos outros ramos da matemática, que desde a antiguidade tem sido o próprio modelo do conhecimento positivo, em oposição ao mundo do fluxo e da controvérsia. No diálogo Ménon, de Platão, Sócrates e o escravo descobrem em conjunto um caso especial do teorema de Pitágoras. O exemplo de Platão exprime o reconhecimento claro de um cânone de verdade ao qual todos os que procuram a verdade devem aspirar, um cânone que não só nunca foi seriamente desafiado, mas que foi tacitamente aceito — e no qual, na verdade, se confia fortemente, mesmo em casos de vida ou de morte — pelos mais vigorosos oponentes da ciência. (Ou conhece o leitor alguma igreja que controle o seu rebanho, e os seus donativos, sem o benefício da aritmética?)
Sim, mas a ciência quase nunca parece assim tão incontroversa, tão consolidada, como a aritmética. Na verdade, as facções científicas rivais envolvem-se muitas vezes em batalhas de “evangelização” tão ferozes quanto as que encontramos na política, ou até mesmo nos conflitos religiosos. A exaltação com que alguns defensores da ortodoxia científica defendem muitas vezes as suas doutrinas contra os heréticos não tem, provavelmente, paralelo noutras áreas do combate retórico entre os seres humanos. Esta competição pela popularidade — e, claro, pelos financiamentos — são concebidas para captar a atenção e, se forem bem executadas, conseguem-no. O efeito secundário disto é desviar a atenção do imenso pano de fundo incontestado de qualquer ciência para a guerra travada nas suas orlas — e é esse imenso pano de fundo que dá às suas orlas tanta força. O que é assumido por todos, nestas acaloradas desavenças, é uma coleção enciclopédica e organizada de fatos científicos banais, com os quais todos concordam.*3
Robert Proctor chama acertadamente a nossa atenção para uma distinção entre a neutralidade e a objetividade. Os geólogos sabem muito mais sobre xistos petrolíferos do que acerca de outras rochas — por razões econômicas e políticas óbvias — mas o que eles sabem sobre os xistos petrolíferos é objetivo. E muito do que eles aprendem sobre os xistos petrolíferos pode ser generalizado a outras rochas menos favorecidas. Queremos que a ciência seja objetiva; mas não devemos desejar que a ciência seja neutra. Os biólogos sabem muito mais sobre a mosca da fruta, Drosophila, do que sabem acerca de outros insetos — não porque se possa enriquecer à custa das moscas da fruta, mas porque é mais fácil saber coisas acerca das moscas da fruta do que acerca da maioria das outras espécies. Os biólogos sabem também muito mais sobre mosquitos do que sobre outros insetos — neste caso porque os mosquitos são mais prejudiciais para as pessoas do que outras espécies que seriam muito mais fáceis de estudar. As razões para concentrar a atenção na ciência são variadas, e todas elas concorrem para fazer com que os rumos da investigação estejam longe de ser neutras; mas essas razões não fazem, geralmente, com que a ciência seja menos objetiva. Às vezes, é verdade, um ou outro preconceito conduz à violação dos cânones do método científico. Estudar o padrão de certa doença nos homens, por exemplo, ao mesmo tempo em que se negligencia a recolha de dados sobre a mesma doença nas mulheres, não é algo que se limita a não ser neutra; é má ciência, tão indefensável em termos científicos como em termos políticos.
Os métodos da ciência não são completamente seguros, mas podem ser constantemente aperfeiçoados. E o que é igualmente importante: existe uma tradição de crítica que obriga ao aperfeiçoamento sempre que se descobrem defeitos, e seja onde for que se descubram defeitos. Os próprios métodos da ciência, tal como tudo o que existe, são objeto do escrutínio científico, transformando-se os métodos em metodologia, a análise dos métodos. A metodologia, por seu turno, fica debaixo do olhar daepistemologia, a investigação da própria investigação — não há nada que escape ao questionamento científico. A ironia é que estes frutos da reflexão científica, que nos mostram as manchas indeléveis da imperfeição, são por vezes usadas por quem desconfia da ciência como pontos de partida para negarem a esta um estatuto privilegiado na área da procura da verdade — como se as instituições e práticas que eles tomam como concorrentes da ciência não estivessem ainda em pior posição no que respeita a estas matérias. Mas onde estão os exemplos do abandono da ortodoxia religiosa face a provas irresistíveis? Na ciência, as heresias de ontem tornaram-se vezes e vezes sem conta as novas ortodoxias de hoje. Nenhuma religião exibe este padrão evolutivo ao longo da sua história.
Que diferença existente nestas instituições pode explicar este fato? Trata-se, claramente, do impulso fornecido pela fé que os cientistas depositam na verdade. Considerem-se os diagramas de Richard Feynman da eletrodinâmica quântica, por exemplo.*4 Quando os vi pela primeira vez, pareceram-me uma espécie de numerologia, uns guias da verdade grotescamente improváveis, mais parecidos com deitar cartas de tarot ou deitar sortes do que com ciência. Parecia estranho que um processo tão bizarro pudesse gerar a verdade; mas, na realidade, funciona: e pode compreender-se por que motivo funciona (com esforço!). E porque funciona, e porque pode demonstrar-se que funciona, gerando resultados de uma precisão e constância eptosas, foi aceito como parte do método científico ortodoxo. E se se conseguisse provar que deitar sortes, ou a astrologia, geram resultados de uma precisão análoga, também estas práticas poderiam ser acomodadas na ciência ortodoxa, juntamente com uma teoria que explicasse por que razão funcionam. Mas é claro que esses métodos nunca foram legitimados. Os cientistas têm fé na verdade, mas não uma fé cega. Não é como a fé que os pais têm na honestidade dos seus filhos, ou a fé que os adeptos desportivos têm na capacidade dos seus heróis para ganhar. É antes como a fé que qualquer pessoa pode ter num resultado a que vários grupos de pessoas chegaram de forma independente.
4. Epistemologia: tentar dizer a verdade acerca da verdade
A investigação reflexiva última acerca da investigação ocorre no ramo da filosofia conhecido como epistemologia, a teoria do conhecimento. Também aqui as controvérsias existentes nas margens criaram um efeito nocivo, uma distorção que muitas vezes conduziu a interpretações erradas. Ao concordar que a verdade é um conceito muito importante, os epistemólogos tentaram dizer exatamente o que é a verdade — sem se despistarem. Perceber o que é verdade acerca da verdade, contudo, acabou por se revelar uma tarefa difícil, tecnicamente difícil, uma tarefa na qual as definições e as teorias que parecem à primeira vista inocentes conduzem a complicações que rapidamente fazem o teórico enredar-se em doutrinas duvidosas. A nossa estimada e conhecida amiga, a verdade, tende a transformar-se na Verdade — com V maiúsculo —, um conceito inflacionado de verdade que de fato não pode ser defendido.
Eis um dos caminhos que conduzem à dificuldade: suponhamos que o conhecimento não é nada senão acreditar justificadamente em proposições verdadeiras. Suponhamos, além disso, que as proposições verdadeiras, ao contrário das falsas, exprimem fatos. O que são os fatos? Quantos fatos existem? (Tom, Dick e Harry estão sentados numa sala. Eis um fato. Mas para além de Tom, Dick e Harry, da sala onde estão sentados e do que lhes serve de assento, parece que temos um sem-fim de outros fatos: Dick não está de pé, não existe qualquer cavalo que esteja a ser montado por Tom, e assim por diante, ad infinitum. Precisaremos realmente admitir uma infinidade de outros fatos juntamente com o pouquíssimo equipamento deste pequeno mundo?) Já existiam fatos antes de existirem aqueles que os procuram, ou são antes os fatos como as frases verdadeiras (inglesas, francesas, latinas etc.), cuja existência teve de aguardar que se criassem as línguas humanas? São os fatos independentes das mentes daqueles que acreditam nas proposições que os exprimem? Correspondem as verdades aos fatos? A que correspondem então as verdades da matemática, se é que correspondem a algo? As categorias começam a multiplicar-se, não emergindo nenhuma teoria unificada, óbvia e consensual sobre a verdade.*5 Os céticos, vendo as armadilhas que parecem rodear qualquer versão da verdade, absoluta ou transcendental, argumentam a favor de versões mais moderadas, mas os seus adversários contra-argumentam, mostrando as imperfeições das tentativas rivais de chegar a uma teoria aceitável. Reina a controvérsia sem fim.
Esta investigação modesta, mas por vezes brilhante, do próprio significado da palavra “verdade” tem tido algumas consequências perniciosas. Algumas pessoas pensaram que os argumentos filosóficos que mostram a situação desesperada das doutrinas inflacionadas da verdade mostraram que, na realidade, a própria verdade não era algo digno de apreço ou sequer passível de ser alcançado. “Desistam!”, parecem essas pessoas dizer. A verdade é um ideal inalcançável e insensato. Aqueles que buscam uma doutrina da verdade aceitável e defensável parecem estar a agarrar-se a um credo ultrapassado, dando crédito a uma religião que não conseguem fundamentar pelos métodos da própria ciência. A epistemologia começa a parecer-se com um jogo de idiotas — mas apenas porque os seus observadores esquecem tudo aquilo que ambos os lados aceitam acerca da verdade. Os efeitos desta visão distorcida podem ser perturbadores.
Quando era um jovem assistente de filosofia, recebi uma vez uma visita de um colega do Departamento de Literatura Comparada, um elegante e eminente teórico literário que precisava de ajuda. Senti-me lisonjeado por ele me ter procurado e fiz o melhor que pude para corresponder ao pedido, mas fiquei, estranhamente, perplexo com o sentido geral das suas perguntas acerca de vários tópicos filosóficos. Durante muito tempo não chegamos a lado nenhum, até que ele conseguiu tornar claro o que desejava. Ele queria “uma epistemologia”, afirmou. Uma epistemologia. Todos os teóricos literários dignos desse nome tinham, ao que parece, de exibir uma epistemologia naquela temporada, sem a qual ele se sentia nu, de maneira que tinha vindo ter comigo em busca de uma epistemologia que pudesse usar — ele tinha a certeza que isso estava na moda e queria por isso o dernier cri em epistemologia. Não lhe interessava que fosse sólida, defensável, nem (como se poderia muito bem dizer) verdadeira; só tinha de ser nova e diferente e com estilo. Usa os acessórios certos, meu caro amigo, senão ninguém vai reparar em ti na festa.
Nesse momento percebi que existia entre nós um abismo que até àquele momento não tinha claramente compreendido. Primeiro pensei tratar-se unicamente do abismo entre a seriedade e a frivolidade. Mas a minha vaga inicial de orgulho na minha própria integridade era, de fato, uma reação ingênua. O meu sentimento de ultraje, o meu sentimento de que tinha desperdiçado o meu tempo com o bizarro projeto deste homem era, à sua própria maneira, tão pouco sofisticado como a reação de alguém que, ao assistir pela primeira vez a uma peça de teatro, irrompe pelo palco para proteger a heroína do vilão. “Não estás a ver?”, perguntamos, incrédulos. “É um faz-de-conta. É arte. Não é suposto ser tomado literalmente!” Neste contexto, a demanda deste homem não era afinal tão vergonhosa quanto isso. Eu não teria ficado ofendido se um colega do Departamento de Teatro me tivesse pedido alguns metros de livros para colocar nas prateleiras do cenário para a sua produção da peça Jumpers, de Tom Stoppard, pois não? Que mal haveria em abastecer este amigo com uma série de vistosas doutrinas epistemológicas escandalosas, com as quais ele poderia excitar ou confundir os seus colegas?
O que seria errado, uma vez que ele não se dava conta do abismo, não reconhecendo sequer a sua existência, seria o fato de a minha concordância com a sua pândega consumista contribuir para o aviltamento de um bem precioso e para a erosão de uma distinção valiosa. Muitas pessoas, incluindo quer os espectadores quer os participantes, não se dão conta deste abismo, ou negam ativamente a sua existência; e é aí que está o problema. O que é triste nisto tudo é que em alguns círculos intelectuais, habitados por alguns dos nossos pensadores mais avançados nas artes e nas humanidades, esta atitude passa por ser uma sofisticada apreciação da futilidade da demonstração e da relatividade de todas as afirmações de conhecimento. Na verdade, esta opinião, longe de ser sofisticada, é o cúmulo da ingenuidade inconsciente, só possível graças à ignorância grosseira dos métodos já demonstrados de procura científica da verdade, assim como do seu poder. Como muitos outros ingênuos, estes pensadores, ao refletirem na manifesta insuficiência dos seus métodos de procura da verdade para atingir resultados estáveis e valiosos, generalizam inocentemente a partir dos seus próprios casos, concluindo que mais ninguém sabe como descobrir a verdade.
Entre os que contribuem para este problema está, lamento dizê-lo, um anterior orador nas Conferências da Amnistia de Oxford, o meu bom amigo Dick Rorty. Rorty e eu temos vindo a discordar construtivamente desde há mais de um quarto de século. Penso que cada um de nós ensinou muito ao outro, através do processo recíproco de polir as nossas discordâncias mútuas. Não há outro filósofo contemporâneo com quem tenha aprendido mais. Rorty abriu os horizontes da filosofia contemporânea, mostrando de forma perspicaz a nós, filósofos, muito acerca do modo como os nossos próprios projetos têm resultado dos projetos filosóficos do passado distante e recente, ao mesmo tempo em que corajosamente descreve e prescreve rumos futuros. Mas não concordamos de maneira nenhuma — por enquanto — no que respeita à sua tentativa, ao longo dos anos, de mostrar que os debates dos filósofos acerca da Verdade e da Realidade eliminam de fato o abismo, permitem de fato a derrapagem para uma forma de relativismo. No fim de contas, diz-nos Rorty, tudo são apenas “conversas”, restando apenas bases políticas ou históricas ou estéticas para assumir um ou outro papel numa conversa que continua.
Rorty tem tentado muitas vezes fazer-me alinhar na sua campanha, declarando poder encontrar na minha própria obra um ou outro insight explosivo que o ajudaria no seu projeto de destruir o ilusório edifício da objetividade. A passagem com que termino o meu livro Consciousness Explained (1991) é uma das suas favoritas:
Trata-se apenas de uma guerra de metáforas, poderá dizer-se — mas as metáforas não são “apenas” metáforas; as metáforas são instrumentos do pensamento. Ninguém pode pensar acerca da consciência sem instrumentos, por isso é importante equiparmo-nos com os melhores instrumentos possíveis. Repare-se no que construímos com os nossos instrumentos. Poderíamos nós imaginar tudo isto sem eles? [pág. 455]
“Gostaria”, afirma Rorty, “que ele tivesse dado mais um passo e que tivesse acrescentado que esses instrumentos são tudo o que a investigação pode alguma vez fornecer, porque a investigação nunca é ‘pura’ no sentido do ‘projeto de investigação pura’ de [Bernard] Williams. A investigação é sempre uma questão de alcançar algo que queremos.” (“Holism, Intrinsicality, Transcendence”, in Dahlbom, org., Dennett and his Critics. 1993) Mas eu nunca daria tal passo, pois apesar de as metáforas serem de fato instrumentos de pensamento insubstituíveis, não são os únicos instrumentos insubstituíveis. Os microscópios e a matemática e os scanners de IMR (imagem por ressonância magnética) são alguns dos outros. Sim, toda a investigação é uma questão de alcançar o que queremos: a verdade acerca de algo que nos interessa, se as coisas forem como devem ser.
Quando os filósofos discutem acerca da verdade estão a discutir acerca de como não inflacionar a verdade acerca da verdade, transformando-a na Verdade acerca da Verdade — uma doutrina absolutista que faça exigências indefensáveis aos nossos sistemas conceituais. A este respeito, a discussão é análoga aos debates sobre a realidade do tempo, por exemplo, ou sobre a realidade do passado. Existem investigações filosóficas sofisticadas e meritórias sobre a questão de saber se, se formos precisos, o passado será real. As opiniões dividem-se, mas estará enganado quem pensar que se rejeitam afirmações como as seguintes:
A vida surgiu neste planeta há mais de três mil milhões de anos.
O Holocausto aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial.
Jack Ruby disparou a matar sobre Lee Harvey Oswald às 11:21 da manhã, hora de Dallas, no dia 24 de Novembro de 1963.
Estas são verdades sobre acontecimentos que ocorreram de fato. As suas negações são falsidades. Nenhum filósofo em seu perfeito juízo alguma vez pensou o contrário, apesar de no calor da batalha terem por vezes afirmado coisas que poderiam interpretar-se dessa maneira.
Richard Rorty merece os muitos leitores seduzidos que tem nas artes e humanidades, assim como nas ciências sociais “humanísticas”, mas quando os seus leitores o interpretam entusiasticamente como alguém que encoraja o ceticismo pós-modernista acerca da verdade, estão a precipitar-se por caminhos que ele próprio se absteve de tomar. Quando o pressiono sobre estes tópicos, ele concede a existência de um conceito útil de verdade que sobrevive a todas as corrosivas objeções filosóficas. Rorty reconhece que este prestável e modesto conceito de verdade tem os seus usos: quando queremos comparar, em termos de precisão, dois mapas da província, por exemplo, ou quando se trata de saber se o réu cometeu ou não o crime de que é acusado.
Assim, até mesmo Richard Rorty reconhece o hiato, e a importância do hiato, entre a realidade e a aparência, entre os exercícios dramáticos que podem entreter-nos sem pretenderem dizer a verdade, e aqueles que procuram, e muitas vezes conseguem, a verdade. Rorty chama a isto uma concepção “vegetariana” da verdade. Muito bem, sejamos então todos vegetarianos acerca da verdade. Em qualquer caso, os cientistas nunca quiseram ser uns carnívoros radicais.
5. A verdade pode magoar
Toda a gente deseja a verdade. Quando o leitor se interroga sobre se o seu vizinho o enganou, ou se há peixes nesta área do lago, ou para que lado deve caminhar para chegar a casa, está interessado na verdade. Mas então, se a verdade é tão maravilhosa, por que motivo existe tanto antagonismo em relação à ciência? Toda a gente aprecia a verdade; mas nem toda a gente aprecia os instrumentos científicos de procura da verdade.
Ao que parece, algumas pessoas prefeririam outros métodos mais tradicionais de alcançar a verdade: a astrologia, a adivinhação, os profetas e gurus e xamãs, o transe e a consulta de vários textos sagrados. Nestes casos, o veredicto da ciência é tão familiar que quase nem preciso repeti-lo: enquanto diversões ou exercícios de elasticidade mental, todas estas atividades têm os seus méritos, mas, enquanto métodos para procurar a verdade, nenhum deles pode competir com a ciência — um fato em geral reconhecido tacitamente pelos que defendem a sua prática alternativa favorita através do que afirmam ser a base científica (que outra coisa havia de ser?) dos seus poderes. Nunca encontramos um crente na comunicação com o além a procurar o apoio de uma associação de astrólogos ou de um Colégio dos Cardiais; pelo contrário: exibem-se avidamente todos os farrapos de possíveis indícios estatísticos e qualquer físico ou matemático extraviado que possa oferecer um testemunho favorável.
Mas então por que motivo há tanto pavor, se mesmo os que procuram passar palavra acerca de alternativas apelam regularmente para a ciência? A resposta é amplamente conhecida: a verdade pode magoar. Sem dúvida que pode. Isto não é uma ilusão, mas é por vezes negado ou ignorado por cientistas e outras pessoas que fingem acreditar que a verdade acima de tudo é o bem supremo. Posso facilmente descrever circunstâncias nas quais eu próprio mentiria ou omitiria a verdade para evitar o sofrimento humano. A uma senhora idosa, no fim dos seus dias, nada resta senão as histórias dos feitos heroicos do seu filho — vai o leitor dizer-lhe a verdade quando o seu filho for preso, condenado por um crime terrível e humilhado? Não será para ela melhor deixar este mundo em ignorante serenidade? Claro que é, afirmo eu. Mas note-se que mesmo aqui temos de compreender estes casos como exceções à regra. Não poderíamos oferecer a esta mulher o conforto das nossas mentiras se mentir fosse a regra geral; ela tem de acreditar em nós quando falamos com ela.
É um fato que as pessoas não querem muitas vezes saber a verdade. E é um fato mais inquietante que as pessoas não queiram muitas vezes que os outros saibam a verdade. Mas, tentar transformar estes fatos de forma a que apoiem a ideia estúpida de que a própria fé na verdade é uma atitude humana relativa a certas culturas, situada ou em qualquer caso opcional, é confundir tudo. O pai do acusado que ouve em tribunal os testemunhos contra o seu filho, a mulher que se pergunta se o marido a anda a enganar — eles podem muito bem não querer saber a verdade, e podem ter razão em não querer saber a verdade, mas o fato é que acreditam na verdade; isso é claro. Eles sabem que a verdade está aí, para ser evitada ou abraçada, e sabem que a verdade é importante. É por isso que eles podem muito bem não querer saber a verdade. Porque a verdade pode magoar. Podem conseguir enganar-se a si mesmos, pensando que a atitude que têm nestas ocasiões perante a verdade reflete um defeito da própria verdade, assim como da própria procura e descoberta da verdade — mas se isto acontecer é puro autoengano. O máximo a que podem aspirar agarrar-se é à ideia de que podem existir boas razões, as melhores razões — no tribunal da verdade, note-se — para, por vezes, suprimir ou ignorar a verdade.
Não devíamos, então, considerar a possibilidade de suprimir, em grande escala, a verdade, protegendo assim dos seus efeitos corrosivos vários grupos em situação de risco? Pense no que acontece inevitavelmente quando a nossa cultura científica, e a sua tecnologia, é apresentada a populações que têm até agora sido poupadas às suas inovações. Que efeitos terão os telefones celulares e a MTV e o armamento de alta tecnologia (e a medicina de alta tecnologia para combater os efeitos do armamento de alta tecnologia) nos povos subdesenvolvidos do Terceiro Mundo? Sem dúvida, muitos efeitos destrutivos e penosos. Mas não temos de olhar para os artifícios eletrônicos para ver o mal que pode ser cometido. Tijs Goldschmidt, no seu fascinante livro,Darwin’s Dreampond (1996), conta-nos os efeitos devastadores de introduzir a perca do Nilo no Lago Vitória (Uganda): a eptosa espécie de peixes ciclóstomos quase se extinguiu em apenas alguns anos, uma perda catastrófica… isto é, para os biólogos, mas não necessariamente para as pessoas que viviam nas suas margens e que podem agora completar as suas dietas de subsistência com uma nova e abundante pesca. Goldschmidt também descreve, todavia, um efeito cultural análogo: a extinção dos tradicionais cestos sukuma.
Estes cestos à prova de água eram tecidos pelas mulheres e usados nas festas religiosas como vasilhas para consumir vastas quantidades de pombe, uma cerveja de milho [...] Os cestos eram entretecidos, em padrões geométricos de significado simbólico, com folhas de erva tingidas com manganês. Nem sempre era possível descobrir o significado dos padrões porque a introdução do mazabethi — os pratos de alumínio, cujo nome deriva da rainha Isabel, introduzidos em grande escala durante o domínio britânico — foi o fim da cultura masonzo. Falei com uma mulher idosa de uma pequena aldeia que, ao fim de mais de 30 anos, estava ainda revoltada com os mazabethi [...] “Sisi wanawake, nós, as mulheres, costumávamos tecer cestos, sentadas em grupo, ao mesmo tempo em que falávamos umas com as outras. Não vejo nada de mal nisso. Cada mulher dava o seu melhor para tentar fazer o cesto mais bonito que fosse possível. Os mazabethi acabaram com tudo isso.” [pág. 39]
Acho que ainda mais triste é o efeito da introdução de machados de aço junto dos índios panare da Venezuela.
Dantes, quando se usavam os machados de pedra, juntavam-se vários indivíduos, trabalhando em conjunto para cortar árvores para fazer um jardim. Contudo, com a introdução do machado de aço, um só homem pode fazer um jardim sem qualquer ajuda [...] A colaboração já não é obrigatória nem é particularmente frequente. [Sublinhado meu] (Katharine Milton, “Civilization and Its Discontents”, Natural History, Março, 1992, pp. 37-42)
Estas pessoas perderam a sua “estrutura de interdependência cooperativa” tradicional, perdendo também grande parte do conhecimento, acumulado ao longo dos séculos, da fauna e da flora do seu próprio mundo. Muitas vezes as suas línguas extinguem-se numa ou duas gerações. Estas são sem dúvida grandes perdas. Mas que políticas devemos adotar em relação a eles?
Em primeiro lugar, não devemos esquecer o óbvio: quando os povos de culturas tradicionais contatam com a cultura ocidental adotam entusiasticamente quase todas as novas práticas, os novos instrumentos, os novos costumes. Por quê? Porque sabem o que sempre desejaram, valorizaram e ambicionaram, e sentem que essas novidades são melhores meios para os seus próprios fins do que os seus velhos costumes. Os machados de aço substituem os de pedra, os motores fora de borda substituem as velas, a medicina moderna substitui os curandeiros, os radiotransistores e os telefones celulares são avidamente desejados. Estas pessoas não são afinal melhores do que nós a prever os efeitos em longo prazo das suas escolhas, mas, com base na informação de que dispõem, as suas escolhas são racionais.
É sem dúvida verdade que por vezes a “publicidade” espalhafatosa, astuciosamente dirigida às suas noções insulares do que a vida tem para nos oferecer, tira partido da sua inocência. Mas repare-se que esta tática deplorável não é domínio exclusivo dos que os exploram. Aqueles que os querem proteger da tecnologia moderna estão aparentemente preparados para morder a língua e mentir-lhes descaradamente: “Escondam as vossas maravilhas de alta tecnologia! Se lhes derem alguma coisa, impinjam-lhes pérolas de fantasia coloridas ou quaisquer outros nadas que eles possam rapidamente incorporar na sua cultura tradicional.”
É assim que se tratam membros adultos da nossa própria espécie? Não temos todos nós, entre outros direitos humanos, o direito de saber a verdade? É escandalosamente paternalista dizer que devemos isolar estas pessoas dos frutos da civilização. Serão eles como elefantes, para serem postos numa reserva? Acho que devemos tratá-los como tratamos os nossos próprios cidadãos: oferecemos-lhes todos os instrumentos de procura da verdade que temos, de maneira a que possam escolher com base numa opinião informada — se assim o escolherem. É claro que esta política é uma estrada de sentido único. Depois de os termos informado já violamos a sua prístina pureza. Não é possível voltar atrás.
Não é possível ter as duas coisas. Se se trata de humanos adultos, então têm o direito de saber, não têm? Está o leitor realmente disposto a tomar medidas no sentido de lhes impedir o acesso à educação? Mas a educação irá transformá-los completamente. Perderão muitos dos seus velhos costumes. Em alguns casos será um alívio, noutros será, sem dúvida, trágico. Mas que cânone usaria o leitor para definir o que devem e o que não devem perder? Devem preservar os costumes dos últimos 100 anos? Ou dos últimos 10 anos? Ou dos últimos 10 milênios? E, o mais importante de tudo, o que nos daria afinal o direito de os discriminar em relação aos nossos próprios cidadãos?
E já agora, estas restrições autoimpostas são exigidas por quem? Quem é que implora que fechemos as nossas bocas “imperialistas” e que guardemos as chamadas verdades científicas para nós próprios? Não é, em geral, o povo, mas antes os seus autoproclamados líderes espirituais. São eles, e não o seu rebanho, que exigem que o seu rebanho seja protegido das influências corrosivas e irreversíveis da nossa cultura científica da verdade. As pessoas que trabalham nos cultural studies e outras que agitam a bandeira do multiculturalismo deviam deter-se cuidadosamente sobre a seguinte sugestão: a sua política bem intencionada de tolerância das políticas tradicionais que recusam o livre acesso aos instrumentos científicos de procura da verdade é muitas vezes uma política ao serviço dos tiranos — e parece-me que são mais as vezes em que isto é assim do que aquelas em que não o é.
Na nossa cultura, o conceito de consentimento informado é uma das pedras-de-toque da liberdade. Mas o próprio conceito de informar as pessoas para que possam consentir ou não é encarada, noutras culturas, com hostilidade. Na verdade, penso que os líderes políticos terão cada vez mais dificuldades em manter os seus povos num estado de falta de informação. Tudo o que precisamos fazer é continuar a passar a palavra claramente e sempre com o cuidado escrupuloso de dizer a verdade. De fato, não há nada de novo nesta sugestão. Algumas instituições, como a BBC Internacional, têm vindo a fazer precisamente isto, com enorme sucesso, desde há décadas. E ano após ano, a elite de todas as nações do mundo envia os seus filhos para as nossas universidades para aí receberem a sua formação. Eles sabem, talvez melhor do que nós próprios pensamos, que a ciência e a tecnologia da procura da verdade constitui o nosso mais valioso bem de exportação.
A Alma - Voltaire
É um termo vago, indeterminado, que expressa um princípio desconhecido, porém de efeitos conhecidos que sentimos em nós mesmos. A palavra alma corresponde à animu dos latinos, à palavra que usam todas as nações para expressar o que não compreendem mais que nós. No sentido próprio e literal do latim e das línguas que dele derivam, significa “o que anima”. Por isso se diz: A alma dos homens, dos animais e das plantas, para significar seu princípio de vegetação e de vida. Ao pronunciar esta palavra, só nos dá uma ideia confusa, como quando se diz no Gênesis: “Deus soprou no rosto do homem um sopro de vida, e se converteu em alma vivente, a alma dos animais está no sangue, não mateis, pois, sua alma.”
De modo que a alma — em sentido geral — se toma pela origem e causa da vida, pela vida mesma. Por isto as nações antigas acreditaram durante muito tempo que tudo morria ao morrer o corpo. Ainda é difícil desentranhar a verdade no caso das histórias remotas, há probabilidade que os egípcios tenham sido os primeiros que distinguiram a inteligência e a alma, e os gregos aprenderam com eles a distinção. Os latinos, seguindo o exemplo dos gregos, distinguiram animus e anima; e nós distinguimos também alma e inteligência. Porém o que constitui o princípio de nossa vida, constitui o princípio de nossos pensamentos? São duas coisas diferentes, ou formam um mesmo princípio? O que nos faz digerir, o que nos produz sensações e nos dá memória, se parece ao que é causa nos animais da digestão, das sensações e da memória?
Há aqui o eterno objeto das disputas dos homens. Digo eterno objeto, porque carecendo da noção primitiva que nos guie neste exame, teremos que permanecer sempre encerrados num labirinto de dúvidas e de conjeturas.
Não contamos nem com um só apoio onde firmar o pé para chegar ao vago conhecimento do que nos faz viver e do que nos faz pensar. Para possuí-lo seria preciso ver como a vida e o pensamento entram em um corpo. Sabe um pai como produz a seu filho? Sabe a mãe como o concebe? Pode alguém adivinhar como se agita, como se desperta e como dorme? Sabem alguns como os membros obedecem a sua vontade? Terá descoberto o meio pelo qual as ideias se formam em seu cérebro e saem dele quando o deseja? Débeis autômatos, colocados pela mão invisível que nos governa no cenário do mundo, quem de nós poderia ver o fio que origina nossos movimentos?
Não nos atrevemos a questionar se a alma inteligente é espírito ou matéria; se foi criada antes que nós, se sai do nada quando nascemos; se depois de haver nos animado no mundo, vive, quando nós morremos, na eternidade. Essas questões que parecem sublimes, só são questões de cegos que perguntam a cegos: que é a luz?
Quando tratamos de conhecer os elementos que encerra um pedaço de metal, o submetemos ao fogo em um crisol. Possuiríamos crisol para submeter a alma? Uns dizem que é espírito; porém, que é espírito? Ninguém sabe, é uma palavra tão vazia de sentido, que nos vemos obrigados a dizer que o espírito não se vê, porque não sabemos dizer o que é. A alma é matéria, dizem outros. Porém, o que é matéria? Só conhecemos algumas de suas aparências e algumas de suas propriedades; e nenhuma destas propriedades e aparências parece ter a menor relação com o pensamento.
Há também quem opine que a alma está formada de algo distinto da matéria. Porém que provas temos disso? Se funda tal opinião em que a matéria é divisível e pode tomar diferentes aspectos, e o pensamento não. Porém, quem teria dito que os primeiros princípios da matéria sejam divisíveis e figuráveis? É muito verossímil que não o sejam; seitas inteiras de filósofos sustentam que os elementos da matéria não têm forma nem extensão. O pensamento não é madeira, nem pedra, nem areia, nem metal, logo o pensamento não pode ser matéria. Mas esses são raciocínios débeis e atrevidos. A gravidade não é metal, nem areia, nem pedra, nem madeira; o movimento, a vegetação, a vida, não são nenhuma dessas coisas; e, sem dúvida, a vida, a vegetação, o movimento e a gravitação são qualidades da matéria. Dizer que Deus não pode conseguir que a matéria pense, é dizer o absurdo mais insolente que se tenha proferido na escola da demência. Não estamos certos de que Deus tenha feito isso; porém se que estamos certos de que poderia fazê-lo. Que importa tudo o que se tenha dito e o que se dirá sobre a alma? Que importa que a tenham chamado entelequia, quintessência, chama ou éter; que a tenham tomado por universal, incriada, transmigrante, etc., etc.? Que importam em questões inacessíveis à razão, essas novelas criadas por nossas incertas imaginações? Que importa que os pais da Igreja dos quatro primeiros séculos acreditassem que a alma era corporal? Que importa que Tertuliano, contradizendo-se, decidisse que a alma é corporal, figurada e simples ao mesmo tempo? Teremos mil testemunhos de nossa ignorância, porém nem um só oferece vislumbre da verdade.
Como nos atrevemos a afirmar o que é a alma? Sabemos com certeza que existimos, que sentimos e que pensamos. Desejamos ir mais além e caímos em abismo. Submergidos nesse abismo, todavia, se apodera de nós a louca temeridade de questionar se a alma, da qual não temos a menor ideia, se criou antes que nós ou ao mesmo tempo em que nós, e se perece ou é imortal.
A alma e todos os artigos que são metafísicos devem ser submetidos sinceramente aos dogmas da Igreja, porque sem dúvida a revelação vale mais que toda a filosofia. Os sistemas exercitam o espírito, porém a fé o alumia e o guia.
Com frequência pronunciamos palavras sobre as quais temos ideia muito confusa, e algumas vezes ignoramos o significado. Não está neste caso a palavra alma? Quando a lingueta ou válvula de um fole está estragada e o ar que entra no ventre do fole sai por algumas das aberturas que tem a válvula, e este não está comprimido pelas duas paletas, e não sai com a violência que se necessita para atiçar o fogo, as criadas dizem: — Está descomposta a alma do fole. Não sabem mais, e essa questão não turva sua tranquilidade. O jardineiro fala da alma das plantas, e as cultiva bem, sem saber o que significa esta palavra. Em muitas de nossas manufaturas, os operários dão a qualificação de alma a suas máquinas; e nunca discutem sobre o significado de tal palavra; não ocorre isso com os filósofos.
A palavra alma entre nós, em seu significado geral, serve para denotar o que anima. Nossos antepassados os celtas, deram à alma o nome de seel, do que os ingleses formaram a palavra soul, e os alemães a palavra seel, e provavelmente os antigos teutões e os antigos bretões não disputariam sobre essa palavra.
Os gregos distinguiam três classes de alma: a alma sensitiva ou a alma dos sentidos (vê-se aqui porque o Amor, filho de Afrodite, sentiu tão veemente paixão por Psiquê, e porque Psiquê o amou ternamente): o sopro que dá vida e movimento a toda máquina, e que nós traduzimos por espírito; e a terceira classe da alma que, como nós, chamaram inteligência. Possuímos, pois, três almas, sem ter a mais ligeira noção de nenhuma delas. São Tomás de Aquino admite estas três almas, como bom peripatético, e distingue cada uma delas em três partes: uma está no peito, outra em todo o corpo e a terceira na cabeça. Em nossas escolas não se conheceu outra filosofia até o século 18. E desgraçado o homem que tomasse uma dessas almas por outra!
Há, sem dúvida, motivo para este caos de ideias. Os homens entendiam que quando os excitavam as paixões do amor, da cólera o do medo, sentiam certos movimentos nas entranhas. O fígado e o coração foram assinalados como sendo o local das paixões. Quando se medita profundamente, sentimos certa opressão nos órgãos da cabeça; logo, a alma intelectual está no cérebro. Sem respirar não é possível a vegetação e a vida; logo, a alma vegetativa está no peito, que recebe o sopro do ar.
Quando os homens viram em sonhos seus pais e amigos mortos, dedicaram-se a estudar o que lhes havia aparecido. Não era corpo, porque o havia consumido uma fogueira, o mar o tinha tragado e havia servido de pasto aos peixes. Isso, não obstante, sustinha que algo lhes havia aparecido, posto que o tinham visto; o morto havia lhes falado e o que estava sonhando lhes dirigia perguntas. Com quem haviam conversado dormindo? Se imaginaram que era um fantasma, uma figura aérea, uma sombra, os manes, uma pequena alma do ar e fogo extremadamente delicada, que vagava por não sei onde.
Andando o tempo, quando quiseram aprofundar este estudo, convencionaram que tal alma era corporal, e esta foi a ideia que dela teve a antiguidade. Chegou depois Platão, que utilizou essa alma de tal maneira que se chegou a suspeitar que a separou quase completamente da matéria; porém esse problema não se resolveu até que a fé veio iluminar-nos.
Em vão os materialistas alegam que alguns pais da Igreja não se expressaram com exatidão. Santo Irineu diz que e alma é o sopro da vida, que só é incorporal se comparada ao corpo dos mortais, porém que conserva a figura de homem para que se a reconheça.
Tertuliano se expressa deste modo: “A corporalidade da alma ressalta no Evangelho; porque se a alma não tivesse corpo, a imagem da alma não teria imagem corpórea”. Em vão esse mesmo filósofo refere à visão de uma mulher santa que viu um alma muito brilhante e da cor do ar.
Alegam que Santo Hilário disse, em tempos posteriores: “Não há nada que não seja corporal, nem no céu nem na terra, nem no visível ou invisível; tudo está formado de elementos, e as almas têm sempre uma substância corporal.”
Santo Ambrósio, no século 6, disse: “Não conhecemos nada que não seja material, excetuando-se a Santa Trindade.”
A Igreja decidiu, por unanimidade, que a alma é imaterial. Os citados santos incorreram em um erro que era então universal: eram homens, porém não se equivocaram a respeito à imortalidade, porque os Evangelhos evidentemente a anunciam.
Precisamos nos conformar com a decisão da Igreja, porque não possuímos noção suficiente do que se chama espírito puro e do que se chama matéria. O espírito puro é uma palavra que não nos transmite nenhuma ideia; e só conhecemos matéria por alguns de seus fenômenos. A conhecemos tão pouco, que a chamamos substância, e a palavra substância quer dizer o que está embaixo; porém este embaixo está oculto eternamente para nós; é o segredo do Criador em todas partes. Não sabemos como recebemos a vida, nem como a damos, nem como crescemos nem como digerimos, nem como dormimos, nem como pensamos, nem como sentimos.
II
Das dúvidas de Locke sobre a alma
O autor do artigo Alma, da Enciclopédia, se guiou escrupulosamente pelas opiniões de Jaquelet. Porém Jaquelet não nos ensina nada. Ataca a Locke, porque este modestamente disse: “Quiçá não seremos nunca capazes de conhecer se um ser material pensa ou não, pela razão de que nos é impossível descobrir por meio da contemplação de nossas próprias ideias, se Deus teria concedido a qualquer porção de matéria o poder de conhecer-se e de pensar; ou se uniu a matéria desse modo preparada uma substância imaterial que pensa. Com relação a nossas noções, não nos é difícil conceber que Deus pode, se assim lhe compraz, acrescentar à ideia que temos da matéria, a faculdade de pensar; nem nos é difícil compreender que possa agregar-lhe outra substância que possua tal faculdade; porque ignoramos em que consiste o pensamento, e não sabemos tampouco a classe de substância a que o Ser Todo-Poderoso possa conceder esse poder, e que pode criar em virtude da vontade do Criador. Não encontro contradição em que Deus, ser pensante, eterno e todo poderoso, dote se quiser, de alguns graus de sentimento, de perfeição e de pensamento, a certas porções de matéria criada e insensível, e que nos una a ela quando crer conveniente”.
Como acabamos de ver, Locke fala como homem profundo, religioso e modesto. Pode se dizer que Locke criou a metafísica (assim como Newton criou a física) para conhecer a alma, suas ideias e suas afeções. Não estudou nos livros, porque estes poderiam dar instrução errônea; se contentou com se autoestudar; e depois de contemplar-se longo tempo, no tratado do entendimento humano apresentou aos homens o espelho onde se havia contemplado. Em uma palavra, reduziu a metafísica ao que deve ser: na física experimental da alma.
Conhecidos são os desgostos que lhe proporcionou o manifestar esta opinião, que em sua época pareceu atrevida. Porém era só a consequência da convicção que tinha da onipotência de Deus e da debilidade do homem. Não assegurou que a matéria pensa, porém disse que não sabemos bastante para demonstrar que é impossível que Deus agregue o dom do pensamento ao ser desconhecido que chamamos matéria, depois de ter nos concedido o dom da gravitação e o dom do movimento, que não são igualmente incompreensíveis.
Locke não foi o único que iniciou esta opinião; indubitavelmente já o abordou antiguidade, posto que considerava a alma como uma matéria muito delicada, e por consequência, assegurava que a matéria podia sentir e pensar.
Esta foi também a opinião de Gassendi, como se pode ver nas objeções que fez a Descartes: é verdade, diz Gassendi, que sabeis que pensais, porém não sabeis que espécie de substância sois. Portanto, ainda que seja conhecida a operação do pensamento, desconheces o principal de vossa essência, ignorando qual é a natureza dessa substância, da que o ato de pensar é uma das operações. Nisso pareceis ao cego que, ao sentir o calor dos raios solares e sabendo que a causa é o sol, acreditara que teria ideia clara e distinta do que é esse astro, porque se lhe perguntarem que é o sol, poderia dizer: “É uma coisa que aquece”. O mesmo Gassendi, em seu livro titulado Filosofia de Epicuro, repete algumas vezes que não há evidencia matemática da pura espiritualidade da alma.
Descartes, em uma das cartas que dirigiu a princesa palatina Elisabet, disse: “Confesso que por meio da razão natural podemos fazer muitas conjeturas respeito da alma, e acalentar algumas esperanças, porém não podemos ter nenhuma segurança”. Neste caso, Descartes ataca em suas cartas o que afirma em seus livros.
Acabamos de ver que os pais da Igreja dos primeiros séculos, acreditando na alma imortal, acreditavam-na ao mesmo tempo, material. Por isso diziam: “Deus a fez pensante e pensante a conservará.”
Malebranche provou bastante bem que nós não adquirimos nenhuma ideia por nós mesmos, e que os objetos são incapazes de nos dar. Disto deduzo que provém de Deus. Isto equivale a dizer que Deus é o autor de todas nossas ideias. Seu sistema forma um labirinto, no qual uma das veredas conduz ao sistema de Espinosa, outra ao estoicismo e a terceira ao caos.
Depois de disputar muito tempo sobre o espírito e sobre a matéria, acabamos sempre por não entender. Nenhum filósofo logrou levantar com suas próprias forças o véu que a natureza tem estendido sobre os primeiros princípios das coisas. Enquanto eles disputam, a natureza obra.
III
Da alma das bestas
Antes de admitir o estranho sistema que supõe que os animais são umas máquinas incapazes de sensação, os homens não acreditaram nunca que as bestas tivessem alma imaterial, e ninguém foi tão temerário a ponto de se atrever a dizer que a ostra estava dotada de alma espiritual. Estavam em acordo as opiniões e convinham que as bestas haviam recebido de Deus sentimento, memória, ideias, porém não espírito. Ninguém havia abusado do dom de raciocinar ao ponto de afirmar que a natureza concedeu às bestas todos os órgãos do sentimento para que não tivessem sentimento. Ninguém havia dito que gritam quando se as fere, que fogem quando se as persegue, sem sentir dor nem medo. Não se negava então a onipotência de Deus; reconhecendo que pode comunicar à matéria orgânica dos animais, o prazer, a dor, a lembrança, a combinação de algumas ideias: pode dotar a vários deles, como ao macaco, ao elefante, ao cão de caça, o talento para aperfeiçoar-se nas artes que se lhes ensinam. Porém Pereyra e Descartes sustentaram que o mundo se equivocava, que Deus dotara com todos os instrumentos da vida e da sensação aos animais, com o propósito deliberado de que careceriam de sensação e de vida propriamente dita; e outros que teriam pretensões de filósofos, com a ideia de contradizer a ideia de Descartes, conceberam a quimera oposta, dizendo que estavam dotados de espírito os animais, e que teriam alma os sapos e os insetos.
Entre estas duas loucuras, a primeira que nega o sentimento aos órgãos que o produz, e a segunda que faz alojar um espírito puro no corpo de uma pulga, houve autores que se decidiram por um meio termo, que chamaram instinto. E o que é o instinto? é uma forma substancial, uma forma plástica, é um “não sei quê”. Serei da sua opinião, quando chameis à maioria das coisas “não sei quê”, quando tua filosofia seja tão debilitada que acabe em “não sei nada”.
O autor do artigo Alma, publicado na Enciclopédia, diz: “Em minha opinião, a alma das bestas é formada de uma substância imaterial e inteligente. Porém, de que classe? Deve consistir em um princípio ativo capaz de sensações. Se refletirmos sobre a natureza da alma das bestas, não nos aparece nenhum motivo para crer que sua espiritualização as salve do aniquilamento.”
É para mim incompreensível poder ter ideia de uma substância imaterial. Representar-se algum objeto, é ter na imaginação uma imagem dele, e até hoje ninguém conseguiu pintar o espírito. Concedo que o autor que acabo de citar entenda conceber pela palavra representar. Porém eu confesso que tampouco a concebo, como não concebo que se possa aniquilar um alma espiritual, como não concebo a criação nem a nada, porque ignoro completamente o princípio de todas as coisas.
Se trato de provar que a alma é um ser real, me contestam dizendo que é uma faculdade; se afirmo que é uma faculdade como a de pensar, me respondem que me equivoco, que Deus, dono absoluto da natureza, faz tudo em mim, dirige todos meus atos e pensamentos; que se eu produzisse meus pensamentos, saberia que produzo cada minuto, e não sei; que só sou um autômato com sensações e com ideias, que dependo exclusivamente do ser Supremo, e estou tão submisso a ele como a argila nas mãos do oleiro.
Confesso, pois, minha ignorância, e que quatro mil volumes de metafísica são insuficientes para nos ensinar o que é alma.
Um filósofo ortodoxo dizia a um heterodoxo: “Como conseguiste chegar a crer que por sua natureza a alma é mortal e que só é eterna pela vontade de Deus? — Porque experimentei, contestou o outro filósofo. — Como experimentaste? Por acaso morreste? Sim, algumas vezes. Tinha ataques de epilepsia na juventude e asseguro que caía completamente morto durante algumas horas. Depois não experimentava nenhuma sensação, nem recordava o que me havia sucedido. Agora me sucede o mesmo quase todas as noites. Ignoro o momento que durmo, e durmo sem sonhar. Só por conjeturas posso calcular o tempo que dormi. Estou, pois, morto por seis horas a cada vinte e quatro; a quarta parte de minha vida”. O ortodoxo sustentou que ele pensava mesmo quando dormia, porém sem saber o que. O heterodoxo replicou: “Creio que penso sempre na outra vida. Porém asseguro que raras vezes penso nesta”.
O ortodoxo não se equivocava ao afirmar a imortalidade da alma, porque a fé e a razão demonstram esta verdade: Porém podia equivocar-se ao assegurar que o homem dormindo pensa sempre. Locke confessava francamente que não pensava sempre que dormia; e outro filósofo disse: “O homem possui a faculdade de pensar, porém esta não é sua essência”. Deixemos a cada indivíduo a liberdade e o consumo de estudar-se a si mesmo e de perder-se no labirinto de suas ideias.
Não obstante, é curioso saber que em 1730 houve um filósofo que foi perseguido por haver confessado o mesmo que Locke, ou seja que não exercitava seu entendimento todos os minutos do dia e da noite, assim como não se servia sempre dos braços e das pernas. Não só a ignorância da corte o perseguiu, mas também a ignorância maligna de alguns que pretendiam ser literatos. O que só produz na Inglaterra algumas disputas filosóficas, produz em França covardes atrocidades. Um francês foi vítima por seguir Locke.
Sempre houve na lama de nossa literatura alguns miseráveis capazes de vender sua pluma e atacar até seus mesmos benfeitores. Esta observação parece impertinente em um artigo que trata da alma; mas não devemos perder nenhuma ocasião de observar a conduta dos que querem desonrar o glorioso título de homem de letras, prostituindo seu escasso talento e consciência a um vil interesse, a uma política quimérica e que fazem traição a seus amigos para adular os néscios. Não sucedeu nunca em Roma denunciarem Lucrecio por haver posto em verso o sistema de Epicuro; nem a Cícero por dizer muitas vezes que depois de morrer não se sente dor, nem acusaram Plínio, nem a Varrão de ter ideias particulares acerca da Divindade. A liberdade de pensar foi ilimitada em Roma. Os homens de curtos alcances e temerosos de em França se tem esforçado em afogar essa liberdade, mãe de nossos conhecimentos e incentivo do entendimento humano, para conseguir seus fins tem falado dos perigos quiméricos que esta pode trazer. Não refletiram que os romanos, que gozavam de completa liberdade de pensar, nem por isso deixaram de ser nossos vencedores e nossos legisladores, e que as disputas de escola tem tão pouca relação com o governo, como o tonel de Diógenes teve com as vitórias de Alexandre. Esta lição equivale a uma lição respeito à alma: quiçá teremos algumas ocasiões de insistir sobre ela.
Ainda adoremos a Deus com toda a alma, devemos confessar nossa profunda ignorância a respeito da alma, a essa faculdade de sentir e de pensar que devemos a sua bondade infinita. Confessemos que nossos débeis raciocínios nada encerram e nada acrescentam; e deduzamos de isto que devemos empregar a inteligência, cuja natureza desconhecemos, em aperfeiçoar as ciências, como os relojoeiros empregam as molas nos relógios, sem saber o que é uma mola.
IV
Sobre a alma e nossas ignorâncias
Fundado nos conhecimentos adquiridos, nos temos atrevido a questionar se a alma se criou antes que nós, se chega do nada a introduzir-se em nosso corpo, a que idade vem colocar-se entre uma bexiga e os intestinos, se ali recebe o aporte de algumas ideias, e que ideias são estas; se depois de animar-nos alguns momentos, sua essência, logo que o corpo morre, vive na eternidade; se sendo espírito, o mesmo que Deus, é diferente deste ou é semelhante. Essas questões que parecem sublimes, como dizemos, são as questões que entabulam os cegos de nascimento respeito da luz.
O que nos têm ensinado os filósofos antigos e os modernos? Nos têm ensinado que uma criança é mais sábia que eles, porque este só pensa não que pode conseguir. Até agora a natureza dos primeiros princípios é um segredo do Criador. Em que consiste que os ares arrastam os sons? Como é que alguns de nossos membros obedecem constantemente a nossa vontade? Que ma é a que coloca as ideias na memória, as conserva ali como em um registro e as saca quando queremos e também quando não queremos? Nossa natureza, a do universo e a das plantas, estão escondidas em um abismo de trevas. O homem é um ser que obra, que sente e pensa: é isso o todo que sabemos; porém ignoramos o que nos faz pensar, sentir e obrar. A faculdade de obrar é tão incompreensível para nós como a faculdade de pensar. É menos difícil conceber que o corpo de barro tenha sentimentos e ideias que conceber que um ser tenha ideias e sentimentos.
Compara a alma de Arquimedes com a alma de um imbecil: são as duas de uma mesma natureza? Se é essencial o pensar, pensarão sempre com independência do corpo, que não poderá obrar sem elas; se pensam por sua própria natureza, será da mesma espécie a alma que não pode compreender uma regra de aritmética, que a alma que mediu os céus? Se os órgãos corporais fazem pensar a Arquimedes, por que um idiota, melhor constituído e mais vigoroso que Arquimedes, dirigindo melhor e desempenhando com mais perfeição as funções corporais, não pensa? A isto se contesta que seu cérebro não é tão bom; porém isso é uma suposição, porque os que assim contestam não sabem. Não se encontrou nunca diferença alguma nos cérebros dissecados; e é ademais verossímil que o cerebelo de um tonto se encontre em melhor estado que o de Arquimedes, que o usou e o fatigou prodigiosamente.
Deduzamos, pois, disto o que antes deduzimos, que somos ignorantes ante os primeiros princípios.
V
Da necessidade da revelação
O maior beneficio que devemos ao Novo Testamento consiste em nos ter revelado a imortalidade da alma. Inútil foi que o bispo Warburton tratara de obscurecer tão importante verdade, dizendo continuamente que “os antigos judeus desconheciam esse dogma necessário, e que os saduceus não o admitiam na época de Jesus”.
Interpreta a seu modo as palavras que dizem que Cristo pronunciou: “Ignorais que Deus disse: eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isac e o Deus de Jacó? Logo Deus não é o Deus dos mortos, é o Deus dos vivos”. Atribui à parábola do mau rico o sentido contrário ao que atribuem todas as igrejas. Sherlock, bispo de Londres, e outros muitos sábios o refutam; os mesmos filósofos ingleses acham escandaloso que um bispo anglicano tenha a opinião contrária da Igreja anglicana; e Warburten, ao se ver contrariado, chama ímpios a ditos filósofos, imitando a Arlequim, personagem da comedia titulada o Ladrão da Casa, que depois de roubar e arrojar os móveis pela janela, vendo que na rua um homem levava alguns, gritou com toda a força de seus pulmões: — Pega ladrão!
Vale mais bendizer a revelação da imortalidade da alma e as das penas e recompensas depois da morte, que a soberba filosofia de homens que semeiam a dúvida. O grande César não acreditava; disse em pleno Senado, quando para impedir que matassem a Catilina, expôs seu critério, segundo o que a morte não deixava no homem nenhum sentimento, e tudo morria com ele. Ninguém refutou esta opinião.
O império romano estava dividido em duas grandes seitas: a de Epicuro, que sustinha que a divindade era inútil no mundo, e que a alma perecia com o corpo; e a dos estoicos, que sustentava ser a alma era uma porção da divindade, a qual depois da morte do corpo voltava a sua origem, isto é, ao grande todo de onde havia emanado. Umas seitas acreditavam que a alma era mortal e outras que era imortal, porém todas elas estavam conformes em fugir das penas e as buscar recompensas futuras.
Restam todavia bastantes provas de que os romanos tiveram tal crença; e esta opinião, profundamente gravada nos corações dos heróis e dos cidadãos romanos, os induzia a matar-se sem o menor escrúpulo, sem esperar que o tirano os entregasse ao verdugo.
Os homens mais virtuosos de então, que estavam convencidos da existência de um Deus, não esperavam na outra vida nenhuma recompensa, nem temiam nenhum castigo. Vemos no artigo titulado Apócrifo, que Clemente, que mais tarde foi Papa e Santo pôs em dúvida que os primitivos cristãos acreditassem na segunda vida, e sobre isto consultou a São Pedro em Cesárea. Não cremos que São Clemente escreveu a história que se lhe atribui; porém essa história prova que o gênero humano necessitava guiar-se pela revelação. O que neste assunto nos surpreende é que um dogma tão saudável tenha permitido que cometam brilhantes crimes os homens que vivem tão pouco tempo e que se veem comprimidos entre duas eternidades.
VI
As almas dos tolos e dos monstros
Nasce uma criança mal formada e absolutamente imbecil, não concebe ideias e vive sem elas. Como podemos definir esta classe de animal? Uns doutores dizem que é algo entre o homem e a besta, outros, que possui um alma sensitiva, porém não alma intelectual. Come, bebe e dorme, tem sensações, porém não pensa. Existe para ele a outra vida, ou não existe? Se tem proposto este caso, porém até hoje não se obteve completa resolução.
Alguns filósofos têm dito que a referida criatura devia ter alma, porque seu pai e sua mãe a teriam; porém guiando-nos por este raciocínio, se tivesse nascido sem nariz, devíamos supor que o teria, porque seu pai e sua mãe tiveram.
Uma mulher dá à luz a uma criança que tem o rosto achatado e escuro, um nariz afilado e pontiagudo, olhos redondos e, apesar disso, o resto do corpo é idêntico ao dos demais mortais. Os pais decidem que tenha batismo, e todo o mundo acredita que possua uma alma imortal. Porém, se essa mesma ridícula criatura tem unhas em forma de ponta e a boca em forma de bico, declaram-no monstro, dizem que não tem alma e não o batizam.
Sabido é que em Londres, em 1726, houve uma mulher que paria cada oito dias um coelhinho. Sem nenhuma dificuldade, batizavam a dita criança. O cirurgião que assistia a referida mulher no parto, jurava que esse fenômeno era verdadeiro, e acreditavam. Porém, que motivo teriam os crédulos para negar que tivessem alma os filhos de tal mulher? Ela a teria, seus filhos deviam também tê-la. O Ser Supremo não pode conceder o dom do pensamento e o da sensação ao ser desfigurado que nasça de uma mulher em forma de coelho, ou mesmo que o que nasça em figura de homem? A alma que se predisporia a alojar-se no feto dessa mãe, seria capaz de voltar ao vazio?
Locke observa sobre os monstros, que não deve atribuir-se a imortalidade ao exterior do corpo, que a configuração nada importa neste caso. A imortalidade não está mais ligada à forma do rosto ou do tórax, que à configuração da barba ou ao feitio do traje; e pergunta: Qual é a justa medida de deformidade para que se considere se uma criança tem ou não alma? Qual o grau para ser declarado monstro?
Que temos de pensar nesta matéria de uma criança que tenha duas cabeças e que, apesar disto, tenha um corpo bem proporcionado? Uns dizem que tem duas almas, porque está provido de duas glândulas pineais, e outros contestam dizendo que não pode ter duas almas quem não tem mais que um peito e um umbigo.
Se tem questionado tanto sobre a alma humana, que se esta chegasse a examinar todas, seria vítima de insuportável fastio. Aconteceria o mesmo que ocorreu ao cardeal de Polignac em um conclave. Seu intendente, cansado de não pode inteirar nunca das contas da intendência, fez com o cardeal uma viagem a Roma e se colocou na janela de sua cela, carregando um imenso fardo de papéis. Ficou ali lendo as contas mais de duas horas, enquanto esperava pela volta de Polignac. Por fim, vendo que não obteria nenhuma contestação, meteu a cabeça pela janela. Há duas horas que o cardeal havia saído de sua cela. Nossas almas nos abandonam antes que seus intendentes se tivessem inteirado do tanto que delas nos temos ocupado.
VII
Devo confessar que sempre que examino ao infatigável Aristóteles, ao doutor Angélico e ao divino Platão, tomo por motes estes epítetos que se lhes aplicam. Parece-me que todos os filósofos se tem ocupado da alma humana, cegos, charlatães e temerários, que fazem esforços para persuadir-nos de que tem vista de águia, e vejo que há outros amantes da filosofia, curiosos e loucos, que os acreditam em sua palavra, imaginando, por sugestão, que veem algo.
Não vacilo em colocar na categoria de mestres de erros Descartes e Malebranche. Descartes nos assegura que a alma do homem é uma substância, cuja essência é pensar que pensa sempre, e que se ocupa desde o ventre da mãe de ideias metafísicas e de ações gerais que esquece em seguida. Malebranche está convencido de que tudo vemos em Deus. Se encontrou partidários, é porque as fábulas mais atrevidas são as que melhor recebem a débil imaginação do homem.
Muitos filósofos têm escrito a novela da alma. Porém um sábio é o único que tem escrito modestamente sua história. Compendiarei essa história segundo a concebo. Compreendo que todo o mundo não estará de acordo com as ideias de Locke: pode ser que Locke tenha razão contra Descartes e Malebranche, e que se equivoque sobre Sorbonne; porém eu falo do ponto de vista da filosofia, não do ponto das revelações da fé.
Só me corresponde pensar humanamente. Os teólogos que decidam a respeito do divino: a razão e a fé são de natureza contrária. Em uma palavra, vou citar um extrato de Locke, a quem eu censuraria se fosse teólogo, porém a quem patrocino como uma hipótese, como conjetura filosófica humanamente falando. Trata-se de saber o que é a alma.
1º a palavra alma é uma dessas palavras que pronunciamos sem entender, só entendemos as coisas quando temos ideia delas, não temos ideia da alma, logo não a compreendemos.
2º Se nos tenha ocorrido chamar alma à faculdade de sentir e pensar, assim como chamamos vida a faculdade de viver e vontade à faculdade de querer.
Alguns disseram em seguida isto: — O homem é um composto de matéria e de espírito; a matéria é extensa e divisível, o espírito não é uma coisa nem outra, logo é de natureza distinta. É uma reunião de dois seres que não criados um para o outro e que Deus uniu apesar de sua natureza. Apenas vemos o corpo, e absolutamente não vemos a alma. Esta não tem partes; logo é eterna: tem ideias puras e espirituais, logo não as recebe da matéria: tampouco as recebe de si mesma; logo Deus se as dá, logo ela aporta ao nascer a ideia de Deus e do infinito, e todas as ideias gerais.
Humanamente falando, contesto essas palavras, dizendo que são muito sábios. Começam concedendo que existe alma, e logo explicam o que deve ser: pronunciam a palavra matéria e decidem o que a matéria é. Porem eu lhes explico: não conheceis nem o espírito nem a matéria. Quanto ao espírito, só concedeis a faculdade de pensar; e enquanto à matéria, compreendeis que esta não é mais que uma reunião de qualidades, de cores, e de solidez; a essa reunião chamais matéria, e marcais os limites desta e os da alma antes de estar seguros da existência de uma e de outra.
Ensinais gravemente que as propriedades da matéria são a extensão e a solidez; e eu os repito modestamente que a matéria tem outras mil propriedades, que nem vocês nem eu conhecemos. Assegurais que a alma é indivisível e eterna, dando por certo o que é questionável. Obrais quase o mesmo que o diretor de um colégio que, não tendo visto um relógio em sua vida, puserem em suas mão de repente um relógio de repetição inglês. Esse diretor, como bom peripatético, fica surpreso ao ver a precisão com que as setas dividem e marcam o tempo, e se assombra quando o botão comprimido pelo dedo faça tocar a hora que a seta marca. O filósofo não duvida um momento que dita máquina tenha um alma que a dirige e que se manifesta por meio das cordas. Demonstra cientificamente sua opinião, e compara essa máquina com os anjos, que imprimem movimento às esferas celestes, sustentando em classe uma agradável tese sobre a alma dos relógios, um de seus discípulos abre o relógio e não vê mais que as rodas e molas, e mesmo assim, segue sustentando sempre o sistema da alma dos relógios, crendo-o demonstrado. Eu sou o estudante que abre o relógio, que se chama homem e que em vez de definir com atrevimento o que não compreendemos, trata de examinar por graus o que desejamos conhecer.
Tomemos uma criança desde o momento em que nasce, e sigamos passo a passo o progresso de seu entendimento. Ensinaram-me que Deus se tomou o trabalho de criar um alma para que se alojasse no corpo de dita criança quando esta tivesse cerca de seis semanas, e que quando se introduz em seu corpo esta provisão de ideias metafísicas, conhece o espírito, as ideias abstratas e o infinito; em uma palavra, é sábia. Porém desgraçadamente sai do útero com uma completa ignorância; passa dezoito meses sem conhecer mais que o peito da nutriz, e quando chega aos vinte anos, e se pretende que essa alma recorde ideias científicas que teve quando se uniu a seu corpo, é muitas vezes tão obtusa, que nem sequer pode conceber nenhuma de aquelas ideias. O mesmo dia que a mãe pare a citada criança com sua alma, nascem na casa um cão, um gato e um canário. Ao cabo de dezoito meses, o perro é excelente caçador, ao ano o canário canta muito bem, e o gato ao cabo de seis semanas possui todos os atrativos que deve possuir e a criança, ao cumprir quatro anos, não sabe nada. Suponho que eu seja um homem grosseiro, que tenha presenciado tão prodigiosa diferença e que não tenha visto nunca uma criança; desde logo acredito que o gato, o cão e o canário, são criaturas muito inteligentes, e que a criança é um autômato. Porém pouco a pouco vou percebendo que a criança tem ideias, memória e as mesmas paixões que esses animais, e então compreendo que é uma criatura razoável como elas. Comunica-me diferentes ideias por meio das palavras que aprendi, como o cão por seus distintos gritos me faz conhecer suas diversas necessidades. Percebo que aos sete ou oito anos a criança combina em seu cérebro quase tantas ideias como o cão de caça no seu, e que por fim, passando os anos consegue adquirir grande número de conhecimentos. Então que devo pensar dele? Que é de uma natureza completamente diferente. Não posso crer porque vocês veem um imbecil ao lado de Newton, e sustentam que um e outro são da mesma natureza, com a única diferença do mais ao menos. Encontro entre uma criança e um cão muitos mais pontos de contato que encontro entre o homem de talento e o homem absolutamente imbecil. Que opinião tens, pois, dessa natureza? A que todos os povos tiveram antes que a ciência egípcia trouxesse a ideia de espiritualidade, de imortalidade da alma. Até suspeitarei, com aparências de verdade, que Arquimedes e um tolo são da mesma espécie, ainda que de gênero diferente; que a oliveira e o grano de mostarda estão formados pelos mesmos princípios, ainda que aquela seja um árvore grande e esta uma planta pequena. Crerei que Deus concedeu porções de inteligência às porções de matéria organizadas para pensar, que a matéria está dotada de sensações proporcionadas de acordo com a finura de seus sentidos e que estes proporcionam a medida de nossas ideias. Crerei que a ostra tem menos sensações e menos sentido, porque tendo a alma dentro da concha, os cinco sentidos são inúteis para ela. Há muitos animais que só estão dotados de dois sentidos; nós temos cinco, e por certo que são muito poucos. É de crer que em outros mundos existam outros animais que estejam dotados de vinte ou de trinta sentidos e outras espécies muito mais perfeitas que tenham muitos mais.
Esta parece a maneira mais lógica de raciocinar, quero dizer, de suspeitar e adivinhar. Indubitavelmente passou muito tempo antes que os homens fossem bastante engenhosos para inventar um ser desconhecido que está em nós, que nos faz obrar, que não é completamente nós, e que vive depois que nós morremos. Desse modo se chegou por graus a conceber ideia tão atrevida. No princípio, a palavra alma significou vida, e era comum para nós e para os demais animais; logo nosso orgulho nos fez suspeitar que a alma só correspondia ao homem, e então inventamos uma forma substancial para as demais criaturas: o orgulho humano pergunta em que consiste a faculdade de aperceber-se e de sentir que se chama alma no homem e instinto no bruto. Elucidarei essa questão quando os físicos me ensinem o que é a luz, o som, o espaço, o corpo e o tempo. Repetirei com o sábio Locke: a filosofia consiste em deter-se quando a tocha da física não nos alumia.
Observo os efeitos da natureza; porém confesso que, como vocês, tampouco conheço os primeiros princípios. Tudo se reduz a que não devo atribuir a muitas causas, e muito menos a causas desconhecidas, o que posso atribuir a uma causa conhecida: posso atribuir a meu corpo a faculdade de pensar e de sentir, logo não devo buscar a faculdade de sentir e de pensar no que se chama alma ou espírito, do que não tenho a menor ideia. Vos sublevais contra esta proposição, e acreditais que é religiosidade atrever-se a dizer que o corpo possa pensar. Porém que contestarias — responderia Locke — se os dissesse que vocês sois também culpáveis de irreligião, porque se atrevem a limitar o poder de Deus? Quem, sem ser ímpio, pode assegurar que é impossível para Deus dotar a matéria da faculdade de sentir e de pensar? Sois ao mesmo tempo débeis e atrevidos, assegurais que a matéria não pensa, unicamente porque não concebeis que a matéria possa pensar.
Grandes filósofos, que decidis sobre o poder de Deus, e ao mesmo tempo concedeis que pode Deus converter uma pedra em um anjo (Mateus, cap III, vers. 9.), não compreendeis que segundo suas mesmas teorias e no citado caso, Deus concederia à pedra a faculdade de pensar? Se a matéria da pedra desaparecera, não seria pedra, seria anjo. De qualquer parte que questioneis, os vereis obrigados a confessar duas coisas, sua ignorância e o poder imenso do Criador: sua ignorância nega que a matéria possa pensar, e a onipotência do Criador nos demonstra que lhe é possível conseguir que a matéria pense.
Sabendo que a matéria não perece, não deveis negar a Deus o poder de conservar nessa mesma matéria a melhor das qualidades de que a dotou. A extensão subsiste sem corpo por si mesma, já que há filósofos que acreditam no vazio; os acidentes subsistem independentes da substância para os cristãos que acreditam na substanciação. Dizeis que Deus não pode fazer nada que implique contradição, porém para encontrar esta se necessita saber muito mais do que sabemos; e nesta matéria só sabemos que temos corpo e que pensamos. Alguns que aprenderam na escola a não duvidar, e que tomam por oráculos os silogismos que nelas lhes ensinaram e as superstições que aprenderam por religião, tem a Locke por ímpio perigoso. Devemos fazer-lhes compreender o erro em que incorrem e ensinar-lhes que as opiniões dos filósofos jamais prejudicaram a religião. Está provado que a luz provém do sol, e que os planetas giram ao redor desse astro: por isto não se lê com menos fé na Bíblia que a luz se formou antes do sol, e que o sol parou ante a aldeia de Gabão. Está demonstrado que o arco-íris se forma com a chuva e por isso não se deixa de respeitar o texto sagrado, que disse que Deus pôs o arco-íris nas nuvens, depois do dilúvio, como sinal de que já não haveria mais inundações.
Os mistérios da Trindade e da Eucaristia, que contradiz nas demonstrações da razão, não por isso deixam de reverenciá-los os filósofos católicos, que sabem que a razão e a fé são de diferente natureza. A ideia dos antípodas foi condenada pelos papas e os concílios; e logo outros papas reconheceram os antípodas, aonde levaram a religião cristã, cuja destruição acreditaram segura no caso de poder encontrar um homem, que, como se dizia então, tivesse a cabeça abaixo e os pies acima, com relação a nós, e que, como disse Santo Agostinho, tivesse caído do céu.
VIII
Suponho que há em uma ilha uma dúzia de filósofos bons, e que em essa ilha não têm visto mais que vegetais. Esta ilha, e sobretudo os doze filósofos bons, são difíceis de encontrar; porém permita-me esta ficção. Admiram a vida que circula pelas fibras das plantas, que parece que se perde e se renova em seguida; e não compreendendo bem como as plantas nascem, como se alimentam e crescem, chamam a estas operações alma vegetativa. “Que entendeis por alma vegetativa? — É uma palavra, respondem, que serve para explicar a mola desconhecida que move a vida das plantas. — Porém não compreendeis, lhes replica um mecânico, que esta a desenrola os pesos, as alavancas, as rodas e as polias? — Não, replicarão ditos filósofos; em sua vegetação há algo mais que movimentos ordinários; existe em todas as plantas o poder secreto de atrair o sumo que as nutre: e esse poder, que não pode explicar nenhum mecânico, é um dom que Deus concedeu à matéria, cuja natureza nos é desconhecida”. Depois dessa questão, os filósofos descobrem os animais que há na ilha, e logo de examiná-los atentamente, compreendem que há outros seres organizados como os homens. Esses seres é indubitável que têm memória, conhecimento, que estão dotados das mesmas paixões que nós, que nos fazem compreender suas necessidades, e como nós, perpetuam sua espécie. Os filósofos dissecam alguns animais, lhes encontram coração e cérebro, e exclamam: “O autor dessas máquinas, que não cria nada inútil, lhes tivesse concedido todos os órgãos do sentimento com o propósito de que não sentissem?” Seria absurdo acreditar nisso. Encerram algo que chamaremos também alma, na falta de outra expressão mais própria algo que experimenta sensações e que em certa medida tem ideias. Porém qual é esse princípio? É diferente da matéria? É espírito puro? É um ser intermediário entre a matéria, que apenas conhecemos, e entre o espírito puro, que nos é completamente desconhecido? É uma propriedade que Deus concedeu à matéria orgânica?”
Os filósofos, para estudar essa matéria, fazem experimentos com os insetos e os lagartos; cortam-nos, dividindo-os em muitas partes, e ficam surpresos ao ver que ao passar algum tempo nascem cabeças nas partes cortadas. Ou mesmo que o animal se reproduz, em sua própria destruição encontra o meio de multiplicar-se. Há muitas almas que estão esperando para animar partes reproduzidas. Parecem-se com árvores das quais se cortam ramos e, plantando-os, se reproduzem. Essas árvores têm muitas almas? Não parece possível. Logo, é provável que a alma das bestas seja de outra espécie que as que chamamos de alma vegetativa nas plantas, que seja uma faculdade de ordem superior que Deus concedeu a certas porções de matéria para dar-nos outra prova de seu poder e outro motivo para adorá-lo.
Se ouvisse este raciocínio de um homem violento, lhe diria: “Sois um malvado que merece que o queime o corpo para salvar as almas, porque negais a imortalidade da alma do homem”. Os filósofos, ao ouvir isso, se olhariam com surpresa; e depois, um deles contestaria com suavidade ao homem violento: Por que acreditas que devemos arder em uma fogueira e que o induzo a supor que abriguemos nós o conhecimento de que é mortal vossa alma cruel? — Porque abrigais a crença de que Deus concedeu aos brutos, que estão organizados como nós, a faculdade de ter sentimentos e ideias; e como a alma das bestas morre com seus corpos, acreditas também que o mesmo morre a alma dos homens. Um dos filósofos replicaria:
— Não temos a segurança de que o que chamamos de alma nos animais se pareça quando esses deixam de viver; estamos persuadidos que a matéria não perece, e supomos que Deus haja dotado os animais de algo que pode conservar, se esta é a vontade divina, a faculdade de ter ideias. Não asseguramos que isto suceda, porque não é próprio de homens ser tão confiados; porém não nos atrevemos a pôr limites ao poder de Deus. Dizemos apenas que é provável que as bestas, que são matéria, tenham recebido um tanto de inteligência. Descobrimos todos os dias propriedades da matéria, que antes de descobri-las não tínhamos ideia de que existiram. Começamos definindo a matéria, dizendo que era uma substância que teria extensão; logo reconhecemos que também teria solidez, e mais tarde tivemos que admitir que a matéria possui uma força que chamamos força de inércia, e ultimamente nos surpreendeu a nós mesmos ter que confessar que a matéria gravita. Ao avançar em nossos estudos, nos vimos obrigados a reconhecer seres que se parecem em algo à matéria, e que, contudo, carecem dos atributos de que a matéria está dotada. O fogo elementar, por exemplo, obra sobre nossos sentidos como os demais corpos; porém não tem a um centro comum como estes; pelo contrario, se escapa do centro em linhas retas por todas partes; e não parece que obedeça às leis de atração e de gravitação como os outros corpos. A óptica tem mistérios que só podemos explicar atrevendo-nos a supor que os raios da luz se compenetram. Efetivamente, há algo na luz que a distingue da matéria comum: parece que a luz seja um ser intermediário entre os corpos e outras espécies de seres que desconhecemos; é verossímil que essas outras espécies de seres sejam o ponto intermediário que conduza até outras criaturas, e que assim sucessivamente exista uma cadeia de substâncias que se elevem até o infinito.
Essa ideia nos parece digna da grandeza de Deus, se há alguma ideia humana digna dela. Entre essas substâncias pôde Deus escolher uma para alojá-la em nossos corpos, e é a que nós chamamos alma humana. Os livros santos nos ensinam que essa alma é imortal, e a razão está nisso de acordo com a revelação: nenhuma substância perece; as formas se destroem, o ser permanece; não podemos conceber a criação de uma substância; tampouco podemos conceber seu aniquilamento. Porém nos atrevemos a afirmar que o Senhor absoluto de todos os seres pode dotar de sentimentos e de percepções ao ser que se chama matéria. Estais seguro de que pensar é a essência de sua alma, porém nós não estamos; porque quando examinamos um feto nos custa grande trabalho crer que sua alma teve muitas ideias em sua envoltura materna, e duvidamos que em seu sonho profundo, em sua completa letargia, tenha podido dedicar-se à meditação. Por isso nos parece que o pensamento possa consistir não na essência do ser pensante, senão no presente que o Criador fez a esses seres que chamamos pensadores; e tudo isto nos faz suspeitar que se Deus quisesse, poderia outorgar esse dom a um átomo, conservá-lo o destruí-lo, segundo fosse sua vontade. A dificuldade consiste menos em adivinhar como a matéria pode pensar, que em adivinhar como pensa uma substância qualquer. Só concebemos ideias, porque Deus as quis dar. Por que o empenho em se opor a que as tenha concedido às demais espécies? Atrevem-se a crer que sua alma seja da mesma classe que as substâncias que estão mais próximas da divindade? Há motivo para suspeitar que estas sejam de ordem superior e, portanto, Deus lhes haja concedido uma maneira de pensar infinitamente mais formosa; assim como concedeu quantidade muito limitada de ideias aos animais, que são de uma ordem inferior aos homens. Não sei como vivo nem como dou a vida, e querem que saiba como concebo ideias! A alma é um relógio que Deus nos concedeu para dirigirmos, porém não nos explicou a maquinaria de que o relógio se compõe.
De tudo quanto digo não é possível inferir que a alma humana seja mortal. Em resumo: pensamos o mesmo que vós sobre a imortalidade que a fé nos anuncia; porém somos demasiado ignorantes para poder afirmar que Deus não tenha poder para conceder a faculdade de pensar ao ser que Ele queira. Limitais o poder do Criador, que é sem limites, e nós o estendemos até onde alcança sua existência. Perdoe-nos que o cremos onipotente, e nós os perdoaremos que restrinjais seu poder. Sem dúvida sabeis tudo o que pode fazer e nós ignoramos. Vivamos como irmãos, adorando tranquilamente ao Pai comum. Só temos de viver um dia, vivamos em paz, sem proporcionarmos questões que se decidirão na vida imortal.
O homem brutal, não encontrando nada que replicar aos filósofos, incomodando-se, falou e disse muitas bobagens. Os filósofos se dedicaram durante algumas semanas a ler história, e depois deste estudo, eis aqui o que disseram àquele bárbaro indigno de estar dotado de alma imortal:
“Temos lido que na antiguidade havia tanta tolerância como em nossa época, que nela se encontram grandes virtudes, e que por suas opiniões não perseguiam aos filósofos. Por que, pois, pretendeis que nos condenem ao fogo pelas opiniões que professamos? Acreditavam na antiguidade que a matéria era eterna; porém os que supunham que era criada, não perseguiram aos que não acreditavam. Disse-se então que Pitágoras, em uma vida anterior, havia sido galo, que seus pais haviam sido cervos, e apesar disto, sua seita foi querida e respeitada em todo o mundo. Os estoicos reconheciam um Deus mais o menos semelhante ao que admitiu depois temerariamente Espinosa; o estoicismo, sem dúvida, foi a seita mais acreditada e a mais fecunda em virtudes heróicas. Para os epicuristas, os Deuses eram semelhantes a nossos cônegos e sua indolente gordura sustentava sua divindade, e tomavam em paz o néctar e a ambrosia sem imiscuir-se em nada. Os epicuristas ensinavam a materialidade e a mortalidade da alma, porém não por isso deixaram de ter-lhes considerações, e eram admitidos a desempenhar todos os empregos.
Os platônicos não acreditavam que Deus se tivesse dignado criar o homem por si mesmo; diziam que havia confiado este encargo aos gênios, que ao desempenhar sua tarefa cometeram muitas bobagens. O Deus dos platônicos era um obreiro sem defeitos, porém que empregou para criar o homem discípulos muito incompetentes. Não por isso a antiguidade deixou de apreciar a escola de Platão. Numa palavra: quantas seitas conheceram os gregos e os romanos, teriam distintos modos de opinar sobre Deus, sobre a alma, sobre o passado e sobre o porvir; e nenhuma dessas seitas foi perseguida. Todas essas seitas se equivocavam, porém viveram em amistosa paz, e isto é o que não alcançamos a compreender, porque hoje vemos que a maior parte dos debatedores são monstros e os da antiguidade eram verdadeiros homens.
Se desde os gregos e os romanos queremos remontar às nações mais antigas, podemos fixar a atenção nos judeus. Esse povo que foi supersticioso, cruel, ignorante e miserável, sabia, sem dúvida, honrar aos fariseus, que acreditavam na fatalidade do destino e na metempsicose. Respeitava também aos saduceus, que negavam em absoluto a imortalidade da alma e a existência dos espíritos, fundando-se na lei de Moisés, que não falou nunca de penas nem de recompensas depois da morte. Os essênios, que acreditavam também na fatalidade, e nunca sacrificavam vítimas no templo, eram mais respeitados todavia que os fariseus e saduceus. Nenhuma dessas opiniões perturbou nunca o governo do Estado. Devemos, pois, imitar esses louváveis exemplos; devemos pensar em alta voz, e deixar que pensem o que quiserem os demais. Sereis capaz de receber cortesmente a um turco que acredite que Maomé viajou para a lua, e desejais esquartejar a um irmão seu porque acredita que Deus pode dotar de inteligência a todas as criaturas?”
Assim falou um dos filósofos; e outro completou: — “Acredite, não há exemplo de nenhuma opinião filosófica que prejudique a religião de nenhum povo. Os mistérios podem contradizer as demonstrações científicas; nem por isso deixam de respeitá-los os filósofos cristãos, que sabem que os assuntos da razão e da fé são de diferente natureza. Sabeis por que os filósofos não lograrão nunca formar uma seita religiosa? Pois não a formarão porque carecem de entusiasmo. Se dividimos o gênero humano em vinte partes, compõem as dezenove os homens que se dedicam a trabalhos manuais, e quiçá estes ignorarão sempre que existiu Locke. Na outra parte, se encontram poucos homens que param a ler, e entre os que leem há vinte que só leem novelas para cada um que estuda filosofia. É muito exíguo o número dos que pensam; e estes não se ocupam em perturbar o mundo. Não jogariam a maçã da discórdia em sua pátria Montaigne, Descartes, Gassendi, Bayle, Espinosa, Hobbes, Pascal, Montesquieu, nem nenhum dos homens que têm honrado a filosofia e a literatura. A maior parte dos que perturbaram seu país foram teólogos, que ambicionaram ser chefes de seita ou ser de partido. Todos os livros de filosofia moderna juntos não produziram no mundo tanto ruído como produziu em outro tempo a disputa que tiveram os franciscanos sobre a forma que devia dar-se a suas mangas e a seus capuchões”.
IX
Da antiguidade do dogma da imortalidade da alma
O dogma da imortalidade da alma é a ideia mais consoladora e ao mesmo tempo mais repressora que o espírito humano pode conceber. Esta agradável filosofia foi tão antiga no Egito como suas pirâmides; e antes dos egípcios, a conheceram os persas. Zoroastro, que cita o Sadder, quando Deus ensina a Zoroastro o local destinado para receber o castigo, local que se chamava Dardarot no Egito, Hades e Tártaro em Grécia, e nós temos traduzido imperfeitamente em nossas línguas modernas pela palavra inferno. Deus ensina a Zoroastro no local destinado aos castigos, a todos os maus reis, a um dos quais faltava um pé, e Zoroastro perguntou por que razão. Deus respondeu que esse rei só havia feito uma boa ação em toda sua vida, e esta ação consistia em haver aproximado com o pé uma gamela que não estava bastante próxima a um pobre burrico que morria de fome. Deus levou ao céu o pé do rei malvado, e deixou no inferno o resto de seu corpo.
Dita fábula, que nunca se repetirá bastante, demonstra como era na remota antiguidade a opinião sobre a segunda vida. Os índios também teriam esta opinião, e sua metempsicose o prova. Os chineses reverenciavam as almas de seus antepassados; e esses povos fundaram poderosos impérios muito tempo antes que os egípcios.
Ainda que seja antigo o império de Egito, não é tanto como os impérios do Ásia; e naquele e nestes, a alma subsistia depois da morte do corpo. Verdade é que todos esses povos, sem exceção, supunham que a alma teria forma etérea, sutil, e era imagem do corpo. A palavra sopro a inventaram muito depois os gregos. Porém não se pode negar que acreditaram que era imortal uma parte de nós mesmos. Os castigos e as recompensas na outra vida, formaram os cimentos da antiga teologia.
Ferecides foi o primeiro grego que acreditou que as almas viviam uma eternidade, porém não foi o primeiro que disse que as almas sobreviviam aos corpos. Ulisses, que viveu muito tempo antes que Ferecides, havia visto as almas dos heróis nos Infernos; porém que as almas fossem tão antigas como o mundo, foi uma opinião que nasceu no Oriente e que Ferecides difundiu no Ocidente. Não creio que exista um só sistema moderno que não se encontre nos povos antigos. Os edifícios atuais temos construído com os escombros da antiguidade.
X
Seria um magnífico espetáculo poder ver a alma. A máxima Conhece-te a ti mesmo é um excelente preceito, mas preceito que só Deus pode praticar; pois, que mortal pode compreender sua própria essência?
Chamamos alma ao que anima; porém não podemos saber mais dela, porque nossa inteligência tem limites. As três quartas partes do gênero humano não se ocupam disto; e a quarta busca, inquire, porém não encontrou nem encontrará.
O homem vê uma planta que vegeta, e disse que tem alma vegetativa; observa que os corpos têm e dão movimento, e a isto chama força; vê que seu cão de caça aprende o ofício, e supõe que tem alma sensitiva, instinto; tem ideias combinadas, e a esta combinação chama espírito. Porém que entendes tu por essas palavras? Indubitavelmente a flor vegeta; porém existe realmente um ser que se chame vegetação? Um corpo rechaça a outro, porém possui dentro de si um ser distinto que se chama força? O cão te traz uma perdiz, porém vive nele um ser que se chama instinto? Todos os animais vivem; logo encerram dentro de si um ser, uma forma substancial que é a vida? Se um tulipa puder falar e te disser: a vegetação e eu somos seres que formamos um conjunto, não te enganaria a tulipa?
Vamos ver o que sabes e do que estás seguro: sabes que andas com os pés, que digeres com o estômago, que sentes em todo o corpo, e que pensas com a cabeça. Vejamos se o único auxilio da razão pode proporcionar bastantes dados para deduzir, sem um apoio sobrenatural, que tens alma.
Os primeiros filósofos, tanto caldeus como egípcios, disseram: é indispensável que haja dentro de nós algo que produza pensamentos; esse algo deve ser muito sutil, deve ser um sopro, deve ser um éter, uma quintessência, uma entelequia, um nome, uma harmonia. Segundo o divino Platão, é um composto do mesmo e do outro. “Constituem-no os átomos que pensam em nós”, disse Epicuro depois de Demócrito. Porém como um átomo pode pensar? Confessa que não sabes.
A opinião mais aceitável é sem dúvida a de que a alma é um ser imaterial, porém indubitavelmente concebem os sábios o que é um ser imaterial? — Não, contestam estes, porém sabemos que por natureza pensa. — E por onde o sabeis? — Sabemos, porque pensa. — Parece que sois tão ignorantes como Epicuro. É natural que uma pedra caia, porque cai; porém eu pergunto, quem a faz cair? — Sabemos que a pedra não tem alma; sabemos que uma negação e uma afirmação não são divisíveis, porque não são partes da matéria. — Sou de sua opinião; porém a matéria possui qualidades que não são materiais, nem divisíveis, como a gravitação: a gravitação não tem partes, não é, pois, divisível. A força motriz dos corpos tampouco é um ser composto de partes. A vegetação dos corpos orgânicos, sua vida, seu instinto, não constituem seres a parte, seres divisíveis; não podeis dividir em dois a vegetação de uma roupa, a vida de um cavalo, o instinto de um cão, ou mesmo que não podes dividir em duas uma sensação, uma negação ou uma afirmação. O argumento que sacais da indivisibilidade do pensamento não prova nada.
Que ideia tens da alma? Sem revelação, só podes saber que existe em seu interior um poder desconhecido que o faz sentir e pensar. Porém esse poder de sentir e de pensar, é o mesmo poder que o faz digerir e andar? Tens que confessar que não, porque ainda que o entendimento diga ao estômago: digere, o estômago não digerirá se está enfermo e se o ser imaterial manda aos pés que andem, estes não andarão se têm gota. Os gregos compreenderam que o pensamento não tem relação muitas vezes com o jogo dos órgãos, e dotaram os órgãos da alma animal, e os pensamentos de uma alma mais fina. Porém a alma do pensamento, em muitas ocasiões, depende da alma animal. A alma pensante ordena às mãos que tomem, e tomam, porém não disse ao coração que bata, nem ao sangue que corra, nem ao quilo que se forme, e todos esses atos se realizam sem sua intervenção. Vê-se aqui almas que são muito pouco donas de sua casa.
Disto deve deduzir-se que a alma animal não existe, o que consiste no movimento dos órgãos; e ao mesmo tempo há que concordar que ao homem não lhe abastece sua débil razão nenhuma prova de que a outra alma exista.
Vejamos agora os vãos sistemas filosóficos que se tem estabelecido respeito da alma. Um deles sustenta que a alma do homem é parte da substância do mesmo Deus. Outro que é parte do Grande Todo. Há sistema que assegura que a alma está criada para toda a eternidade. Há outro que assegura que a alma foi feita e não criada. Vãos filósofos asseguram que Deus forma as almas à medida que as necessita, e que chegam no instante da copulação: outros afirmam que se alojam no corpo com os ânimos seminais. Filósofo houve que disse que se equivocavam todos os que o haviam precedido, assegurando que a alma espera seis semanas para que esteja formado o feto, e então toma possessão da glândula pineal; porém que se encontra algum gérmen falso, sai do corpo e espera melhor ocasião. A última opinião consiste em dar da alma por morada o corpo caloso; este é o local que determina Peyronie.
São Tomás em sua questão 75 e seguintes, diz: “que a alma é uma forma que subsiste per se, que está toda em tudo, que sua essência difere de seu poder, que existem três almas vegetativas: a nutritiva, a aumentativa e a generativa; que a memória das coisas espirituais é espiritual, e a memória das corporais corporal; que a alma razoável é uma forma imaterial quanto às operações, e material quanto ao ser” Entendeste algo? Pois São Tomás escreveu duas mil páginas tão claras como esta. Por isto, sem dúvida, o chamam o anjo da escola. Não se tem inventado menos sistemas para o corpo, para explicar como ouvirá sem ter ouvidos, como olhará sem ter nariz e como tocará sem ter mãos; em que corpo se alojará em seguida, de que modo o eu, a identidade da mesma pessoa há de subsistir, como a alma do homem que se tornou imbecil à idade de quinze anos, e morreu imbecil aos setenta, voltará a unir o fio das ideias que teve na idade da puberdade e por que meio uma alma, a cujo corpo se cortou uma perna em Europa e perdeu um braço em América, poderá encontrar a perna e o braço, que quiçá se tenham transformado em legumes, ou tenham passado a formar parte integrante do sangue de qualquer outro animal. Não terminaria nunca de detalhar todas as extravagâncias que sobre a alma humana se têm publicado.
É singular que as leis do povo predileto de Deus não digam uma só palavra acerca da espiritualidade e da imortalidade da alma, nem fale tampouco disto o Decálogo, nem o Levítico, nem o Deuteronômio. Também é indubitável que em nenhuma parte Moisés proponha aos judeus recompensas e penas em outra vida. Não lhes fala nunca da imortalidade de suas almas, nem lhes disse que esperem ir ao céu, nem lhes ameaça com o inferno. Na lei de Moisés tudo é temporal. No Deuteronômio fala aos judeus deste modo:
“Se depois de haver tido filhos e netos prevaricais, sereis exterminados em sua pátria e ficareis reduzidos a escasso número, que viverá espalhados pelas demais nações.
Eu sou um Deus zeloso que castigo a iniquidade dos pais até a terceira e até a quarta geração.
Honra a pai e mãe, com o fim de viver muitos anos.
Sempre terás o que comer, a comida não os faltará nunca.
Se obedeceres a deuses estrangeiros, serás destruído.
Se obedeceres ao verdadeiro Deus, terás chuvas na primavera e no outono trigo, azeite, vinho, feno para os animais, e poderás comer e saciar-te.
Imprimi estas palavras em seus corações, põe ante seus olhos, escreve-as sobre suas portas com a ideia de que seus dias se multipliquem.
Faz o que mando, sem tirar nem acrescentar nada.
Se aparece um profeta que profetize sucessos prodigiosos, se sua predicação é verdadeira, se o que prevê sucede, se diz: vamos, segui comigo aos Deuses estrangeiros… mata-o em seguida, que se levante todo o povo contra ele para feri-lo.
Quando o Senhor os entregue as nações, degola sem perdoar a um só homem, não tenhais piedade de ninguém.
Não comais animais impuros, como o são o águia, o grifo e o ixião.
No comais tampouco animais ruminantes e que tenham as unhas fendidas, como o camelo, a lebre, o porco espinho.
Se observais estes mandatos, sereis abençoados na cidade e nos campos, e serão benditos os frutos de seu ventre, de sua terra e de suas bestas.
Se não obedeceis todos estes mandamentos nem observais todas as cerimônias, sereis malditos na cidade e nos campos; sofrerás a pobreza e fome, morrerás de frio, de febre e de miséria; tereis sarna, fístulas, … os assaltarão úlceras nos joelhos e nos músculos.
O estrangeiro os prestará com usura, porém vocês não lhe prestareis desse modo, porque vocês quereis servir ao Senhor.., etc., etc.
É evidente que em todas estas promessas e ameaças não se trata mais que do temporal, e não se encontra uma só palavra que verse sobre a imortalidade da alma nem sobre a vida futura. Alguns comentaristas ilustres acreditam que Moisés estava inteirado desses dois grandes dogmas, e provam sua opinião apoiando-se não que disse Jacó, o qual acreditando que haviam devorado a seu filho bestas ferozes, exclamou: “Descerei com meu filho ao inferno”; isto é, morrerei, já que meu filho está morto. Provam também sua crença citando passagens de Isaías e de Ezequiel. Porém os hebreus a quem falou Moisés, não poderiam ter lido a Isaías nem a Ezequiel, que escreveram muitos séculos depois. É inútil questionar sobre o que secretamente opinava Moisés, já que está comprovado que em suas leis não falou nunca da vida futura, e que limita os castigos e as recompensas ao tempo presente. Se conheceu a vida futura, por que não proclamou este dogma? A tal pergunta contestam vários comentaristas, dizendo que o Senhor de Moisés e de todos os homens, reservou-se o direito de explicar em tempo oportuno aos judeus uma doutrina que não estavam em estado de compreender quando viviam no deserto. Se Moisés tivesse anunciado a imortalidade da alma, ter-lhe-ia combatido uma importante escola dos judeus, a dos saduceus, autorizada pelo Estado, que lhes permitia desempenhar os primeiros cargos da nação e nomear grandes pontífices a seus sectários.
Até depois da fundação de Alexandria não se dividiram os judeus em três seitas: a dos fariseus, dos saduceus e dos essênios. O historiador Flávio Josefo, que era fariseu, nos refere no livro XIII de suas Antiguidades, que os fariseus acreditavam na metempsicose; os saduceus acreditavam que a alma perecia com o corpo, e os essênios, que a alma era imortal. Segundo esses, as almas, em forma aérea, descendiam da mais alta região dos ares, para introduzir-se nos corpos, pela violenta atração que exerciam sobre elas; e quando morriam os corpos, as almas que haviam pertencido aos bons, iam a morar mais além, lá do Oceano, em um país onde não se sentia calor nem frio, nem havia vento nem chovia. As almas dos maus iam a morar em um clima perverso. Esta era a teologia dos judeus. O que devia ensinar a todos os homens, condenou a estas três seitas. Sem seu auxilio não tivéssemos chegado nunca a compreender nossa alma, porque os filósofos não tiveram jamais uma ideia determinada dela, e Moisés, único legislador do mundo antigo, que falou com Deus frente a frente, deixou a humanidade imersa na mais profunda ignorância respeito deste ponto. Só depois de mil e setecentos anos teremos a certeza da existência e da imortalidade da alma. Cícero abrigava suas dúvidas. Seu neto e sua neta souberam a verdade pelos primeiros galileus que foram a Roma. Porém antes dessa época, e depois dela, em todo o resto do mundo, donde apóstolos não penetraram, cada qual devia perguntar a sua alma, que és? de donde vens? que fazes? onde vais? És um não sei que, que pensas e sentes, porém ainda que sintas e penses mais de cem milhões de anos, não conseguirás saber mais sem o auxilio de Deus, que te concedeu o entendimento para que te sirva de guia, porém não para penetrar na essência. Assim pensou Locke, e antes que Locke, Gassendi, e antes que Gassendi, muitos sábios; porém hoje os bacharéis sabem o que esses grandes homens ignoravam.
Inimigos encarniçados da razão, se tem atrevido a opor a essas verdades reconhecidas pelos sábios, levando sua má-fé e sua imprudência até o extremo de imputar ao autor desta obra a opinião de que cada alma é matéria. Perseguidores da inocência, bem sabeis que temos dito o contrario; e que dirigindo-nos a Epicuro, a Demócrito e a Lucrécio, perguntamos: “Como podeis crer que um átomo pense? confesso-te que não sabeis nada”. Logo são uns caluniadores os que me perseguem.
Ninguém sabe o que é o ser que chamamos espírito, ao que vocês mesmos dão um nome material, fazendo-lhe sinônimo de ar. Os primeiros pais da Igreja acreditavam que a alma era corporal. É impossível que nós, que somos seres limitados, saibamos se nossa inteligência é substância ou faculdade; não podemos conhecer a fundo nem o ser extenso nem o ser pensante, ou seja, o mecanismo do pensamento. Apoiados na opinião de Gassendi e de Locke, afirmamos que por nós mesmos não podemos conhecer os segredos do Criador. Sois Deuses que sabeis tudo? Repetimos que só podemos conhecer pela revelação da natureza e o destino da alma; e esta revelação não os basta. Devem ser inimigos da revelação, porque perseguem aos que a creem e aos que dela o esperam tudo.
Referimo-nos à palavra de Deus; e vocês, que fingindo religiosidade, são inimigos de Deus e da razão, que blasfemam uns de outros, tratam a humilde submissão do filósofo, como o lobo trata ao cordeiro nas fábulas de Esopo, e lhe dizem: “Murmuras-te de mim o ano passado; devo beber teu sangue”. Porém a filosofia não se vinga, se ri desses vãos esforços e ensina tranquilamente aos homens que quereis embrutecer, para que sejam iguais a vós.
Voltaire (François Marie Arouet) (1694-1778). Nascido em Paris, em 21 de novembro de 1694, falecido em 30 de maio de 1778, foi o pensador mais influente do período do iluminismo francês. Em sua época, foi considerado um dos maiores poetas e dramaturgos de seu tempo. Hoje, a figura de Voltaire é mais relacionada aos seus ensaios e seus contos. O nome Voltaire, na verdade, foi por ele adotado após a passagem pela prisão na Bastilha durante um ano, por sua vez ocorrida devido a alguns versos satíricos dos quais foi acusado de ser autor. A tragédia Édipo (Oedipe) abriu passagem para sua incursão no meio intelectual, tendo sido escrita no período de sua detenção na Bastilha. Uma outra obra que merece ser citada é o conto Cândido, escrito em 1759. Já em seus escritos filosóficos, as obras que devem ser citadas são o Tratado de Metafísica (Traite de Metaphysique), de 1734, e o Dicionário Filosófico (Dictionaire Philosophique), de 1764. Seu pensamento foi calcado nas bases do racionalismo, instrumento com o qual procurava pregar a reforma social sem a destruição do regime já estabelecido. Muito de sua luta dirigia-se contra a Igreja e, na atualidade, alguns chegam a considerar Voltaire como um predecessor do antissemitismo moderno, dadas seus pensamentos acerca dos judeus, tidos por ele como fanáticos supersticiosos. No entanto, ele se opôs à perseguição a estes povos. Colaborou ainda com um dos enciclopedistas mais radicais, Diderot.
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