(por Rubem Alves)
Escrevo como poeta. Cummings disse que o mundo ilimitado de um poeta é ele mesmo. Narcisismo egocêntrico? Não. Invoco a Cecília Meireles para esclarecer. Dizia ela de sua avó: “Teu corpo era um espelho pensante do universo.“ Os poetas, diferentes dos cientistas que desejam conhecer o universo olhando diretamente para ele, só conhecem o universo como parte do seu corpo. Poesia é eucaristia. O poeta contempla a coisa e diz: “Isso é o meu corpo."
Poeta, não sei falar cientificamente sobre o cristianismo. Só posso falar sobre ele tal como ele foi se refletindo no espelho do meu corpo, através do tempo.
Infância.
Crianças não têm idéias religiosas. Nada sabem sobre entidades espirituais. Crianças são criaturas deste mundo. Elas o experimentam através dos sentidos, especialmente a visão. As crianças não têm idéias religiosas mas têm experiências místicas. Experiência mística não é ver seres de um outro mundo. É ver esse mundo iluminado pela beleza. Essas são experiências grandes demais para a linguagem. Dessas experiências brotam os sentimentos religiosos. Religião é a casca vazia da cigarra sobre o tronco da árvore. Sentimento religioso é a cigarra em vôo. Menino, eu voava com as cigarras.
As idéias religiosas não nascem das crianças.
Elas são colocadas no corpo das crianças pelos adultos. Minha mãe me ensinou a rezar. “Agora me deito para dormir. Guarda-me, ó Deus em teu amor. Se eu morrer sem acordar, recebe a minhalma, ó Senhor, Amém.“ Resumo mínimo de teologia cristã: há Deus, há morte, há uma alma que sobrevive à morte. Depois vieram outras lições: “Deus está te vendo, menino...“ Deus vira um Grande Olho que tudo vê e me vigia. Meu primeiro sentimento em relação a Deus: medo.
As crianças acreditam naquilo que os grandes falam.
E assim se inicia um processo educativo pelo qual os grandes vão escrevendo no corpo das crianças as palavras da religião. O corpo da criança deixa de ser corpo da criança: passa a ser o caderno onde os adultos escrevem suas palavras religiosas.
Muitas são as lições do catecismo. Deus é um espírito que sabe todas as coisas. Vê o que você está fazendo com as suas mãos, debaixo das cobertas, com a luz apagada. Deus é onipotente: pode fazer todas as coisas. Tendo poder absoluto, tudo o que acontece é porque ele quis. A criancinha defeituosa, a mãe que morre de parto, as câmaras de tortura, as guerras... As tragédias não acontecem. Deus as produz. Diante das tragédias ensina-se que se deve repetir: “É a vontade de Deus.“ É preciso fazer o que Deus manda pois, se não o fizer, ele me castigará. Se eu morrer sem me arrepender serei punido com o fogo do Inferno, eternamente. Essa vida do corpo, na terra, não tem valor. Vale de lágrimas onde os degredados filhos de Eva lamentam e choram, esperando o céu. O céu vem depois da morte. Deus mora no lugar que há depois que a vida acaba. O mundo é um campo de provas minado por prazeres onde o destino eterno da alma vai ser decidido. Para se amar a Deus e o seu céu é preciso odiar a vida. Quem ama as coisas boas da vida não está amando Deus. Negar o corpo: lacerações, abstenções, sacrifícios: essas são as dádivas que se deve oferecer a Deus. Deus fica feliz quando sofremos. De todos o prazeres os mais perigosos são os prazeres do sexo. Assim, é preciso fazer sexo sem prazer, sexo para procriar. Deus nunca foi visto por ninguém. Mas revelou a sua vontade a uma instituição: a Igreja, não importando se católica ou protestante. A ela, Igreja, foi confiada a guarda do livro escrito por inspiração divina, as Sagradas Escrituras, a “Grande enciclopédia dos saberes e das ordens divinas“. Sendo assim “fora da Igreja não há salvação“, porque fora da Igreja não há conhecimento de Deus.
Ludwig Wittgenstein fala sobre o poder enfeitiçante das palavras. Palavras enfeitiçantes: aquelas que nos possuem e nos impedem de pensar. Assim são as idéias religiosas: os corpos dos homens estão cobertos de palavras que, pelo medo, os dominam. “Possuídos“, não conseguem pensar pensamentos diferentes. Qualquer outra palavra pode significar o inferno. As inquisições, católica e protestante, jamais enviaram para a fogueira pessoas por seus pecados morais. Os pecados morais levam o pecador para mais perto da Igreja, pois ela tem o poder de perdoar. Queimados foram aqueles que tiveram pensamentos diferentes: Brunno, Huss, Serveto. Os crimes de pensamento afastam os homens da Igreja. Consequentemente, afastam os homens de Deus. Quem pensa pensamentos diferentes tem de ser eliminado ou pela fogueira ou pelo silêncio.
Durante muitos anos vivi enfeitiçado por essas palavras. Feitiços não se combatem com a razão. É sempre um beijo de amor que quebra o feitiço... Quem me beijou? Um Outro que mora em mim. Porque em mim mora não somente aquele que pensa mas aquele que sente. Barthes dizia: “Meu corpo não tem as mesmas idéias que eu“. Meu “eu“ pensava as palavras que haviam sido escritas no meu corpo. Mas o meu corpo pensava outras idéias. A verdade do meu corpo era outra. Ele amava demais a vida. Confesso: nunca me senti atraído pelas delícias do céu. E desconheço alguém que morra de amores por ele. Prova disso é que cuidam bem da saúde. Querem continuar por aqui. Conheço, entretanto, pessoas que vivem vidas torturadas por medo do inferno.
Lembro-me, com nítida precisão, do momento em que tive a percepção intelectual que libertou a minha razão para pensar. Eu estava no seminário. Repentinamente, com enorme espanto, percebi que todas aquelas palavras que outros haviam escrito no meu corpo não haviam caído do céu. Se não haviam caído do céu, elas não tinha o direito de estar onde estavam. Eram demônios invasores. Abriram-se-me os olhos e percebi que essa monumental arquitetura de palavras teológicas que se chama teologia cristã se constrói, toda, em torno da idéia do inferno. Eliminado o inferno, todos os parafusos lógicos se soltariam, e o grande edifício ruiria. A teologia cristã ortodoxa, católica e protestante – excetuada a dos místicos e hereges – é uma descrição dos complicados mecanismos inventados por Deus para salvar alguns do inferno, o mais extraordinário desses mecanismos sendo o ato de um Pai implacável que, incapaz de simplesmente perdoar gratuitamente (como todo pai humano que ama sabe fazer), mata o seu próprio Filho na cruz para satisfazer o equilíbrio de sua contabilidade cósmica. É claro que quem imaginou isso nunca foi pai. Na ordem do amor são sempre os pais que morrem para o que o filho viva.
Hoje, as idéias centrais da teologia cristã em que acreditei nada significam para mim: são cascas de cigarra, vazias. Não fazem sentido. Não as entendo. Não as amo. Não posso amar um pai que mata o filho para satisfazer sua justiça. Quem pode? Quem acredita?
Mas o curioso é que continuo ligado a essa tradição. Há algo no cristianismo que é parte do meu corpo. Sei que não são as idéias. Que ficou, então?
Foi numa sexta-feira da Paixão que compreendi. Uma rádio FM (Amparo) estava transmitindo, o dia inteiro, músicas da tradição religiosa cristã. E eu fiquei lá, assentado, só ouvindo. De repente, uma missa de Bach, e a beleza era tão grande que fiquei possuído e chorei de felicidade: “A beleza enche os olhos d\'água” (Adélia Prado). Percebi que aquela beleza era parte de mim. Não poderia jamais ser arrancada do meu corpo. Durante séculos os teólogos, seres cerebrais, haviam se dedicado a transformar a beleza em discurso racional. A beleza não lhes bastava. Queriam certezas, queriam a verdade. Mas os artistas, seres coração, sabem que a mais alta forma de verdade é a beleza. Agora, sem a menor vergonha, digo: “Sou cristão porque amo a beleza que mora nessa tradição. As idéias? Chiados de estática, ao fundo...“ Assim proclamo o único dogma da minha teologia cristã erótico-herética: “Fora da Beleza não há salvação...“
(Transparências da eternidade, Verus, 2002)