Os manuscritos de Qumran introduziram novos elementos nos estudos sobre o cristianismo antigo. Antes de sua descoberta o conhecimento do universo religioso da Judéia do século I era muito limitado. Tanto os evangelhos canônicos quanto os apócrifos, por exemplo, eram pouco esclarecedores. Seu principal objetivo era a reafirmação das mensagens de Jesus – tais como diferentes tradições as entendiam - e não uma reflexão sobre as forças e tendências conceituais que as envolviam. Outros textos que continham elementos memorialistas, como o Talmude, igualmente eram obscuros ou omissos, como anteriormente apontamos.
A obra de Flávio Josefo foi, nesse sentido, bastante esclarecedora. Através dela tomamos conhecimento pormenorizado da primeira guerra judaica (66-73). A guerra pôs fim a séculos de criatividade teológica e confusão política, o “período do segundo templo” (516 a.e.c.- 70). Josefo nos apresentou um relato básico dos movimentos religiosos da época. E assim alguns processos e eventos retratados no Novo Testamento puderam ser parcialmente compreendidos e explicados. Mas Josefo sempre foi fonte única, limitada e não detalhada, e sua convergência com outros fontes, como Philo, por exemplo, nem sempre entendida por satisfatória.
Existia, portanto, uma área de sombra documental, bastante compreensível, aliás. A primeira guerra judaica varreu da história toda uma civilização, com suas cidades e monumentos, seus líderes religiosos, escribas e grupos políticos. Eliminou populações inteiras e seus relatos e incendiou, certamente, muitas bibliotecas. No final do século XIX, no entanto, foram realizados dois achados documentais importantes. O Livro de Henoc, em sua versão etíope, que estava guardado num mosteiro da Etiópia, e o Documento de Damasco, encontrado na genizá de uma sinagoga no Cairo.
Henoc e o Documento de Damasco introduziram perturbações significativas no entendimento do cristianismo antigo. Eram textos consistentes que retratavam realidades até então desconhecidas. O primeiro era uma construção teológica afirmativa que podia ser vista ecoando na literatura cristã, às vezes de forma subjetiva, às vezes literal. O segundo revelava a existência de um grupo de judeus enigmáticos, cuja plataforma teológica não coincidia com nada conhecido até aquele momento. Mas esses achados, embora importantes, não foram particularmente elucidativos. Eram cópias medievais de textos certamente antigos, mas muito distantes de seus contextos originais e sem elos claros com eles.
A importância dos achados de Kirbet Qumran, portanto, foi imensa. Primeiro, foi percebido que eram documentos originais, vindos diretamente do período anterior à primeira guerra judaica. As datações paleográficas dos manuscritos foram consolidadas por Frank M. Cross.
Cross postulou, em função de outras evidências, a existência de três tipos de escrita na documentação. O mais antigo denominou de arcaico (c. 250-150 a.e.c.), o intermediário de hasmoneu (c. 150- 50 a.e.c.) e o mais recente de herodiano (c. 50 a.e.c. – 70 e.c.). Os testes de Carbono 14 foram mais precisos, e apontaram a existência de documentos em Qumran elaborados entre remotos c.388 -353 a.e.c. e o mais próximo 21 a.e.c-61 e.c. Tratavam-se, portanto, de textos oriundos exatamente do período dentro do qual Jesus atuou.
Em segundo lugar os manuscritos, na sua variedade e quantidade, em torno de 900 documentos, permitiram a gradual percepção de elos conceituais e teológicos entre tradições e linhagens textuais diversas. Até aquele momento em sua maioria desconhecida e que permitiram uma compreensão significativa da gênese e desenvolvimento dos textos bíblicos da tradição masorética, grega e samaritana.
Mas, no que nos interessa, apresentaram um mosaico não apenas da rica tradição apocalíptica judaica da época, mas também da pluralidade textual que imperava nos tempos de Jesus – principalmente no tocante à literatura bíblica. No primeiro caso reforçou as teorias que viam em alguns elementos do Novo Testamento traços marcantes de literatura apocalíptica, permitindo correlações documentais. No segundo introduziu novas reflexões sobre a natureza e realidade dos textos sagrados na época e sua real importância e dinâmica na gênese dos primeiros movimentos cristãos.
Quem e porque depositou esses textos nas encostas do mar morto foi matéria de discussão desde o princípio. A “hipótese essênia”, fundada pelos primeiros editores dos textos, entre eles o Padre Roland de Vaux, é a mais consensual entre os estudiosos. Foi consolidada nos estudos de Geza Vermes, Josef T. Milik e Frank M. Cross e identifica nos essênios citados por Josefo os antigos habitantes de Kirbet Qumran, igualmente responsáveis pela ocultação dos textos nas cavernas próximas. A “hipótese Groningen”, sustentada por Florentino Garcia Martinez, nega a identidade entre a comunidade de Qumran com os essênios, entendendo-a como fruto de uma ruptura doutrinária, mas afirma a responsabilidade do grupo pelo material das cavernas.
A “hipótese Jerusalém”, defendida principalmente por Norman Golb, sustenta, acompanhando algumas opiniões anteriores, que o material das cavernas não veio dos essênios e da comunidade de Qumran, mas da biblioteca do Templo de Jerusalém e de acervos particulares. De qualquer forma, todos concordam que os textos de Qumran comprovam a existência de um debate teológico intenso no período final do segundo templo. Cujos problemas e desenvolvimentos conceituais não são alheios à literatura neotestamentária.
Krister Stendhal, segundo James Vanderkam, chamou a atenção para o fato de que: “os manuscritos contribuem para o entendimento dos antecedentes do cristianismo, mas essa contribuição é tanta, que chegamos a um ponto onde o significado das semelhanças definitivamente resgata o cristianismo de falsas pretensões de originalidade no sentido popular e nos remete a uma nova compreensão de sua verdadeira base, na pessoa e nos eventos da vida do seu Messias”.
Isto é, Qumran permite a compreensão da genealogia teológica do cristianismo e um entendimento do significado de elementos conceituais que sobreviveram na memória e foram trabalhados no pensamento dos evangelistas.
2. Luz e Trevas.
Desde a pioneira descoberta do Livro de Henoc, os estudiosos se deram conta da existência de antecedentes dualistas expressivos na tradição judaica prévia à emergência do cristianismo. As origens desse dualismo não parecem remontar à tradição sacerdotal do Templo, nem aos antigos legisladores e historiadores deuteronomistas, que estão na base da autoria do Pentateuco. A maior parte dos especialistas na área visualiza aqui evidentes influências do mazdeísmo persa, relacionados aos contatos estabelecidos durante o período de dominação arquemênida. Esse tema é obscuro, no entanto, pois, como anotou John Collins, “não consigamos traçar os canais através dos quais o zoroastrianismo foi realmente transmitido”. Mas foi de uma forma ou de outra, recebido por escribas e religiosos judeus.
O mito de origem do mal, expresso em I Henoc, o entende como oriundo de uma revolta dos anjos, os “guardiões”. Esse mito teve, como compreendemos a partir dos textos de Qumran, profunda influência sobre diferentes linhagens teológicas na época do segundo Templo. Alguns, como Margareth Baker, argumentaram que seu elemento judaico, o ciclo mítico de Henoc, mencionado em Gênesis 5, 21-24 tem raízes na época do primeiro Templo
O texto bíblico em si pertence ao chamado “Livro das Gerações”, que é provavelmente de origem sacerdotal e talvez evoque alguma antiga genealogia já conhecida. Independentemente desse registro, I Henoc, como proposição teológica, é entendido por muitos, no entanto, como uma afirmação opositora à teologia sacerdotal do perdão, entronizada no Pentateuco. Gabrielle Boccaccini propõe que suas origens estão no século IV a.e.c., no próprio momento da consolidação do texto sacerdotal, e não é impossível que reflita dissensões na esfera das lideranças sacerdotais com relação às iniciais disputas de poder pelo controle do segundo templo. De fato I Henoc se opõe ao Pentateuco.
A sua ética tende a liberar o ser de suas responsabilidades diante do mal, pois o atribui às ações de outros, isto é dos anjos rebeldes e os demônios. Afirma que a solução definitiva do problema pode ser unicamente alcançada em uma dimensão global e se posiciona na aceitação de algum tipo de predestinação.
Muito da literatura sectária de Qumran é relacionada a esse dualismo presente em I Henoc. Ele está presente, por exemplo, de alguma forma, na postura daqueles judeus que atuaram para instaurar um isolamento próprio absoluto diante dos outros, tidos por impuros. Tema de muitos textos qumranitas. Também é característico daqueles documentos que afirmam ser a história o cenário de um conflito entre a luz e as trevas e que culminará numa grande batalha escatológica. Esse é um motivo central do dualismo apocalíptico e é assim declinado na Regra da Comunidade (1QS): “Do manancial da luz provém as gerações da verdade, e das fontes das trevas as gerações da falsidade. Na mão do príncipe das luzes está o domínio sobre todos os filhos da justiça, eles andam por caminhos de luz. E na mão do anjo das trevas está todo domínio sobre os filhos da falsidade, eles andam por caminhos das trevas”.
O alcance de semelhantes concepções pode ser discernido na literatura neotestamentária. Como anotou David Flusser, elas são claras especialmente em Paulo, oão Evangelista e no autor da Epístola aos Hebreus. De fato, o caráter rarefeito desse dualismo em outros autores do Novo Testamento permite a identificação, naqueles, de um perfil teológico específico de natureza apocalíptica. Parece que esses elementos conceituais de aplicação geral no universo sectário se manifestam em determinada fase da constituição das comunidades cristãs, aparentemente após o desaparecimento de Jesus.
Paulo, explicitamente, assume tal plataforma teológica: “que comunhão pode haver entre a luz e as trevas? Que acordo entre Cristo e Belial?... Que há de comum entre o templo de Deus e os ídolos? Ora, nós é que somos o templo do Deus vivo...” (2Cor, 6:14-16). A identificação do mal com Belial, por exemplo, só ocorre uma única vez no Novo Testamento, mas é comum na literatura apocalíptica de Qumran. João, da mesma maneira, acompanha os elementos expostos na Regra da Comunidade: “se... andamos nas trevas mentimos e não praticamos a verdade. Mas se caminhamos na luz como ele está na luz, estamos em comunhão uns com os outros” (1Jo, 1:6-7) e mais adiante, concluindo: “Nós sabemos que somos de Deus e que o mundo inteiro está sob o poder do maligno” (1Jo 5:20). Isso também aparece na literatura cristã primitiva extra-canônica, como no Pastor de Hermas: “dois anjos existem em cada homem: um da justiça e outro da maldade” (M6, 2). Tais formulações aproximam-se de transcrições literais dos pressupostos dualistas de muitos documentos de Qumran. Comprovam a força e o alcance do pensamento apocalíptico sectário no desenvolvimento do cristianismo.
3. Anjos e Messias.
Um outro tema importante na aproximação entre os manuscritos de Qumran e o cristianismo antigo diz respeito às concepções judaicas do período do segundo templo sobre os anjos e seu papel. Como o próprio Novo Testamento afirma, não se tratava de crença geral (Atos, 23:8) e textos sectários importantes encontrados em Qumran, como o Rolo do Templo (11Q19), não os mencionam. No entanto, as tendências dualistas, em suas diversas variantes, colocaram em evidência um cenário de confrontação entre o bem e o mal que tem nos anjos os seus mais proeminentes protagonistas. Em I Henoc a rebeldia de Azazel e Semiaz é confrontada por um exército angelical, destinado a restaurar a ordem, chefiado pelo anjo Miguel.
Essa elevação de personalidades angelicais a um papel central no drama cósmico, o do “príncipe da luz”, por exemplo, corresponde a um padrão generalizado – que transborda na literatura cristã antiga. E não coincide muito, de fato, com o papel subordinado e de meros intermediários e mensageiros que os anjos costumam ter na literatura sacerdotal. John Crossan analisou especialmente a convergência de Henoc com Daniel, nesse sentido. Associação que parece delinear as tendências teológicas presentes na literatura neotestamentária. O tardio “Livro das Similitudes” de I Henoc, descreve uma criatura celestial de imenso poder:
“Vi Aquele a quem pertence o tempo antes do tempo. Sua cabeça era branca como a lã e com ele estava um outro indivíduo, cujo rosto era como o de um ser humano... perguntei... a um... dos anjos... „Quem é este?‟... e ele me respondeu: „este é o Filho do Homem a quem pertence a virtude, em quem vive a virtude... este filho do homem que viste é aquele que expulsará os reis e os poderosos de seus assentos confortáveis e arrancará os fortes de seus tronos”.
A denominação “como um filho do homem” aparece, como se sabe, em Daniel 7,13-14: “Eu continuava contemplando nas minhas visões noturnas quando notei, vindo sobre as nuvens do céu, um como Filho do Homem... a ele foi outorgados o poder, a honra e o reino, e todos os povos nações e línguas o serviram”.
Essa convergência de designação assinala um comum entendimento de que uma criatura celestial, provavelmente um anjo, talvez Miguel, viria a assumir um papel central na solução do drama cósmico. Segundo Collins as figuras do “príncipe da luz” e “do como um Filho do Homem” são correspondentes e afirmam a proposta, comprovada na literatura de Qumran, de entender um futuro messias como uma criatura mais que humana, angelical. Isso é fundado provavelmente na tradição mazdeísta, na qual o saoshyant, o messias escatológico, é uma emanação de Ahura Mazda. Mas se distancia claramente de uma outra tradição que entende o messias apenas como o detentor de um título geral, o “ungido”, isto é, um rei ou sacerdote, - que tanto podem ser os antigos reis e sacerdotes de Israel quanto os futuros -, ou um soberano estrangeiro, Ciro, por exemplo.
De certo que também existe um movimento no pensamento apocalíptico no sentido de elevar figuras humanas a uma dimensão celestial, e isso parece em parte conseqüente com elementos judaicos mais amplos. A literatura sacerdotal também admitia essa possibilidade, no caso de Henoc e no do profeta Elias, ambos tidos como tendo ascendido aos céus e passado a existir junto ao Eterno. O pensamento apocalíptico, no entanto, construirá toda uma teologia em torno desses personagens. Além desses incluirá Melquisedec, protagonista de um ciclo mítico específico. Essa personagem é de fato especialmente relevante na literatura apocalíptica, notavelmente nos manuscritos de Qumran. É mencionado de uma forma misteriosa no Gênesis. É ele, “rei de Salém”, que foi ao encontro de Abrão trazendo pão e vinho, “ele era sacerdote do Eterno” e pronunciou uma benção sobre o patriarca (Gen, 14: 18-20). Em mais de um texto de Qumran, Melchisedec é também equacionado ao “príncipe das luzes”, isto é, um anjo. Em 4Q374, o Apócrifo de Moisés, é entendido como um “guardião”, figura celestial que se defronta com Melchiresha, o mal. Em 11Qmelch, são aplicados a ele todos os atributos redentores do “filho do homem”: “Melquisedec executará a vingança dos juízos de Deus. Nesse dia eles serão liberados da mão de Belial e das mãos dos espíritos de seu lote. Em sua ajuda virão todos os elohim. Ele é quem prevalecerá nesse dia sobre todos os filhos de Deus, e ele presidirá a assembléia (...)”.
A sua importância ecoa na Epístola aos Hebreus 7, onde “se assemelha ao filho de Deus”, sendo “sem pai, sem mãe, sem genealogia”, ou seja, provavelmente, também uma criatura celestial. Donde se conclui pela dependência desse texto dos elementos literários a ele associados em Qumran.
Esses dois movimentos, o do anjo redentor e o do humano que ascende ao espaço da divindade, parecem assim apontar para certas noções presentes na literatura neotestamentária. De um lado a busca de um messias que não fosse humano, mas sim um integrante da corte celestial e, portanto, dotado de uma pureza exemplar e absoluta. De outro a crença num messias que, sendo originalmente humano, pelas suas virtudes foi capaz de ascender a um elevado estado de santidade. Passando então para um plano superior e mantendo-se então na convivência eterna de Deus. As dúvidas sobre a precisa natureza de Jesus provavelmente eram fundadas em semelhantes concepções - de conhecimento geral nos derradeiros momentos do segundo templo.
Por fim, em pelo menos um texto, o 4Q174, Florilegium, o messias é descrito como “filho de Deus”, numa interessante e direta correspondência com a literatura antiga cristã: “Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho. Isto se refere ao broto de Davi que se erguerá com o intérprete da Lei que surgirá em Sion nos últimos dias”. Os dois messias, aqui declinados, o “rebento de Davi” e o “intérprete da Lei”, não obscurecem a singular denominação que se tornará emblemática para os primeiros seguidores do cristianismo. Ela se repete num fragmento aramaico, o 4Q246, onde se trata do messias dizendo que “grande será chamado e será designado com o seu nome. Será denominado filho de Deus e lhe chamarão filho do Altíssimo”. Desde a descoberta desse texto foi anotado que há dele um muito provável eco em Lucas: 1,32: “Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai”. Todos esses elementos permitem-nos caracterizar parcelas substanciais da literatura cristã como dependentes, do ponto de vista da genealogia teológica e da história, de um corpo literário específico abundante no período do segundo templo.
4. Em Direção a Novos Problemas.
Podemos, portanto entender parcela substancial da teologia da literatura neotestamentária a partir dos manuscritos de Qumran. Mas certamente isso não esgota o assunto. Tanto em direção ao desenvolvimento posterior do cristianismo quanto no tocante ao Jesus histórico.
No posterior porque parece claro que nenhum dos elementos aqui expostos permite compreender os particulares desdobramentos que conduziram ao desenvolvimento do conceito da Santíssima Trindade e à crença na divindade de Jesus. De resto temas mapeáveis historicamente e relacionados à outras influências e desenvolvimentos particulares. No tocante ao Jesus histórico porque se é claro que a literatura paulina ou joanina está repleta de elementos apocalípticos e se remete textualmente a textos agora conhecidos do segundo templo, não é certo que ela expresse a realidade teológica da pregação de Jesus.
Esse tema é significativo, principalmente devido ao fato de algumas passagens neotestamentárias serem distantes dessa temática dualista ou não compartilharem dos elementos formais dos textos apocalípticos. Brad Young, por exemplo, estudou um problema específico dos evangelhos: as parábolas. Ao faze-lo procurou demonstrar a convergência teológica entre as parábolas de Jesus e as parábolas rabínicas. Ele considerou que a utilização de parábolas é um recurso específico da tradição rabínica. Os rabinos se entendem como herdeiros da tradição farisaica, principalmente de seus procedimentos de digressão teológica.
Como esse recurso, a parábola, não é próprio e nem encontrado na literatura apocalíptica, se entende que o mesmo possui origem farisaica. Assim sendo, a ampla utilização que Jesus faz das parábolas só pode ser entendida como indicação que ele compartilhava, ao menos eventualmente, do universo conceitual dos fariseus. Young, portanto, acompanhando Flusser, sugeriu inusitadas afinidades entre o Jesus histórico e as tradições farisaicas. Tanto em método de exposição quanto em conceitos.
Ele analisou diversas parábolas de forma pormenorizada. Entre elas a difícil “parábola do administrador infiel”, em Lucas. Nessa passagem Jesus utiliza literalmente a expressão “filhos da luz”. E é essa a única ocorrência da expressão nos evangelhos. Trata-se, como hoje sabemos, do termo com que alguns dos sectários de Qumran se designavam, especialmente na “guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas” (1QM). Segundo Young, essa parábola complexa conteria uma crítica aos dualistas, “uma paródia negativa”. Principalmente expressando reticências à forma como os sectários geriam seus bens, isto é, recolhendo-os do indivíduo, administrando-os coletivamente. “Pois os filhos deste mundo são mais prudentes com sua geração do que os filhos da luz”, asseverou Jesus (Lc 16:8).
Nesse sentido, pelo menos algumas partes das tradições relativas a Jesus poderiam bem afastá-lo do universo teológico apocalíptico, ou não inseri-lo dentro dele totalmente. Isso significaria que os fortes traços dualistas ou o insistente perfil sobrenatural do messias presentes no Novo Testamento não necessariamente seriam traços marcantes e originais do Jesus histórico, mas sim frutos de uma interpretação e vivência imediatamente posteriores. Pode ser também que o Jesus histórico gravitasse entre mundos diferentes, não se atendo a uma tradição específica. Isso coaduna com a pluralidade teológica do período do segundo templo, tão bem exemplificado pela biblioteca de Qumran, onde sequer algo conhecido como “um texto canônico bíblico” pode ser identificado. Assim, Jesus poderia ser um rabino singular – dessa forma é, aliás, denominado várias vezes – que reunisse em torno de si seguidores de diferentes origens. E que deixou tantos legados quantas fossem as concepções teológicas de seus seguidores. O que é possível, dado à pluralidade de visões, não apenas dualistas, mas gnósticas, por exemplo, que caracterizam as diferentes tradições cristalizadas nos evangelhos – tanto canônicos quanto apócrifos.
Os manuscritos de Qumran levantaram, portanto, importantes questões sobre a teologia do cristianismo antigo. Mas, principalmente, inseriram o desenvolvimento do pensamento cristão original no quadro mais amplo do judaísmo do período do segundo templo. Dimensionando, portanto, sua real inserção histórica.