
A Acusação: Blasfêmia
A Galiléia da época de Jesus vivia um  período de extrema pobreza. “A região, ao norte da Judéia, sempre havia sido  pobre. Mas não miserável, como durante a dominação romana”, escreveu John  Dominic Crossan, professor da DePaul University, de Chicago, Estados Unidos e  autor de O Jesus Histórico, a Vida de um Camponês no Mediterrâneo. Segundo ele,  os camponeses tinham de pagar impostos ao Império Romano, que havia tomado  Jerusalém em 63 a.C., aos sacerdotes do Templo em Jerusalém, e ao rei Herodes  Antipas. Isso deveria consumir pelo menos dois terços de toda a produção,  segundo os cálculos de Crossan. Como resultado de tripla tributação, a população  empobrecia e perdia a esperança em tempos melhores.
Também havia uma crescente desconfiança em relação aos sacerdotes do templo. “Em  várias passagens dos evangelhos, Jesus critica duramente os sacerdotes por  desprezarem os pobres e darem importância excessiva ao ouro”, diz o teólogo  Fernando Altemeyer, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Esse  descontentamento geral explodiria na guerra dos judeus contra Roma, que durou do  ano 66 ao 70. Uma das primeiras ações dos rebeldes foi invadir o templo e rasgar  todas as listas de devedores, os maus pagadores de impostos, que ficavam  guardadas no local. Roma acabaria vencendo, e o templo foi destruído. “Mas o  fato mostra que a revolta contra a cobrança de impostos e a política da elite  sacerdotal era imensa”, diz André Chevitarese.
Era o cenário propício para que líderes como Jesus fossem ouvidos. A visão mais  aceita hoje em dia é que Jesus, que vinha da parte mais afastada do Império  Romano, era mais um entre tantos pregadores. Essa interpretação é sustentada por  estudiosos como o padre católico John P. Meier, autor de Um Judeu Marginal,  Repensando o Jesus Histórico, e professor da Universidade Católica da América,  em Washington, Estados Unidos. “É um fato que na época de Jesus devia haver pelo  menos outras cinco ou seis pessoas que se diziam o Messias”, afirma Antônio  Manzatto.
O poder local, formado por uma aliança entre a elite judaica e os romanos, via  esse movimento de líderes messiânicos com desconfiança. “O discurso era  revolucionário, o que poderia abalar as estruturas do poder”, diz André. O de  Jesus era seguramente bombástico. Ele pregava a igualdade, o respeito aos  pobres, o amor.
Mas se Jesus era apenas um dentre tantos pregadores messiânicos, tudo mudou  quando ele chegou a Jerusalém, pouco antes da Páscoa judaica, por volta do ano  30. Naquela época, Jerusalém triplicava de tamanho. Apesar de não ser a capital  romana do território ocupado (os romanos preferiam governar de Haifa, de frente  para o mar Mediterrãneo), lá ficava o Sinédrio, instituição judaica que  funcionava como tribunal e poder legislativo, além do palácio de Pôncio Pilatos,  a casa de Herodes Antipas, o rei e, é claro, o Templo Sagrado.
Segundo os evangelhos, Jesus já era conhecido na Galiléia por suas pregações,  seus milagres e pela cura de enfermos quando chegou a Jerusalém. De acordo com  as leis e tradições judaicas, isso bastava para ser considerado um blasfemo. A  cura, na época, era um monopólio divino. No entanto, sua chegada a Jerusalém foi  ainda mais recheada de provocações à ordem. Ao entrar na cidade a uma semana da  Páscoa, sentado em um jumento, ele comparou-se ao Messias, invocando  deliberadamente a profecia do livro de Zacarias sobre a sua chegada (“Aí vem o  teu rei, justo e salvador, montado num burrinho”). A ofensa final, no entanto,  foi invadir o templo e expulsar fariseus e saduceus. Se isso tiver ocorrido como  dizem os evangelhos, ele acabava de comprar uma briga e tanto.
Os juízes: Judeus ou Romanos?
Segundo a Bíblia, Jesus estava reunido com seus seguidores no Monte das  Oliveiras, em Jerusalém, quando foi preso, à noite, depois de ser traído por  Judas. Jesus teria sido detido pelos guardas do templo, por ordem do Sinédrio –  o conselho formado pela elite judaica que controlava o santuário. Mas há  controvérsias. Segundo o próprio evangelho de Mateus, a população da cidade  estranhou uma patrulha àquela hora na rua. De fato, isso seria pouco comum.  “Para operar além das paredes do templo, os guardas devem ter contado com o  apoio de soldados romanos”, diz a historiadora Norma Musgo Mendes, da  Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Os evangelistas discordam quando relatam os fatos após a prisão de Jesus. Em  comum, eles trazem a versão de que os sacerdotes do templo decidem não  condená-lo à pena capital. Se fosse sentenciado à morte pelo Sinédrio,  provavelmente seria apedrejado. O prisioneiro é então enviado para a autoridade  suprema local, o procurador romano na Palestina, Pôncio Pilatos, a quem cabia  julgar questões de interesse do Império.
Aqui, começa outra grande polêmica sobre a narração bíblica. Não haveria nenhuma  razão para Jesus não ser condenado sumariamente por Pilatos, mas os evangelhos,  única fonte escrita do processo, contam que o governador teria hesitado em  sentenciar Jesus e tentado libertá-lo pelo menos duas vezes. Numa, após  interrogar Jesus e, tendo-o considerado inocente, resolveu soltá-lo, mas voltou  atrás quando foi vaiado pelo povo que acompanhava o julgamento. Em outra, teria  pedido que o povo escolhesse entre Jesus e Barrabás, um criminoso conhecido,  para que ele soltasse um deles, em um perdão especial devido à Páscoa. O povo  teria escolhido Barrabás para ser salvo. No fim, Pilatos teria lavado as mãos,  para simbolizar sua inocência em relação ao veredicto. Segundo um dos  evangelhos, o de Lucas, o governador ainda teria mandado Jesus para o rei  Herodes, mas esse não aceitou julgá-lo e o enviou de volta.
Para alguns historiadores, todo o julgamento é inverossímil, distante das  práticas das autoridades romanas na Palestina. “Jesus não era uma pessoa  importante na época, era mais um pregador que vinha da distante Galiléia. O mais  provável é que ele nem sequer tenha sido julgado, mas, em vez disso, condenado  sumariamente à morte”, afirma Gabriele Cornelli. Segundo ele, a passagem do  julgamento no Novo Testamento foi escrita com o propósito de orientar os  primeiros cristãos a como se portar diante dos sacerdotes e dos romanos.
André Chevitarese concorda. “Os evangelhos devem ser lidos não como uma  reportagem, mas como um programa teológico com fundo histórico”, diz. Ele  defende que os autores dos evangelhos, que foram escritos entre 40 e 80 anos  após a morte de Jesus (e, portanto, depois que os romanos destruíram Jerusalém),  utilizaram a narração do julgamento de Jesus para reforçar a cisão entre  cristãos e judeus. “Isso era fundamental para afirmar os preceitos da nova  religião, e, ao mesmo tempo, não cutucar o Império Romano, com o qual o  cristianismo teria de conviver”, afirma André.
Essa análise dos relatos explicaria porque Pilatos é retratado de modo tão  brando nos quatro evangelhos. “Até a mulher dele, Cláudia, tenta influenciar o  julgamento, a favor de Jesus. Tudo para construir a imagem de um Pilatos  bonzinho e não o típico governante romano que estava lá para fazer valer a lei e  a ordem”, diz André. No entanto, Filão, o Judeu, historiador que viveu entre 20  a.C e o ano 50 menciona a crueldade de Pilatos e seu autoritarismo em centenas  de casos de julgamentos de rebeldes e escravos (aliás, Filão também não se  refere a Jesus).
O teólogo Paul Winter, autor de Sobre o Processo de Jesus, aponta outras  passagens conflitantes. Para ele, a cena em que o povo escolhe Jesus para morrer  no lugar de Barrabás não faz sentido do ponto de vista histórico. Primeiro,  havia quatro prisioneiros para serem julgados, incluindo os dois ladrões que  morreram na cruz ao lado de Jesus. Nesse caso, de acordo com Winter, não faria  sentido o povo escolher um entre dois prisioneiros, e não entre quatro. Em  segundo lugar, o hábito de se libertar um preso na Páscoa era raro, e não um  fato comum como fazem crer os textos bíblicos.
O veredicto: Cupaldo de Sedição
Outro dedo a apontar para Pilatos e os romanos, quando se procura um culpado  pela morte de Jesus, é o debate sobre por qual crime, afinal, ele foi condenado.  Vimos que, segundo os evangelhos, os judeus do templo de Jerusalém o acusaram de  blasfêmia, mas o historiador Geza Vermes, da Universidade de Oxford, Inglaterra,  duvida disso. “Casos de pessoas que se autoproclamavam messias eram comuns  naquela época e não espantavam mais ninguém”, afirma. “Jesus foi levado à morte  por crime de sedição, de rebeldia política contra os interesses romanos. Só isso  justificaria o fato de ter sido julgado por Pilatos e condenado à  crucificação.”
Para a historiadora Norma Mendes, é possível que tenha havido uma aliança entre  os sacerdotes judeus e os romanos para que Jesus fosse condenado à morte. Aí  faria sentido que o Sinédrio o acusasse de blasfêmia e o apresentasse a Pilatos  como agitador político, para que fosse morto sem a participação direta da elite  judaica.
A pena: Crucificação
“Uma vez que Jesus foi condenado por Pilatos, como aparece na Bíblia, a pena  podia ser uma só: crucificação, precedida de açoitamento”, diz o historiador e  arqueólogo Pedro Paulo Funari, da Universidade Estadual de Campinas, no interior  de São Paulo. Essa era uma pena bastante comum nos territórios ocupados pelos  romanos. No ano que Jesus nasceu, por exemplo, mais de 2 mil condenados foram  mortos dessa forma. A crucificação era considerada a mais degradante e brutal  pena capital. Primeiro, o condenado era violentamente espancado, chicoteado e  flagelado. Depois disso, uma pesada tora de madeira era colocada sobre suas  costas e seus braços presos às extremidades. Assim ele carregava sua cruz até o  local onde seria erguida. O condenado podia ter o calcanhar preso com pregos à  madeira, ou as mãos, se não fossem amarradas com cordas.
O teólogo Antônio Manzatto acredita que o sofrimento de Jesus descrito na Bíblia  seja fiel ao que realmente ocorria em casos de crucificação. Para ele, não  haveria interesse dos evengelistas de exagerar na narrativa dos sofrimentos de  Jesus. “O mais importante naquele momento era ressaltar a mensagem do fundador  da nova religião. Jesus deve ter sofrido como todos que eram crucificados. Nem  mais, nem menos”, afirma.
Segundo Pedro Paulo Funari, a morte na cruz advinha da sede e da asfixia causada  pela posição em que o corpo ficava pendurado. O suplício poderia levar dias. No  caso de Jesus que, segundo os evangelhos, morreu em poucas horas, isso poderia  ser explicado pela perda excessiva de sangue, já que ele teve as mãos pregadas à  cruz. Guardas romanos tomavam conta o tempo todo do lugar, não permitindo que  dessem água ao condenado ou o tirassem da cruz. A agonia era assistida por  familiares e a população em geral.
A falta de sepulturas para os milhares de crucificados daquela época levou os  historiadores e arqueólogos a uma conclusão surpreendente: os corpos  crucificados não eram retirados da cruz, mas deixados expostos aos elementos até  serem devorados pelos abutres e cães. “É a única explicação plausível. O que  teria sido feito dos restos mortais dos condenados crucificados que jamais foram  encontrados?”, diz o historiador Gabriele Cornelli. Segundo ele, fazia parte da  pena a humilhação pública, mesmo depois da morte.
No caso dos familiares de Jesus, é possível que tenham obtido autorização para  levar seu corpo. “Os romanos concediam essas autorizações às vezes”, afirma  Norma Mendes. Três dias depois que Maria recolheu os restos mortais de seu  filho, tem início o maior relato de fé até então conhecido, a ressureição. Está  para nascer não só o Cristo (o ungido, em grego), mas uma religião que abraçaria  todo o mundo ocidental a ponto de hoje, dois milênios após os fatos analisados  nesta reportagem, o cristianismo ser o credo de mais de 2 bilhões de pessoas e  influenciar o modo de pensar e agir de grande parte da humanidade. “Direitos  humanos, amor ao próximo, perdão, são todos preceitos morais que regem a vida da  maioria das pessoas, sejam elas cristãs ou não”, diz o teólogo Antônio Manzatto.  “Faz todo o sentido que sua vida seja objeto de tantos estudos e polêmicas.”
 
 
