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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Da magia dos gregos aos rituais vodu

A Magia na Grécia Antiga

No apogeu da civilização grega os rituais de feitiçaria desafiavam o poder da lógica e da razão dominates.

Quem podia imaginar que os gregos, defensores da idéia de democracia, do debate e do direito ao voto eram praticantes da magia para fazer mal ao inimigo. No livro Os Trabalhos e os Dias, o poeta do séc. VIII a.C., Hesíodo, recomenda que "se alguém começar tanto dizendo quanto fazendo algo indelicado, esteja certo de pagar-lhe a ofensa duas vezes mais", ou seja, para os gregos devemos ajudar os amigos e prejudicar duas vezes mais o inimigo. A vingança entre os helenos tinha um valor positivo e deveria ser buscada por aqueles que se considerassem lesados por alguém. Logo, era lícito retribuir uma ingratidão ou desrespeito, pois, nessa sociedade, temia-se a vergonha da ofensa que atingia a honra e acarretava a desqualificação moral do indivíduo diante dos demais integrantes da comunidade à qual pertencia.

Entretanto, na impossibilidade de revidar uma ofensa o grego usava das práticas da magia. O pesquisador Louis Gernet, especialista em direito grego, afirmava que a magia deve ser considerada como uma das formas mais antigas de fazer valer o direito individual. Toda sociedade, qualquer que seja a sua complexidade, necessita de dispositivos legais para fixar normas, regras e fazê-las obedecidas pelos seus integrantes. A comunidade grega visando a paz, harmonia e solidariedade aciona os dispositivos estratégicos de manutenção da ordem, forçando o cidadão lesado a não fazer uso da vingança individual, incentivando-o a trazer a sua indignação ou ofensa para o espaço público do debate no tribunal.

Mesmo com todo esforço civilizatório, a Pólis não poderia interferir em todos os campos da vida do cidadão. Em conflitos amorosos, por exemplo, o Estado se vê de mãos atadas, pois não pode punir ninguém sem uma acusação formal. A situação das mulheres é emblemática já que a feitiçaria muitas vezes era um dos únicos meios de se fazer temida e até respeitada. Ou seja: a magia era a tentativa dos desvalidos (mas não só) de fazerem valer sua vontade por meios subreptícios.

A documentação textual produzida desde Homero até Tucídides nos aponta para a existência de práticas mágicas que integravam as cerimônias religiosas e públicas. Os rituais de magia praticados pelos gregos nas cerimônias beneficiavam toda a comunidade visando atender aos que estavam doentes, aqueles em perigo ou diante de qualquer necessidade. Havia rituais mágicos públicos para fazer chover a fim de se ter uma boa colheita, ritos para a fertilidade dos animais, para o nascimento de crianças saudáveis do sexo masculino e ritual de cura de doenças realizados no Templo do deus Asklepio. O fenômeno aponta para o estabelecimento da relação culto/benefícios concretizados, por meio das oferendas votivas aos deuses e seres sobrenaturais tais como lume, incenso, flores, doces, grãos de trigo e cevada, água e mel. Podemos afirmar que algumas destas práticas de doação às divindades em troca de algum benefício na verdade sobrevivem até os dias atuais como o ato de acender velas nos templos e na forma de contribuição monetária e doações.

"Anteriormente, quando A RELIGIÃO ERA FORTE e a CIÊNCIA FRACA, os homens confundiam MÁGICA COM MEDICINA; agora, quando a CIÊNCIA É FORTE E A RELIGIÃO FRACA, os homens confundem a MEDICINA COM MÁGICA." Thomas Szasz, psiquiatra húngaro e divulgador científico

A MAGIA VEM DO ORIENTE

Em relação à palavra magia, Heródoto, considerado o pai a história, menciona que o termo estaria relacionado à palavra magos ou magus, definido como indivíduo pertencente à tribo dos medos, antiga tribo dominada pelos persas. O historiador se refere aos magos como feiticeiros que integravam seitas secretas e prestavam serviços aos reis. A função dos magos foi relembrada pelo poeta Ésquilo ao trazer a memória dos atenienses, na tragédia Os Persas de 472 a.C., o domínio dos medos nas práticas mágicas de contatos com seres sobrenaturais através do ritual de psychagogos/evocação dos mortos. No drama, o poeta constrói a trama na qual Atossa, a rainha persa, necessitava dos conselhos do marido que havia sido morto em batalha. A rainha busca auxílio junto aos sacerdotes, solicitando que eles evocassem a alma do rei Dario através de rituais mágicos. Tal fato deixa transparecer que cabia aos magos estabelecer contato com os seres sobrenaturais, executar sacrifícios aos deuses, realizar rituais fúnebres, além de interpretar sonhos e presságios.

ESCRITOS DO MAL

Os Katadesmos ou defixiones eram tabletes de chumbo ou argila amaldiçoados, que visavam evocar o poder dos deuses subterrâneos contra uma pessoa particular ou um grupo ligado de alguma forma. Porém as motivações podiam variar de destruir as atividades profissionais, obstruir um julgamento na justiça, romper um relacionamento indesejado a até evocar a morte ou paralisia. Muitas vezes, os nomes das entidades evocadas não aparecem nas figuras o que indica que eram evocados em um pequeno ritual oral. Um tablete encontrado no séc. I d.C., já no período romano, perto da cidade grega de Micenas, agradece os deuses pela vingança obtida com o seguinte texto:

A vingança de Hefesto foi derramada. Primeiro Hecate prejudica os pertences de Megara em todas as coisas, e depois Perséfone relata aos deuses. Todas essas coisas já o são.

Abaixo alguns defixiones e seus textos amaldiçoados.*

Maldição contra os processos

Maldição contra um grupo de homens que atuam no pequeno comércio de varejo, vendas localizadas na Ágora envolvendo alguns indivíduos de atividades comercial e juízes:
Lítias, enterro/prendo a Hermes Retentor e a Perséfones a língua de Litias, as mãos de Litias, a alma de Lítias Lítias, os pés de Litias,o corpo de Lítias, a cabeça de Litias. Nícias, enterro/prendo as mãos do areopagita a Hermes Retentor, os pés, a língua, o corpo de Nicias.

Contra o ofício

A praga envolve um ferreiro, seus socios e negócios:
Enterro/prendo Arista.... o ferreiro Para baixo e Pirrían o ferreiro E as atividades deles e as almas Deles e Sósias de Lámias E a atividade e a alma dele E Hegésia sempre e sempre E Hegésia a Beócia.

O mais interessante nesta história é que cinqüenta anos depois, Eurípides nos apresenta a protagonista Medéia, cujo nome acreditamos derivar da palavra medos. Na tragédia Medéia, o poeta coloca a protagonista como mulher de feroz caráter e hedionda natureza por usar de seus conhecimentos mágicos no uso das ervas, acrescido do uso de encantamentos, para fazer valer a sua vontade de efetivar a vingança contra os seus inimigos. Medéia pertence a uma linhagem de deuses e magos, a saber: neta do deus Hélios, sobrinha da feiticeira Circe e sacerdotisa de deusa Hécate - senhora dos mortos.

Magos e sacerdotes por vezes se confundem nas suas funções, pois ambos realizam rituais de contato dos homens com os deuses e seres sobrenaturais; a diferença está no tipo de ritual a ser praticado, ou seja, o rito podia ser público visando benefícios coletivos ou praticados de maneira oculta e secreta visando atender o interesse individual.

MULHERES E O SABER OCULTO

O nosso conhecimento sobre as práticas da magia de fazer mal ao inimigo, realizada entre os atenienses no período clássico, provém do poeta Eurípides com a tragédia Medéia, de texto de oradores áticos como Andocides, Demóstenes, Hipérides e do filósofo Platão na obra Leis. No período do processo de helenização promovida por Alexandre da Macedônia indicamos o escritor Th eocrito com a sua poesia Mágica na qual a protagonista Samanta executa rituais mágicos para trazer de volta o seu amado.

AMARRAÇÃO PARA O AMOR

Os gregos e praticantes da magia envolvidos num triângulo amoroso acreditavam que o philtroi katadesmoi - katadesmo amoroso - eram encantamentos eficazes para fazer alguém ficar apaixonado ou trazer de volta uma paixão.

O interessante dessa documentação está no fato de apontarem as mulheres como as especialistas nas atividades mágicas. Alguns pesquisadores, como Madeleine Jost, consideram o domínio das ervas e raízes como atributo que pertence ao universo feminino devido à proximidade das mulheres na elaboração de alimentos. A historiadora tem por suporte de informação a documentação proveniente da poesia épica, clássica e helenística que coloca as mulheres míticas como Circe, Calipso, Medéia e Samantha como especialistas e detentoras de domínio no saber usar as ervas como veneno ou remédio.

O discurso dos oradores áticos apresenta fatos interessantes ao narrar os processos judiciais impetrados nos tribunais de Atenas, cujas vitimas geralmente eram as belas e jovens cortesãs, as hetairai, cobiçadas mulheres estrangeiras que atuavam como sacerdotisas de cultos a divindades estrangeiras e prestavam serviços sexuais de alto preço aos cidadãos de recursos em Atenas. Mulheres como Frinea da região de Th espis, Nino, Th eoris de Lemnos configuram-se como profundas conhecedoras da arte da magia para fazer mal ao inimigo e do preparo de poções amorosas. Conhecidas como hetairas, cuja tradução é companheiras, foram acusadas de impiedade pelo fato de receitarem infusões, banhos de ervas e ungüentos contraceptivos, além de poções para atrair o amado. Os acusadores, em geral, eram homens, seus clientes que foram vítimas de algum erro na dosagem, o que acarretou em danos à saúde de alguns como a impotência sexual e deve ter causado a morte de outros.

INJUSTIÇADOS E CHARLATÕES

Entretanto não podemos afirmar serem as mulheres estrangeiras as únicas detentoras dos conhecimentos mágicos de fazer mal ao inimigo, pois Platão deixa transparecer na obra A República a existência de homens que circulavam em Atenas, identificados como goetes, charlatões, que colocavam à disposição, por um alto preço, seus serviços mágicos a quem pudesse pagar. Estes consistiam em evocar e persuadir os deuses e seres sobrenaturais a atenderem as solicitações dos interessados em prejudicar seus inimigos, adversários e concorrentes.

Todo aquele cidadão de Atenas envolvido numa situação de desordem pessoal e movido por um acentuado sentimento de raiva, ódio e rancor tinha diante de si duas situações para recorrer às práticas mágicas ilegais: de um lado podia sentir-se lesado, prejudicado pelo seu oponente que parecia usar da lei do mais forte para tornar inoperante a sua atividade e seus negócios; nesse caso, de forma preventiva, o solicitante fazia uso da magia para trazer o prejuízo ao inimigo e assegurar a sua vitória sobre o adversário. Uma outra situação que envolvia o solicitante e usuário da magia estava no fato de ele ser acometido pelo sentimento de inveja chamada de phtonos e despeito diante da sua incapacidade de sucesso e decide de forma ofensiva impor a ruína aos adversários através de práticas mágicas.

Os mundos da feitiçaria

A Grécia ficou conhecida como berço da razão e da cultura ocidental. Mas os vestígios deixados pela magia nos mostram os bastidores desse mundo injusto permeado pelo desejo de vingança. Os deuses evocados pelos rituais mágicos eram em geral Ctônicos, entidades muito antigas ligadas à terra e habitantes do submundo associado à idéia de vingança e justiça, em contraste com a ordem imposta dos céus pelos deuses olímpicos. O Oriente, por tradição, abrigava as forças desconhecidas e era lar dos conhecimentos ocultos.

DEUSES OLÍMPICOS:
Eram menos requisitados nas práticas mágicas por representarem as forças da ordem.

HERMES: Podia entrar e sair do submundo sem impedimentos. Por essa característica limiar era o mais evocado nos defixiones. Além de ser mensageiro, tinha a função de carregar as almas para o mundo dos mortos.

TEMPLO: (adoração) A forma oficial de religião da Grécia antiga. Por meio da adoração, buscava-se a graça dos deuses através de pedidos e sacrifícios.

CARONTE: O barqueiro tinha a função de levar as almas para o mundo dos mortos. Mas se o falecido não tivesse uma moeda para pagá-lo esperava a carona por um século.

HADES: O chefão do submundo aparecia em muitas inscrições de maldição, auxiliado por cérbero, o cão tricéfalo.

DEFIXIONES: (magia) Essas práticas buscavam uma intervenção na realidade. Eram voltadas para fazer mal aos indivíduos, principalmente aprisionando-os e imobilizando-os na Terra.

DAIMEONS (demônios): Os espíritos menores levavam os pedidos dos mortais aos deuses do subterrâneo e às vezes cumpriam, eles mesmos, a tarefa.

MAGOS: Foram uma importante casta sacerdotal no império persa. Seus conhecimentos ritualísticos e astrológicos transformaram o nome em sinônimo de feiticeiro.

PERSÉFONE: A rainha dos mortos era tão poderosa que mesmo pronunciar seu nome podia trazer desgraça.

HÉCATE: Deusa três em um, era muito procurada por seu poder tendo se tornado a entidade preferida da magia negra. Possuía um caráter múltiplo e agia no mar, na terra e no céu.

MEDÉIA: A personagem mitológica simbolizava o poder irracional intrínseco ao Oriente e às mulheres, que contrastava com o racionalismo do homem grego.

A partir do momento em que decide agir, mesmo sabendo dos riscos, cabia ao solicitante buscar o conhecimento de um especialista, o magus-feiticeiro, que tinha por objetivo demonstrar toda a sua capacidade de realização, pois o sucesso na empreitada significava prestigio, respeito, sucesso e algum retorno financeiro. Entretanto, ao atender o desejo de levar à morte um inimigo do solicitante, o magus acreditava adquirir mais poder diante da possibilidade de ter a sua disposição e ordem as almas de indivíduos que seriam mortos antes do tempo determinado pelas Moiras/Parcas/Destino.

LÂMINAS DO SUBTERRÂNEO

A magia para fazer mal ao inimigo foi identificada por Platão, nas Leis, como katadesmos ou defixiones. O nome deriva do verbo katadeo que significa amarrar, prender, imobilizar alguém embaixo da terra. O termo tece aproximações no sentido de afundar, enterrar, ocultar e tem como equivalente no latim a palavra defixio, ou seja, fixar embaixo junto ao mundo dos mortos. As duas palavras nomeiam as finas lâminas de chumbo que circularam no universo do Mediterrâneo grego e romano do séc. V a.C. até o VI d.C. O uso das lâminas de chumbo para prejudicar o inimigo resistiram às mudanças de contexto sociocultural de Atenas como a consolidação do regime democrático, ultrapassou o período de crise da forma de governo democrático com as investidas da realeza de Alexandre da Macedônia e a subordinação ao Império Romano.

CARTA PARA O ALÉM
Os deuses evocados nas lâminas são Hecate, Hermes, Perséfones, Hades, Cérberos. Todos pertencem ao mundo subterrâneo e têm o epíteto de ctônios cuja função é deter e manter no mundo dos mortos os inimigos. A única divindade ausente nas lâminas é Caronte que nunca é mencionado.

Várias lâminas de chumbo foram encontradas em cemitérios, nos santuários, em poços d`água e nos leitos de rios em Atenas. A incidência maior e mais documentada é o Cemitério do Kerameikos, em Atenas, atravessado pelo rio Eridanos, cujas escavações estão sob a responsabilidade do Instituto Alemão de Arqueologia, o German Archaeological Institute in Athenas.

"Não procure GANHOS INJUSTOS; eles são
EQUIVALENTES AO DESASTRE." Hesíodo, Os Trabalhos & os Dias

As lâminas de chumbo identificadas também como tabletes de imprecação apontam para uma diversidade de modelos de fórmulas mágicas inscritas nas superfícies dos defixione, tais como maldições contra testemunhos de processos judiciais, imprecações contra atividades comerciais, contra adversários de disputas atléticas e solicitação para eliminar um rival envolvido em triângulo amoroso. Os arqueólogos alemães e ingleses identificam o total de 2500 lâminas de chumbo com maldições espalhadas por diferentes museus públicos e coleções privadas da Europa. Deste total, apenas 600 foram identificadas e catalogadas. No Brasil, o Núcleo de Estudos da Antiguidade/UERJ detém as cópias de 250 lâminas em processo de tradução para uma futura publicação.

A magia de fazer mal ao inimigo manteve o ato de enterrarobjetos nos túmulos, como unhas e cabelos da vítima amaldiçoada

As inscrições presentes na superfície das lâminas são conhecidas desde o século XIX; começaram com o filólogo Albrecht Dieterich que lançou a idéia de reunir todos os papiros com as maldições, porém o trabalho só foi concluído pelo seu aluno Richard Wünsch. As publicações com as últimas descobertas estão no livro de D.R.Jordan em 1985 e Maria A. Jimeno em 1999, ambos ainda não traduzidos para o português.

Os arqueólogos destacam as dificuldades de manuseio das lâminas de chumbo pelo fato de a grande maioria ter sido encontrada enrolada e depositada em locais úmidos como sepulturas, leito de rios e poços de água. Estes locais de assentamento foram escolhidos devido ao contato direto com o mundo dos seres e das potências subterrâneas.

Para ter acesso à inscrição na superfície da lâmina é necessária a aplicação de um tratamento químico visando à remoção dos resíduos e muito cuidado ao desenrolar o frágil artefato que, por vezes, está transpassado por um prego denominado de passalos. As inscrições nas lâminas não permitem a identificação do autor da maldição, mas deixam transparecer qual o prejuízo que se desejava ao inimigo. Às vezes o nome do inimigo estava escrito com letras inversas visando atrasar sua vida. Em relação aos seres sobrenaturais, o nome do oponente estava endereçado a divindades como Persefones, Hermes, Hécate e Cérbero como forma de manter a vítima presa no mundo dos mortos.

A magia de fazer mal ao inimigo através das finas lâminas de chumbo, manteve- se através dos tempos, permanecendo como características o ato de enterrar objetos nos túmulos, como figuras humanas feitas de chumbo junto a pedaços de vestuário, unhas, cabelos da vítima a ser amaldiçoada. A prática nos remete à possibilidade de comparação da magia dos gregos com o Candomblé da Bahia, Cuba, Caribe com as suas práticas de rituais vodu, e as divindades teriam atributos semelhantes tais como Hermes/ Exú, Hécate/Pomba-Gira e Hades/Zé Pilintra, assim como os vestígios arqueológicos de rituais de sacrifícios, entendidos como despachos realizados nas encruzilhadas e nos cemitérios; se superarmos os preconceitos, podemos estabelecer mais similitudes do que diferenças.

O APRENDIZ DE FEITICEIRO

A lâmina de chumbo identificada como praga contra processo judicial do IV séc. a.C, de inventário n° 14470 do Museu Nacional de Atenas, cuja inscrição diz " enterro Kalistratos e os sinégoros dele..... a todos enterro" nos indica que o cidadão Kalistratos estava movendo um processo no tribunal contra alguém. A vítima reage fazendo uso de meio extralegal da magia como um recurso que o auxilie e garanta a sua vitória. O usuário da magia e o magus/feiticeiro colocam o nome do acusador e mencionam os sinégoros que seriam as pessoas que receberam algum recurso financeiro para auxiliarem Kalistratos na disputa. O solicitante e inimigo de Kalistratos tem por objetivo garantir sua própria vitória e impedir o sucesso do pleito levado ao tribunal.

EVOLUÇÃO DO CONHECIMENTO

O antropólogo inglês Sir James Frazer no livro Ramo de Ouro afirmava ser a magia uma superstição, vestígio de religião muito antiga. Outros defendiam ser uma forma degenerada da religião cívica dos atenienses. Pesquisadores do século XVIII , como Emile Durkheim, consideram que a magia integravam um processo evolutivo do qual seria o primeiro estágio; a religião comportava a etapa seguinte, desacreditando o pensamento mágico e preparando o espaço para a razão e o pensamento científico da modernidade.

Outros artefatos de chumbo que caracterizam ter um envolvimento jurídico evidenciam que junto ao nome da vítima, o solicitante coloca grafado na lâmina as partes do corpo do inimigo: a língua visava impedir o acusador de usar da palavra de acusação ou defesa diante dos jurados; a exigência de paralisar os pés e as mãos tinha por objetivo impedir a vítima de chegar até o tribunal e impedir a sua capacidade de escrever ou pegar o discurso a ser proferido diante do júri a seu favor.

Fica evidente que ser feiticeiro no V século a.C. em Atenas era uma profissão de risco e um dos prérequisitos era saber ler e escrever. As inscrições nas lâminas de chumbo apresentam diferentes maneiras de usar a escrita que podia ser do tipo boustrofondo, procedimento muito próximo ao ato de arar o campo em sulcos alternados indo da esquerda para a direita, retornando em direção oposta quando a letra ficava voltada para o lado contrário; havia o retrógrado que se refere ao ato de escrever de cima para baixo e a opistográfica na qual se escrevia no lado da frente e no anverso da lâmina de chumbo.

Foram encontradas inscrições nas lâminas contra as atividades e ofícios no qual o solicitante ora exige que a maldição atinja a residência e destrua a família do adversário ora pede aos seres sobrenaturais que deixem a vítima inerte, agindo como um ser sem vida, um morto vivo. Tal imobilidade fatalmente traria a ruína aos seus negócios. Não podemos esquecer que o praticante da magia dos defixiones é alguém se sentindo ameaçado, que teme perder algo de valor. Como solução busca forças alternativas no poder da magia para fazer valer o que considera seu por direito, independente de preceitos éticos e da lei que rege a comunidade à qual pertence.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Feitiços, Adivinhações e possessões no Antigo Israel

Adivinhação, feitiçaria, magia e possessão no AT:
suspeitas a partir da teologia feminista

Ao discutir as práticas de magia, feitiçaria e adivinhação nos textos bíblicos, estamos perguntando pelos mecanismos e processos de intermediação entre a divindade e o povo. Esta intermediação é legítima ou não de acordo com o contexto e a época, com o grupo ou o lugar social onde esta é praticada. Por exemplo: adivinhação é proibida em Dt 18, mas jogar as sortes através das pedras de adivinhação – Urim e Tumim – não recebe repreensão.

O propósito aqui é analisar algumas práticas e perguntas pela relação com o grupo social, a saber, as mulheres que estão por detrás destas ações.

Adivinhação, feitiçaria e augúrio

Uma tendência corrente nos estudos de magia, adivinhação e feitiçaria no mundo do antigo Oriente Próximo, especialmente a partir dos testemunhos dos textos bíblicos, é definir estas práticas como simbólicas, entendendo este simbolismo, como meramente ilustrativo ou alegórico, ou seja, que não tem cunho político ou religioso. Em relação aos textos bíblicos, ocorre muitas vezes uma harmonização de conflitos, ou uma postura de relegar estas práticas a uma fase anterior da “evolução” da religião a um monoteísmo explícito. Toma-se a religião, em sua manifestação monoteísta, como mais evoluída, mais avançada, pura em sua estruturação e definição, enquanto que as práticas mágicas representam pensamentos primitivos, atrasados, ligados a pessoas ou grupos marginais. Outra postura defendida por alguns estudiosos é vincular as práticas mágicas unicamente à iniciativa humana, diferenciando-as dos atos que vêm da vontade de Javé1.

A proposta adotada aqui será de perguntar pelas práticas mágicas em relação com outras práticas sociais. O objetivo é não tomar cada prática de forma isolada, ou tomar a magia e adivinhação como fenômenos isolados, mas inseri-las na rede de relações sociais, culturais, econômicas, políticas e religiosas. Ou seja, o levantamento dos conceitos não quer identificar as características de cada prática, com o intuito de encontrar uma definição, mas é ver como os usos destes conceitos estão relacionados ao contexto, aos pré-conceitos culturais, às pressuposições dos autores, dos estudiosos e dos tradutores, entre outros fatores. É nesta configuração que é possível localizar e entender por que algumas práticas são condenadas em alguns textos, e acontecem, de forma legitimada, em outras situações, ou outras épocas.

A condenação

O texto condenatório em Dt 18.9-14 está inserido num contexto que quer promover o contraste entre o povo escolhido de Deus e o povo cananeu. Observa-se a afinidade lingüística com o texto igualmente denunciador de práticas advindas “dos gentios”, em 2Rs 16.32. Este texto enumera a adivinhação junto com uma série de outras “práticas abomináveis”: sacrifício de crianças, encantamentos, necromancia, consulta aos mortos. Contudo, ficam fora outras práticas como Urim e Tummim, sonhos ou lançar as sortes, que em outros textos, fora do ambiente legal, parecem ser práticas comuns e admitidas em certos círculos.

Chama a atenção que o texto que segue – Dt 18.15-22 – é onde se institucionaliza e legitima Moisés como o único intermediário entre o divino e o humano. Num contexto muito próximo, em Dt 17.8-13, adverte-se que as decisões difíceis devem ser consultadas com sacerdotes e levitas em Jerusalém. O verbo usado para falar desta consulta (darash) aos representantes legitimados pela instituição sacerdotal é o mesmo que irá falar da “consulta” aos adivinhadores. Estas interpelações levantam a hipótese que a condenação ocorre por uma questão de poder. O ideal de um javismo puro, centralizado e a partir das instâncias oficiais, defendido pelo deuteronomista, apresenta-se como um contraponto às práticas populares3.

Uma abordagem semântico-morfológica dos termos que são usados para designar as atividades de adivinhação, feitiçaria, augúrios na lista proibitiva de Dt 18.9-14 auxilia na compreensão e localização social destas práticas. Ali são listados profissionais, cujas práticas não devem mais ser seguidas pelo povo: quem faz passar pelo fogo o seu filho ou a sua filha, o adivinhador, o prognosticador, o agoureiro, o feiticeiro, o necromante, o mágico, o encantador ou quem consulta os mortos. Um cuidado é necessário: ter em conta as diferenças de estilo, forma e gênero dos textos legais e dos textos proféticos. Estas diferenças podem influenciar na escolha por determinadas terminologias, ou uso de determinados conceitos. Os pronunciamentos proféticos, em sua maioria, foram feitos, em primeira instância, em nível oral. Estes, posteriormente foram organizados e estruturados em escritos. Este processo todo influência e determina a opção de terminologias e conceitos, ainda mais, se estes conceitos estão ligados com práticas em que a escrita não é determinante, como no caso da magia, da adivinhação e da feitiçaria/bruxaria4.
~sq este verbo já foi analisado anteriormente, constatando um significado de adivinhar, conjurar. O rei da Babilônia, conforme Ez 21. 21, se pára nas encruzilhadas, na entrada de dois caminhos para consultar oráculos e adivinhar por meio de flechas, além de interrogar os ídolos do lar (terafins) e examinar o fígado. A história de Balaão, em Nm 22-24, que é um adivinho, conforme Js 13.22, estabelece a função de adivinho dentro das práticas que são utilizadas pelo povo israelita. Ele tem poder de amaldiçoar (22.6) e abençoar (23 e 24). E cobra pelas suas adivinhações (22.7).

Vek;m. que significa feiticeira, deriva da raiz acádica kašāpu ou do substantivo kišpu, quer por sua vez significa, “magia negra”5. O termo mekaššep significa “bruxa, feiticeira”6.

rb,x' rbex significa aquele que amarra encantamentos, encantador. A mesma palavra serve para designar companheiro, amigo, cúmplice, sócio. A raiz verbal significa unir, enlaçar, ligar, aliar7. Mas pode estar se referindo a práticas mágicas de amarrar e desamarrar nós, de enrolar ou desenrolar fios ou faixas em volta de pessoas ou objetos, em práticas simbólicas, mágicas8.

bAa laev significa quem consulta os mortos. O termo bAa significa fantasma, espectro, alma penada, espírito, necromante, ocultista. Pode referir-se a espírito invocado, ou à pessoa que invoca ou consulta os espíritos9. O termo bAa pode se referir a um buraco, uma cavidade no chão, como o texto de Is 29. 4 parece indicar10. No entanto, há várias opiniões acerca do termo. Poderia ser o espírito de um morto que descansa com ele no Sheol, ou no túmulo, que homens ou mulheres podem invocar. Há ainda a possibilidade de ser somente o instrumento utilizado para esconjurar (exorcizar) os defuntos, ou para praticar magia. O mais provável, entretanto, é que o termo sofre um encontro de significados, podendo significar tanto um espírito, como um objeto através do qual o espírito pode ser lembrado, ou ainda, a pessoa capaz de receber, intermediar e interpretar a fala do espírito. Os textos bíblicos que proíbem tais práticas refletem essas interpretações simultâneas: Dt 18.11; Lv 20.27; 2Rs 21.6; 23.24; 2Cr 33.6.

Uma mulher que é dona de um espírito – 1 Sm 28 – a bruxa de Endor

A necromancia é a prática de consulta aos mortos. Em 1 Sm 28 temos um texto paradigmático sobre a consulta aos espíritos dos mortos, que pode ajudar no entendimento da questão, embora o texto seja único em toda a Bíblia Hebraica11. O contexto é de guerra. Os filisteus são uma ameaça concreta para Saul e seu exército. O rei está amedrontado e sem rumo. Já consultou ao Senhor por sonhos, por Urim, e pelos profetas, e o silêncio foi a sua resposta. Parece que sua última alternativa é consultar uma necromante, indo contra suas próprias leis proibitivas, como informa o v.3. A “senhora dos espíritos”, ou “dona dos espíritos” (ba´alat 'ôb). Esta tem uma proximidade semântica com um título que recebe Samaš, a divindade solar, significando “O senhor dos espíritos dos mortos”12. Não há nenhum sinal indicando que ela seja estrangeira, mas sim, israelita.

A mulher tem poder para invocar qualquer espírito, conforme sua pergunta no v. 11: “Quem te farei subir?” ou “Quem queres que eu evoque?” O ritual, com sua performance, não é descrito. No v. 13, ela diz: “Vejo um Deus(es) (elohim) que sobe(m) da terra.”

A inquirição à divindade via sonhos, pessoas, oráculos ou mortos fazia parte da experiência familiar. Grande parte destas atividades registra o envolvimento ou a participação de mulheres, talvez por ser a esfera doméstica o espaço onde elas se moviam13.

A redação deuteronomista deixa suas marcas no texto e na configuração do contexto. As práticas sincréticas levam o rei à ruína. É por causa disso que Saul é desabonado por Deus. O texto, fruto de um trabalho redacional da oficialidade centralizadora, quer deixar claro que a pluralidade religiosa precisa ser controlada, para garantir os interesses e a autodeterminação de Israel. Essa proposta trilha num fino limite onde a palavra profética tem o seu critério de verificação definido a partir da fala/anúncio/denúncia. A palavra, o oráculo do Senhor é o meio legítimo da profecia. Gestos, encantamentos, cheiros, fumaças, jarras, cuidado com os mortos são desabonados.

O poder da mulher, dona de espírito, a médium, faz com que se estabeleça um contato entre um espírito e um inquiridor vivo. E a mensagem que recebe é a verdadeira palavra de Deus. Segundo o texto, sua ação não acaba na intermediação entre a divindade (ou o espírito) e a pessoa angustiada que faz a consulta. Ela estabelece um acompanhamento “pós-consulta”. Como a notícia recebida afeta profundamente o cliente, a mulher trata de restabelecer a saúde, física e emocional da pessoa. Prepara uma farta comida para o rei e seus servos. Seria uma espécie de ritual final do processo de evocação dos espíritos, ou seria nada mais do que atenção a quem está necessitado e angustiado, diante de tão desventurosas notícias?

Outro texto que pode estar se referindo a práticas de necromancia encontra-se em Is 29.4, no qual se diz que a voz sairá do chão, da terra, como a de um fantasma. A idéia de que os espíritos vêm do chão, já é encontrada na terminologia, quando ´ôb pode referir-se também a um buraco no chão. Is 28.7-22 é um texto dirigido contra as profecias ilícitas, onde podem ser encontradas referências a atividades ligadas à necromancia. Especialmente os versículos 15 e 18, nos quais a denúncia se dirige aos que fizeram alianças com a morte. Ainda, em Is 8.19, condena-se explicitamente aqueles que buscam conselhos com necromantes, adivinhos e Is 19.3 imputa aos egípcios a prática de necromancia, feitiçaria e adivinhação14.

Outra observação é a idéia de que cada termo corresponde a uma função específica que uma pessoa irá assumir, ou seja, que está determinando uma função para uma só pessoa. A configuração social do antigo Israel está baseada no modelo familiar, que segue a linhagem de clãs e tribos. Este modelo social implica numa pequena diferenciação entre as pessoas nos diferentes níveis e espaços da estrutura social. Neste sentido, a lógica é que uma pessoa ocupe mais que uma função social. Uma listagem bem variada de funções ligadas ao espaço religioso aparece em vários textos bíblicos, como, visionários, profetas, sacerdotes, homem de Deus, serviçais do templo, levitas, escribas, pessoas consagradas, nazireus, entre outros. Se a diferenciação social segue um modelo rural, familiar, tribal, várias destas funções são assumidas pela mesma pessoa. Assim, um profeta pode ser um visionário, um homem de Deus, e, isso pode implicar em assumir funções de adivinhação, cura, proferir oráculos. Exemplos desta configuração são Jeremias e Ezequiel: assumem funções sacerdotais e proféticas, que, por sua vez, são exercidas de diferentes maneiras ou jeitos, por meio de visões, oráculos, gestos simbólicos, sinais, posturas corporais etc.15.

Esta mescla de funções pode ser comprovada no ambiente da feitiçaria ou bruxaria na Mesopotâmia. Além de ocorrer um intercâmbio de funções, também ocorre um trânsito de espaços.

...a própria feitiçaria pertenceu originalmente ao nível popular de cultura da Mesopotâmia e só eventualmente se tornou parte do domínio do exorcista de templo. Na forma popular, a ‘bruxa’ não é necessariamente um ser mau e que faz atos ilegais, mas na realidade, pode executar vários atos mágicos (ambos feitos de formas normativas e não-normativas de feitiçaria) em nome de outros e até mesmo contra as bruxas ‘más’. Nesta forma popular, a ‘bruxa’ parece exibir associações com tipos de extáticos praticantes. Tais associações podem bem ser significantes, porque elas recordam a junção ocasional de possessão periférica e feitiçaria. Assim, em certas circunstâncias sociais, o mesmo indivíduo pode utilizar possessão de espírito e pode ser empregado como um exorcista, mas então, também ser classificado como uma bruxa.16

A grande diversidade de possibilidades de traduções, com um leque amplo de significados, aponta para um cuidado metodológico que deve ser tomado na análise das práticas aqui estudadas. Muitas vezes o significados deriva do contexto ou de aproximações convencionais, do que propriamente de definições exatas e descritivas das práticas17.

Nesta diversidade de atividades, está uma ampla gama de artes mânticas, como, por exemplo, a interpretação do “curso e da posição dos corpos celestes, eclipses do sol e da lua, o sopro do vento, o vôo dos pássaros, a expressão de animais, bem como dos humanos, sonhos, nascimentos anômalos ou o comportamento dos animais de sacrifício”18.

Magia, bruxaria, feitiçaria e adivinhação são práticas atestadas na antiga Mesopotâmia. O cuidado metodológico consiste numa abordagem que não tome estas como categorias opostas, em conflitos, e que outras categorias sejam analisadas em oposição a partir destas, como politeísmo e monoteísmo, bem e mal, fé e superstição, sacerdócio e pessoas leigas, medicina e charlatania19. Neste sentido, em relação à magia, pode-se afirmar que, tampouco, é possível fazer uma distinção entre magia “branca” e “negra”. As técnicas usadas pelas bruxas eram as mesmas usadas para invocar poderes de cura ou de destruição. A diferença consistia na maneira secreta de atuar, em questões de uso de poderes malignos, enquanto que a defesa, o uso dos poderes para o bem e a cura, era feita abertamente20.

No antigo Egito, as fórmulas mágicas são usualmente manifestadas por meio de simbologias, como os ditos, acompanhadas de performances rituais que envolvem certos objetos e ingredientes, que servem como amuletos. A magia, no Egito, tinha preferencialmente um caráter de proteção, ou de profilaxia, advinda dos Deuses21.

O campo de operação, que contém maior quantidade de descrição de rituais mágicos no antigo Egito, pertence à esfera dos ritos funerários. São registradas informações sobre ditos e rituais mágicos nos Textos das Pirâmides do Antigo Império, nos Textos dos Sarcófagos do Médio Império e no Livro dos Mortos, do Novo Império22.

Um propósito dos feitiços era transformar o defunto em outro ser, um espírito (’h), que pertencia ao mundo divino, onde todas as forças da natureza se juntavam. Esta transformação, que acontecia num mundo onde as condições de existência eram completamente diferentes, e até mesmo a comida que o defunto precisava era simbólica, era alcançada por meio de uma vasta gama de feitiços e rituais. Muitos destes eram executados durante cerimônias de enterro, nos quais um vasto número de modos de ser e relações hipotéticas eram evocados.23

Como atestado na antiga Mesopotâmia, de forma análoga no antigo Egito, os campos de atuação dos profissionais envolvidos nas práticas mágicas se misturam. O mágico, o protetor e o sacerdote de Sekhmet poderiam estar associados ao doutor ou aquele que cura. Da mesma forma, menções aos profissionais são encontradas nos espaços públicos, como em espaços domésticos. Mulheres sábias são nomeadas em meio a estes profissionais. Textos bíblicos testemunham a presença de mágicos e adivinhos em serviços ao faraó: Gn 41.8 traz os magos e os sábios convocados para interpretar os sonhos do faraó, que também são mencionados em Ex 7.11 e 22. Os hartummîm, os mágicos do faraó tinham uma ligação com a casa da vida, o centro de estudos teológicos, onde a produção literária em torno da manifestação de Re era composta24.

Segundo Gabriela Frantz-Szabó, no contexto cultural-religioso hitita, podem ser detectadas duas formas de magia e feitiçaria: a assim chamada “magia negra,” que é a que causa dano e a “magia branca,” que tem caráter defensivo ou preventivo. A lei hitita punia àquelas pessoas que se envolviam com práticas mágicas maléficas. O trato da questão da feitiçaria e magia estava sob os cuidados do estado, pois as ações não envolviam somente a indivíduos, mas podiam acarretar em prejuízos sobre grupos e sobre o estado mesmo25.

Uma das profissionais mais conhecidas do mundo mágico hitita é a mulher sábia”, ou a “mulher velha”. Ela era uma espécie de sacerdotisa, não de um templo, mas de rituais mágicos e de oráculos de sorte. Ela podia atuar em equipe, com a ajuda de uma assistente hieródula, um médico, um visionário, ou um que observa os pássaros. Um ritual hitita de purificação da mulher, em período de parto conhecido como papanikri, dura 4 dias e já começa antes de dar à luz. Os pássaros malignos são observados durante este ritual. O quarto onde a mulher dá à luz é purificado, a mulher e a criança são consideradas portadoras de impurezas. A cadeira sobre a qual a mulher se acocora também passa por um ritual de purificação com o sangue de dois pássaros. Também há referência a um ritual no qual óleo é passado sobre a cabeça da parturiente, fazendo a limpeza ritual das mãos e da boca. com lã vermelha. Este ritual é presidido por uma parteira26.

A adivinhação hitita é composta por sonhos, presságios e oráculos, de sorte, ou de exames das vísceras de uma ovelha. Os fenômenos da magia e adivinhação estão espraiados na sociedade hitita. Estes faziam parte do mundo público e do mundo privado, e eram praticados pelo povo em geral, bem como pelo rei e o pessoal ligado ao palácio. Magia e feitiçaria se misturavam com as esferas religiosas e médicas, bem como dialogavam com as sociedades vizinhas, como Mesopotâmia e Ásia Menor27.

Com as informações sobre o contexto circundante mesopotâmico, egípcio e hitita é possível estabelecer parâmetros e analogias com as práticas do antigo Israel. “Adivinhação é uma prática comum no antigo Oriente Próximo e, assim, é natural encontrá-la no mundo fenício-cananeu, bem como num contexto mais amplo.” “Diferente dos mesopotâmicos, os hebreus e os cananeus da Palestina não produziram um corpus especificamente dedicado à adivinhação”28.

Os meios de adivinhação encontram analogias nas diferentes culturas, no antigo Oriente Próximo. O diferencial é que há pouco registro escrito destas práticas no antigo Israel. Os meios legítimos, exercidos pelos sacerdotes, foram a adivinhação por meio de sorte, o efod (peça do vestuário sacerdotal), e o Urim e Tummim. Os escritores sacerdotais e deuteronomistas vão fazer a redução necessária destas práticas, condenando as que não foram incorporadas, e legitimando outras que recebem o aval do corpo especializado. Não dá para estabelecer um critério único, para dizer porque determinadas práticas foram incorporadas e legitimadas, e outras relegadas ao proibitivo. Mas, a partir dos textos bíblicos, é possível estabelecer uma ligação entre práticas mágicas e adivinhação com parte do mundo e das concepções religiosas no antigo Israel. É um dos meios de acesso ao mundo sobrenatural, ao mundo do transcendente, do divino.

Como meio de acesso, o ponto que deve ser discutido em estreita relação com as proibições e condenações é a questão do controle destes meios de acesso. Ou seja, em que medida as proibições, negações e deslegitimações não respondem a questões de poder. A polêmica se encerra num contexto de definição de identidade, onde o conflito reside em determinar quem são os atores sociais legítimos, empoderados para exercer determinadas práticas. Ou, dizendo de forma mais concreta, o problema não são as práticas, mas quem as faz, onde elas acontecem e, conseqüentemente, a quem elas se dirigem.

Parece que em épocas pré-exílicas algumas práticas ou profissões poderiam ser consideradas compatíveis com o javismo daquela época. Já em épocas tardias, com a preocupação crescente pela manutenção da identidade em contexto de ameaça de misturas culturais e religiosas, que se apresentam no exílio, estas são condenadas. “Quando elas aparecem, mais tarde, em textos do dtr, ou nos textos influenciados pela ideologia do dtr, elas são retratadas como práticas ilícitas e proscritas”29.

Pode-se conjecturar que práticas do âmbito da magia e da adivinhação são elementos constitutivos da sociedade do antigo Israel. Há um movimento de relegar estas práticas ao mundo assim chamado “pagão” ou “cananeu”, enfim, aos outros, aos estrangeiros. Ao impelir estas práticas para fora do contexto cultural-religioso de Israel, preserva-se uma retórica de afirmação e construção da identidade isolada do ambiente cultural circundante. Neste sentido, ao abordar a temática da magia e da adivinhação na Bíblia Hebraica, deve-se ter em conta que a forma de apresentar o tema no próprio texto, leva a uma direção que quer estabelecer categorias de controle em assuntos de pureza e contaminação30.

As evidências textuais apontam para uma probabilidade da existência e aceitação de práticas de adivinhação em certos círculos no antigo Israel. O propósito do controle é mais percebido em textos cujas composições sofreram interferências deuteronomísticas. Os objetivos da profecia e da adivinhação são semelhantes, pois querem facilitar e agilizar a comunicação entre Javé, a divindade e seu povo. Mas para o escritor deuteronomista, a adivinhação não pode ser um meio legítimo, pois os canais fidedignos estão centralizados nos profetas de linha mosaica, ou ainda faz-se uma associação da adivinhação com práticas estrangeiras31.

A intermediação religiosa pode ser definida como “um processo de comunicação entre as esferas divina e humana na qual mensagens são canalizadas em ambas as direções, através de um ou mais indivíduos que são reconhecidos pela sociedade para exercer tal função”32. Esta definição correlaciona os profetas e adivinhadores em relação ao exercício de seu papel ou funções sociais. Ambos exercem a intermediação, apesar de o fazerem com suas especificidades, de acordo com os aspectos culturais que são relevantes em determinadas épocas e contextos.

Os textos condenatórios trazem uma característica em comum. Todos os intermediários são especialistas aos quais se recorre em busca de intermediação entre o reino sobrenatural e o terreno. Neste sentido, condenação se insere na pergunta de quais os meios são legítimos. Quais os mecanismos reconhecidos de comunicação com Deus? O Dt promete que serão fornecidos os intermediários legitimados e reconhecidos: o profeta de tradição mosaica. Este será o único intermediário reconhecido e os textos atestam isso. (Nm 12.6-8 )33.

Possessão no AT

A idéia de possessão no AT pode ser aproximada da profecia. Textos indicam que a experiência profética pode ser descrita como uma espécie de ocupação de copo e de identidade por parte de um espírito. O marco para a profecia é a possessão do espírito de Deus. A “mão do Senhor” cai sobre o profeta e este é possuído pelo poder de profetizar – 1 Rs 18.46; 2 Rs 3.15, Jr 15.17; Ez 1.30. O espírito ainda pode “pairar sobre” , Nm 11.25-26; ou “revestir” alguém, Jz 6.34; Am 3.8.

Há poucas referências a possessão demoníaca no AT: Ex 22.17 –18 e Lv 19.26 proíbem; no v. 31 há referência a necromancia, ou a consulta a um espírito familiar. Outros textos: 1 Sm 15.23; 2 Rs 17.17; 21.6; 23.24; 2 Cr 33.6. Há diferentes concepções, significados e formas de descrever o que se pode chamar de possessão: uma delas é que é associado com doença (epilepsia); outra é com horror e arrepios – Jó 4.12-16 – o espírito faz arrepiar o cabelo e ouve-se uma voz. O espírito pode ser manifesto como ciúme de marido que pensa que está sendo traído, em Nm 5.14-15; ou como espírito mentiroso que entra na boca dos profetas de Acab – 1 Rs 22.19-24.

Há uma diferença notável que levanta uma suspeita que pode ser aprofundada nas experiências de mulheres possuídas nos textos do AT e NT. No AT, não há referência explícita de mulheres possessas que são exorcizadas. Ao contrário, a partir de 1 Sm 28 pode-se dizer que a mulher é dona, controla ou tem o poder e conhecimento de como manejar, fazer subir o espírito. Nos textos do NT as referências a mulheres e possessão acontece sempre onde elas são possuídas e devem ser exorcizadas. De Madalena se diz que foram expulsos 7 demônios (Lc 8.2-3) ou a mulher que estava presa/amarrada por Satanás há 18 anos ficando encurvada (Lc13.16); ou a menina que tem um espírito de adivinhação (At 16.16ss).

Como problematizar esta situação dada no NT, em relação às mulheres e os espíritos demoníacos?

Estudos comparativos culturais mostram que a possessão demoníaca é usualmente um significado pelo qual um indivíduo num papel social subordinado pode responder para e lidar com circunstâncias que não podem ser efetivamente manejadas de outra forma. Muitas vezes estas circunstâncias emergem de conflitos intrafamiliares. Por isso, a possessão demoníaca ocorre, na maioria das vezes, nos indivíduos mais subordinados da estrutura familiar: mulheres e crianças34.

Então, poderia-se dizer que a situação das mulheres no contexto cultural do NT é mais difícil, mais subordinado? Por outro lado, o argumento do silêncio – não há menção a exorcismo de mulheres no AT – não pode significar de que não exista. Mas, exorcismos de homens sim, são mencionados: Davi exorcisa o espírito mau e violento de Saul, com música, conforme relato em 1 Sm 16.14-23; 18.10-12.

O que, sim, se pode afirmar é de que quanto mais se institucionaliza o culto e as práticas religiosas tanto mais as mulheres são afastadas do manejo com o sagrado. Tanto mais as práticas das mulheres são relegadas ao espaço do proibido, do ilícito, e que no linguajar do AT pode ser também, impuro, abominação, idolatria. A questão é então, quem tem o poder de nomear. De dar nome e legitimidade às suas práticas. Quem pode incorporar e oficializar as práticas e quem deve fazer o que sabe, na cozinha, atrás das cortinas, no fundo das roças, nas encostas e beiras de rios. Longe do templo, do sacerdote e de seu deus.
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1 Joanne Kay KUEMMERLIN-MCLEAN, Divination and magic in the religion of Ancient Israel , p. 2.
2 Brian B. SCHMIDT, Canaanite Magic vs. Israelite Religion: Deuteronomy 18 and the Taxonomy of Taboo. In. MIRECKI, Paul and MEYER, Marvin. (Ed.) Magic and ritual in the Ancient World. Leiden : Brill, 2002, p. 242-259, p. 242.
3 Thomas W. OVERHOLT, Cultural anthropology and the Old Testament, Minneapolis : Fortress, 1996, p. 69-73.
4 Joanne Kay KUEMMERLIN-MCLEAN, Divination and magic in the religion of Ancient Israel , p. 84.
5 Frederick CRYER, Divination in Ancient Israel and its Near Eastern Environment , p. 258.
6 Richard A. HENSHAW, Female and Male. The cultic personnel, p. 174.
7 Luis Alonso SCHÖKEL, Dicionário bíblico hebraico-português. P. 202-203.
8 Richard A. HENSHAW, Female and Male. The cultic personnel, p. 171; Joanne Kay KUEMMERLIN-MCLEAN, Divination and magic in the religion of Ancient Israel , p . 83.
9 Luis Alonso SCHÖKEL, Dicionário bíblico hebraico português, p. 32.
10 Harry A. HOFFNER, bAa , p. 140-142.
11 A análise deste texto está baseada, principalmente, nos seguintes comentários: Luiz José DIETRICH, Shigeyuki NAKANOSE, Francisco OROFINO. Primeiro livro de Samuel: Pedir um rei foi nosso maior pecado; Athalya BRENNER, A mulher israelita; José Luís SICRE. Profetismo em Israel ; Diana Vikander EDELMAN, King Saul in the Historiography of Judah, p. 238-251.
12 David Toshio TSUMURA, The interpretation of the Ugarit Funerary Text, p. 55.
13 Patrik MILLER, The Religion of Ancient Israel , p. 72.
14 Jean-Michel de TARRAGÓN, Witchcraft, magic, and divination in Canaan and ancient Israel , p. 2075.
15 Frederick CRYER, Divination in Ancient Israel and its Near Eastern Environment , p. 247-248.
16 Tzvi ABUSCH, Some reflections on Mesopotamian Witchcraft, p. 22 “... witchcraft itself originally belonged to the popular level of Mesopotamian culture and only eventually became part of the domain of the temple exorcist. In the popular form, the ‘witch’ is not of necessity an evil being and doer of illegal acts but may in fact perform various magical acts (both normative and non-normative forms of witchcraft) on behalf of others and even against ‘evil’ witches. In this popular form, the ‘witch’ seems to exhibit associations with ecstatic types of practioners. Such associations may well be significant, for they recall the occasional coalesce of peripheral possession and witchcraft. In certain social circumstances, thus the same individual may both utilize spirit possession and be employed as an exorcist but then also be labeled as a witch.
17 Joanne Kay KUEMMERLIN-MCLEAN, Divination and magic in the religion of Ancient Israel , p. 34.
18 Gabriella FRANTZ-SZABÓ, Hittite witchcraft, magic, and divination, p. 2007. “ … the course and position of heavenly bodies, eclipses of the sun and the moon, the blowing of the wind, the flight of the birds, the utterances of animals as well as of humans, dreams, monstrous births, or the behavior of sacrificial animals.”
19 Walter FARBER, Witchcraft, magic, and divination in ancient Mesopotamian, p. 1895.
20 Walter FARBER, Witchcraft, magic, and divination in ancient Mesopotamian, p. 1898.
21 J. F. BORGHOUTS, Witchcraft, magic, and Divination in ancient Egypt , p. 1775-1779.
22 J. F. BORGHOUTS, Witchcraft, magic, and Divination in ancient Egypt , p. 1779.
23 J. F. BORGHOUTS, Witchcraft, magic, and Divination in ancient Egypt , p. 1779. “One purpose of the spells was to turn the deceased into another being, a spirit (’h), who belonged to the world of the divine where all forces of nature came together. This transformation, which took place in a world where the conditions of existence were completely different and even the food the deceased needed was symbolic, was achieved by means of a vast range of spells and rituals. Many of these were performed during burial ceremonies, in which vast numbers of hypothetical modes of being and relationships were evoked.”
24 J. F. BORGHOUTS, Witchcraft, magic, and Divination in ancient Egypt , p. 1784.
25 Gabriella FRANTZ-SZABÓ. Hittite witchcraft, magic, and medicine, p. 2008.
26 James Carrol MOYER, The concept of ritual purity among the Hitites, p.70-72; Gabriela Frantz-SZABÓ. Hittite witchcraft, magic, and medicine, p. 2011.
27 Gabriella FRANTZ-SZABÓ. Hittite witchcraft, magic, and medicine, p. 2018.
28 Jean-Michel de TARRAGON, Witchcraft, magic and divination in Canaan and Israel , p. 2071.Divination is a common practice in the ancient Near east, and so it is natural to find it in the Phoenician-Canaanite world as well as in the broader context.” “Unlike the Mesopotamian, the Hebrews and the Canaanites of Palestine produced no corpus specifically dedicated to divination.”
29 Brian B. SCHMIDT, Canaanite Magic vs. Israelite Religion, p. 253. “The remaining four, soothsaying, sorcery, divining, and charming, were not attested in pre-exilic texts. This might indicate that while the professions were compatible with earlier forms of Yahwism (admittedly the text are silent on this point), they came to pose a threat to dtr ideology only by the exilic period or thereafter. When they do show up in later dtr texts or texts influenced by dtr ideology, they are depicted as illicit practices and outlawed.”
30 Brian B. SCHMIDT, Canaanite Magic vs. Israelite Religion, p. 259.
31 Thomas H. OVERHOT, Prophecy and divination, p. 126.
32 Thomas H. OVERHOT, Prophecy and divination, p. 141.
33 Robert R. Wilson. Profecia e sociedade no antigo Israel. São Paulo : Paulinas, 1993, p 152.
34 Stevan DAVIES L. Jesus, the healer. Possession, trance, and the origins of Christianity. New York : Continium, 1995. p. 81

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Jesus de Nazaré condenado à Morte, acusação: MAGIA

Morte e vida “severina” de Jesus: um camponês galileu na “cruz” da história
A tese que quero defender hoje é simples, e ao mesmo tempo, marcada por uma certa ousadia hermenêutica, que como toda ousadia, e toda hermenêutica, precisa e muito da benevolência dos ouvintes.

A tese é que, se olharmos para a narrativa do julgamento e morte de Jesus, existem evidentes sinais de que, em última instância, é a magia dele o motivo mais importante de acusação e condenação à morte.

Mas antes de mergulhar propriamente na tese que proponho, me sejam permitidas 3 (três) premissas, à moda de introdução.

A primeira diz respeito, como não podia ser diferente, ao título de minha fala, e à sua referência ao celebre poema de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina:
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos

1 Este texto foi originalmente apresentado no I Seminário Internacional Jesus Histórico, no Rio de Janeiro, 16-18 de Outubro de 2007, Universidade Federal do Rio de Janeiro. E, por sua vez, é uma re-elaboração de um texto anteriormente publicado no livro CHEVITARESE, André & CORNELLI, Gabriele & SELVATICI Monica. Jesus de Nazaré: uma outra história. São Paulo, FAPESP / Annablume, 2006.

iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia

A idéia espero possa ser compreendida da maneira que eu gostaria, isto é: a narrativa da morte de Jesus é aproximável àquela do retirante do poema, num contexto de extrema pobreza, onde se “morre de velhice antes dos trinta”, e “de fome um pouco todo dia”. É neste contexto, que é tanto antigo e galileu, como escandalosamente contemporâneo, que a narrativa da morte do mago e curandeiro Jesus de Nazaré assume um sentido mais próprio. Defendo assim, contra qualquer tentativa de uma historiografia positivista e presentista, que o lugar inicial da pesquisa, a declaração de intenções, a hermenêutica é necessária à honestidade da mesma. É aqui, portanto, in terra brasilis, que estas próximas palavras encontram seu lugar e seu mais profundo sentido.

Uma segunda premissa, diz respeito à intuição fundamental do texto, que me veio de minha frequentação tanto dos livros do aqui presente Prof. Dominic Crossan, como, de maneira mais incisiva, das pesquisas de um eminente biblista, infelizmente pouco trabalhado por aqui, que é Morton Smith. Falecido em 1991, tem sua obra reeditada pelo discípulo Shaye Cohen. Foi professor da Columbia University por muitos anos, e antes, nos anos ´40, foi aluno de Cadbury (de Novo Testamento), de Wolfson (Judaísmo) e de Nock (religiões greco-romanas), sempre em Harvard. E aluno de Gershom Sholem (misticismo judaico) em Jerusalém. Seu livro talvez mais célebre é Jesus, the Magician. E a este livro extraordinário, devo muito.

Uma terceira premissa tem a ver com a compreensão da magia que defendo aqui.

E para isso, não encontro melhor ponto de partida que uma citação do Prof. Crossan:
"A magia está para a religião assim como o banditismo está para a política. Enquanto o banditismo contesta a legitimidade do poder político, a magia contestaa do poder espiritual. Tanto no mundo antigo quanto no moderno pode-se fazer uma distinção entre magia e religião através de definições prescritivas e políticas, mas não através de descrições neutras e objetivas. A religião é magia oficial e aprovada; a magia é uma religião extra-oficial e censurada."

Não acrescento mais. A questão parece-me clara. E fecha o círculo das três premissas.

Vamos à exegese do bloco narrativo da paixão.

“Banca o profeta!”

Da mesma forma que Herodes com relação a João Batista, as autoridades religiosas de Jerusalém temem uma reação popular contra a prisão de Jesus:
[Os sumos sacerdotes e os fariseus] procuravam prendê-lo, mas tiveram medo das multidões (evfobh,qhsan tou.j o;clouj), pois elas o consideravam como profeta (profh,thn).
Aqui o termo profhth,j, com o qual Jesus é nomeado pelas multidões, é significativo.

De qual profecia está se falando neste caso? Com que tradição profética Jesus é identificado pelas multidões? Como veremos em detalhes mais adiante, o conjunto das tradições sobre o Jesus histórico parece indicar que os modelos proféticos do galileu Jesus são Elias e Eliseu, profetas da tradição popular do Norte, magos e taumaturgos.

Nos escárnios dirigidos contra Jesus, preso, pelos guardas do Sinédrio, volta o tema da profecia:
Alguns puseram-se a cuspir nele, a velar-lhe o rosto, a dar pancadas e dizer-lhe: “Banca o profeta!” (profh,teuson).
neste sentido a aguda comparação de J. D. Crossan, O Jesus Histórico, pp 174-177.

Na versão mateana:
Então eles lhe cuspiram no rosto e lhe deram pancadas; outros o esbofetearam. Disseram eles: “Banca o profeta (profh,teuson) para nós, Messias: quem foi que te bateu?”.

É subentendida, em ambas as versões dos escárnios, a fama de Jesus como profeta adivinho. A profecia que lhe é cobrada neste momento é a da adivinhação.

Não parece um detalhe privado de significado o fato de Mateus citar o escárnio quem foi que te bateu, dirigido contra Jesus, sem preparar e explicar isso narrativamente com o encobrimento do rosto de Jesus, como na versão marcana. Se este pormenor deve-se provavelmente a um esquecimento de Mateus, confirmando mais uma vez sua dependência em relação a Marcos, é um fato que a expressão banca o profeta! – e todo o sentido de escárnio com relação às reais capacidades proféticas de Jesus – não é esquecida.

O que esta memória parece indicar é que a profecia de Jesus deveria ser compreendida pelos contemporâneos como adivinhação ou prognóstico.

A acusação pela qual Jesus é levado até o governador romano Pilatos é a seguinte:
Se este indivíduo não tivesse praticado o mal (kako.n poiw/n), porventura o entregaríamos a ti?9

Para um estudo sistemático dos escárnios contra Jesus, Raymond E. Brown (The Death of the Messiah: a Commentary on the Passion Narratives in the Four Gospels. New York, Doubleday, 1994, pp.568-586; 863-877). O autor pretende fundamentalmente distinguir os diferentes motivos dos escárnios dos judeus (por ser um falso profeta) e dos romanos (por ser um pretenso “rei dos judeus”), cf. p. 569. A distinção de R. Brown confirmaria assim a nossa suspeita com relação ao fato de que, para os interesses do judaísmo oficial, é a imagem de um Jesus “falso profeta” a que mais incomoda. Enquanto o problema de Jesus como “rei dos judeus”, que perpassa também todas as narrativas da paixão, seria mais uma representação da acusação do poder romano. A acusação de praticar o mal é, claramente, uma acusação de magia.

A prisão de Jesus no horto das Oliveiras, segundo a versão lucana, acontece num clima de demonstração de poderes mágicos: Jesus cura a orelha do servo do Sumo Sacerdote decepada por um de seus discípulos.

Ao longo das narrações da assim chamada paixão de Jesus, emergem vários indícios, nos detalhes esquecidos e nas contradições da forte armação querigmática, de que a acusação contra ele está ligada de alguma forma à sua prática mágica.

“Destruirei este templo”
Um dos temas recorrentes nas narrativas de acusação é o de Jesus ter prenunciado que iria destruir o templo. Uma breve comparação entre as versões marcana e mateana (Lucas não recebe esta acusação) mostra um detalhe significativo:

Marcos e Mateus

Nós o ouvimos dizer: eu destruirei este templo (nao.n tou/ton) feito por mãos de homem, e, em três dias, construirei outro, que não será feito por mãos de homem (avceiropoi,hton).12

Este homem disse: “Posso destruir o santuário de deus (to.n nao.n tou/ qeou) e reconstruí-lo em três dias”.

Lc 22, 51: mas Jesus tomou a palavra e disse: “Deixai fazer, até isso”. E tocando-lhe a orelha (a`ya,menoj tou/ wvti,ou), curou-o (iva,sato auvto,n))

Para uma discussão mais aprofundada sobre essa complexa tradição cf. Raymond E. Brown, The Death of the Messiah, pp. 264-293. Ainda que a maioria dos comentadores não reconheça nenhuma probabilidade histórica numa tradição tão bizarra como a do corte da orelha do servo, chama atenção o comentário naïf de Latourelle:
“Se a história dessa cura fosse um acidente isolado no evangelho, eu teria problemas em aceitá-la. Porém, no contexto da vida de Jesus, creio apenas que não é impossível”.

Mesmo que para a economia narrativa do julgamento de Jesus essa acusação não seja decisiva (pois, comenta Marcos, os acusadores não concordavam em seu testemunho), parece sê-lo para a compreensão de qual podia ser o incômodo que a figura de Jesus criava para as autoridades religiosas de Jerusalém.

Nesse sentido, a versão originária marcana, da qual com toda probabilidade Mateus depende, parece representar de maneira mais viva as palavras de um homem divino galileu na frente do templo de Jerusalém.

Enquanto em Mateus o templo é chamado de to.n nao.n tou/ qeou, “o” templo de deus, em Marcos o templo é nao.n tou/ton, este templo aqui. Se para Mateus o importante é deixar claro que Jesus afirma ter eventualmente o poder sobre o templo de Jerusalém, reconhecido como templo de deus, para Marcos a questão é mais profunda: Jesus mostra a intenção clara de construir um novo templo, diferente deste aqui. E a diferença está no termo avceiropoi,hton, não feito por mãos de homens.

Essa afirmação de Jesus em Marcos, pela qual de fato está sendo acusado, remete diretamente para um paralelo de extremo interesse na obra enumerada entre as obras apocalípticas intertestamentárias, e que recebeu o nome de Testamento de Salomão.

Narra-se aqui a construção do templo de Jerusalém pelas mãos dos demônios, sujeitados pelo poder do anel de Salomão. A obra, repleta de tradições ligadas à magia popular, como simpatias e palavras mágicas, na linha da literatura dos PMG, deve ser considerada como um paralelo histórico-literário central para entender a origem hermenêutica do tema da destruição do templo e da construção de um templo avceiropoi,hton.

Se entrarmos diretamente na discussão textual sobre o Testamento de Salomão, a presença de temas apocalípticos e mágicos na narração da construção do templo pelos demônios aponta para uma tradição de origem israelítica e popular, provavelmente galiléia.

O fato de que Lucas não recebe essa tradição não significa que ele não compreenda esse conflito. O mesmo é de fato remetido para Atos, na boca de um outro condenado, Estevão: “O Altíssimo não habita mansões construídas pela mão dos homens”

Assim, se a afirmação da destruição do templo caberia muito bem na boca de um profeta-santo Galileu,16 mais ainda deveria estar entre as tradições do Jesus histórico a intenção da construção de um templo avceiropoi,hton¸ isto é, fruto da magia xamânica, como no caso de Salomão.

Dessa forma, a acusação contra Jesus por ter afirmado querer destruir e reconstruir o templo, antes e mais do que uma acusação de rebeldia político-religiosa, seria uma acusação de xamanismo e prática mágica.

Interessante notar que o mesmo tema reaparece novamente nos escárnios atribuídos por Marcos e Mateus a quem passava aos pés do crucificado.

Os transeuntes o insultavam, meneando a cabeça, e diziam: “Olá, tu que destróis o templo e o reconstróis em três dias”.

Os transeuntes o insultavam, meneando a cabeça, e dizendo: “Tu que destróis o templo e o reconstróis em três dias...”.

Jesus é reconhecido aqui como “aquele que disse que ia destruir o templo e reconstruí-lo em três dias”. Aparentemente, um indício de que a tradição devia ser muito conhecida. O escárnio acontece por um motivo muito simples: não conseguir demonstrar em próprio favor seus poderes mágicos. Não consegue se libertar, como irá construir o templo em três dias?

"Filho de deus”

Para o termo Geza Vermes, Jesus, o judeu, pp. 64-86. Com esta terminologia Geza Vermes quer traduzir o termo hassid. O termo hassid, porém, não me parece absolutamente adequado, por ser característica central dos hassidim a obediência à Lei. Coisa que não parece estar absolutamente entre as prioridades de figuras religiosas outsiders como a de Jesus.

Segundo a estrutura interna das narrativas sinóticas da paixão, a acusação decisiva, da qual depende a condenação de Jesus à morte, é a de ter se autoproclamado “filho de deus”.

Na versão marcana:
O sumo sacerdote o interrogava, dizendo: “És tu o messias, filho de deus bendito? (Su. ei= o` Cristo.j o` ui`o.j tou/ euvloghtou/*)”. Jesus disse: “Eu sou (VEgw, eivmi), e vereis o Filho do homem assentado à direita do Todo-poderoso e vindo com as nuvens do céu”.

A resposta de Jesus tem o tom de uma auto-revelação. Proclamando-se “filho de deus” e citando o Salmo 110, 1 (em destaque na tradução acima) Jesus assina sua condenação. De fato:
O sumo sacerdote rasgou as vestes e disse: “Que necessidade temos ainda de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia (blasfhmi,a). Que vos parece?”. E todos o condenaram como digno de morte.

Por que exatamente esta expressão, filho de deus, na boca de Jesus, é considerada uma blasfhmi,a e é causa direta de sua condenação a morte?

Primeiramente, é preciso notar o seguinte: a expressão filho de deus não é muito comum no judaísmo como referência à figura do Messias. Nos mesmos sinóticos a expressão aparece normalmente no contexto da atividade taumatúrgica de Jesus. Isto leva autores como Morton Smith e Georg Luck a sugerir que a expressão “filho de deus”, portanto, estaria ligada ao âmbito da magia.

Mateus e Lucas resolvem ambos deixar a auto-proclamação de Jesus na ambigüidade: “Tu o dizes” – é a resposta de Jesus em Mt 26, 64. Segundo a Bíblia TEB Jesus exprime-se com uma reserva que deixa os interlocutores em face à sua própria pergunta (TEB, Mc 14, 62: nota o).

De fato, são especialmente os demônios que, nos sinóticos, chamam Jesus de filho de deus. Os seus discípulos o reconhecem como tal depois de seus milagres. Já os adversários recusam tal título, pois não se aplicaria àquele que consideravam como um mago e feiticeiro, possuído por um espírito impuro.

Particularmente significativo é o uso que Marcos faz da expressão. A proclamação de Jesus como filho de deus é mantida em segredo, a ser revelado somente nesta confrontação final com os sumos sacerdotes. A expressão aparece somente cinco vezes em todo o evangelho. Excluindo o cabeçalho (1, 1), a primeira vez que o termo aparece é na boca dos demônios em 3, 11, no bloco de tradições sobre a atividade mágica de Jesus que, num crescendo de intensidade, apresenta as reações à mesma atividade das diversas categorias presentes. Portanto a proclamação de Jesus como filho de deus está na boca dos demônios, como aquela de ter Beelzebul está na boca dos inimigos. Tanto os demônios como os inimigos parecem reconhecer sua força mágica, sua identidade de filho de deus.

E se no julgamento, em Mc 14, 61, é na boca do sumo sacerdote que a expressão filho de deus é colocada, a última vez que aparece é na boca do centurião romano, em Mc 15, 39.

Jesus, portanto, é proclamado filho de deus pelos demônios, pelo sumo sacerdote e por um soldado romano. Os três são paradigmas de poderosos inimigos do povo, na perspectiva galiléia e popular marcana.24

A confirmação desse sentido mágico da expressão “filho de deus”, no interior da literatura mágica helenística, a expressão “filho do deus vivo” era um dos títulos mais usados no politeísmo oriental e greco-romano, autoridades, heróis e milagreiros eram chamados de “filho(s) de deus.

Mesmo na literatura judaica bíblica ou extra-bíblica anterior ou contemporânea ao Novo Testamento, o “filho de deus” como título para um ser humano é extremamente raro e, de todo modo, limitado a uma obscura passagem dos Rolos do Mar Morto”). O trecho obscuro de Qumram ao qual o autor se refere é 4Q246. O mesmo vale para Mc 5, 7.

Considerando esta relação estreita entre a proclamação da figura de Jesus e seus milagres, Theissen fala de um arco aretológico em Marcos: “All the small units and the overall structure of the gospel can come together at this one point. Put in form of critical terms, wonder and acclamation motifs, together with the contrasting motif of secrecy, are structural motifs of overarching composition in Mark” (The Miracle Stories…, p. 212.

Tradução:
“Todas as pequenas unidades e a estrutura geral do evangelho encontram-se neste ponto. Colocados de forma crítica, os motivos de milagre e aclamação, juntamente com o motivo contrastante do segredo, constituem motivos estruturais do arco redacional de Marcos”). Usados, uma das forças mágicas mais poderosas. Há, nesse sentido, um interessantíssimo paralelo entre a iniciação xamânica de Jesus no batismo e os PMG. Aqui a descida do espírito é seguida por uma proclamação normalmente considerada como uma investidura messiânica: Ou-to,j evstin o` ui`o,j mou..., este é o meu filho."

Segundo Bultmann, a tradição do batismo deve ser muito antiga, por causa de sua inclusão tanto em Marcos como em João. Contradiria a teologia dos dois evangelhos, sendo assim preservada por eles como um fóssil inconsistente. Por outro lado, a tradição pode ser considerada como uma apologia da magia de Jesus: ele é um homem divino, um xamã, portanto está possuído (não tem como negá-lo!), mas pelo espírito santo de deus, e não por um espírito impuro.

Usando a terminologia acima, portanto, Jesus é filho, sim, mas de deus

Cabe notar que se a tradição do batismo é antiga, a acusação contra Jesus, formulada no Sinédrio pelo sumo sacerdote, nos termos acima analisados, de “ser filho de deus”, deve sê-lo ainda mais. Pois a apologia, logicamente, segue sempre a acusação, nunca a precede.

Para concluir o círculo comparativo, é preciso destacar o fato de exemplos de uma relação íntima do xamã com seu deus-pai estarem presentes até na literatura rabínica: as duas únicas vezes em que o termo Abbá, pai, é referido a deus em toda a literatura rabínica encontram-se no Talmude da Babilônia. Ambas as referências estão em tradições ligadas à figura de Honi há-Meaggel (o traçador dos círculos).

O contexto talmúdico é de magia, revelando inclusive, na figura de Honi, a atitude de um filho mimado por um pai que faz tudo o que o filho pede, indicando assim uma relação toda privilegiada e quase que de De Honi ha-Meaggel (o traçador de círculos) tratam duas fontes: a Mixná (Taanit) e uma memória de Flávio Josefo (que prefere chamá-lo de Onias).

A força, a capacidade especial atribuída a Honi é aquela de fazer chover. Esta habilidade chama diretamente à memória a figura de Elias. Aquele de Honi é o único milagre registrado na Mixná, código oficial da lei rabínica, composto na Palestina em torno do ano 200 d. C. Segundo o Talmude da Babilônia Honi se comportava diante de deus como um filho petulante e mimado: “Assim ele lhe disse: Pai [Abba], banha-me em água morna [e ele obedece], lava-me em água fria [e ele obedece], dá-me nozes, amêndoas, pêssegos e romãs, e ele lhe deu tudo”.

Controle ou coação da vontade do pai pelo filho. Algo pelo qual a magia é normalmente condenada.

A mesma expressão aramaica abbá é colocada na boca de Jesus no Getsêmani por Marcos:
“Abbá, tudo te é possível, afasta de mim este cálice!”.

Segundo Raymond Brown seria esta a única expressão aramaica transliterada pelos evangelhos e, como no caso de Honi acima citado, a expressão deveria ser a maneira mais comum pela qual uma criança dirigia-se ao seu pai.

A trama redacional de Marcos e a construção da tradição do batismo com relação à definição de Jesus como filho de deus apontam, mais uma vez, para uma tentativa de defender a figura de Jesus das acusações de magia. Desde sua iniciação mística no batismo até o julgamento, Jesus é filho de deus, não um mago ou charlatão.

Delito religioso

A maioria dos estudiosos compreende como causa da morte de Jesus a complexa trama político-religiosa na qual o itinerante galileu e seu movimento haviam se embatido nos anos 30 do I século, entre movimentos messiânicos-milenaristas e ocupação romana.

J. P. Meier de fato afirma:
É significativo que quando examinamos as várias tradições do julgamento de Jesus, e as diversas acusações assacadas contra ele, praticamente não há indicações de os milagres terem sido a razão principal de sua condenação e execução. (...) Quando ao final chegamos à prisão e ao julgamento de Jesus, nada nos diz que os milagres foram um motivo de sua execução. E chega ao ponto de quase reclamar dos evangelhos, por haver nelesum curioso senso de desconexão entre um elemento importante da narrativa do ministério público de Jesus (ou seja, os milagres, às vezes desencadeando planos para matar Jesus) e as acusações contra ele em seu julgamento.

Até mesmo Morton Smith, que traça um coerente perfíl de Jesus mago em sua já citada obra principal, Jesus, the Magician, não considera as acusações de magia como centrais frente às tradições do julgamento e: Enquanto eles todos [os sinóticos] relatam que sua pretensão de ser um (filho de) deus foi um dos fatores de sua perseguição, e João reporta que ele também foi acusado de magia na frente de Pilatos (18, 30), estas não parecem ter sido as acusações decisivas. A afirmação de João segundo a qual os sacerdotes de Jerusalém foram motivados, primeiramente, pelo medo de um levante messiânico (11, 48ss.), e a concordância de todos os evangelhos de que Jesus foi morto como um pretenso “rei dos judeus”, não deixa dúvidas sobre as causas da crucifixão.

Mas é exatamente a indicação, na cruz romana, de Jesus como “rei dos judeus” – após todos os indícios de acusação de magia até aqui levantados – que parece, ao contrário, significativa, e me faz tentar aqui um certo distanciamento da interpretação majoritária. Parece extremamente relevante, para compreender o motivo da acusação contra Jesus, focalizar a atenção sobre a atitude de Pilatos. Jesus lhe é apresentado como o “rei dos judeus”, e, portanto, fundamentalmente, como um agitador político ou um profeta milenarista, à maneira de muitos outros naquela época. Mas, após o interrogatório:

Pilatos disse aos chefes dos sacerdotes e às multidões: não encontro neste homem motivo algum de condenação.

Se é verdade que os paralelos de Mateus e Marcos não registram essa fala, mas simplesmente que Pilatos ficou muito impressionado por ele, na frente da multidão este não consegue realmente ver algum delito nas ações de Jesus, e pergunta: Que mal fez ele? (ti, ga.r kako.n evpoi,hsen*).

A culpa de Jesus não podia ser diretamente política, pois Pilatos, que representa o maior poder político na região, não consegue entender a atividade de Jesus como perigosa para os interesses romanos.

Outros interesses e poderes, os do Sinédrio, por exemplo, deviam se sentir ameaçados pelos poderes de Jesus. A ameaça não devia ser propriamente política, pois ao contrário teria atingido indiretamente Pilatos.

Qual tipo de ameaça não atingiria, de fato, os romanos? Uma ameaça interna ao sistema religioso judaico, provavelmente. Uma ameaça de heresia, é possível. Ou a do grande inimigo de todo sistema religioso estabelecido: a magia popular, extra-oficial.

Sobre agitadores políticos e profetas milenaristas: cf. Horsley & Hanson. Bandidos, profetas e messias: movimentos populares no tempo de Jesus. São Paulo, Paulus, 1995.

Sobre a figura histórica do governador Pilatos, cf. Helen K. Bond. Pontius Pilate in History and Interpretation. Cambridge, Cambridge University Press, 1998.

A possível confirmação disso é o fato que a acusação contra Jesus teria partido das autoridades judaicas oficiais. Sobre isso tanto os quatro evangelhos como o Testimonium Flavianum parecem concordar. Cf. J. P. Meier. Um judeu marginal. Vol. II, III, pp. 146-147. O “problema Jesus” – usando uma expressão do mesmo Meier – devia ser compreendido muito melhor pelas autoridades judaicas oficiais do que pelo poder romano.

O que foi falado acima com relação à distinção de Raymond Brown entre os motivos dos escárnios dos judeus e dos romanos. Não quero, porém, de maneira alguma negar nem a relevância política do movimento de Jesus nem o interesse lucano em salvar os romanos. Cf. Klaus Wengst. Pax Romana: pretensão e realidade. Paulinas, São Paulo, 1991.

De fato, quando Jesus é enviado para Herodes, por estar sob a jurisdição deste mesmo sendo galileu, lemos:
Ao ver Jesus, Herodes se alegrou grandemente, pois fazia muito tempo que desejava vê-lo, por causa do que ouvia dizer de Jesus, e esperava vê-lo fazer algum milagre (ti shmei/on).

A expectativa por milagres por parte de Herodes, tetrarca da Galiléia, e portanto presumivelmente bem informado sobre o nazareno itinerante Jesus, deve ser considerada como um sinal da fama deste: o que Herodes ouvira dizer sobre Jesus era, fundamentalmente, dos seus milagres.

No coração do processo de julgamento de Jesus, mais um indício precioso sobre qual seria a grande fama do homem divino Jesus.

A fama de milagreiro de Jesus aparece novamente na cruz. Jesus é mais uma vez escarnecido, sendo desafiado a demonstrar seus poderes mágicos:
“Salva- te a ti mesmo, descendo da cruz!”(...) Igualmente, os sumos sacerdotes e os escribas escarneciam uns com os outros: “Ele salvou os outros, e não pode salvar a si mesmo!”.

Jesus é desafiado a usar seus poderes mágicos, já demonstrados salvando os outros (isto é, curando, ressuscitando etc.), salvando a si mesmo e descendo milagrosamente da cruz. Jesus é desafiado a provar que seus poderes não são uma farsa ou charlatanismo. Mais uma vez, no ápice da condenação de Jesus, um sinal da popularidade de sua magia.

39 Lc 23, 8. Sendo este o único testemunho do encontro de Jesus preso com Herodes (Mt e Mc não recebem esta suposta tradição) é provável que o encontro com o terceiro poder da região, depois de Pilatos e o Sinédrio, obedeça mais aos interesses teológico-querigmáticos de Lucas, como também demonstraria a paralela citação em At 4, 27. De toda forma, a expectativa de milagres de Herodes pode ser considerada indicativa da fama geral (e talvez especificamente galiléia) do homem divino Jesus.

“Eloi, Eloi, lamá sabactáni”

Para concluir esta análise das narrativas de julgamento e morte de Jesus, é extremamente significativa a confusão que os que estão assistindo a sua agonia fazem quanto à interpretação do grito de Jesus antes de morrer na cruz.

Na versão marcana:

E às três horas, Jesus gritou com voz forte “Eloi, Eloi, lamá sabactáni”, que significa: “Meu deus, meu deus, por que me abandonaste?”. Ao ouvi-lo, alguns dos que estavam diziam: “Está chamando Elias!” (...) “Esperai, vejamos se Elias virá tirá-lo daí”.41