quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Santo Epifânio, o caçador e inventor de heresias

Evangelhos Gnósticos de Nag Hammadi

No princípio de seu volumoso livro contra as heresias, Santo Epifânio (morto em 403) transcreve uma lista impressionante – e, no entanto, incompleta, como ele próprio esclarece – de seitas temíveis que ameaçam a unidade da Igreja: os simonianos, os menandrianos, os saturnilitas, os basilidianos, os nicolaítas, os estratióticos, os fibionitas, os zaqueos, os borboritas, os barbelitas, os carpocracianos, os cerintianos, os nazarenos, os valentinianos, os ptolomeanos, os marcosianos, os ofitas, os cainitas, os setianos, os arcônticos, os cerdonianos, os marcionitas, os apelianos, os encratitas, os adamitas, os melquisedecianos.... (e não reproduzimos de forma completa esta enumeração interminável). Em todos os Padres da Igreja que combateram aos gnósticos (gnostikói), falsos cristãos que pretendiam possuir um conhecimento (gnose) maravilhoso, encontramos o mesmo quadro: o de movimentos heréticos que se diversificam, ramificando-se ao infinito como fungos venenosos, em inumeráveis seitas e subseitas. Santo Ireneu (bispo de Lion a partir de 177) observa, referindo-se aos valentinianos, que é até "impossível encontrar dois ou três que digam o mesmo a respeito do mesmo tema; contradizem-se de maneira absoluta, tanto no que se refere às palavras como no referente às coisas".

Muitos historiadores consideram também o gnosticismo como um monumento de fantasias extravagantes, de incoerências, de mitos estranhos, de fantasmagorias desprovidas de todo interesse filosófico e que, em definitivo, não constituem mais que um ramo particularmente degenerado do inquietante sincretismo religioso dos séculos primeiro e segundo de nossa era.

Mesmo que o ponto de vista dos Padres da Igreja seja ainda bem amplo, o gnosticismo adquire um caráter completamente diferente nos "ocultistas" e "teólogos" contemporâneos. Em lugar de hereges perversos e delirantes, encontramos homens possuidores de iniciações prestigiosas, iniciados nos mistérios orientais, donos de conhecimentos ocultos ignorados pelo comum dos mortais e transmitidos secretamente a um número limitado de "mestres". A gnose é o conhecimento total, incomensuravelmente superior à fé e à razão. O gnosticismo estará unido então à sabedoria primordial original, fonte das diversas religiões particulares.

O historiador das religiões mantém-se cuidadosamente afastado dos pressupostos dogmáticos ou racionais. Sua ambição não é refutar - ou provar - o gnosticismo, mas estudar a origem e o desenvolvimento das diversas formas históricas da gnose.

Os Gnósticos

A extrema diversidade das especulações gnósticas é inegável: "Seria mais exato falar de gnosticismos que do gnosticismo". A mesma diversidade existe no domínio do culto e dos ritos, onde as tendências mais ascéticas se opõem às práticas mais secretas: nos "mistérios" e nas iniciações dos gnósticos voltam a se encontrar os dois pólos extremos do misticismo.

É fácil descobrir, no entanto, um inegável "ar de família" entre os diversos gnosticismos, apesar das múltiplas divergências e oposições que eles manifestam.

Seja qual for o grau de dispersão de seitas e escolas (menos desmedido, entretanto, do que afirmam os heresiólogos, os quais parecem ter separado artificialmente ramos de um mesmo grupo e até graus de iniciação sucessivos), e ainda considerando que na maioria dos casos o epíteto gnostikói não é usado pelos próprios hereges, não é de nenhum modo arbitrário qualificar de gnósticas as idéias ou sistemas que apresentam as mesmas tendências características. Os historiadores modernos –indo mais longe que os heresiólogos – não duvidaram em generalizar o conceito de gnose fora do âmbito do cristianismo.

O estudo científico do gnosticismo cristão teve seus pioneiros: Chifflet, no século XVII; de Beausobre e Mosheim no século XVIII. Mas foi a princípios do século passado que se desenvolveu, com trabalhos de Horn, Neander, Lewald, Baur, etc. A importante Histoire critique du gnosticisme,de Jacques Matter (Paris, 1828; reeditada em Estrasburgo em 1843) constituiu durante muito tempo uma obra clássica. O autor define a gnose como "a introdução no seio do cristianismo de todas as especulações cosmológicas e teosóficas que tinham formado a parte mais considerável das antigas religiões do Oriente e que os novos platônicos tinham também adotado no Ocidente". Inumeráveis historiadores das religiões esforçaram-se depois em vincular as origens do gnosticismo cristão – este conjunto de doutrinas e de ritos que se nutrem de um fundo comum de especulações, imagens e mitos – com uma fonte anterior ao cristianismo. Assim, a gnose foi vinculada com o Egito, com a Babilônia, com o Irã, com as religiões de mistérios do mundo contemporâneo, com a filosofia grega, com o esoterismo judaico e até com a Índia. Longe de ser o resultado de uma reflexão espúria de certos espíritos sobre aspectos do cristianismo, o gnosticismo aparecerá finalmente, aos olhos do orientalista, como um fenômeno de "sincretismo", mais ou menos casual, entre o cristianismo e outras crenças profundamente alheias a este último. Os trabalhos dos especialistas alemães (Kessler, W. Brandt, Anz, Reitzenstein, Bousset ) se libertaram assim da perspectiva heresiológica no estudo das gnoses cristãs: "Falando com rigor, não são heresias imanentes ao cristianismo, mas os resultados de um encontro e de uma união entre a nova religião e uma corrente de idéias e de sentimentos que existia antes dela, ou que lhe eram primitivamente alheia e seguirá sendo em sua essência".Ouroboros

De umas três décadas para cá tende-se a dar o nome de "gnósticas" a outras correntes diferentes posteriores (maniqueísmo, catarismo): gnosticismos exteriores ao cristianismo (como o mandeísmo e o hermetismo stricto sensu); a alquimia; a Cabala judia; o ismaelismo e as heresias muçulmanas derivadas: algumas doutrinas "esotéricas" modernas.

Reagindo contra o "comparativismo", sem deixar de aproveitar suas descobertas, diversos especialistas na ciência das religiões (Hans Jonas, Karl Kerényi, Simone Pétrement, Henri-Charles Puech, G. Quispel...) abordaram o estudo do gnosticismo valendo-se do método fenomenológico: em lugar de insistir no detalhe das doutrinas, dos mitos e dos ritos, trata de pôr em destaque a atitude específica, as orientações espirituais características que os condicionam e destacam os grandes temas (expressados ou implícitos) que em última análise se acham por trás das idéias, das imagens e dos símbolos gnósticos.

Apesar dos gnosticismos serem muito diversos, o gnosticismo é uma atitude existencial completamente característica, um tipo especial de religiosidade. Não é arbitrário formular um conceito geral da gnose,"conhecimento" salvador que se traduz em determinadas reações humanas e sempre as mesmas. Se o gnosticismo não fosse mais que uma série de aberrações doutrinárias próprias de certos hereges cristãos dos três primeiros séculos, seu interesse seria puramente arqueológico. Mas é muito mais que isso: a atitude gnóstica reaparecerá espontaneamente, além de qualquer transmissão direta. Este tipo especial de religiosidade apresenta, inclusive, perturbadoras afinidades com algumas aspirações completamente "modernas".

O "gnosticismo" dos heresiólogos constitui o exemplo característico de uma ideologia religiosa que tende a reaparecer incessantemente na Europa e no mundo mediterrâneo, em épocas de grandes crises políticas e sociais.

A unidade da gnose postulada pelos "fenomenólogos" contemporâneos não é de modo algum a unidade que postulam os adeptos da teosofia e do esoterismo: nesta perspectiva especial, a gnose seria a fonte de todas as religiões e seu fundamento último. Para o grande "tradicionalista" francês André René Guénon (1886-1951) e seus discípulos, em todas as religiões se encontra a idéia de uma libertação metafísica do homem por meio da gnose, ou seja, por meio do conhecimento integral. Existe uma assombrosa universalidade de certos símbolos e de certos mitos: daí o postulado lógica de uma origem comum dos diferentes esoterismos religiosos que se expressam necessariamente através das grandes religiões "exotéricas" cujo núcleo constituem.

Do ponto de vista do historiador das religiões, a teoria de Guénon não pode, evidentemente, ser provada (nem, por outro lado, invalidada). É certo que as doutrinas esotéricas se parecem; mas para explicar estas convergências não há necessidade alguma de postular uma tradição primordial intemporal conservada por um ou vários "centros" de iniciação. Basta recordar esta lei redescoberta pelos "fenomenólogos": como o espírito humano reage da mesma maneira em condições semelhantes, não é estranho encontrar em diversas partes as mesmas aspirações. Também não há que passar por alto as filiações históricas, às vezes inesperadas.

"...Possui-se a gnose, conhecimento beatificador – diz-nos Paul Masson-Oursel – quando se distingue o absoluto, em suas profundidades, daquilo que o relativiza. Esta definição, que coincide com a dos "tradicionalistas", é demasiado geral: a salvação pelo conhecimento é uma aspiração que caracteriza numerosos movimentos religiosos – o budismo, por exemplo – que não se incluem usualmente no gnosticismo. Este último é um tipo muito especial de religiosidade que efetua algo assim como a síntese das aspirações "orientais" e "ocidentais". É comum que se estabeleça uma oposição, bem longe de corresponder sempre à verdade, entre o Oriente "metafísico" que aspira à libertação e o Ocidente "religioso" que aspira à salvação. O gnosticismo estabelece precisamente uma espécie de vinculação, de ponte entre as religiões, de forma "sentimental" e pessoal, e as religiões impessoais chamadas "metafísicas". O gnóstico parte – e isto é o que as importantes investigações de Henri-Charles Puech, membro do Instituto, professor do Collège de France, põem em evidência– de uma experiência totalmente subjetiva, para elevar-se através dela ao encontro de uma iluminação salvadora.Filósofo em meditação

A primeira parte deste livro determinará precisamente as características gerais de tal atitude (ou melhor, de toda uma série de atitudes): por meio de muitas citações (tomadas sobretudo do gnosticismo cristão, mas completadas mediante outros "testemunhos"), poremos em relevo tendências, aspirações e doutrinas completamente características. Na segunda parte, estudaremos a história das aspirações gnósticas, desde suas remotas origens pré-cristãs até suas assombrosas "reaparições" contemporâneas.

A modesta extensão desta obra nos impede de tratar certos problemas particulares; mas cremos ter mostrado todo o interesse histórico e filosófico das investigações relativas a um domínio que alguns autores ainda consideram como pitorescas extravagâncias. Ainda que muitos gnósticos falem uma linguagem desconcertante para o homem contemporâneo e parecem constituir, ao menos à primeira vista, um conjunto heterogêneo de grupos inumeráveis, sua atitude é no fundo muito moderna: apresentam-se como homens angustiados por sua condição de seres lançados no mundo e que, na fuga do mundo, crêem haver achado o modo de vencer esta angústia insuportável.


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