quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

¨É inútil tentar dissuadir racionalmente um homem de algo que ele não concluiu pela razão¨. Jonathan Swift escritor Irlandês

RELIGIOSIDADE E PSICOTERAPIA

O estudo das religiões pelos Psiquiatras é importante não só por serem elas manifestação de conteúdo puramente emocional mas também por atingirem a todo o ser humano com maior ou menor intensidade desde sua mais primitiva infância.

A fé, base da religiosidade, é puramente irracional. É uma confiança cega em um ou mais deuses ou santos. Ao religioso não é permitida a investigação ou dúvida a respeito de sua crença. E a crença, que nos é incutida desde a tenra idade, é difícil de ser encarada sob o ponto de vista especulativo. A leitura dos textos religiosos só pode ser feita tendo em vista que se trata de uma verdade revelada pelo deus em questão, comumente através de um profeta ou homem santo e a dúvida do crente, por si só, já consiste em uma blasfêmia.

Assim, ao abordarmos o tema devemos levar em conta o que nos dizia Jonathan Swift escritor Irlandês que viveu de 1667 a 1745: ¨É inútil tentar dissuadir racionalmente um homem de algo que ele não concluiu pela razão¨. Na minha opinião o termo ¨inútil¨ poderia ser substituído por ¨dificílimo¨.

Ao nascer, o ser humano se encontra em extremo estado de desamparo e dependência. Sua imaturidade é gritante, falta-lhe a mielinização das fibras nervosas piramidais, o que o deixa incapaz de se locomover e seus movimentos incoordenados são reflexos de automatismo e defesa. Diferentemente é o que ocorre com muitos outros mamíferos que logo ao nascer se levantam e vão em busca da teta para se alimentar e em poucas horas já podem correr fugindo do perigo.

Se não for socorrido por alguém, via de regra sua mãe ou substituta, o recém nascido humano morrerá em pouco tempo. No plano emocional, a necessidade de alguém que o cuide e proteja o acompanhará por toda a vida em maior ou menor grau.

Internamente, o "bicho homem" é um joguete de suas pulsões amorosas (libidinosas), por um lado, e agressivas (de morte), por outro.

Externamente, é cercado ora por uma natureza amorosa que lhe proporcionaágua, alimento, calor, proteção enfim, ora por outra que o ameaça constantemente com secas, enchentes, tremores de terra, vulcões, raios, perdas dos seus queridos, pela doença e pela morte.

A ignorância acerca de onde veio e para onde vai –- o futuro é uma outra incógnita - torna o ser humano carente de respostas que o tranqüilizem e apavorado diante do desconhecido. A falta de conhecimentos calcados na razão, devido à nossa ignorância, nos leva a procurar respostas fundamentadas na emoção, na fé, nas religiões. E poderíamos dizer, no "que bom se fosse assim ! É dificílimo suportar a nossa ignorância, o não saber ou o saber muito pouco sobre o mundo que nos rodeia e sobre nós mesmos. As religiões pretendem nos oferecer respostas ¨certas e indiscutíveis¨ através dos livros sagrados, e as dúvidas deixariam de existir trazendo-nos a ¨segurança e a tranqüilidade¨. Dizer ¨não sei¨, ignoro, é um golpe insuportável para o nosso narcisismo .

Cada cultura tem seus mitos e crenças para responder às interrogações que vão surgindo. Tentamos explicar a nossa origem e o nosso futuro construindo esquemas que nos proporcionem uma maior tranqüilidade frente ao desconhecido. O modelo utilizado é o humano: deve haver um pai e/ou uma mãe celestiais que nos criaram e que nos cuidam e cuidarão, e nos premiarão ou castigarão segundo nosso comportamento durante nossa vida. A incerteza, então, será substituída por um ilusória segurança. A comunicação com esses poderes, agora celestiais, será feita através de oráculos, de preces, através dos astros, das runas, dos búzios, das cartas ou mesmo das linhas das mãos. A maior parte das vezes com o auxílio de intermediários, profetas, sacerdotes ou guias que se comunicariam diretamente com os deuses.

A reação do ambivalente e desvalido ser humano começa por dissociar internamente o bom do mau. Num segundo tempo, se assim podemos dizer, projeta em lugar que julga seguro, para preservá-lo, tudo o que tem de bom e amoroso e, também, muito de sua onipotência narcísica.

A idéia de um ser poderoso, onipotente e sempre presente, que tudo sabe a nosso respeito e está sempre pronto a vir em nosso socorro como uma mãe ou um pai amorosos, encontra na figura de um deus, ou dos deuses, essa necessidade satisfeita.

Criamos então nesse lugar seguro, "nos céus", um ou mais deuses. E, como ficamos esvaziados, cada vez que precisamos de algo bom, pressurosos corremos ao deus para implorar, de volta, o que necessitamos.

O mesmo ocorre com nossos impulsos agressivos e destrutivos, com o que temos de mau: pomos lá fora numa figura de um deus do mal, um demônio, e o colocamos o mais distante possível: nos confins do inferno.

Assim a nossa "criança primitiva, interna" passa a vida a pedir, a implorar coisas boas, em forma de bênçãos, graças, aos céus, a seu deus ou a seus prepostos e a fugir do mal, do demônio, que a ameaça, interna e externamente.

Resumida e esquematicamente, é o que ocorre no psiquismo do ser humano.

Quando um líder poderoso e onipotente toma as rédeas de um clã, de um povo, se identifica com o deus que cria e a religião está em seu nascedouro. Ela corresponde a uma necessidade interna de se sentir seguro, protegido e amado. A mesma necessidade que tínhamos no início de nossas vidas e que continuamos a ter.

Assim, penso eu, a religião deve ser entendida como uma necessidade do plano emocional que encontra na ilusão uma relativa satisfação e segurança, pois, inclusive "consegue explicar" muitas interrogações até então sem resposta, tais como a nossa origem e nosso futuro, por exemplo.

Podemos comparar a necessidade da religião – e aqui vamos nos arriscar à uma analogia - com a necessidade de uma prótese. Ela funciona como funcionam os óculos, a bengala, a muleta para os que deles necessitam. Não há porque criticá-la ou depreciá-la. Na psicoterapia, seja ela de base analítica ou não, ela deve ser tratada como devem ser tratadas todas as inúmeras faces dos problemas vivenciais humanos. Ela deve ser examinada e compreendida mas nunca depreciada ou combatida. Tentar tirar a religião de quem dela necessita é condenar o crente à orfandade.

Além de uma sensação de segurança as religiões criam códigos de comportamento tentando estimular o que há de bom dentro e fora do homem e, assim levá-lo a fugir do mal, do demônio, exorcizando-o.

As religiões auxiliam o processo civilizatório criando obrigações e proibições procurando coibir os impulsos homicidas, os incestuosos, os canibalísticos, etc, com o fim de proporcionar uma vida em sociedade mais tolerável.

Na religião mosaica, por exemplo, base das outras duas maiores religiões do mundo ocidental atual, a cristã e a maometana, nota-se esse cuidado através dos mandamentos. Neles, o que não é proibido é obrigatório. A religião mosaica obriga o crente a cultuar um só deus, guardando o seu dia, e banir tudo que é mau: proíbe adorar outros deuses que não o considerado "único e verdadeiro", não nomeá-lo, a fim de não banalizá-lo. Ordena honrar pai e mãe com vistas à restrição do incesto. Proíbe fazer imagens e adorá-las, levantar falso testemunho, matar, roubar, cobiçar o que é de outrem e cometer adultério.

O homem, ao projetar na figura de um deus suas boas qualidades, também projeta sua onipotência infantil da qual, narcisisticamente, conserva boa dose pelo correr da vida.

O chefe do clã é o deus primitivo, já que se sente tão identificado com ele que fala em seu nome e se comporta frente aos liderados como um onipotente e todo poderoso deus. Assim também eram e são os profetas.

Vejamos o mito da origem do monoteísmo hebreu: Abrahão, patriarca da religião monoteísta, vem de uma cultura politeísta, na baixa Mesopotâmia, onde seu pai Taré era fabricante de ídolos. Abrahão liderava um clã de pastores nômades, e tinha poderes que iam até, se quisesse, matar seu próprio filho, oferecendo-o em holocausto aos deuses , como era usual entre os povos politeístas da região. Era ele o poderoso deus de seu clã. Em suas andanças pelo fértil crescente, rodeado de desertos, teve sua cobiça aguçada, manifestando seu desejo de ter para si e para os seus aquelas férteis terras pertencentes aos cananeus, cineus, ceneseus, cedmoneus, heteus, fereseus, refaim, amorreus, gergeseus e gebuseus. Expressou sua vontade de possuir essas terras, através de "um pacto com seu deus¨ (YHWH, Javé, El Shadai, Eloim, Adonai), mediante o qual a terra desses povos lhe é "prometida" por esse deus. (Gn.15-12-21). Sua parte no pacto era tomar esse deus como único e verdadeiro, banindo os outros deuses através da destruição de suas imagens, seus templos e inclusive de seus fiéis. Lembramos que pacto semelhante fez Constantino, quando adotou a fé e a cruz cristãs ("In hoc signo vinces"), ao receber a "graça" de derrotar Maxêncio, tornando-se senhor do Ocidente.

Voltemos a Abrahão: como selo desse pacto seu deus exigia a circuncisão de todo o macho de sua casa, dali por diante.

A religião entre os cananeus exigia o sacrifício das primícias, ou seja, aos deuses as primeiras colheitas, as primeiras crias do gado e também o primeiro filho homem. Na troca do politeísmo pelo deus único Javé, está incluído no pacto, embora não explicitado, que dali por diante o sacrifício humano seria substituído pela circuncisão, um sacrifício de sangue, mas bem menor. O que foi, indiscutivelmente, um avanço. Mas o monoteísmo se mostrou mais narcísicamente intransigente e despótico contra os outros deuses ordenando sua destruição. Deveriam ser destruídos não só as imagens como os templos dos que passaram a ser chamados ímpios, idólatras, -– como pejorativo — góis ou gentios. Os adoradores de outros deuses também deveriam ser destruídos.

Atitude semelhante e anterior ao monoteísmo hebreu foi a do faraó egípcio da XVIII dinastia, Amenophis IV (Akhnaton) ao tentar impor o monoteísmo a seu povo. Pretendendo substituir Amon, o deus maior entre os Egípcios e o séqüito de outros deuses menores, por Aton, ordenou eliminar todas as marcas dos deuses anteriores, destruindo tudo que os lembrasse.

Assim se apresentam os monoteísmos: ditatoriais e prepotentes em relação ao politeísmo que tolera os deuses alheios. Mesmo em relação aos outros monoteísmos, a intolerância é gritante. O meu monoteísmo é o único e verdadeiro. O teu é falso e merece ser eliminado. Como se pode notar, o monoteísta, por seus traços narcisistas acentuados ¨é o dono da verdade¨.

A construção dos deuses, se assim podemos dizer, segue um esquema bastante humano: lutam os deuses pela supremacia, pelo poder máximo que no monoteísmo fica nas mãos de um só. E este é truculento e despótico com todos os demais destruindo-os na medida do possível.

O deus único dos judeus, Javé, o deus de Abrahão, agora nos derivados, Cristianismo e Islamismo, passa a ser denominado simplesmente Deus, pelos primeiros, e Allah (Alá) pelos segundos.

O uso que o crente faz da religião depende mais dele próprio do que da religião que ele diz professar. Nas mãos de uns e outros o inicialmente mesmo deus torna os três grupos inimigos entre si. Como os chefes guerreiros e políticos na disputa pelo poder.

Na verdade, a representação de deus é diferente segundo o crente. Se o religioso é uma pessoa tolerante, indulgente e amorosa, assim ele vê seu deus. O deus do intolerante, despótico e arrogante tem as características do devoto. E, diga-se de passagem, esta é a imagem das figuras paterna e materna que cada um internalizou através de introjeções e projeções.

Na hierarquia celestial nota-se claramente a projeção dos humanos. O deus tem o seu séqüito de deuses menores, os santos, reliquat do politeísmo, que chefiam certos setores: os que intermediam graças, os que estão mais próximos ou distantes do poder. Enfim, uma organização à imagem das humanas. Isto reforça a idéia de que seja a projeção o mecanismo primordial da organização celestial.

Uma das preocupações do ser humano, causa de muitas angústias, é com a morte. Ela vem sempre como o inevitável fim de todo o fenômeno vital.

O ser humano dificilmente aceita para si essa seqüência como natural, a vida seguida da morte. O medo do fim nos faz buscar uma fuga através da negação da morte: deve haver uma outra vida, uma imortalidade ! Aí também vem em nosso socorro a religião. Algumas religiões prometem também a imortalidade da alma, a ressurreição do corpo, a vida eterna, a reencarnação neste ou em outros planetas. Algumas, a possibilidade de comunicação com os nossos queridos que morreram, o que, indiscutivelmente, é sedutor. Via de regra tudo está conectado com recompensas ou castigos pela conduta que tivermos em nosso período de vida na terra. Novamente, um esquema "divino", mas muito humano.

Dificilmente alguém deixa de levar em conta a religião, mesmo se apercebendo do quão ilusório é o que ela nos oferece. Tudo vai depender da fé, e ela é irracional. A fé é exigida e cobrada do crente. Ele deve aceitar os ditames de uma crença sem questioná-la, como aceitava e obedecia as ordens dos pais. Aquele que põe em dúvida artigos de fé é banido, excomungado, como na infância era punido pelos pais despóticos. Não há tolerância para com o incrédulo. Há períodos na História em que a intolerância vai a extremos de matar o incrédulo. O Judaísmo fez isso, quando tinha poder para fazê-lo. Fez com seus próprios irmãos como Moisés (Ex: XXXII 1 a 28) ao descer do Sinai e surpreender os adoradores do Bezerro de Ouro. Fez com os seguidores de Yoshua Ben Joseph, que eram mortos a pedradas, e com os ¨idólatras¨ com quem disputavam e continuam a disputar as terras da Palestina.

O Cristianismo assim procedeu durante a Inquisição e as Cruzadas, contrariando o que Cristo pregou: amor, perdão, misericórdia. E o Islamismo também matou e mata em nome de seu deus que também prega o amor e a paz.

O não-crente ou o crente que desobedece é considerado um pecador.

Quanto à posição do Psiquiatra, do Psicoterapeuta com relação ao pecado, podemos dizer que, já que pecado é uma infração, uma transgressão da lei de deus ou dos deuses, é portanto uma noção puramente religiosa. Os pecados poderão ocorrer no plano do pensamento, da palavra ou de atos praticados. A psicoterapia se relaciona a esse conceito na medida em que trata dos sentimentos de culpa do paciente que se sente um pecador.

O não saber, a ignorância, nos deixa à mercê de crendices várias. Na medida em que evoluímos, que progredimos no desvendar os mistérios do mundo, teoricamente, deveriam as ¨crenças¨ se atenuar. Freud comparava a religião a uma neurose infantil que seria superada como a criança supera sua neurose. "A humanidade conseguirá superar essa fase neurótica", afirma ele em "O Futuro de uma Ilusão". Peço permissão para divergir do prognóstico otimista do mestre. E não esqueçamos que ele era visto como um pessimista.

Já sabemos que a terra não é plana, nem o centro do universo; já sabemos que somos produto de uma evolução dos seres vivos e mesmo sabendo que não somos tão donos de nós mesmos - pois há um psiquismo inconsciente que nos maneja bem mais do que o nosso "livre arbítrio" gostaria -, devido ‘a ignorância frente aos mistérios de onde viemos, o que ocorrerá conosco nesta vida e a morte a nos aterrorizar, somos levados ao encontro da religião que nos promete respostas tranqüilizadoras. Isto se deve a que todo o ser humano, que facilmente se adapta aos progressos científicos e tecnológicos, parte emocionalmente e invariavelmente de um ponto zero, ao nascer. Continuamos com essa "criança desvalida interna" que todos temos desde o nascimento. Nosso amadurecimento emocional avança muito lentamente, isto quando avança, deixando ilhotas não resolvidas no decorrer da vida.

As religiões são produto humano, tanto é assim que os deuses podem ser usados para o bem como para o mal. Em nome de um mesmo deus são abençoados antagônicos exércitos que partem para a destruição e para a morte. Tudo dependendo do homem que evoca o nome de seu deus na ocasião. A religião pode até tentar, mas dificilmente consegue o que se propõe: o amor e a paz entre os homens.

Posso parecer pessimista, mas me classificaria mais como realista. Basta olharmos em nosso redor para vermos os estupendos progressos tecnológicos e científicos ao lado do maior primitivismo. Ainda vemos naáfrica tribos mutilando e escravizando outras e negociando-as como escravos como faziam há séculos, quando vendiam seus irmãos derrotados para os brancos ou para outras tribos. Vemos, nos dias de hoje ,em nome de um deus, um ataque cruento e destrutivo e o revide igualmente feroz e bárbaro em nome de outro deus, como nas Cruzadas e na Inquisição.

O progresso tecnológico utilizado e direcionado à destruição deixa a capacidade agressiva do passado, restrita às flechas, lanças, porras, espadas e cimitarras, parecer brinquedos de crianças.

Um avião "invisível" de vários milhões de dólares, um míssil de um milhão de dólares e a possibilidade de utilizarmos gazes, bactérias, vírus ou mesmo bombas atômicas, torna a guerra eminente e a civilização à beira da destruição.

Sintetizando, sou de opinião que a religiosidade deve ser respeitada como qualquer sintoma e como tal deve ser tratada.
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Dr. Sérgio Paulo Annes é Membro Didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre – SPPA.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Luke Timothy Johnson, e as ciladas do "Jesus Histórico".


"Conheceremos Jesus melhor, não como o resultado da pesquisa acadêmica de um indivíduo, publicada em um livro, mas como um processo contínuo de transformação pessoal dentro de uma comunidade de discípulos."
Luke Timothy Jonson

Atlanta / Temas – Estes dias segui um grupo de trovadores acadêmicos ambulantes, especialistas que são convidados por congregações para dar palestras como parte de programas de educação para adultos. Com freqüência tenho acompanhado pessoas como Marcus Borg, John Dominic Crossan, N.T. Wright e Bart Ehrman, e com freqüência me convidam como alguém que pode “representar outro ponto de vista”. Em outras palavras, sou uma anotação à margem do menu preferido das oferendas históricas de Jesus.

Quando apresento uma visão alternativa sobre o Jesus dos Evangelhos, sempre há pessoas na congregação que se surpreendem que eu não esteja totalmente de acordo com o que eles consideram o pináculo do ensino bíblico. Em resumo, 25 anos depois que o Jesus Seminar começou uma nova ronda na controvérsia sobre o Jesus histórico e 14 anos depois que tentei mostrar (em The Real Jesus) o falso que é o conhecimento contemporâneo sobre o Jesus histórico, embora haja uma audiência desejosa de escutar os temas que estes trovadores cantam.

E não é difícil entender o porquê. Sem exceção, os trovadores são professores e oradores extraordinários, que têm uma bem ganhada reputação de ensinar de maneira alegre e inclusive divertida.

Borg e o bispo Wright, além disso, manifestam-se explicitamente cristãos e transmitem um sentido positivo do que o conhecimento pode oferecer.

Ehrman é um professor excepcional.

Crossan é uma pessoa especial, um homem com tanto talento, com tanto humor, que pessoalmente estou disposto a ouvi-lo falar de qualquer coisa. O carisma pessoal dos conferencistas é sem dúvida parte do atrativo.

Os conferencistas também foram eficientes, ao apresentar suas palestras como conhecimentos genuínos; afirmam que o que fazem é pôr à disposição de todos o enfoque crítico que, segundo eles, outros acadêmicos também seguem, embora os mantenha dentro do âmbito profissional. As congregações e as paróquias desejosas de estímulos intelectuais são consumidores entusiastas. Poucos são os que seguem de perto o que os estudiosos da Bíblia estão fazendo. Que base de comparação há nos livros que se encontram em Barnes & Noble (N. do T.: trata-se do maior comerciante varejista de livros nos EUA) ? As audiências não têm muita base para rebater a reivindicação dos trovadores de representar o melhor da academia.

De fato, se as congregações estivessem conscientes do caráter desesperadamente trivial do ensino acadêmico, estariam inclusive mais dispostos a aceitar as palavras daqueles que estão demonstrando compreender a figura de Jesus para a igreja, em vez de desenvolver outra metodologia esotérica, a fim de ter credibilidade, como vitais e necessárias.

Acima de tudo, penso que as congregações estão ávidas de aprender sobre o Jesus humano e com muita freqüência encontram que o que escutam nos sermões e nas Escolas Dominicais contém pouca substância intelectual ou alimento espiritual. O que querem é uma fé adulta, e os oradores itinerantes parecem oferecer um caminho mais rápido e interessante para essa maturidade que a que está disponível através das práticas tradicionais da fé. Para aqueles que aprenderam a valorizar muito mais a informação que a compreensão, a oferta de conhecimento histórico sobre Jesus parece cair-lhes como uma luva.

OS LIMITES DA HISTORIA

Não há absolutamente nenhum problema em estudar Jesus como uma figura histórica, e se ele for estudado sob essa perspectiva, é adequado separar os fundamentos da fé. O tipo de projeto efetuado pelo padre J.P. Meier em A Marginal Jew, que prova quais são os relatos do Evangelho que podem ser historicamente constatados, é perfeitamente legítimo e exibe resultados genuínos. Mas assim como o mesmo monsenhor Meier reconheceu, o Jesus empiricamente verificável não é de modo nenhum o Jesus “real”. Ademais, é mais que legítimo aprender o máximo possível de história do mundo no primeiro século de Jesus.

O objetivo deste conhecimento, no entanto, é o de tornar os próprios leitores dos Evangelhos em melhores e mais responsáveis. Não se trata de deconstruir as narrações evangélicas para depois reconstruir um “Jesus histórico” e declarar, desse modo, que se descobriu que eram Jesus realmente. Menos ainda para propor essa reconstrução como regra para os cristãos de hoje em dia.

A história é uma maneira limitada de conhecer a realidade. Dependentes de fragmentos do que se observou, registrou, conservou e transmitiu desde o passado, reconhecendo que todo depoimento humano é parcial e cuidadoso de não especular mais além da evidência disponível, os historiadores responsáveis sabem que só manejam probabilidades, não certezas. Seu trabalho é mais uma arte descritiva que uma ciência prescritiva. E no caso de Jesus e os Evangelhos, os problemas críticos que enfrenta toda reconstrução histórica são extremos, advertindo os pesquisadores de não levar as coisas ao limite.

Portanto, os historiadores podem declarar certos fatos sobre Jesus com maior ou menor probabilidade de acerto (sua morte por crucificação), ou algumas pautas de seu ministério (o falar por meio de parábolas) ou inclusive certos acontecimentos (seu batismo). Mas os historiadores não podem oferecer uma narração ou interpretação alternativa àquelas dos Evangelhos, baseando-se nestas prováveis conclusões.

Contudo, tanto hoje como ontem, é este alongamento dos limites da historiografia responsável, esta apresentação de alternativas aos Evangelhos, que deu um impulso a todo o projeto do Jesus histórico. Há três aspectos do projeto que são objetáveis, inclusive quando se considera legítimo usar a história para Jesus.

Primeiro, a história não pode entregar o prometido pelo projeto do Jesus histórico, principalmente uma versão sólida de Jesus diferente da apresentada pelos Evangelhos.

Segundo, o esforço para reconstruir esse Jesus alternativo leva a uma distorção dos métodos próprios da historiografia formal.

Terceiro, e o mais penoso, o Jesus oferecido como alternativa é com freqüência um reflexo dos ideais próprios do estudioso. Portanto, não resulta estranho que praticamente cada Jesus reconstruído pelos estudiosos nesta geração esteja firmemente baseado no Jesus do Evangelho de Lucas, já que este é o Jesus que mais admiramos —político, público, profético, aquele que inclui os marginais e desafia o status dos poderosos—.

Neste sentido, as múltiplas versões do “Jesus histórico” apresentada hoje em dia em conferências ou em livros, têm exatamente o mesmo status dos Evangelhos apócrifos da Igreja primitiva: podem resultar amenos e às vezes inclusive instrutivos, mas não são alicerces sobre os quais se deva construir a Igreja.

UMA ALTERNATIVA

Nesse caso, o que devo oferecer às congregações que me convidam a compartilhar minha “visão alternativa”? Tento reafirmar seu desejo de uma fé madura e intelectualmente ativa e promovo o estudo da história como um meio para uma leitura mais responsável dos Evangelhos. Tenho certeza de que quanto mais genuíno for o sentido do estudo histórico adquirido por estes cristãos, menor será a probabilidade de cair presa das distorções daqueles que comercializam com o título de historiador, sendo que a única coisa que oferecem é uma versão pessoal, apócrifa.

Mas enfatizo que o objetivo real do conhecimento histórico não é o desmantelamento dos Evangelhos, senão que um compromisso mais completo com a narração evangélica. Indico que talvez um dos resultados surpreendentes do melhor estudo histórico da Palestina do primeiro século, é que a informação incidental que dão os Evangelhos em relação ao contexto político-cultural e o meio religioso de Jesus tende mais a confirmar que desmentir a informação sobre estes temas nos Evangelhos.

E mais importante ainda, tento mostrar como o descobrimento de Jesus como um personagem literário em cada um dos Evangelhos canônicos possibilita um conhecimento mais profundo, satisfatório e mais “histórico” do Jesus humano que o apresentado por reconstruções acadêmicas. Uma vez que os leitores reconhecem e começam a apreciar os diferentes retratos de Jesus nos Evangelhos, não como pobres apresentações de fontes históricas, senão como o grande depoimento de fé, começam a sentir que o Jesus humano é uma realidade muito mais rica e evasiva que aquele de sua crença superficial ou de um ensino histórico superficial pudesse sugerir. Tal apreciação literária dos Evangelhos também leva à compreensão de que apesar de seus temas e perspectivas divergentes, convergem precisamente, de forma assombrosa, em seu caráter, tema histórico de vital importância em relação ao Jesus humano.

Que tipo de pessoa era Jesus? Cada um dos Evangelhos é depoimento da verdade se Jesus como ser humano se definia primeiro por sua absoluta obediência a Deus e em segundo termo por sua absoluta entrega aos demais. Este Jesus dos Evangelhos é o mesmo Jesus que encontramos nas cartas de Paulo e Pedro e na Carta aos Hebreus. O Cristo histórico é o que deu forma à identidade do discipulado cristão, através dos anos e gerou reformas proféticas em todas as etapas da Igreja.

‘ELE VIVE AGORA’

Incentivo minha audiência a lembrar-se de que toda busca do Jesus histórico é um desvio massivo do enfoque correto da consciência cristã: aprender do Jesus vivente —do senhor exaltado e ressuscitado presente para aqueles que crêem, através do poder do Espírito Santo— na vida diária e nas práticas correntes da Igreja. Concentrar-se no “Jesus histórico” como se o ministério de Jesus reconstruido pelos acadêmicos fosse o último em importância para a vida do discipulado, é esquecer a verdade mais importante sobre Jesus, isto é: que agora ele vive como o Senhor na presença total e o poder de Deus que é apresentado para nós a cada instante, não como uma recordação do passado, senão que como uma presença que define nosso presente.

Se Jesus fosse simplesmente um homem do passado que morreu, então conhecê-lo através da reconstrução histórica é necessário e inevitável. Mas se ele vive no presente como nosso poderoso e dominante Senhor, então devemos conhecê-lo, através da obediência da fé.

Conheceremos Jesus melhor, não como o resultado da pesquisa acadêmica de um indivíduo, publicada em um livro, mas como um processo contínuo de transformação pessoal dentro de uma comunidade de discípulos. É verdade que Jesus será conhecido, através da leitura fiel das Escrituras, mas nós o conheceremos também, através dos sacramentos (especialmente da Eucaristia), das vidas dos santos (mortos e vivos) e dos estranhos com os quais o exaltado Senhor se associa com particular preferência. Ao lado desta maneira tão difícil e complexa de conhecer Jesus realmente como ele é —o Espírito doador de vida que dá vida principalmente para toda a assembléia chamada o corpo de Cristo—, as pesquisas dos historiadores, inclusive no melhor dos casos, aparecem como uma distração empobrecida e sem graça.

Este é o tema que vou cantando atrás dos trovadores que dançam nas paróquias e congregações deste país. É uma velha canção, cujo nome foi dado por Santo Agostinho: “canção de aleluia”. Mas também é nova —sempre— está se renovando.
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Luke Timothy Johnson. Robert W. Woodruff Professor de Novo Testamento e Origens cristãos na Candler School of Theology, Emory University, Atlanta, Ga. Publicado na revista America, http://www.americamagazine.org/ / Uma conversa com Luke Timothy Johnson: americamagazine.org/podcast

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

O Polêmico Bispo John Shelby Spong

Spong é bispo aposentado da Igreja Episcopal da diocese de Newark, nos Estados Unidos. Autor, dentre outros, de “A New Christianity for a New World: Why Traditional Faith Is Dying and How a New Faith Is Being Born”, recém publicado na Itália com o título “Un cristianesimo nuovo per un mondo nuovo. Perché muore la fede tradizionale e come ne nasce una nuova” .

Sou um cristão.

Por 45 anos, eu servi a Igreja cristã como diácono, padre e bispo. E continuo servindo essa Igreja hoje em uma ampla variedade de formas em minha aposentadoria oficial. Eu acredito que Deus é real e que eu vivo profunda e significativamente em relação com essa divina realidade.

Proclamo Jesus como meu Senhor. Eu acredito que ele mediou Deus de um modo poderoso e único para a história da humanidade e para mim.

Eu acredito que a minha vida pessoal foi impactada intensa e decisivamente não apenas pela vida de Jesus, mas também pela sua morte e certamente pela experiência pascal que os cristãos conhecem como ressurreição.

Parte da vocação da minha vida foi gasta na busca de uma forma de articular esse impacto e de convidar outros àquilo que eu só posso chamar de “a experiência de Cristo”. Eu acredito que, nesse Cristo, descobri uma base para o sentido, a ética, a oração, o culto e até para a esperança para a vida além das fronteiras da minha mortalidade. Eu quero que os meus leitores saibam quem é que escreve estas palavras. Não quero ser culpado de violar qualquer ato de empacotamento da verdade. Eu me defino, acima de tudo e principalmente, como um crente cristão.

Porém, não defino Deus como um ser sobrenatural. Eu não acredito em uma divindade que possa ajudar uma nação a vencer uma guerra, intervir para curar a doença de uma pessoa amada, permitir que uma equipe esportiva em particular derrote o seu oponente ou modificar as condições climáticas em benefício de alguém. Eu não considero apropriado para mim fingir que essas coisas são possíveis, quando tudo o que conheço sobre a ordem natural do mundo em que eu habito proclama que elas não são.

Como eu não vejo Deus como um ser, não posso interpretar Jesus como a encarnação terrena dessa divindade sobrenatural, nem posso assumir crivelmente que ele possuiu poder divino suficiente a ponto de fazer coisas milagrosas como acalmar a tempestade, expulsar demônios, caminhar sobre a água ou multiplicar cinco pães para fornecer alimento suficiente para alimentar cinco mil homens, mais mulheres e crianças. Se proclamo a natureza divina desse Jesus, devo fazer isso sobre bases diferentes dessas. Os milagres sobre a natureza, estou convicto disso agora, dizem uma grande quantidade de coisas sobre o poder que as pessoas atribuíam a Jesus, mas não dizem nada sobre o que ocorreu literalmente.

Tudo em que não acredito

Eu não acredito que esse Jesus possa ou tenha, em sentido literal, ressuscitado os mortos, vencido uma paralisia física ou restaurado a visão a uma pessoa que nascera cega ou a alguém cujas capacidade de ver havia sido fisiologicamente destruída. Nem acredito que ele tenha tornado capaz de ouvir uma pessoa muda e profundamente surda desde o nascimento. As histórias de curas podem ser lidas de vários modos. Lê-las como eventos sobrenaturais e milagrosos é, em minha opinião, a menos crível dessas possibilidades.

Eu não acredito que Jesus entrou neste mundo por meio do milagre de um nascimento virginal ou que um nascimento virginal ocorra fora da mitologia. Eu não acredito que, literalmente, uma estrela tenha guiado homens sábios que levavam presentes a Jesus ou que literalmente anjos tenham cantado aos pastores do topo de uma colina para anunciar o seu nascimento.

Eu não acredito que Jesus nasceu em Belém ou que fugiu para o Egito para escapar da cólera do Rei Herodes. Eu considero tudo isso como lendas que foram posteriormente historicizadas enquanto a tradição crescia e se desenvolvia e as pessoas procuravam entender o significado e o poder da vida de Cristo.

Eu não acredito que a experiência celebrada pelos cristãos na Páscoa foi a ressuscitação física do corpo de Jesus morto há três dias, nem acredito que alguém literalmente falou com Jesus depois do momento da ressurreição, que lhe deu alimento, tocou em sua carne ressuscitada, ou caminhou de alguma forma física com o seu corpo ressuscitado. Acho interessante que todas as narrações que relatam esses encontros se encontrem só nos evangelhos, que foram escritos mais tarde.

Eu não acredito que a ressurreição de Jesus foi literalmente marcada por um terremoto, pela declaração de um anjo ou por um túmulo vazio. Também considero essas coisas como tradições lendárias de um sistema religioso em maturação.

Eu não acredito que Jesus, no fim da sua estadia terrena, voltou para Deus, ascendendo em sentido literal a um paraíso localizado em algum lugar acima do céu. O meu conhecimento das dimensões do universo reduz esse conceito ao absurdo.

Eu não acredito que esse Jesus fundou uma Igreja ou que estabeleceu uma hierarquia eclesiástica que começou com os 12 apóstolos e que perdura até os nossos dias. Eu não acredito que ele criou os sacramentos como meios especiais de graça ou que esses meios de graça sejam, ou possam ser, de alguma forma controlados pela Igreja e, assim, presididos apenas pelos ordenados. Todas essas coisas representam para mim tentativas, por parte dos seres humanos, de aumentar o poder a si mesmos e à sua instituição religiosa em particular.

Eu não acredito que os seres humanos nasceram no pecado e que, a menos que sejam batizados ou de alguma forma salvos, serão banidos para sempre da presença de Deus. Eu não considero que o conceito mítico da queda da vida humana em um estado negativo constitua uma visão correta das nossas origens ou da origem do mal. Concentrar-se sobre a queda da humanidade em um estado de pecado e sugerir que essa pecaminosidade possa ser superada só por meio de uma iniciativa divina que restabeleça a vida humana a um estado de pré-queda que jamais existiu são, para mim, conceitos verdadeiramente estranhos, que servem acima de tudo, mais uma vez, para construir o poder institucional.

Eu não acredito que as mulheres são menos humanas ou menos santas do que os homens e, por isso, não consigo me imaginar como parte de uma Igreja que discrimine as mulheres de qualquer forma ou até sugira que uma mulher é inapta a qualquer vocação que a Igreja geralmente oferece ao seu povo, do papado ao mais humilde papel de serviço. Eu considero a tradicional exclusão eclesiástica das mulheres das posições de liderança não como uma tradição sagrada, mas sim como uma manifestação do pecado do patriarcado.

Eu não acredito que as pessoas homossexuais são anormais, mentalmente doentes ou moralmente depravadas. Além disso, considero todo texto sagrado que afirme o contrário como errado e mal informado. Os meus estudos me levaram à conclusão de que a sexualidade como tal, incluindo todas as orientações sexuais, é moralmente neutra e pode ser vivida tanto positiva quanto negativamente. Eu considero que o espectro da experiência sexual humana é verdadeiramente amplo. Nesse espectro, um certo percentual da população humana é, em todas as épocas, orientado a pessoas do seu próprio gênero. Esse é simplesmente o modo como a vida é. Eu não posso me imaginar como parte de uma Igreja que discrimine gays ou lésbicas com base em seu “ser”. Nem quero continuar participando de práticas eclesiais que eu considero baseadas em nada mais do que preconceito e ignorância.

Eu não acredito que a pigmentação da pele ou a origem étnica constituam uma questão de superioridade ou de inferioridade e considero toda tradição ou sistema social, incluindo qualquer parte da Igreja cristã que age sobre esse pressuposto, indignos de continuar a viver. Os preconceitos dos seres humanos baseados na raça ou na eticidade são, para mim, nada mais do que uma manifestação de um passado tribal. São preconceitos negativos que os seres humanos desenvolveram em sua luta pela sobrevivência.

Eu não acredito que toda a ética cristã foi inscrita em tábuas de pedra ou nas páginas das Escrituras cristãs e, portanto, está definida de uma vez para sempre. Sou consciente de que “o tempo torna estranho o bem antigo” e que o preconceito baseado em definições culturais negativas ofereceu aos cristãos, ao longo dos séculos, a base para oprimir as pessoas de cor, as mulheres e aqueles cuja orientação sexual não era heterossexual.

Eu não acredito que a Bíblia é a “palavra de Deus” em qualquer sentido literal. Não a considero a fonte primária da revelação divina. Eu não acredito que Deus ditou ou mesmo inspirou integralmente a sua produção. Eu vejo a Bíblia como um livro humano que mistura a profunda sabedorias dos sábios ao longo dos séculos com as limitações das percepções humanas da realidade em um determinado tempo da história humana. Essa combinação marcou as nossas convicções religiosas com testemunhos ambivalentes, combinando escravidão e emancipação, inquisições e progressos teológicos, liberdade e opressão.

O caminho mais árduo

Poderia alongar essa litania de acredito e não acredito ainda por mais páginas, mas esses poucos enunciados deveriam ser suficientes para indicar as questões que quero desenvolver. A questão básica que busco levantar neste livro é a seguinte: pode uma pessoa declarar honestamente ser cristã e, ao mesmo tempo, abandonar, como eu fiz, muito daquilo que foi tradicionalmente definido como o conteúdo da fé cristã? Seria mais sábio e honesto se fizesse aquilo que muitos da minha geração fizeram, isto é, renunciar a ser membro desse sistema de fé dos meus antecessores? (…)

Seguramente, uma escolha dessas tornaria a minha vida muito mais simples e menos complicada, em muitos aspectos. Aos olhos de muitos, seja na Igreja cristã, seja na sociedade secular, representaria também um ato de integridade. Porém, não seria honesto, nem seria conforme às minhas convicções mais profundas. O meu problema jamais foi a minha fé. E sempre foi a forma literal com que os seres humanos optaram por expressar essa fé.

Escolhi, por isso, o caminho mais árduo, o mais complicado, embora em muitas ocasiões isso tenha ameaçado lacerar a minha própria alma. Percorrer o meu caminho me expôs a uma enorme hostilidade religiosa por parte de assustados aderentes à minha própria tradição de fé, assim como a uma apressada despedida por parte de muitos dos meus amigos seculares, que parecem olhar-me como a um resíduo irremediavelmente religioso da Idade Média.

Diante da hostilidade religiosa, de um lado, e do desconfiado desprezo pela minha recusa a rejeitar a minha fé tradicional, de outro, eu continuo insistindo que sou um cristão. Atenho-me resolutamente à verdade da afirmação que Paulo fez por primeiro: “Deus estava em Cristo” (2 Coríntios 5,19).

Eu busco a experiência de Deus que acredito está por trás das explicações bíblicas e teológicas que, através dos tempos, tentaram interpretar Jesus. Penso que é possível separar a experiência da explicação e reconhecer a sempre maior inadequação das palavras antigas para captar a essência de uma experiência qualquer para todos os tempos. Por isso, apelo à Igreja para que faça uma reviravolta radical no modo em que tradicionalmente proclamou a sua mensagem, no modo em que se organizou para ser a depositária dessa reserva de poder espiritual e no modo em que pretendeu falar em nome de Deus na história humana.

A morte do Deus teísta

Eu estou quase certo de que a revisão do cristianismo que estou procurando desenvolver deve ser tão completa que provoque em algumas pessoas o medo de que o Deus que tradicionalmente venerou está, de fato, morrendo.

A reforma que é necessária hoje deve ser, a meu ver, tão global que, em comparação com a Reforma do século XVI, irá parecer uma brincadeira de crianças. Vista retrospectivamente, aquela Reforma enfrentava principalmente os temas da autoridade e da ordem sacra. A nova reforma será profundamente teológica e desafiará necessariamente todo aspecto da nossa história de fé.

Por acreditar que o cristianismo não pode continuar sendo o irrelevante espetáculo religioso ao qual foi reduzido, estou buscando envolver nessa reforma as melhores mentes do novo milênio. Eu espero que nós, cristãos, não vacilemos diante da audácia do desafio. Nós enfrentamos hoje, como procurarei documentar, uma mudança total no modo de perceber a realidade por parte das pessoas modernas. Essa mudança proclama que o modo pelo qual o cristianismo foi formulado tradicionalmente não é mais crível. Esse é o motivo pelo qual o cristianismo como o conhecemos mostra sinais crescentes de “rigor mortis”.

O cristianismo postula um Deus teísta que faz coisas sobrenaturais, muitas das quais não são consideradas morais pelos nossos princípios. Esse Deus, por exemplo, é descrito nas nossas Escrituras ao castigar os egípcios com uma praga depois da outra, uma das quais comporta a morte do primogênito masculino de todas as famílias egípcias, em uma campanha divina para a libertação do povo eleito da escravidão ( Êxodo 7-10).

Depois, esse Deus abriu o Mar Vermelho para permitir que os hebreus fugissem da sua vida de escravidão e o fechou justo em tempo para afogar o exército egípcio que os perseguia (Êxodo 14). É essa a obra de uma divindade moral? Essas ações refletem talvez um Deus que os egípcios pudessem venerar? Qualquer um de nós poderia venerá-lo? Queremos verdadeiramente acreditar em uma tal divindade?

Do Deus teísta das Escrituras, diz-se também que parou o sol no céu (como se o sol girasse verdadeiramente ao redor da terra) para conceder a Josué luz suficiente para fazer um massacre de amorreus em batalha (Josué 10). Esse é um motivo que pode justificar a ação divina? Colocando de lado toda especulação sobre o que poderia ter acontecido com a força da gravidade em resposta a essa mágica alteração do universo, resta saber se os amorreus poderiam venerar um Deus como esse. Poderiam afirmar que a vida humana tem um valor infinito quando os preconceitos tribais eram confundidos a tal ponto com a vontade divina? Quem de nós, hoje, defenderia isso?

Foi esse mesmo trecho bíblico do livro de Josué que permitiu que a hierarquia da Igreja Católica obrigasse, no século XVII, o cientista Galileu a retratar, sob pena de morte, a sua afirmação “inconforme à Escritura” de que a terra não era o centro do universo e que, na realidade, girava em torno do sol. Embora tenham sido as intuições de Galileu que possibilitaram a moderna exploração do espaço, iniciada nos anos 1950, só em 1991 a Igreja cristã, com a voz do Vaticano, admitiu enfim publicamente que Galileu tinha razão e a Igreja estava errada ao condená-lo. Mas nesse ponto nem Galileu nem a maioria da comunidade científica mundial estavam particularmente interessados com aquilo que as vozes oficiais da Igreja declararam acerca do seu trabalho.

Como bservou o físico Paul Davies, ganhador do Prêmio Templeton, o Deus rude que havia conhecido na Igreja não era mais suficientemente grande para ser o Deus do seu mundo. Alguém tem dúvida sobre quem levará a melhor nesse particular conflito com o passar do tempo?

O cristianismo, tomando emprestado o conceito judaico do Dia da Expiação, Yom Kippur, tradicionalmente interpretou a morte de Jesus como um sacrifício oferecido a Deus em reparação dos nossos pecados. Ele se deliciou ao se referir a Jesus como o “cordeiro de Deus que com o seu sangue lava os pecados do mundo”. Um Deus semelhante – que requer o sangue de um sacrifício humano – ainda é digno de veneração hoje, quando finalmente a nossa consciência considera repugnante tal ideia? (…)

O ritual vagamente antropófago de comer a carne de uma divindade morta é cheio de antigas nuances psicológicas que colocam em dificuldades a sensibilidade moderna. A prática litúrgica de reatualizar o sacrifício da cruz e de proclamar que a nossa participação nessa reatualização é necessária para a salvação muito dificilmente pode ser uma moderna fórmula vitoriosa.

Analogamente, a pretensão eclesiástica de que só pessoas propriamente autorizadas e ordenadas podem presidir esses atos soa ridícula aos ouvidos modernos. Esperamos verdadeiramente que essas pretensões ganhem a lealdade das mentes modernas? E se essas pretensões fossem removidas do culto cristão, o que restaria?

Separar o essencial dos acréscimos

Eu acredito que todos esses problemas e dificuldades acima mencionados precisam ser enfrentados abertamente pelos cristãos hoje e, assim, superados com novas imagens. Para aqueles cristãos que identificaram Deus com essas bizarras interpretações primitivas da divindade, a transição não será fácil. Porém, certamente chegou o momento em que todos nós devemos ir além da desconstrução desses símbolos inadequados e rejeitáveis, que historicamente foram tão significativos na vida da Igreja cristã,e voltar a nossa atenção à tarefa de delinear uma visão daquilo que a Igreja pode e deve ser no futuro.

A tarefa apologética básica que a Igreja cristã deve enfrentar hoje é a de separar o essencial dos acréscimos, a experiência de Deus sem tempo das explicações de Deus do passado condicionadas pelo tempo. A desconstrução certamente é um caminho muito mais simples de ser percorrido quando se busca descrever por que alguns modos de compreensão de um sistema religioso do passado são inadequados. É decisivamente mais difícil delinear a visão de algo novo, algo que as pessoas jamais viram, algo que o mundo jamais provou. Mas os reformadores não podem se limitar a combater contra o moinho de vento da antiguidade. Eles devem desenvolver novas visões, propôr novos modelos, traçar novas soluções. Essa é, agora, a tarefa que eu procuro realizar.

Não espero que essa tentativa encontre um público eclesiástico particularmente interessado ou reativo. Não é algo com o qual me preocupe, no entanto, porque as pessoas com as quais procuro me comunicar constituem um público muito específico e é a eles que dirigirei minha mensagem o mais diretamente possível.

Não estou interessado, por exemplo, em confrontar-me ou desafiar aqueles elementos do cristianismo conservadores ou fundamentalistas que são tão predominantes hoje. Acredito que morrerão por causa da sua própria irrelevância, sem nenhuma ajuda de minha parte. Eles legaram a sua compreensão do cristianismo a disposições do passado que estão simplesmente envelhecendo. Em nenhuma parte isso é mais visível do que ao observar o modo com o qual a palavra cristão é usada no nosso mundo contemporâneo. Perguntem-se que imagem lhes vem à mente quando vocês veem um negócio com a frase “livraria cristã” ou quando ouvem um cronista político fazendo referência ao “voto cristão” em uma determinada eleição. (…)

Permitam-me, portanto, ser claro. Eu não procuro me dirigir a esses crentes conservadores, que considero fora da realidade. Eu não quero convertê-los, discutir com eles ou mesmo só procurar contestá-los, a menos que ameacem se tornar voz de uma maioria que busque impôr o seu próprio programa ao nosso mundo. Eu acredito que a difusão do conhecimento irá tornar definitivamente irrelevantes as seus posturas no debate sobre o futuro do cristianismo.

Ao mesmo tempo, não espero que esses esforços de reforma ou a exposição de uma nova visão cristã sejam saudados com algo mais do que um bocejo de indiferença daqueles membros da nossa sociedade que já decidiram que qualquer religião é uma superstição a serviço dos fracos. Essas pessoas que optaram pela vida na cidade secular, mesmo que pertençam membros das suas instituições religiosas, não estão propriamente interessados nos meus esforços, que consideram como uma tentativa de embelezar um cadáver. (…)

Nas principais tradições religiosas, também não será fácil para mim conquistar um ouvido disposto a me ouvir ou a me conceder um ponto de apoio significativo. As principais Igrejas estão muito mais dedicadas a conservar o seu poder institucional do que a se confrontar com esses problemas “de vida ou morte”. O medo que os membros dessas Igrejas sentem lhes levará a dizer coisas do tipo: “Desta vez, ele foi muito longe”. (…)

Cabeça e coração juntos

O público ao qual procuro me dirigir é menor, mais definido e mais específico. São pessoas que se sentem espiritualmente sedentas, mas sabem que não podem mais beber nas fontes tradicionais do passado. Em substância, esse grupo será uma pequena minoria da população, mas se acrescentará a ele um grupo muito mais amplo de companheiros de viagem que irão reagir se lhes for dada a oportunidade de serem ouvidos.

Essas pessoas irão aplaudir, expressando a sua profunda e real apreciação. Algumas delas dirão: “Finalmente alguém me deu a permissão”, como se algum tipo de permissão fosse verdadeiramente necessária, “de olhar as coisas a partir de uma nova perspectiva, além das formulações tradicionais em que as minhas aspirações religiosas foram até agora constrangidas”.

Essas pessoas irão assimilar a ideia de que as suas próprias dúvidas e perguntas sobre Deus ou a religião não as qualificam como loucas ou malvadas. As suas dúvidas e perguntas significam simplesmente que elas respiram o ar do século XXI. Serão felizes por ter finalmente encontrado um modo de unir a sua cabeça e o seu coração.

Esse grupo foi o meu público primeiro durante toda a minha carreira. Possuem ainda uma profunda consciência de Deus, que, porém, não se adapta quase em nada àqueles modelos que as instituições religiosas dizem ser os únicos modos de pensar Deus. Se devemos obter uma nova reforma do cristianismo, então ela começará e encontrará as suas raízes nesse grupo de pessoas: um grupo geralmente não só não visto, mas também nem ouvido pelos líderes religiosos do nosso mundo.

Quando esses vários públicos reagiram e interagirem com as minhas sugestões e as minhas propostas, valerá a pena ter presente a questão decisiva que espero abordar com este livro e que foi posta no início do texto. O cristianismo radicalmente reformado que estou desejando estará suficientemente unido e será suficientemente identificável com o cristianismo do passado a ponto de poder ser reconhecido não só como seu herdeiro, mas também como parte integrante da mesma tradição de fé? (…)

A minha esperança profunda é que a Igreja, nas suas inumeráveis formas institucionais, não faça juízos apressados, mas permite que o tempo decida se eu sou um amigo ou um inimigo, profético na minha visão ou enganado pela arrogância.

Jesus é o Senhor

Permitam-me, porém, declarar desde o começo tanto o meu desejo consciente quanto a minha convicção. Estou procurando reformar e repensar algo que amo. Não tenho a intenção de criar uma nova religião. Eu sou um cristão e descerei ao túmulo como membro dessa família de fé. Eu penso que todas as tentativas de construir novas religiões inevitavelmente se destinam a fracassar desde o início. Nenhuma religião, incluindo o cristianismo, jamais começou a sua existência como algo de novo. Os sistemas religiosos representam sempre um processo evolutivo. O cristianismo, por exemplo, floresceu do judaísmo, que, por sua vez, havia sido em parte moldado pelos cultos do Egito, de Canaã, da Babilônia e da Pérsia. A marcha do cristianismo rumo ao predomínio no mundo ocidental foi marcada pela incorporação de elementos dos deuses do Olimpo, do mitraísmo e de outros cultos misteriosos do Mediterrâneo.

Na medida em que o cristianismo se move atualmente no mundo moderno, começa a espelhar intuições recolhidas pelas outras grandes religiões humanas. A evolução é a modalidade do percurso religioso através da história. O que eu procurarei fazer é simplesmente esboçar a evolução futura dessa tradição de fé. Deixarei que os fiéis ou os críticos de amanhã decidam se o cristianismo que sobreviverá a este século XXI ainda estará ou não em ligação com o cristianismo que irrompeu na cena da Judeia no século I e dali se moveu para conquistar o Império Romano no século IV, dominar a civilização ocidental no século XIII, sofrer a restauração pela Reforma no século XVI, seguir a bandeira da expansão colonial europeia no século XIX e se encontrar drasticamente com o século XX.

Eu permanecerei radicado na minha convicção de que a palavra de Deus representa e significa algo real. De algum modo, continuarei afirmando que a figura de Cristo era e é uma manifestação daquela realidade que eu chamo de Deus, e que a vida de Jesus abriu a todos nós um caminho para entrar nessa realidade. Isto é, buscarei defender que Jesus foi um momento bem definido no caminho humano rumo ao significado de Deus. Delinearei uma visão de como eu acredito que essa força pode transcender as épocas para permitir que as pessoas hoje sejam tocadas por ela e também entrem nela, com a necessária criação de comunidades de culto e de liturgias vivas.

Por fim, para cumprir tal tarefa, foi-me pedido que eliminasse desse cristianismo do futuro toda tentativa de tomar ao pé da letra os mitos interpretativos e as lendas explicativas do passado. Tentarei libertar o cristianismo das suas pretensões de exclusividade e da sua necessidade de poder, que distorceram totalmente a sua mensagem. Tentarei andar dentro do sistema religioso desenvolvido institucionalmente, que caracterizou o cristianismo, e lá explorar o poder que esse mesmo sistema buscou justificar e organizar. Embora deseje fugir desses limites, não tenho nenhum desejo de fugir da experiência que obrigou as pessoas de todas as épocas, até hoje , inclusive eu, a dizer: “Jesus é o Senhor!”.

Esses são os meus objetivos. Podem ser alcançados? Ou essa é a fantasia de uma pessoa que está vendo as brasas moribundas de uma tradição de fé e também de uma vida de trabalho, mas é incapaz de admitir que não podem ser reacesas?

Deixarei que os meus leitores decidam isso. No que se refere a mim, acredito que esse é o único modo para se poder continuar sendo fiel às promessas batismais que eu fiz há muito tempo: “Seguir Cristo como meu Senhor e Salvador, procurar Cristo em todas as pessoas e respeitar a dignidade de todo ser humano”.

Carlo Ginzburg, Martin Dibelius, A Bíblia é uma saga épica, composta por uma surpreendente coleção de escritos históricos, memórias e lendas, contos

Especialistas da crítica bíblica, e os arqueólogos e outros cujo trabalho complementa o daqueles, têm libertado os cristãos e judeus modernos das correntes do dogma fundamentalista, têm acentuado a dignidade da Bíblia enquanto demonstram que ela é uma obra ricamente composta que deve sua inspiração a Deus, e têm mostrado a historicidade de muitos de seus textos em grau inigualável.

Muitos desses pensamentos não estão disponibilizados ao cristianismo brasileiro hoje em dia. Portanto , decidi postar alguns aforismos que retratam essas pesquisas , em prol da informação e reflexão. Não da crítica ou imposição. Visto que, para muitos cristãos fundamentalistas todas essas teorias são anátemas, e um insulto à autoria e autoridade divinas; retire essas (a autoria e autoridade divinas), e você retira qualquer razão para se seguir a Bíblia, e até mesmo para se viver uma vida cristã.

Mas, quem tiver interesse, aí estão :
“Quase tudo que pode ser sabido a respeito de Yeshuá procede do Novo Testamento, e de escritos afins ou heréticos. Tais escritos são tendenciosos: seu intento em relação a nós, leitores ou ouvintes, é evidente e catequizador. [...] O Novo Testamento é mito e fé; não se trata de relato factual. [...] Jesus carece tanto de história quanto de biografia, e não temos como saber quais dos seus ditos são autênticos”. – Harold Bloom, professor e crítico literário estadunidense, considerado o maior crítico literário do mundo.

“A primeira compreensão proporcionada pelo ponto de vista do formgeschichte é que [os evangelhos] nunca foi um testemunho “puramente” histórico de Jesus. Seja qual forem os ditos, palavras e os atos de Jesus, eles sempre foram um testemunho de fé, formulados pela pregação e exortação a fim de converter os incrédulos e confirmar os fiéis”. – Martin Dibelius, teólogo alemão e professor de Novo Testamento na Universidade de Heidelberg.

“[...] a análise cuidadosa das narrativas da infância [de Jesus apresentadas nos evangelhos] torna improvável que qualquer um dos relatos seja histórico. [...] “Por causa da discordância entre as duas narrativas da infância, da falta de confirmação de seu material em qualquer outra passagem do Novo Testamento, da ausência de confirmação extrabíblica de acontecimentos altamente públicos nas narrativas, de aparentes incorreções (o recenseamento que afetou os galileus durante o governo de Quirino, no tempo de Herodes) e da total incerteza sobre as fontes dos evangelistas para o que é narrado, fiz um julgamento cuidadoso negando que os dois relatos possam ser completamente históricos e achando improvável que qualquer um deles seja completamente históricos”. - Raymond Brown, conhecido como “o decano dos especialistas do NT”, é atualmente internacionalmente reconhecido como um dos maiores estudiosos bíblicos que já existiu, foi o único americano a ser escolhido duas vezes por dois papas para integrar a Pontíficia Comissão Bíblia.

“Todo leitor é alguém que seleciona. Ao ler um livro, escolhe as partes com as quais mais se identifica. Os evangelistas também são assim, tanto que escreveram três evangelhos chamados sinóticos, ou seja, com a mesma perspectiva, mas completamente distintos. Ainda que semelhantes e que dêem a impressão de veicularem a mesma história, se observarmos com um olhar mais apurado, veremos que cada um dos textos [dos três evangelhos chamados sinóticos] propõe uma interpretação de Jesus diferente. Ou seja, os evangelistas deformaram Jesus”. – Paulo Nogueira, teólogo da Universidade Metodista de São Paulo – Umesp:

“A palavra “verdadeiro” tem muitos significados. Pode-se distinguir entre “verdadeiro” segundo a fé e “verdadeiro” segundo a história. Podem-se distinguir diversos níveis de verdade histórica. Que Jesus historicamente tenha existido, é difícil afirmar, porque sua vida e sobretudo sua morte chegaram até nós envolvidas e obscurecidas pela vontade de demonstrar que ele de fato fora o messias anunciado pelos profetas”. Carlo Gizburg, um dos maiores historiadores da atualidade.

“Inúmeras lendas também foram inseridas na tradição sinótica. “lenda” é uma história que narra um evento particular com detalhes admiráveis ou prodigiosos. A tradição sinótica encerra uma única lenda cultural, a da instituição da Ceia do Senhor. Todas as outras são lendas biográficas (as narrativas do nascimento e da infância, as histórias sobre João Batista, a tentação de Jesus, a entrada em Jerusalém). A maioria dessas lendas segue o modelo das narrativas da bíblia de Israel. Isso está especialmente evidente no relato da paixão, todo ele baseado nos motivos bíblicos da história do justo sofredor do Dêutero-Isaias e de vários Salmos. Típico dessas lendas é adotarem floreios descritivos com moderação e realçarem um único evento”. - Helmut Koester, estudioso do Novo Testamento, é um dos mais renomados pesquisadores da História do cristianismo primitivo”.

“Os evangelhos não fornecem informações facilmente para a compreensão histórica [...]. Eles normalmente projetam sobre a vida de Jesus controvérsias posteriores entre as comunidades cristãs e judaicas e podem simplesmente refletir uma falta de entendimento de um autor tardio das tradições à sua disposição e da sociedade palestina”. - A. J Saldarini, estudioso da história e do Novo Testamento.

“Não há confirmação irrefutável de que o homem Jesus tenha vivido. Existem argumentos propondo que Jesus é a somatória de várias personagens, ou que sua pessoa possa ter sido inflada até chegar à condição de mito. De fato é preciso se entregar a uma formidável devoção ao fundamentalismo para se acreditar piamente no que a Bíblia contém sobre o assunto. As Escrituras são contraditórias e incompletas. Na verdade, mais simbólicas do que documentais”. - Robert Funk, teólogo da Universidade de Montana e um dos bravos acadêmicos do Seminário de Jesus.

“As narrativas da Paixão não são história relembrada, mas profecia historicizada. [...]A verossimilitude sugere que os escritores que viveram no primeiro século A.D. não descreveriam um cenário totalmente implausível sem uma razão teológica. [...] as profundezas da teologia quase sempre sobrepujam a superfície da história. [...] em termos dos seus próprios interesses, algo como a plausibilidade histórica relativa, ou verossimilitude, era tudo o que os sinóticos exigiam. E essa exigência foi frequentemente deixada de lado por preocupações de ordem teológica, apologética, polêmica ou quanto à pura narrativa. [...] todos os escritores dos evangelhos, precisamente como tal, permitiram que forças teológicas, apologéticas, polêmicas ou referentes à narrativa pura prevalecessem sobre a plausibilidade histórica superficial, em graus variados. ”. – John Dominic Crossan, teólogo e figura importante no campo da arqueologia bíblica, antropologia, Novo Testamento e Alta Crítica.

“[Entre os] documentos cristãos mais antigos, os evangelhos [...] não podem ser usados para focalizar dados históricos objetivos do período (da vida de Jesus). Os evangelistas já estão impregnados pela reflexão teológico-cristológica da comunidade cristã tardia, de maneira que passam uma versão já metamorfoseada da comunidade primeva [...] [Por isso] não se deve perder de vista que a redação final dos evangelhos não foi feita sem antes ter passado por um complexo período oral, havendo, portanto, uma seleção natural dos relatos que estavam sendo redigidos. Esse processo, longo e gradual, influenciou o rumo teológico que estava em formação nas comunidades cristãs”. - Donizete Scardelai, teológico e estudioso do Novo Testamento.

“Os quatro evangelhos são realmente fontes difíceis; o fato de serem os primeiros escolhidos da rede não significa a garantia de que eles reproduzem as palavras e os atos históricos de Jesus. Impregnados da fé pascal da Igreja Primitiva, altamente seletivos e ordenados segundo diversos programas teológicos, os Evangelhos canônicos exigem uma seleção minuciosa para deles se retirar informações confiáveis à pesquisa. [...] Décadas de adaptação litúrgica, expansão homilética e atividade criativa por parte dos profetas cristãos deixaram sua influencia nas palavras de Jesus nos Quatro Evangelhos”. – John P. Meier, especialista em Novo Testamento, e padre católico. Editor da The Catholic Biblical Quarterly e presidente do Catholic Biblical Association. É autor da série “Um Judeu Marginal”.

“[...] hoje não sabemos quase nada com relação à vida e à personalidade de Jesus, já que as primeiras fontes cristãs não revelam interesse em qualquer dos dois aspectos, além de serem fragmentárias e, no mais das vezes, baseadas em lendas….” – Rudolf Bultmann, foi docente na área de Bíblia e Novo Testamento em Marburg. Ocupou-se com muitos temas da teologia, filologia e arqueologia.

“[...] a natureza da tradição sinóptica é tal que o ônus da prova recairá sobre a alegação de autenticidade”. - Norman Perrin, Norman Perrin foi Professor de Novo Testamento na Divinity School, da Universidade de Chicago.

“Jamais li algo tão tendencioso quanto os Evangelhos”.– Harold Bloom, professor e crítico literário estadunidense, considerado o maior crítico literário do mundo. Autor de “Jesus e Javé” e “O Livro de J”.

“Considero a maior parte dos Evangelhos leitura sumamente desagradável. [...] Pergunto-me por quanto tempo, e até onde, é possível se esquivar ou resistir à sugestão de que a estruturação editorial das Escrituras é, fundamentalmente, um processo desonesto”. Northrop Frye, um dos mais célebres críticos literários do século XX. Autor de “Anatomia da crítica” e de “O código dos códigos”.

“O consenso arqueológico, pelo menos até o ano de 1990, era de que a Bíblia poderia ser lida basicamente como um documento histórico confiável. [...] Agora, é evidente que muitos eventos da história bíblica não aconteceram numa determinada era ou da maneira como foram escritos. Alguns eventos famosos da Bíblia jamais aconteceram inteiramente”. - Israel Finkelstein, ex-Diretor do Instituto de Arqueologia Sonia e Marco Nadler da Universidade de Tel Aviv, Israel, de 1996 a 2002. Em 2005 tornou-se o titular da Cátedra Jacob M. Alkow de Arqueologia de Israel nas Idades do Bronze e do Ferro da mesma Universidade, e ganhou, com Graeme Barker, o prêmio Dan David, de 1 milhão de dólares.

“As recentes descobertas da arqueologia têm revolucionado o estudo do antigo Israel e jogaram sérias dúvidas sobre as bases históricas de muitas narrativas bíblicas, como as peregrinações dos patriarcas, o êxodo do Egito e a conquista de Canaã, e o glorioso império de Davi e Salomão”. – Israel Finkelstein, atualmente considerado o maior arqueológico bíblico que existe.

“[A Bíblia é] uma saga épica, composta por uma surpreendente coleção de escritos históricos, memórias e lendas, contos folclóricos e historietas, propaganda real, profecia e poesia antiga. [...] É uma coleção de lendas, leis, poesia, profecias, filosofia e história”. - Israel Finkelstein, autor do livro “E a Bíblia não tinha razão”.

“São inúmeras as contradições entre os achados arqueológicos e as narrativas bíblicas para propor que a Bíblia ofereça uma descrição precisa do que ocorrera de fato”. – Israel Finkelstein, historiador e arqueólogo.

“As escrituras não são infalíveis; não são a ‘palavra de Deus’; o que lemos hoje é às vezes apenas uma versão textual entre alternativas anteriores; seu relato pode ser demonstravelmente falso (como as conquistas de Josué ou a Natividade de Jesus); pode atribuir a determinadas pessoas palavras que nunca pronunciaram. [...] Os acontecimentos e os relatos são muitas vezes inverídicos por serem contraditórios ou por não corresponderem a fatos que conhecemos de outras fontes”.– Robin Lane Fox, acadêmico inglês historiador, professor em Oxford, e especialista em História Antiga.

“O mundo dos relatos das Sagradas Escrituras não se contenta com a pretensão de ser uma realidade histórica verdadeira – pretende ser o único verdadeiro, destinado ao domínio exclusivo. Qualquer outro cenário, quaisquer outros desfechos ou ordens não tem direito algum a se apresentar independentemente dele, e está escrito que todos eles, a história de toda a humanidade, se integrarão e se subordinarão aos seus quadros. Os relatos das Sagradas Escrituras não procuram o nosso favor [...], não nos lisonjeiam para nos agradar e encantar – o que querem é nos domina, e se nos negarmos a isso, então somos rebeldes”. – Erich Auerbach, filólogo alemão e estudioso de literatura comparada assim como crítico de literatura.

“Na década de 1960 havia um grande debate acerca da veracidade do relato bíblico a respeito dos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó. O famoso arqueólogo William Allbright defendeu a historicidade dos patriarcas. Hoje, este debate está superado. Nenhum arqueólogo ou historiador atualmente considera o Gênesis como uma descrição de eventos históricos daquela época. Neste ponto, é impossível retroceder. Estamos vivendo um processo de liberação da arqueologia de uma leitura muito conservadora e ingênua do texto bíblico. Isto não poderá ser interrompido ou dramaticamente revertido”. – Israel Finkelstein, atualmente considerado o maior arqueológico bíblico que existe.

“Infelizmente, o conhecimento que dele [do movimento de Jesus no início] temos é limitado e distorcido pela inabilidade da parte inicial dos Atos dos Apóstolos. Lucas, imaginando-se que ele tenha escrito esse documento, não se encontrava em Jerusalém na época. Não era uma testemunha ocular. Era membro da missão aos gentios e produto do movimento da diáspora. Não nutria simpatia cultural nem, na verdade, doutrinal para com os apóstolos pentecostais; nesse contexto, não só era um forasteiro como estava mal-informado”. – Paul Johnson, historiador e autor de “História do Cristianismo”.

“Os últimos dias da vida de Jesus não ocorreram da maneira relatada nos Evangelhos. Nem quem os escreveu sabia o que aconteceu. Fica muito claro pela narrativa bíblica que os evangelistas fogem, eles não estão lá. Jesus fica sozinho em seus últimos dias. Não tenho a menor dúvida em afirmar que os detalhes da narrativa são ficcionais, são uma invenção”. – Gabriele Cornelli, professor de filosofia e teologia, da Universidade Metodista de São Paulo.
“[...] os quatro Evangelhos Canônicos certamente apresentam semelhanças com as biografias greco-romanas (juntamente com outros tipos de literatura da época, como o “romance”, ou novela). [...] o que consideramos o principal indicio de um romance histórico – a criação do diálogo ou a utilização de personagens não-históricos – era admissível nos antigos textos históricos. Assim, as linhas divisórias entre o que se poderia considerar história e romance histórico já não eram muito nítidas na literatura antiga”. – J. P. Meier, em “Um Judeu Marginal.

“Os esforços de se reconstituir a tradição literária [dos Evangelhos bíblicos] por meio de uma análise das formas literárias (Crítica da Forma) levou muitos eruditos à conclusão de que a formulação e preservação da tradição acerca de Jesus foi estimulada não por interesses históricos, mas por interesses intrinsecamente relacionados á fé”. — W. G. Kürnmel, especialista alemão em Novo Testamento.

“Os Evangelhos são propaganda religiosa projetada para converter o leitor. Sejamos honestos e admitamos que os Evangelhos são parciais a favor de Jesus”. – Joel Stephen Williams. Este autor é um cristão fundamentalista que, não conseguindo mais se segurar, enfim confessou a tendenciosidade dos evangelhos.

“[...] seria difícil tirar outra conclusão senão esta: que a credibilidade dessas narrativas é nula. [...] Os evangelistas, cada um de seu modo, cuidam de harmonizar esses prelúdios a sua concepção teológica. São narrativas com teor querigmático, não relatos históricos”. – Rochus Zuurmond, professor de teologia bíblica da Universidade Livre de Amsterdã, na Holanda.

“O processo de falsificação e modelagem sobre o homem Jesus, suas palavras e ações, começaram bem mais cedo no cristianismo e já estava numa fase bastante avançada quando aparece no Novo Testamento”. - Gerd Ludemann, professor de História do Cristianismo Primitivo, na Alemanha.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Karl Barth e Wolfhart Pannenberg acerca da doutrina da Revelação

Neste artigo, buscar-se-á efetuar uma análise comparativa entre o pensamento de Karl Barth e Wolfhart Pannenberg acerca da doutrina da Revelação, utilizando-se como ferramenta básica o método dialético[1], a partir de três níveis:

No primeiro, será feita uma releitura do pensamento de ambos a partir de seus desenvolvimentos na direção oposta de sua respectiva ênfase inicial, isto é, a busca de Barth por encontrar imanência da transcendência da Palavra de Deus e a busca de Pannenberg por expressar a transcendência divina na imanência de seu agir histórico. Ambos convergem aqui para a idéia de revelação como evento.

No segundo nível, será demonstrada uma tripla relação dialética que pode ser percebida na concepção da Revelação em ambos os autores, a partir da relação entre Palavra e História como Promessa, como Mandamento e como Proclamação.

Por fim, no terceiro, serão levantados alguns pontos de divergência que esta proposta não consegue conciliar, mas que, ainda assim, são salutares para uma compreensão plenamente abrangente da doutrina da Revelação.

1. Um caminho para a convergência

A priori, é necessário lembrar aqui que Pannenberg foi aluno de Barth na Basiléia e, em certa medida, é devedor dele. Assim, é boa atitude aplicar esta perspectiva dialética à relação entre eles, para que se possa vislumbrar pontos de convergência entre as posições de Karl Barth e Wolfhart Pannenberg. E precisamente neste sentido, Paul Ricoeur[2]propõe um caminho para o diálogo: “No encontro com o que poderíamos chamar de idealismo do evento-palavra, devemos reafirmar o realismo do evento-história”[3].

A proposta de Ricoeur se reveste de importância, uma vez que ele identifica duas linguagens na Revelação, a saber, o idealismo do evento-palavra e o realismo do evento-história, que, apesar de distintas, estão associadas e relacionam-se numa perspectiva dialética a partir de uma essência comum: seja em palavra ou na história, a Revelação é sempre evento! Aqui pode ser encontrado um importante ponto de contato, que pode servir de fio condutor para uma tentativa de convergência e equilíbrio entre as propostas de Karl Barth e Wolfhart Pannenberg.

1.1. Idealismo evento-palavra: buscando a imanência na transcendência

Este veio condutor apontado por Ricoeur aparece freqüentemente na obra chamado “velho Barth”, isto é, seus escritos do período da Die Kirchliche Dogmatik. Em sua obra de 1946, Esboço de uma Dogmática, que lhe serve de introdução programática, Barth sinaliza esta compreensão ampliada do caráter da Palavra de Deus como Revelação, o idealismo do evento-palavra:
O centro de que falamos é a Palavra que atua ou, se preferirmos, a ação da Palavra de Deus. Desde logo, tenho de chamar a atenção de vocês para o fato de que nesse centro vivo da fé cristã, a oposição tão freqüente entre palavra e ação, doutrina e vida, não tem nenhuma sentido. Pois a Palavra, logos, aqui se identifica com a obra, ergon, Verbum coincide com opus. Por tratar-se de Deus e do próprio coração da nossa fé, essas diferenças que nos parecem tão interessantes e essenciais são, não apenas supérfluas, mas ainda perfeitamente absurdas. Deus fala, Deus age, Deus ocupa o centro de tudo: a verdade se traduz em ato, o ato se manifesta com a força da verdade. A Palavra é ação, uma ação tal que é, ela mesma Palavra, revelação.[4]

João Calvino[5]já havia sinalizado esta compreensão dialética da Revelação quando identificava nela duas realidades ou perspectivas: a opera Dei e a oracula Dei[6]. O próprio Barth destaca esta aproximação proposta por Calvino[7]. As obras de Deus se relacionam com a sua Palavra de maneira intrínseca: Suas obras dão fundamento às Suas palavras e estas dão sentido àquelas. A Palavra é mais que a “fala”, a Palavra é a forma soberana de expressão divina:

“Dizer ‘a Palavra de Deus’ é dizer a obra de Deus. Não se trata apenas de encarar a realidade, mas um estado ou assistir um evento, e um evento que é relevante para nós, um evento que é um ato de Deus, e um ato de Deus que repousa sobre uma decisão livre. E a Palavra de Deus é de eternidade a eternidade não nos permite escapar. Pois ela acontece, e acontece, e simplesmente acontece.”[8]

Além disso, sobre a perspectiva barthiana da Palavra que age livre e soberanamente, Trevor Hart[9]escreveu:

“Barth nos lembra, que isto está muito longe de ser o retrato da Palavra viva de Deus dada ao conhecimento dos profetas e apóstolos. Esta Palavra é um poder soberano e livre que nunca poderia ser domesticado, nunca poderia ser contido ou controlado sob qualquer uma das formas criadas (no entanto estreitamente associados a determinados fenômenos que podem ser criados ou tornar-se): a Palavra de Deus fala em sua incriada liberdade soberana.”[10]

Sabe-se que o labor teológico de Karl Barth voltou-se contra a teologia liberal. Assim, em seu discurso, ele acentuou a alteridade de Deus e, conseqüentemente, deu à luz a uma concepção da revelação de viés notadamente transcendente, através do conceito da infinita diferença qualitativa entre Deus e os homens, isto é, do Deus totalmente outro.

Conforme já salientado, em sua segunda fase, após o início da publicação da Die Kirchliche Dogmatik, em 1932, Barth atenuou este discurso e sinalizou a busca por uma aproximação de Deus para com a humanidade, isto é, a imanência na transcendência: “Ele é imanente apenas porque é transcendente. Esta é a realidade que faz com que a recordação passada da revelação de Deus diferente, a partir da reflexão sobre a sua própria razão de ser atemporal.”[11]

Foi neste sentido que, em 1956, numa preleção mais tarde publicada sob o sugestivo título de Humanity of God [Humanidade de Deus], Barth assumiu sua ênfase unilateral na transcendência de Deus durante o embate contra o liberalismo:

“Certamente eu não estou enganado quando eu presumo que o nosso tema hoje deve sugerir uma mudança de rumo no pensamento da teologia evangélica. Nós estamos agora ou deveríamos estar empenhados nessa mudança, e não em oposição a ninguém, mas ao menos na distinção das primeiras mudanças.”[12]

Além disso, ele apontou um caminho para a busca da imanência divina, e o fez sem abandonar suas convicções fundamentais já demonstradas nos volumes da Die Kirchliche Dogmatik publicados até então. Barth continua defendendo a transcendência divina, mas aponta para a humanidade de Deus como sua face imanente ao mundo e ao homem: “Quem talvez não tenha aderido mais cedo a esta mudança de direção, que ainda podem ficar impressionado com o fato de que Deus é Deus, certamente não vê que está agora sendo buscada como a verdadeira Palavra relativa à Sua humanidade.”[13].

É na humanidade de Jesus Cristo que Deus se faz presente neste mundo. De sua transcendência, Deus decidiu tornar-se homem e fazer-se próximo do mundo e dos seres humanos. Por amor aos homens, Deus, o Senhor, escolheu fez-se servo:

“Em sua vontade e eleição divinamente livres, em sua decisão soberana (os antigos disseram: em seu decreto), Deus é humano. Sua livre afirmação humana, sua livre forma, sua substituição gratuita – trata-se da Humanidade de Deus. Nós reconhecemos isso exatamente no ponto em que nós também reconhecemos primeiramente sua divindade.”[14]

Ademais, mais à frente, Barth propõe ainda um ajuste na linguagem da teologia e da pregação: “Um pouco da linguagem ‘não-religiosa’ da rua, dos jornais, da literatura e, se for o caso, também um pouco da linguagem filosófica por, pois, ser oportuno em nosso discurso”[15].

É, portanto, a partir da realidade da Encarnação, da decisão e da ação de Deus se tornar homem, que Barth propõe a retificação do discurso unilateral acerca da Palavra de Deus, ampliando seu sentido para abarcar um conceito mais próximo aos seres humanos. Assim, Trevor Hart conclui:

“A resposta a estas perguntas, percebe Barth, estabelecem a insistência em que, em Jesus o próprio Deus ‘tornou-se carne’’, e entrou em uma esfera de existência criatural. Deus, em outras palavras, tornou-se uma parte do mundo, dos fenômenos em que o conhecimento humano surge normalmente. Neste sentido, a encarnação é o objetivo principal e condição para a possibilidade de auto-revelação de Deus no mundo. A Palavra ‘tornou-se carne’.”[16]

1.2. Realismo evento-história: buscando a transcendência na imanência

Em princípio, é necessário esclarecer que a crítica de Pannenberg quanto ao positivismo revelacional presente na idéia de Revelação como Palavra, não se volta apenas contra a obra de Karl Barth, mas também contra outros proponentes da Teologia da Palavra. Na verdade, como se tem tentado demonstrar aqui, sua distância em relação ao teólogo suíço não é tão grande quanto faz parecer o caráter apologético de seus escritos programáticos. Todavia, como afirma Paul Ricoeur, Pannenberg faz uma “tentativa de justificar a ênfase unilateral de Ernst Fuchs e Gerhard Ebeling”[17].

Deste modo, em sua defesa de uma compreensão da revelação para o homem moderno, pode-se perceber também em Pannenberg uma ênfase um tanto exacerbada, mas no sentido oposto de Barth. Enquanto Barth acentuou a transcendência divina como resposta à teologia liberal, Pannenberg enfatizou a imanência da Revelação, na tentativa de criar um canal válido de diálogo com o mundo pós-iluminista.

Todavia, Pannenberg também aceita conceitos análogos aos propostos por Ricoeur para o entendimento da dupla linguagem da revelação divina, a saber, o ato-revelação e a palavra-revelação, conforme descreve Stanley J. Grenz:

“Pannenberg enaltece a ênfase sobre a conectividade de manifestação e de inspiração do ato-revelação e da palavra-revelação, que se desenvolveram nos anos subsequentes. Nesse debate Martin Kähler procurou renovar a unidade da idéia através do conceito de revelação da Palavra de Deus. Ele preparou o caminho para Barth, a quem Pannenberg critica pela redução do conceito da revelação de Deus ao discurso divino, em contraste com o aspecto complexo e multilateral do testemunho bíblico para a revelação.”[18]

O próprio Pannenberg identifica em Martin Kähler o precursor da doutrina barthiana da tripla forma da Palavra de Deus, resgatando o conceito joanino de Palavra de Deus aplicado a Jesus, apontando ao mesmo tempo para a realidade de uma palavra inspirada e para os fatos históricos no evento da revelação. Assim, esta Palavra transcende a distinção entre manifestação e inspiração[19].

Outrossim, Pannenberg admite também que o falar de Deus deve ser visto como auto-revelação em Sua Palavra, mas ele defende uma concepção mais abrangente da revelação, a partir dos próprios relatos bíblicos. Para ele, a Bíblia oferece outras idéias e analogias acerca da Revelação:

“Ao dizer isto não estou dizendo que é inadequado falar biblicamente de Deus revelando-se na sua Palavra. Meu ponto é que esta tese precisa de mais nuance de justificação bíblica do que pode ser dada simplesmente apresentar João 1.1 e Hebreus 1.1-2. Uma vez que a Bíblia oferece outras idéias da revelação tanto quanto a de Palavra de Deus, é essencial para investigar a relação destas com outras idéias além da Palavra.”[20]

Ademais, Pannenberg admite, ainda, que a linguagem analógica é vital para a teologia, sem a qual seria impossível, inclusive, de se falar de Deus[21]. A analogia é necessária para expressar um dado objeto que se origina numa linguagem distinta. Por esta causa, a Palavra de Deus como forma de expressão se integra à sua ação histórica, dando-lhe expressão e sentido para o ser humano. Refletindo precisamente nesta mesma direção, Stanley J. Grenz aponta para uma interpretação do conceito do Logosna interpretação de Pannenberg que lembra em muito a perspectiva de Karl Barth:

“O ‘Logos’ para Pannenberg faz a ligação entre a busca e a revelação da Palavra de Deus para a idéia da auto-manifestação de Deus através do seu agir na história. Jesus, por sua vez, é a palavra de Deus como a essência tanto do plano divino histórico e escatológico de Deus para a Criação, mas que Ele já antecipou, revelação.”[22]

2. Uma tripla relação dialética entre Palavra e História

Como, então, se pode tentar sistematizar esta relação dialética entre a Palavra e a História na doutrina da Revelação?

Para Pannenberg, os eventos são o foco primário da Revelação, enquanto as palavras os interpretam, se reportam a eles e fortalecem o seu significado, inclusive no âmbito pessoa. Assim, ele assevera que estes eventos devem ser interpretados no contexto da tradição histórica[23]. Fato e interpretação estão intrinsecamente conectados[24].

Assim, Pannenberg propõe uma tripla relação dialética entre Palavra e História[25]que, de certa maneira, aproxima-se da concepção barthiana já apresentada anteriormente[26]: A Palavra prediz a História como promessa, interpreta a História como mandamentoe alude à história como proclamação[27].

2.1. A Palavra prediz a História como Promessa

Em primeiro lugar, a Palavra prediz a História, como Promessa. Desde o Antigo Testamento, esta é uma das formas do discurso bíblico mais identificadas com o conceito da Revelação. Este é o núcleo original da idéia tradicional de revelação, identificada numa dupla autoria de fala e escrita, a fala de um outro atrás da fala de um profeta[28]. Todavia, ela quer dizer mais do que isso: a promessa se liga à ação de Deus na História e fala deste agir a partir da perspectiva da fé.

No Antigo Testamento, o ministério do profeta não era simplesmente predizer o futuro, mas trazer a Palavra de Deus para um dado contexto singular na História. Assim, ele falava em nome de Deus, expressando Sua vontade, cuja obediência ou não trazia conseqüências para o presente e para o futuro. Desta forma, vê-se no ministério profético, especialmente no gênero literário do oráculo, a expressão da Palavra ligando-se à História na perspectiva da Promessa.

Karl Barth, assim entendeu: “A esperança da revelação futura repousa sobre a fé que toma lugar de uma vez por todas. Desta forma decisiva a relação da Igreja com a revelação é atestada pela Bíblia”[29]. É pela via da fé que a olhar da humanidade volta-se para a esperança na futura revelação de Deus, mas sempre com base firmemente alicerçada na revelação passada, conforme testemunhada na Sagrada Escritura.

Wolfhart Pannenberg aprofunda ainda mais esta idéia e, pitorescamente, numa perspectiva bastante próxima à concentração cristológica evidente na Teologia da Palavra de Deus de cunho barthiano:

“É verdade que a sua comunicação pelos escritos proféticos difere da revelação que se realizou em Jesus Cristo, mas é a partir das previsões dos escritos proféticos que nós sabemos que, em Jesus Cristo a revelação do plano divino de salvação se realizou.”[30]

Por outro lado, Barth confirma esta visão e a aponta para a proclamação desta esperança na futura revelação divina, a partir da revelação contida nas palavras dos profetas e apóstolos:

“Se nos profetas e apóstolos, a Igreja tem um contraponto concreto pelo qual é lembrado de Deus do passado da Revelação, fixado na expectativa de uma futura revelação, e portanto, convocados para a revelação e fortalecidos por ela, isso acontece porque ele realmente tem neles a revelação escritores do passado. (…) O que os torna esta é a ocorrência da revelação de Deus em si para além da sua própria existência.”[31]

Pannenberg, então, evoca a apocalíptica como a herdeira da linguagem do profetismo e que aponta para esperança escatológica na revelação de Deus que já se realizou, mas que será plenificada no retorno de Jesus Cristo[32]. Esta esperança, portanto, se identifica com a proclamação do evangelho apostólico que se refere à Revelação de Deus levada a termo em Jesus Cristo, conforme proclamado pela mensagem da cruz, e que se revelará plenamente no governo de Deus sobre todas as coisas[33]. Assim, a Palavra prediz a História como Promessa.

2.2. A Palavra interpreta a História como Mandamento

Em segundo lugar, a Palavra interpreta a História como Mandamento. A partir da compreensão da ação histórica de Deus entende-se que ela também revela Seus intentos e Sua vontade para o ser humano. Não se fala aqui de especulação teórica, mas de dimensão prática, de prescrições e instruções a serem praticadas[34]. E, ao contrário do que possa parecer, o discurso prescritivo na Bíblia também aponta para a História, mas na perspectiva do desígnio de Deus revelado através de suas ações, conforme esclarece Paul Ricoeur:

“Se ainda podemos aplicar a idéia do desígnio de Deus para os humanos a isso, não está mais no sentido de um plano que poderíamos ler em eventos do passado ou futuro, nem é em termos de uma codificação imutável de cada prática comum ou individual. Antes é o sentido de um requisito para a perfeição que intima a uma vontade e faz uma reivindicação sobre isso. Da mesma maneira, se continuarmos a falar de revelação como histórica, não é somente no sentido que traços de Deus podem ser lidos em eventos históricos, mas no sentido de que ele orienta a história de nossas ações práticas e engendra a dinâmica de nossas instituições.”[35]

Karl Barth vê estreita relação entre a palavra salvífica de Deus no Evangelho e os mandamentos que Ele determinou aos homens. Destarte, para ele, o Evangelho fala da vontade de Deus para os homens e a Lei diz o que Deus requer dele. Não há oposição entre Lei e Evangelho, pois ambos são expressão da graça de Deus:

“A Palavra de Deus é tanto Evangelho como Lei. Não é Lei, por si mesma e independente do Evangelho. Mas não é Evangelho sem Lei (…) A verdade do Evangelho indica uma mudança total que celebre torna-se um ponto de exclamação. Torna-se ele próprio um imperativo.”[36]

2.3. A Palavra alude à História como Proclamação

Em terceiro lugar, a Palavra alude à História como Proclamação. É preciso compreender que a marca de Deus está na história antes de estar no discurso. O agir de Deus na história é o fato primário da revelação e somente a partir deste fato primário a história é trazida para o ato-fala da narração, que é o cerne da proclamação[37].

É precisamente para esta direção que aponta a tripla forma da Palavra de Deus na teologia barthiana: a Palavra Revelação é a expressão originária da Revelação, de onde descendem a Palavra Escrita, isto é, o testemunho da Escritura, e a Palavra Pregada, ou seja, a proclamação da Igreja. Barth afirma:

“Como a Bíblia é o testemunho do Deus da revelação e como a Proclamação da Igreja retoma este testemunho, em obediência, ambos renunciam a quaisquer fundamentos para além do que Deus estabeleceu de uma vez por todas. Tanto a Bíblia como a Proclamação recorrem ao fato foi dado aqui e agora. Eles não podem reproduzi-lo como um fato dado. Eles não podem trazê-lo à cena por si próprios. Eles só podem atestá-lo e proclamá-lo.”[38]

Pannenberg, por sua vez, enfatiza ainda mais a importância da ação histórica de Deus em Sua Revelação. Para ele, a História é o palco da revelação por excelência. Ele entende que a proclamação kerigmática implica na comunicação universal da ação de Deus em Jesus Cristo, qualquer outra forma de conceber a revelação não trará nenhum resultado[39]. Não obstante, esta ação de Deus na encarnação de Jesus é entendida por Pannenberg no contexto da ação histórica de Deus para a qual a comunicação verbal faz referência: “No que diz respeito ao processo de comunicação verbal como a base inalienável de tudo o que se fala do Deus da ação na história, incluindo a encarnação.”[40].

A Palavra proclama os atos e feitos de Deus, segundo Barth, e, nesta proclamação, Deus continua agindo:

“Palavra de Deus é a palavra que Deus falou, fala e haverá de falar em meio aos homens – a todos os homens – quer seja ouvido, quer não o seja. É a palavra de seu agir nos homens, a favor dos homens, com os homens. Este seu agir não é nenhum agir mudo; é um agir que fala por sua própria natureza. Sendo que só Deus é capaz de realizar o que realiza, só ele será capaz de dizer em seu agir o que diz. E, por seu agir não ser dúbio, mas sim, uno e inequívoco (e isso, em suas formas múltiplas, e dentro de seu movimento que parte da origem e que visa o alvo), também sua palavra, em toda a sua excitante riqueza, é única e inequívoca. Não é dúbia – é evidente. Não é obscura – é clara, portanto compreensível – tanto para o mais sábio como para o mais estulto. Deus age – e agindo, fala. Sua palavra acontece.”[41]

3. Pontos irreconciliáveis: a amplitude da análise dialética

Conforme já foi salientado na introdução, não é objetivo deste trabalho propor uma síntese dos pensamentos de Karl Barth e Wolfhart Pannenberg acerca da doutrina da Revelação, mas apenas apontar caminhos de convergência na busca de uma compreensão mais ampla quanto possível da linguagem da auto-Revelação de Deus como Palavra e como História. Todavia, mesmo após todos os esforços, evidentemente há pontos dos pensamentos de ambos que demonstram-se distintos e irreconciliáveis.

Não obstante, percebe-se, agora, após o este esforço dialético, que estas divergências façam referência mais a questões metodológicas do que, propriamente, à essência e linguagem da Revelação. Aqui, serão enfatizados três pontos básicos da permanente divergência entre eles, todos relacionados à metodologia teológica e não à compreensão da doutrina da revelação em si. Deste modo, aponta-se para um problema mais de epistemologia do que propriamente de conteúdo teológico.

O primeiro destes pontos está ligado aos respectivos contextos em que tanto Barth quanto Pannenberg produziram suas reflexões teológicas. Ambos foram condicionados por uma postura apologética (Barth ante o liberalismo e Pannenberg para com o iluminismo) que os fizeram acentuar determinados pontos e radicalizar o seu discurso. Como toda e qualquer reflexão de cunho apologético, as teologias de Barth e Pannenberg carregam em si uma linguagem pesada e radical contra os seus oponentes. Assim, as divergências se acentuam muito mais que as convergências.

Pannenberg, por exemplo, reconhece o conceito mais amplo de Palavra de Deus na concepção de Barth, para, logo depois, criticar o que ele ainda considera um conceito aquém das demandas do mundo moderno, cuja razão histórica deve ser considerada:

“Conforme Barth disse, o pressuposto deste conceito ampliado da Palavra de Deus é o fato de que a Palavra de Deus não é apenas a fala de Deus, mas também o ato de Deus. Mas, em Barth, não é o ato de Deus apenas como o discurso de Deus, como uma expressão do poder do falar divino.”[42]

O segundo ponto de divergência que permanece entre os dois, mesmo após o esforço do diálogo, relaciona-se com a dependência de Pannenberg da linguagem hegeliana acerca da Revelação e sua relação com a História Universal. Linguagem esta que Barth criticara anteriormente nos seguintes termos:

“Os homens sempre acreditaram ter feito uma grande descoberta quando conseguiram demonstrar que Jesus Cristo não podia deixar de ser o ponto culminante de toda história. Achado medíocre, na verdade! Mesmo a história do povo de Israel não saberia se prestar a uma tal demonstração. Certamente, a posteriori, é lícito e mesmo necessário afirmar: nesse homem, nesse povo, a história se realizou…; mas ela o fez seguindo uma linha absolutamente nova e escandalosa do ponto de vista dos fatos históricos!”[43]

Ao criticar a cosmovisão hegeliana, Barth também fez uma crítica antecipada ao posterior esforço de Pannenberg. Como visto anteriormente, após sua primeira fase dialética em Der Römerbrief, Barth buscou retirar de sua reflexão teológica toda e qualquer influência filosófica externa, mormente, da filosofia existencialista que ele, conscientemente, havia escolhido como linguagem de expressão teológica em sua primeira fase. Para Barth:

“O conhecimento de Deus não é uma capacidade inata da natureza ou da experiência humana, mas é possível apenas porque Deus graciosamente o concede em Jesus Cristo, que é tanto Deus quanto homem. Ou a pessoa “vê” Jesus Cristo como o Caminho, a Verdade e a Vida ou ela não o vê de forma alguma. Nada há como provar essa verdade. Aliás, toda tentativa de provar a pessoa de Cristo beira a idolatria, pois coloca Deus e sua revelação sob a análise da razão humana.”[44]

Muitos teólogos, no entanto, afirmam que este intento de Barth, a saber, o de refletir teologicamente sem qualquer influência de linguagem filosófica, é demasiadamente ingênuo. Embora se perceba que, de fato, a partir de sua Die Kirchliche Dogmatik, Barth diminuiu consideravelmente a dependência da filosofia existencialista, percebe-se também que permaneceram outras influências filosóficas, como o positivismo kantiano na doutrina da revelação, segundo a crítica de Pannenberg, e até mesmo continuidades com o pensamento de Schleiermacher[45], como assevera Bruce L. McCormack[46].

Todavia, o terceiro e mais sério ponto de divergência é mesmo a questão da acessibilidade da Revelação. Enquanto Barth defende que ela só pode ser conhecida mediante o conhecimento de Jesus Cristo, Pannenberg assevera que a revelação não só se dá na História, como percebeu-se que Barth também entende, mas que ela também está acessível ao homem através da investigação pelos métodos da razão histórica.

Eberhard Busch enfatiza esta diferença a partir da análise do conceito barthiano da total liberdade divina na Revelação:

“A revelação de Deus, portanto, envolve a sua ocultação. Isso não significa que Ele não está presente na sua revelação, nem que a sua revelação seja condicionada pela nossa fraqueza humana. A razão para isto que, na sua revelação, Deus nos livre graça, independentemente de qualquer queixa ou a capacidade da nossa, postula ele próprio como um objeto de nosso conhecimento humano. Ele faz isso de tal maneira que, uma vez que ele é Deus, ele opôs qualquer tentativa de ganhar controle humano de Deus. Se ele não fosse um objeto, neste sentido, não seria Deus envolvente.”[47]

Assim, mais especificamente, Laurence W. Wood esclarece que a posição de Pannenberg está estreitamente identificada com sua confissão luterana, uma vez que ele defende a idéia de que o Espírito é inerente à Palavra e, por isso, a iluminação não depende unilateralmente de Deus ou de Sua vontade, como afirma a teologia reformada:

“Pannenberg afirma que o Espírito Santo é inerente às palavras da Escritura e que a fé em Cristo está habilita a ouvi-lo independentemente da sua sofisticação teológica. Ele escreve: ‘A própria palavra traz o espírito com ela’. Esta idéia de que a própria palavra está intrinsecamente permeada pelo Espírito é tipicamente luterana e não é exclusivo da teologia de Pannenberg.”[48]

Do outro lado, Wood explica que a concepção barthiana, que evoca sua herança reformada, defende a estrita necessidade da iniciativa divina para acessibilidade da Revelação, em perfeita consonância com as doutrinas propostas por João Calvino:

“Embora Barth coloque a Revelação dentro da história, a revelação não está sujeita à análise histórica. Aqui, Barth está muito mais próximo de Kierkegaard, que enfatizou que a revelação tem sua única condição em Deus somente. Barth também enfatizou que a Palavra de Deus é ato de Deus. A Revelação é atestada na Bíblia, que procede do Pai, é objetivamente permeada pelo Filho, e subjetivamente tornada possível graças ao Espírito Santo.”[49]

Conclusão:

A abordagem comparativa na teologia contemporânea, a partir das obras de Karl Barth e Wolfhart Pannenberg, demonstra que há uma possibilidade de convergência firmada sobre o conceito de Revelação como evento, sejam eventos de palavra ou de história. Na esteira deste diálogo, o próprio Pannenberg sugere uma tripla relação dialética entre Palavra e História na Revelação, como promessa, como mandamento e como proclamação. Entretanto, permanecem divergências, que apontam mais para a questão metodológica do que conceitual, especialmente na linguagem aplicada pelo contexto apologético, na dependência de Pannenberg da filosofia hegeliana e, a mais importante divergência, que se coloca sobre a acessibilidade do conhecimento auto-relevado de Deus.

Entende-se, portanto, que o problema central da doutrina da Revelação é, portanto, mais do que uma questão da linguagem pela qual se expressa, se em Palavra ou História, uma questão epistemológica. Para Barth, o conhecimento de Deus só é possível por Ele mesmo, de forma direta. Já para Pannenberg, ela é inerente à sua ação na História, sendo acessado de forma indireta pelo estudo da História. Nisto tanto Barth quanto Pannenberg afloram suas orientações confessionais.
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[1] A Dialética é um método do pensamento e da linguagem, onde as realidades se relacionam numa perspectiva dialógica. A etimologia grega desta palavra aponta precisamente para este sentido: um diálogo. A utilização do método dialético como expressão de pensamento e análise da realidade, remonta ao período filosófico grego clássico. A dialética visa a um diálogo, uma discussão entre opiniões e idéias contraditórias para que o pensamento e a linguagem passem da contradição entre as aparências à superação do contraditório, conforme entendeu Platão, um dos mestres da dialética clássica. No período moderno, o método dialético ficou muito ao nome de Hegel, a partir de seu conhecido modelo de tese, antítese e síntese. Para ele, este método é a única maneira pela qual se pode alcançar a realidade e a verdade a partir do movimento interno de contradição. Este método foi freqüentemente usado na teologia, desde os reformadores até a teologia contemporânea. Cf. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia, p. 181s, 202ss.
Neste trabalho, a abordagem dialética identifica-se com a perspectiva platônica clássica, ou seja, utiliza-se a dialética apenas como ferramenta, sem a pretensão de criar uma síntese do pensamento dos autores em estudo, mas buscando, através da abordagem comparativa, ampliar o espectro do conhecimento do tema dado.
[2] Paul Ricoeur (1913-2005), filósofo e teólogo reformado francês, foi considerado um dos mais influentes pensadores do século XX. Lecionou na Universidade Sorbonne-Paris, de Estrasburgo e de Nanterre, na França, além de ter substituído a Paul Tillich na cátedra de teologia na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. Seus escritos se voltam, sobretudo, para a fenomenologia e para a hermenêutica. Nesta perspectiva, dedicou especial atenção à interpretação dos textos e narrativas bíblicas.
[3] RICOEUR, P. Em direção a uma hermenêutica da idéia da revelação. In: Ensaios Sobre Interpretação Bíblica, p. 76.
[4] BARTH, Karl. Esboço de uma Dogmática, p. 92.
[5] João Calvino (1509-1564), reformador francês, é reconhecido como o grande sistematizador do pensamento teológico da Reforma. Iniciou sua atividade eclesiástica em Estrasburgo, na França, mas pouco tempo depois foi para Genebra, na Suíça, de onde influenciou uma parcela extremamente significativa do universo protestante. Cf. HÄGGLUND, Bengt. História da Teologia, p. 223ss.
[6] GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores, p. 191-192.
[7] BARTH, Karl. Church Dogmatics, I/1, §4, p. 114.
[8] BARTH, Karl. Church Dogmatics, I/2, p. 527.
[9] Trevor Hart (1966-), teólogo reformado escocês, foi professor de teologia sistemática na Universidade de Aberdeen, na Escócia, até 1998. Desde então, é professor de teologia sistemática e diretor da Divinity School da Universidade Saint Andrews, também na Escócia.
[10] HART, Trevor. Revelation. In: WEBSTER, John. The CambridgeCompanion to the Karl Barth, p. 45.
[11] BARTH, Karl. Church Dogmatics, I/1, §4, p. 100s.
[12] BARTH, Karl. The Humanity of God, p. 37.
[13] BARTH, Karl. The Humanity of God, p. 42.
[14] BARTH, Karl. The Humanity of God, p. 51.
[15] BARTH, Karl apud GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX, p. 30.
[16] HART, Trevor. Revelation. In: WEBSTER, John (Ed.) The CambridgeCompanion to the Karl Barth, p. 51.
[17]RICOEUR, Paul. Em direção a uma hermenêutica da idéia da revelação. In: Ensaios sobre Interpretação Bíblica, p. 76.
[18] GRENZ, Stanley J. Reason for Hope, p. 34.
[19] Cf. PANNENBERG, Wolfhart. Systematic Theology, Vol. 1, p. 226.
[20] PANNENBERG, Wolfhart. Systematic Theology, Vol. 1, p. 237.
[21] Cf. FRAIJÓ, Manuel. El Sentido de la Historia, p. 175.
[22] GRENZ, Stanley J. Reason for Hope, p. 37.
[23] Cf. PANNENBERG, Wolfhart. Dogmatic Theses on the Doctrine of Revelation. In: PANNENBERG, Wolfhart (Org.). Revelation as History, p. 137.
[24] Cf. WOOD, Laurence. Theology as History and Hermeneutics, p. 32.
[25] Cf. PANNENBERG, Wolfhart. Dogmatic Theses on the Doctrine of Revelation. In: PANNENBERG, Wolfhart (Org.). Revelation as History, p. 152ss.
[26] Cf. BARTH, Karl. Church Dogmatics, I/1, §4, p. 89ss. Dos quatro níveis dos círculos concêntricos apresentados por Barth, três deles se relacionam de maneira reinterpretada com as categorias propostas por Pannenberg: a comissão recebe o signo da promessa, o julgamento vai remeter ao mandamento, e a Palavra como tema liga-se ao agir histórico de Deus como fundamento da proclamação. A concepção da proclamação da Palavra de Deus como evento permanece uma peculiaridade apenas barthiana.
[27] Cf. PANNENBERG, Wolfhart. Systematic Theology, p. 250s. GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX, p. 271s. WOOD, Laurence. Theology as History and Hermeneutics, p. 32.
[28] Cf. RICOEUR, Paul. Em direção a uma hermenêutica da idéia da revelação. In: Ensaios Sobre Interpretação Bíblica, p. 71.
[29] BARTH, Karl. Church Dogmatics, I/1, §4, p. 111.
[30] PANNENBERG, Wolfhart. Systematic Theology, Vol. 1, p. 212.
[31] BARTH, Karl. Church Dogmatics, I/1, §4, p. 115.
[32] Cf. PANNENBERG, Wolfhart. Systematic Theology, Vol. 1, p. 213.
[33] Cf. PANNENBERG, Wolfhart. Systematic Theology, Vol. 1, p. 214.
[34] Cf. RICOEUR, Paul. Em direção a uma hermenêutica da idéia da revelação. In: Ensaios Sobre Interpretação Bíblica, p. 77.
[35]RICOEUR, Paul. Em direção a uma hermenêutica da idéia da revelação. In: Ensaios Sobre Interpretação Bíblica, p. 80.
[36] BARTH, Karl. Church Dogmatics, II/2, p. 511-512.
[37] Cf. RICOUER, Paul. Em busca de uma hermenêutica da idéia da revelação. In: Ensaios Sobre Interpretação Bíblica, p. 75.
[38] BARTH, Karl. Church Dogmatics, I/1, §4, p. 120.
[39] Cf. WOOD, Laurence W. Theology as History and Hermeneutics, p. 32.
[40] BARTH, Karl. Church Dogmatics, I/1, §4, p. 120.
[41] BARTH, Karl. Introdução à Teologia Evangélica. p. 14.
[42] PANNENBERG, Wolfhart. Systematic Theology, Vol. 1, p. 227.