Fenomenologia da Religião
A religiosidade de um povo se manifesta não apenas em rituais complexos e mitos dos tempos primordiais, mas também na experiência cotidiana em todas as áreas da vida. A forma de entrar ou sair de uma casa, um simples gesto no momento da caça ou pesca, a dieta alimentar, a direção do olhar ao se aproximar de determinado objeto, o pronunciar discreto de determinadas palavras ao entrar na água e coisas semelhantes podem expressar muito da religiosidade local.
Chamamos essas manifestações de fenômenos e a fenomenologia da religião se ocupa em estudá-los na tentativa de compreender as idéias que estão por trás dos mesmos e o que significam para aqueles que os praticam. Como missionários, antes de apresentar o evangelho para determinado povo, a primeira providência a ser tomada é buscar uma compreensão satisfatória do mesmo. Compreender um povo equivale compreender a sua cultura e essa envolve complexos sistemas que regulamentam o comportamento do grupo social.
Dentro do bojo cultural, encontramos o sistema de parentesco, o sistema político, a cultura material, cognitiva e muitas outras áreas nas quais podemos concentrar análise. No processo de análise, lançamos mão de ciências específicas que nos fornecem métodos de pesquisa adequados. A ciência que mais tem contribuído no trabalho missionário para compreensão dos povos alvos de evangelização é a antropologia cultural, que se ocupa de todas as áreas acima mencionadas.
Entretanto, dois sistemas culturais são sobremodo amplos e complexos, sendo necessário abordá-los de forma mais específica. Trata-se da língua e da religião. De acordo com o etnólogo alemão Lothar Käser, a religião é um fenômeno universal, presente em todas as culturas. O ateísmo é uma manifestação mais de cunho individual ou no máximo uma opção sociopolítica. Do ponto de vista cultural, todo grupo social apresenta manifestações religiosas.
Na prática, porém, todos esses sistemas culturais são inseparáveis, totalmente interligados, emaranhados, mas os distinguimos para fins de análise. A bem da verdade, essa divisão da cultura em sistemas é uma elaboração nossa, na ótica do observador. Prova disso é que quase nenhuma língua sem escrita possui uma palavra para o conceito “religião”, no mesmo sentido que usamos. Isso se dá porque a religião permeia todas as áreas da cultura e, portanto, uma análise segura da mesma só pode acontecer numa abordagem multidisciplinar. Como comenta o antropólogo brasileiro Luiz Gonzaga Mello, só é possível isolar a religião dentro da cultura como um recurso didático e metodológico apenas.
De qualquer forma, para análise da cultura como um todo, utilizamos a antropologia cultural ou, mais especificamente, a etnologia. Para análise da língua, a linguística antropológica, e para análise da religião, devemos lançar mão da fenomenologia da religião. Ou seja, a fenomenologia é para o estudo da religião, o que a linguística é para o estudo da língua. No contexto brasileiro, temos uma crescente ênfase no estudo da antropologia e da linguística nos currículos de treinamento missionário, mas o estudo da fenomenologia ainda é, de modo geral, pouco evidenciado.
HISTÓRIA DA ESCOLA FENOMENOLÓGICA
A fenomenologia se firmou como corrente filosófica e método científico somente no século 20, ao se distanciar do estudo comparado das religiões. O termo “fenomenologia” surgiu em 1764, com o matemático e filósofo suíço-alemão Johann Heinrich Lambert (1728-1777). Entretanto, o alemão, de ascendência judaica, Edmund Husserl (1859-1938) que é considerado o “pai da fenomenologia”. Com sua obra “Investigações Lógicas” (1900-1901) ele desenvolveu o método fenomenológico de tal forma que o mesmo passou a constituir o centro de gravidade de grande parcela do pensamento filosófico do século 20 e sua influência estendeu-se a todas as ciências humanas. Como método científico, a fenomenologia pode ser utilizada pelas mais diferentes áreas de conhecimento, ciências e meios de expressão que o homem possa desenvolver.
Já a expressão “fenomenologia da religião” foi criada pelo holandês, historiador das religiões, Pierre Daniel Chantepie de la Saussaye (1848-1920). Na primeira edição da sua obra “Manual de História das Religiões” (1887) usou essa expressão, entretanto, não indicava com a mesma um novo método, mas apenas uma alternativa terminológica para a chamada religiões comparadas. Isso ficou evidente quando, dez anos depois, na segunda edição do seu “Manual”, suprimiu a referida seção.
Assim, a primeira expressão significativa da fenomenologia da religião vem do holandês Gerardus van der Leeuw (1890-1950), na sua “Fenomenologia da Religião” (1933). Ligado à fenomenologia filosófica de Husserl, Leeuw propõe um método de compreensão, e não apenas de descrição, da experiência religiosa, a partir da análise das suas linguagens ou meios de manifestação – os fenômenos. Para ele, a meta da pesquisa fenomenológica é atingir a essência da religião, essência essa que o fenomenólogo alemão Gustav Mensching (1901-1978), contemporâneo de Leeuw, definiria como “a experiência do encontro com o Sagrado”.
Apesar de se afastar um pouco da linha filosófica, van der Leeuw retoma pelo menos dois conceitos básicos de Husserl: a epoché e a visão eidética. Epoché é a suspensão do juízo que o fenomenólogo deve operar, se quiser compreender realmente o fenômeno estudado. E visão eidética é a busca pela essência do fenômeno em questão.
Mensching é um dos representantes da escola fenomenológica alemã de Marburgo, fundada pelo iminente Rudolf Otto (1869-1937), com seu livro “O Sagrado” (1917). Apesar de não ser especificamente uma obra fenomenológica, esse livro ofereceu um modelo de análise fenomenológica em chave hermenêutica da experiência religiosa. Se Otto não chegou a ser um fenomenólogo, seus alunos o foram, aprimorando o método de análise fenomenológica compreensiva, típico da escola de Marburgo.
Um dos nomes mais citado na fenomenologia da religião é do romeno, que se radicou nos Estados Unidos, Mircea Eliade (1907-1986). A bem da verdade, Eliade foi um historiador das religiões e não um fenomenólogo, mas suas pesquisas foram tão extensas que acabou deixando um material de valor inestimável para a fenomenologia religiosa.
A escola fenomenológica lança mão de princípios metodológicos de basicamente todas as demais escolas, como as escolas antropológica, psicológica e histórica, mas se distingue por buscar compreender o que a experiência religiosa significa para o próprio homem religioso. O argentino, professor de fenomenologia da religião, José Severino Croatto (1930-2004), sintetiza isso da seguinte forma:
Aplicada à(s) religião(ões), a fenomenologia não estuda os fatos religiosos em si mesmos (o que é tarefa da história das religiões), mas sua intencionalidade (seueidos) ou essência. A pergunta do historiador é sobre quais são os testemunhos do ser humano religioso, a pergunta do fenomenólogo é sobre o que significam. Não o que significam para o estudioso, mas para o homo religiosus, que vive a experiência do sagrado e a manifesta nesses testemunhos ou “fenômenos”.
Entre os cientistas da religião, tem sido defendido que a investigação fenomenológica é a melhor opção para se aproximar, o máximo possível, do significado real da experiência religiosa.
TENTATIVA DE CONCEITUAÇÃO
Fenomenologia
O termo “fenômeno” vem do grego fainomenon, que significa literalmente “aquilo que aparece”, “que se mostra”. Logo, fenomenologia é, literalmente, “o estudo do que aparece”. Mas, obviamente, como método científico, o termo vai muito além do seu significado literal. A fenomenologia é uma tentativa de compreender a essência da experiência humana, seja ela psicológica, social, cultural ou religiosa, a partir da análise das suas manifestações, que chamamos de fenômenos. É uma tentativa de compreensão não do ponto de vista do observador, mas do ponto de vista da própria pessoa que teve a experiência. No meio linguístico e antropológico, isso seria chamado de ponto de vista êmico.
Religião
Já “religião” é um termo conceitualmente bastante complexo. Aceitamos geralmente que religião vem do latim religare, significando assim “religar”, ou seja, religião é o meio de religar o homem a Deus. Entretanto, historicamente isso nem sempre foi assim. Filoramo e Prandi comentam sobre certo pesquisador que comparando 68 respostas que lhe foram enviadas por colegas sobre o modo como definiam religião, objeto de seus estudos, não encontrou sequer duas iguais.
Nos afastaremos aqui das tentativas de definições etimológicas, optando pelas conceituações de cunho antropológico. Nesse meio, várias conceituações já foram sugeridas, mas aceitamos neste texto a sugestão do antropólogo e missiólogo alemão Paul Hiebert, que conceitua religião como “um sistema explicatório que trata das últimas questões da vida e da morte, das razões da própria existência”. Nessa mesma linha também podemos citar o conhecido antropólogo americano Clifford Geertz, que entende a “religião como um sistema cultural”.
Para Felix Keesing, a religião é um sistema explanatório e também interpretativo. Explanatório à medida que responde sistematicamente aos porquês totais, relacionados diretamente com a existência – natureza do mundo e do homem; poder – forças dinâmicas do universo; providência – funções de manutenção do bem-estar; moralidade – vida e morte dos indivíduos. E interpretativo porque tende a interpretar todo o comportamento importante e valorizado, ligando-se aos diferentes setores da vida humana, como economia, política, família, lazer, estética e segurança.
Fenomenologia da Religião
Segundo o professor de fenomenologia Antônio Mendonça, “a fenomenologia da religião pode ser vista num duplo sentido: uma ciência independente, com suas pesquisas e publicações, mas também como um método que faz uso de princípios próprios”. A intenção deste texto é apresentar a fenomenologia da religião como método de pesquisa e, enquanto tal, William Paden a define como “o estudo das coisas em seus aspectos observáveis, contrapondo-se à sua causalidade”. Ou seja, é o estudo das causas religiosas através da observação das suas manifestações. Entretanto, a questão da causalidade é um pouco controversa. Assim, preferimos trabalhar com o conceito de idéias. Por trás das manifestações religiosas existem idéias que determinam o real significado da experiência para aquele que a experimenta.
Ângela Bello, professora de historia da filosofia em Roma, usa o termo “fenomenologia arqueológica”para se referir a esse esforço em busca das idéias por trás dos fenômenos. Para ela, a fenomenologia é uma investigação regressiva que permite escavar no interior da consciência individual e coletiva, até alcançar o significado real da experiência religiosa. A análise fenomenológica é como o trabalho do arqueólogo. A partir de uma pequena evidência que aparece no solo, ele escava até descobrir grandes fósseis escondidos sob os seus pés. Os fenômenos ou manifestações religiosas são apenas pequenas evidências que se mostram. Cabe ao fenomenólogo intuir através delas até alcançar o seu significado mais profundo. Detrás de cada fenômeno há uma idéia, um significado. É essa idéia que a fenomenologia procura compreender. A pergunta mais básica no estudo fenomenológico é: “qual idéia cultural está por trás de cada fenômeno?”
A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
A experiência é a forma básica de aquisição de conhecimento. Nada chega ao nosso intelecto sem causar uma experiência pessoal, quer seja empírica ou existencial. A experiência existencial pode ser física, social, moral, metafísica ou religiosa. Assim sendo, a religiosidade está intimamente relacionada com a experiência, no caso, com o sagrado.
Se referindo a um contexto cristão, Piazza afirma, como já havia dito Mensching, que “a essência da experiência religiosa é o ‘encontro’ do homem com Deus”. Generalizando esse raciocínio, podemos então dizer que a experiência religiosa consiste no “encontro” do homem com o sagrado. Tácito Leite Filho chama esse mesmo fato de “relações do homem com a divindade”, as quais, para ele, constituem a base de todas as religiões. Vale lembrar, que o cristão pode contar com a Bíblia para conhecer a Deus, mas a maioria dos religiosos só pode contar com a própria experiência para conhecer o divino.
Apesar de não se tratar de uma obra especificamente fenomenológica, o livro “O Sagrado”, de Rudolf Otto, tem sido considerado a ponte da fenomenologia filosófica de Husserl para a fenomenologia da religião de Leeuw. Nele, Otto analisa a experiência religiosa afirmando que a mesma tem por agente o “sagrado”, que se manifesta como um “mistério tremendo e fascinante”. “Mistério” porque é algo maravilhoso, que transcende a compreensão do homem, totalmente outro; “tremendo” porque é uma potência estranha, que se impõe de forma absoluta; e “fascinante” porque desperta curiosidade, causa fascínio. Ou seja, a experiência religiosa se dá quando o homem entra em contato com o sagrado e isso lhe causa um “sentimento de estado de criatura”, enchendo o seu ser de perguntas, terror e admiração.
A experiência religiosa é ao mesmo tempo individual e comunitária. Individual porque o homem religioso a experimenta na sua particularidade. Comunitária porque esse mesmo homem não a contêm e por isso comunica com outros sobre a mesma. Nesse processo, a experiência religiosa se manifesta através de linguagens próprias, que se apresentam em forma de fenômenos. São esses fenômenos que constituem o objeto da fenomenologia da religião.
EPOCHÉ E EIDÉTICA
Esses dois conceitos se tornaram o principal diferencial da fenomenologia, pois enquanto os demais métodos científicos excluíam a subjetividade em favor da objetividade, Husserl sugeriu ser possível compreender o subjetivo, a essência, o eidos. Na sua época, estava em voga o psicologismo para o qual a experiência religiosa não passava de um subproduto da psique humana. A fenomenologia muda o foco da análise, afirmando que, independente dessa experiência ser um produto da psique ou um real encontro com o sagrado, o que interessa é compreender o que a mesma significa para o homem religioso, aquele que vivencia tal experiência. Na linguagem do próprio Husserl, é o “voltar às coisas mesmas”.
A visão eidética é a busca por essa essência do fenômeno. É a tentativa de ver o fenômeno como o próprio homem religioso vê. Para isso é necessário a epoché, a suspensão do juízo, dos pressupostos. O sociólogo clássico se aproxima do homem religioso já pressupondo que a experiência do mesmo é fruto do viver social. O psicólogo clássico pressupõe de antemão ser um resultado da psique. O fenomenólogo tentará não pressupor nada.
Algumas observações aqui se fazem necessárias. Obviamente, como missionários não concordamos com todos os postulados e pressupostos da fenomenologia. Para o fenomenólogo, compreender a experiência religiosa é o fim da sua análise. Para nós, é apenas o meio. Para o fenomenólogo, essa suspensão de juízo é definitiva, perpétua. Para nós, deve ser apenas no primeiro momento, até alcançarmos uma compreensão relevante do fenômeno. Essa epoché é necessária no primeiro momento, porque se não retardarmos um pouco nosso julgamento bíblico-teológico, chegaremos a muitas conclusões erradas e nossa mensagem não terá relevância.
Uma segunda observação é que, mesmo no meio científico, já é consenso a impossibilidade de uma epoché total. A total neutralidade na pesquisa científica é uma falácia. É impossível uma total suspensão de juízo. Alguns afirmam que um religioso não pode ser um cientista da religião, por causa dos seus pressupostos. Entretanto, um ateu também tem pressupostos em relação à religião e, talvez, mais radicais e preconceituosos do que os do religioso. A dificuldade que ambos terão para suspender o juízo será a mesma. No entanto, apesar dessa impossibilidade de uma epoché total, é possível uma neutralidade pelo menos parcial e é essa que deve ser buscada no primeiro momento.
Discordamos também do princípio da vivência. Para alguns fenomenólogos, é necessário não apenas suspender o juízo mas também vivenciar por algum tempo a experiência religiosa em estudo para que se possa compreendê-la bem. É o que defendia van der Leeuw e outros: “precisamos viver aquele conteúdo particular de experiência a fim de poder, em seguida, entender como um outro ser humano por sua vez poderia experimentá-lo”. Esse foi o caso de Roger Bastide que, mesmo se identificando como protestante, iniciou-se no candomblé brasileiro em busca da compreensão do mesmo.
Poderíamos entrar num longo diálogo com os principais teóricos da fenomenologia, discordando de vários dos seus postulados e pressupostos, porém, isso foge do propósito deste texto. Nossa intenção é apenas apresentar a fenomenologia como ferramenta útil ao trabalho missionário.
Outro elemento que surge na busca pelo eidos é a intuição. Para se aproximar da subjetividade da experiência religiosa é preciso intuir. Esse conceito vem do teólogo e filósofo alemão Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834), que precedeu o movimento fenomenológico, mas deixou muitas contribuições para o mesmo. Tommy Goto o chama de “pré-fenomenólogo”. O conceito de intuição em Schleiermacher é tão central que ele chega confundi-lo com a essência da religião, mas o movimento fenomenológico o redefiniu, fazendo do mesmo uma ferramenta de busca do eidos. Somente através de uma atitude intuitiva é possível se aproximar do sentido real do fenômeno religioso, pois o mesmo não é algo lógico.
VISÃO ÉTICA E ÊMICA
O missionário lingüista Kenneth Pike (1912-2000) desenvolveu dois conceitos fundamentais em análise linguística, chamados perspectivas ética e êmica. Esses conceitos alcançaram a academia antropológica se tornando elementos fundamentais também para a análise cultural. Também tornaram-se igualmente fundamentais na fenomenologia para a análise religiosa. São conceitos bem relacionados com a epoché e visão eidética de Husserl.
Perspectiva ética é a visão externa, do observador, numa postura transcultural, comparativa e descritiva. Perspectiva êmica é a visão interna, do observado, numa postura cultural, particular e analítica. Perspectiva ética é de quem está olhando de fora. Perspectiva êmica é de quem olha de dentro. Ética é a visão do “eu” em direção ao “outro”. Êmica é a visão do “eu” em direção ao “nosso”. Ou como comentam Hoebel e Frost, Quando vista de fora e expressa por um observador que não é, por educação e vivência, completamente enculturado com a cultura observada e escrita, a visão é chamada “ética”. A visão interna é chamada de “êmica”.
A perspectiva ética é inevitável e necessária. Sempre que observamos qualquer comportamento nós emitimos juízo sobre o mesmo. Avaliamos o que para nós é certo ou errado e fazemos um julgamento de valores. Como missionários, fazemos um julgamento baseado em nossos princípios cristãos, teológicos, missiológicos e hermenêuticos. Obviamente, precisamos mesmo fazer isso, pois afinal nosso objetivo é levar um evangelho que propõe mudanças. Mas é de extrema importância observar uma cultura primeiramente na perspectiva êmica, procurando compreender como o próprio povo entende cada manifestação cultural e religiosa. Entretanto, ao contrário da perspectiva ética, a êmica não é automática, inevitável, implícita em nossa visão. Pelo contrário, precisamos fazer certo esforço para usá-la, pois equivale a ver o mundo com os olhos do outro.
Quando não procuramos entender o povo a partir de uma perspectiva êmica, geralmente damos respostas para perguntas que não são feitas e nossa apresentação do evangelho fica irrelevante. Por isso, só devemos chegar a conclusões éticas depois que adquirimos uma relevante compreensão êmica de cada fato.
Piazza relata o ocorrido com um missionário católico na África. Próximo à aldeia onde vivia, havia um local em forma de círculo, com uma estaca no meio e uma cabeça de antílope na ponta da mesma. Sempre que os caçadores iam empreender uma caçada, passavam primeiro nesse local, empunhavam seus arcos com a mão esquerda e corriam no sentido anti-horário atirando flechas naquela cabeça de antílope até acertarem o alvo. O missionário concluiu então que se tratava de um ritual invocando alguma divindade para ajudar-lhes na caçada. Um dia se aproximou de um caçador e perguntou se acreditava mesmo que aquele ritual o ajudava a ter sucesso na caçada. O caçador lhe respondeu que era apenas um treino de pontaria! A análise e conclusão daquele missionário foi puramente ética, baseada nos seus pressupostos. A resposta do caçador foi êmica. Antes de chegar a uma conclusão ética sobre qualquer fenômeno, seja cultural, lingüístico ou religioso, é necessário alcançar uma relevante compreensão êmica do mesmo.
A ANÁLISE FENOMENOLÓGICA NA PRÁTICA
Uma pergunta que pode ser feita a esta altura é como tudo isso se dá na prática. O antropólogo brasileiro Roberto de Oliveira escreveu um relevante texto sobre pesquisa de campo que pode nos ajudar nessa questão. Para ele, “o trabalho do antropólogo é olhar, ouvir e escrever”. Isso é igualmente válido para o trabalho do missionário na sua análise fenomenológica.
Olhar, ouvir e escrever são três habilidades que todo missionário precisa desenvolver se quiser compreender o povo para o qual vai ministrar. Oliveira chama essas habilidades de “atos cognitivos”, pois é através delas que se torna possível “construir o saber” ou organizar o conhecimento adquirido. Olhar é muito mais que admirar o exótico de forma ingênua, como um turista que pára cheio de curiosidade diante do diferente, até então desconhecido. Olhar é observar com atenção e discrição, de forma acurada e intuitiva, tentando perceber o real sentido de cada fenômeno. Portanto, faz-se necessário treinar o olhar. É a partir da observação que se deve fazer perguntas, as quais são fundamentais no processo analítico. Ao observar um fenômeno, queremos logo concluir algo sobre o mesmo, porém, no primeiro momento, muito mais importante que chegar às respostas é fazer perguntas. Sem as perguntas certas, jamais chegaremos às respostas certas. E perguntas aqui não são argüições verbais a serem feitas a um “informante”, mas sim, questões de análise que levantamos para nós mesmos e que servirão de um roteiro para nossa observação. A religiosidade do povo se manifesta no seu dia-a-dia, em práticas rotineiras, e não apenas em rituais complexos. Ela permeia todas as áreas da vida. Por isso, é preciso estar atento o tempo todo e tudo que chamar a atenção deve ser analisado. No início o que teremos de palpável serão apenas as perguntas, pois as respostas só virão com o tempo, e algumas com muito tempo. Faremos perguntas a nós mesmos e, quem sabe, algumas vezes teremos a oportunidade de verbalizar com alguém. No entanto, as principais respostas não são obtidas através de perguntas verbalizadas, pontuais e objetivas, e sim através de falas espontâneas. Por isso, o segundo elemento é igualmente fundamental: além de olhar, é preciso ouvir.
Ouvir é estar atento a conversas informais, narrativas, cânticos, fórmulas verbais de rituais. São nas conversas do dia-a-dia que grande parte da religiosidade é expressa e comentada. Um ouvido atento perceberá o que se comenta acerca de entidades e a relação das mesmas com a comunidade. A finalidade de cada fenômeno, as normas e regras de cada ritual, os “porquês” do religioso. Perguntas objetivas dificilmente obterão respostas objetivas, mas conversas informais, na normalidade do dia-a-dia, podem revelar o sentido mais profundo do mundo do outro. Portanto, faz-se necessário um ouvir disciplinado. É claro que, em contexto transcultural, nos primeiros momentos a comunicação será muito limitada e pouco se obterá através do ouvir. Mas se o olhar é acurado, todas as perguntas que vierem à mente desde o primeiro momento podem ser anotadas para uma investigação posterior. Por isso, além de olhar e ouvir é necessário escrever.
Escrever é registrar de forma organizada todas as impressões, perguntas e conclusões. As anotações pessoais com tempo se tornarão um banco de dados. Em um caderno bem organizado, pode-se, por exemplo, anotar todas as observações, descrevendo o que se viu e as perguntas que vieram à mente, deixando uma parte em branco para o futuro registro das respostas e conclusões que se chegar sobre aquele fenômeno. Essas anotações devem conter elementos como local, dia, horário, ambiente e a pessoa diretamente envolvida ou observada. Da mesma forma, deve-se registrar futuramente o que levou o observador às conclusões. Com registros bem organizados ficará bem mais fácil fazer uma análise fenomenológica segura e apresentável. Quando escrevemos, cristalizamos idéias, alinhamos raciocínios e documentamos informações que poderão ser úteis a outros. Mas, obviamente, todo esse processo deve ser feito com muita discrição e naturalidade. Enquanto o olhar e ouvir acontece no dia-a-dia, junto ao povo, o escrever acontece no “gabinete”. É interessante ter sempre consigo um pequeno bloco e caneta para registro de fatos principais, em especial palavras e expressões desconhecidas, mas o registro detalhado e analítico deve ser feito em casa, na quietude do lar, onde o missionário pode ficar à sós com os seus pensamentos. É necessário disciplina. O ideal é ter um horário diário para registrar as observações do dia. Também é aconselhável ter um diário pessoal, além do caderno de anotações. No diário registra-se a experiência pessoal, os principais fatos que marcam o missionário enquanto pessoa nessa vivência transcultural. É um espaço para registrar seus sentimentos, reações e aprendizado. Isso tornará seu registro histórico. Já no caderno de anotações, registra-se as observações, o apreendido pelo olhar e ouvir, perguntas sobre a cultura e religiosidade, descrição de rituais e o máximo de fenômenos observados, sempre evitando conclusões éticas no primeiro momento, buscando as respostas êmicas.
É consenso entre antropólogos e fenomenólogos que os primeiros meses do contato são fundamentais nesse processo de observação. Muitos fenômenos se tornarão naturais para o observador em pouco tempo e não mais lhe chamarão a atenção. Por isso, é preciso fazer o máximo de anotações e perguntas já nos primeiros momentos. É claro que, algumas questões mais sutis, só serão percebidas com algum tempo de convívio, mas o quanto antes dar início a essa prática de registro, melhor.
Imagine um missionário chegando pela primeira vez num grupo indígena pouco conhecido, em algum lugar da Floresta Amazônica. Ele não conhece uma palavra sequer do idioma, mas tem um bom olhar etnográfico e razoável conhecimento etnológico. Entrando em uma grande maloca, em poucos momentos seu olhar aguçado vasculha o interior da mesma. Logo conta os fogos, acesos ou em resíduos de cinzas e carvão, o que indicará possivelmente quantas famílias ou grupos domésticos habitam aquela maloca. Contando as redes de dormir, perceberá quantas pessoas ou pelo menos quantos adultos vivem ali. Observando onde estão as armas, como arco e flecha, lanças e zarabatanas, logo terá uma possível ideia se os homens e mulheres dormem juntos ou separados. Os utensílios e vestimentas lhe darão uma boa ideia do nível de contato com a sociedade externa. Observando a estrutura arquitetônica da maloca e relacionando a mesma às informações disponíveis na literatura etnológica, será possível ter uma suspeita de qual família etnolinguística aquele grupo deve pertencer.
No primeiro momento mais reservado que tiver, registrará todas essas observações no seu caderno de anotações. Essas idéias iniciais são apenas suspeitas e deverão ser confirmadas. Muitas outras perguntas virão à sua mente e serão registradas também: por que alguns pintam o corpo com listras e outros com círculos? Por que algumas redes estão mais próximas das fogueiras que outras? Por que a maloca não tem janelas?
Esse missionário também tem um bom treinamento linguístico e, assim, com pouco tempo de convívio já percebe os sons daquela língua, compreende algumas palavras e até frases mais simples. Começará a tomar nota das nomenclaturas de parentesco, percebendo que os tios paternos são chamados pais e os primos paternos chamados irmãos, enquanto o mesmo não se dá com os tios e primos maternos. Isto já lhe dará uma boa ideia acerca do sistema de parentesco.
A análise fenomenológica acontece no mesmo viés, porém, a subjetividade é maior. Poucas conclusões serão possíveis nos primeiros momentos por se tratar de experiências e não de instituições. O alvo é compreender o que cada fenômeno significa para o homem religioso, de forma eidética e êmica. Mas a prática de observação e elaboração de perguntas é a mesma, tendo sempre em mente a pergunta básica: “qual ideia está por trás desse fenômeno?” Andando nos arredores da aldeia com alguns indígenas, o missionário observará que eles sempre tocam em uma determinada árvore ao passar por perto. Qual a razão? Dão volta ao irem ao rio, para não atravessar um grupo específico de árvores. Será um local sagrado? Parece que algumas palavras jamais são pronunciadas por mulheres. Outras, somente o pajé pronuncia. Será uma fórmula mágica ou algum tabu? Em alguns lugares que os homens passaram corriqueiramente, as mulheres nem se aproximam. Qual o motivo da restrição? Observando um ritual ele perceberá objetos manuseados, palavras e frases proferidas repetidas vezes e alguns nomes até então não ouvidos. Que objetos são estes? E os nomes, seriam de entidades? É preciso fazer perguntas e com o tempo as respostas virão.
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