Craig Blomberg é considerado uma das autoridades mais importantes do país nas biografias de Jesus, os quatro evangelhos. Doutorou-se em Novo Testamento pela Aberdeeen University, Escócia, tornando-se posteriormente pesquisador sênior da Tyndale House, na Universidade de Cambridge, Inglaterra, onde integrou um grupo de elite formado por estudiosos internacionais responsáveis por uma série de trabalhos muito elogiados sobre Jesus. Há 12 anos leciona Novo Testamento no prestigioso seminário de Denver.
Dentre os livros que escreveu, podemos citar Jesus and the gospels: interpreting the parables [Jesus e os evangelhos: a interpretação das parábolas]; How wide the divide? [Qual o tamanho da divisão?], além de comentários sobre o evangelho de Mateus e 1Coríntios. Participou também da edição do sexto volume de Gospel perspectives [Perspectivas dos evangelhos], que trata exaustivamente dos milagres de Jesus. E co-autor ainda de Introductíon to biblical interpretation [Introdução à interpretação bíblica]. Contribuiu com alguns capítulos sobre a historicidade dos evangelhos para o livro Reasonable faith [Fé racional] e escreveu o elogiado Jesus under fire [Jesus sob cerco]. Blomberg é membro da Sociedade para o Estudo do Novo Testamento, da Sociedade de Literatura Bíblica e do Instituto de Pesquisas Bíblicas.
É possível ser inteligente e crítico e ainda assim acreditar que os quatro evangelhos foram escritos pelas pessoas que dão nome a eles?
A resposta é sim — disse convicto. O que importa é reconhecer que, rigorosamente falando, os evangelhos são anônimos. Mas o testemunho uniforme da igreja primitiva é que Mateus, também conhecido por Levi, o coletor de impostos, e um dos 12 discípulos, escreveu o primeiro evangelho do Novo Testamento; João Marcos, companheiro de Pedro, é autor do evangelho que chamamos de Marcos; Lucas, o "médico amado" segundo Paulo, escreveu tanto o evangelho que leva seu nome quanto os Atos dos Apóstolos.
Em que medida a crença de serem eles os autores era consensual?
Não se sabe de ninguém mais que pudesse tê-los escrito. Pelo que tudo indica, a autoria desses três evangelhos não era motivo de disputa.
Perdoe meu ceticismo — eu disse. — Será que alguém não teria algum motivo para mentir, dizendo que aquelas pessoas escreveram os evangelhos, quando na verdade não o fizeram?
Blomberg fez que não com a cabeça.
Não acho provável. Lembre-se de que aquelas personagens eram. Marcos e Lucas nem sequer pertenciam ao grupo dos 12. Mateus sim, mas era odiado porque fora coletor de impostos; portanto, depois de Judas Iscariotes (que traiu Jesus!), seria ele a figura mais abominável. Compare isso com o que aconteceu quando os fantasiosos evangelhos apócrifos foram escritos muito depois. As pessoas atribuíram sua autoria a personagens conhecidos e exemplares: Filipe, Pedro, Maria, Tiago. Esses nomes tinham muito mais prestígio que os de Mateus, Marcos e Lucas. Respondendo então à sua pergunta, não haveria por que conferir a autoria a esses três indivíduos menos respeitáveis se não fossem de fato os verdadeiros autores.
E João? Ele era muito importante; na verdade, João não era tão-somente um dos 12 discípulos, ele era um dos três apóstolos mais íntimos de Jesus, juntamente com Tiago e Pedro.
Sim, ele é uma exceção. E o mais interessante é que o evangelho de João é o único sobre o qual paira uma certa dúvida quanto à autoria.
E qual é exatamente a objeção?
Não há dúvida quanto ao nome do autor: era João mesmo — respondeu Blomberg. — A questão é que não se sabe se foi João, o apóstolo, ou se foi outro. Segundo o testemunho de um escritor cristão chamado Papias, em aproximadamente 125 d.C, havia João, o apóstolo, e João, o ancião, mas o contexto não deixa claro se ele se referia a uma única pessoa de duas perspectivas distintas ou a pessoas diferentes. Fora essa exceção, todos os demais testemunhos afirmam unanimemente que foi João, o apóstolo, o filho de Zebedeu, quem escreveu o evangelho.
Mas você acha que foi ele mesmo quem escreveu?
Sim, creio que grande parte do material remonta ao apóstolo — disse ele. — Todavia, se você ler com bastante atenção o evangelho, observará nos últimos versículos indícios de que eles talvez tenham sido finalizados por um editor. Eu, pessoalmente, não vejo problema algum no fato de que alguém próximo a João tenha dado aos versículos finais uma formulação tal que fosse capaz de conferir ao documento inteiro uma uniformidade estilística. Seja como for — sublinhou — o evangelho de João baseou-se sem dúvida alguma no testemunho ocular, a exemplo dos outros três.
Vamos voltar a Marcos, Mateus e Lucas — eu disse. — Que provas específicas o senhor tem de que são eles os autores dos evangelhos?
Uma vez mais, o testemunho mais antigo e possivelmente mais significativo é o de Papias, que, por volta de 125 d.C, afirmou especificamente que Marcos havia registrado com muito cuidado e precisão o que Pedro testemunhara pessoalmente. Na verdade, ele disse que Marcos "não cometeu erro nenhum" e não acrescentou "nenhuma falsa declaração". Ele disse que Mateus preservara também os escritos sobre Jesus. Depois, Ireneu, escrevendo aproximadamente em 180 d.C, confirmou a autoria tradicional. Vejamos o que ele diz — disse ele pegando um livro e abrindo-o nas palavras de Ireneu:
... Mateus publicou entre os hebreus, na língua deles, o escrito dos Evangelhos, quando Pedro e Paulo evangelizavam em Roma e aí fundaram a Igreja. Depois da morte deles, também Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, nos transmitiu por escrito o que pedro anunciava. Por sua parte, Lucas, o companheiro de Paulo, punha num livro o evangelho pregado por ele. E depois, João, o discípulo do Senhor, aquele que tinha recostado a cabeça ao peito dele, também publicou o seu Evangelho, quando morava em Éfeso, na Ásia.
Muito bem, deixe-me ver se entendi direito. Sabendo-se com certeza que os evangelhos foram escritos pelos apóstolos Mateus e João, por Marcos, companheiro do apóstolo Pedro, e por Lucas, o historiador, companheiro de Paulo e um tipo de jornalista do século 1, podemos afirmar que os acontecimentos por eles registrados baseiam-se em testemunhos diretos e indiretos.
Exatamente.
Quando vou à livraria, não encontro na seção de biografias o mesmo tipo de literatura com que deparo nos evangelhos — eu disse. —Quando, atualmente, alguém escreve uma biografia, vasculha a vida inteira do biografado. Mas veja o caso de Marcos — ele não fala do nascimento de Jesus e não diz absolutamente nada sobre a mocidade do Salvador. Em vez disso, concentra-se em um período de três anos e passa metade de seu evangelho tratando dos eventos que culminaram na última semana de Cristo. Como o senhor explica isso?
Existem aí dois motivos — disse Blomberg, erguendo ao ar uma das mãos e reproduzindo num gesto com os dedos o número mencionado. O primeiro é literário, e o segundo é teológico. Com relação ao primeiro motivo, era assim que as pessoas escreviam biografias no mundo antigo. Eles não tinham essa percepção que temos hoje de que deviam dar igual importância a todas as fases da vida do indivíduo; ou que deviam contar a história em seqüência estritamente cronológica; tampouco achavam que tinham de citar literalmente o que dissera o biografado, bastava que a essência do que ele havia dito ficasse preservada. Os antigos gregos e hebreus nem sequer tinham um sinal para denotar a interrogação. Para eles, o registro da história só valia a pena porque as suas personagens tinham lições a ensinar. O biógrafo, portanto, se demorava nas partes da vida do biografado que considerava exemplares, paradigmáticas, que pudessem servir de ajuda a outras pessoas e que dessem sentido a determinado período da história.
E qual seria o motivo teológico?
É uma decorrência do que acabei de dizer. Para os cristãos, embora a vida de Jesus, seus ensinamentos e milagres sejam maravilhosos, não teriam sentido algum se Cristo não tivesse de fato morrido e ressuscitado dos mortos, para expiação e perdão dos pecados da humanidade. Marcos, portanto, autor do evangelho que é provavelmente o mais antigo, dedica quase metade de sua narrativa aos eventos que levarão àquele período de uma semana cujo clímax será a morte e ressurreição de Cristo. Dada a importância da crucificação — concluiu — a composição do evangelho está perfeitamente de acordo com a literatura antiga.
Além dos quatro evangelhos, os especialistas sempre se referem ao que chamam Q, inicial da palavra alemã Quelle, que significa "fonte".
Pelas semelhanças de linguagem e conteúdo, supõe-se que Mateus e Lucas tenham se baseado em Marcos para escrever seu evangelho. Além disso, os estudiosos acham também que Mateus e Lucas teriam igualmente absorvido material desse Q misterioso, ausente do livro de Marcos.
Como se pode definir exatamente esse Q?
Não passa de uma hipótese. Com poucas exceções, seriam apenas dizeres e ensinamentos de Jesus que teriam formado talvez um documento independente. Um gênero literário muito em voga na época consistia em agrupar os dizeres de professores proeminentes. É mais ou menos o que se faz com os grandes sucessos de um cantor ou cantora quando são reunidos em um único disco e chamados O melhor de... Isso é que deve ter sido o Q. Pelo menos, a teoria é essa.
Todavia, se Q for anterior a Mateus e a Lucas, talvez contenha material mais antigo sobre Jesus. Quem sabe então, pensei, pudesse lançar nova luz sobre quem foi Jesus realmente.
Escute — eu disse — se isolássemos o material de Q, que retrato de Jesus teríamos?
Bem, não se esqueça de que o documento Q era uma coleção de citações e, portanto, não tinha material de narrativa capaz de fornecer uma imagem muito ampla de Jesus.
Seja como for, Jesus faz ali algumas declarações de peso, por exemplo, a de que era a personificação da sabedoria e que, por seu intermédio, Deus julgaria toda a humanidade, fosse aceito ou rejeitado por ela. Recentemente, um livro acadêmico defendeu a seguinte tese: se todos os dizeres de Q fossem isoladas, seria obtida a mesma imagem de Jesus que se encontra disseminada nos evangelhos: a de alguém que fazia afirmações audaciosas sobre si mesmo.
Ele é visto como fazedor de milagres?
Lembre-se, repito, de que as histórias de milagres não figuram isoladamente, já que são encontradas normalmente em meio à narrativa, e Q é essencialmente uma lista de citações.
Blomberg fez uma pausa, pegou uma Bíblia de capa de couro de cima da escrivaninha e folheou ruidosamente suas páginas gastas.
Mas, por exemplo, em Lucas 7.18-23 e Mateus 11.2-6, lemos que João Batista enviou seus mensageiros a Jesus para que lhe perguntassem se era realmente o Cristo, o Messias que esperavam. Jesus respondeu-lhes basicamente o seguinte: "Digam-lhe que reflita sobre meus milagres; digam-lhe o que vocês viram: os cegos vêem, os surdos ouvem, os paralíticos andam e aos pobres foram pregadas as boas novas".
Portanto, mesmo em Q — concluiu —, há claramente a consciência do ministério de miraculoso de Jesus.
Por que Mateus, supostamente uma testemunha ocular dos feitos de Jesus, teria acrescentado ao seu evangelho parte do que Marcos escrevera, quando todos sabem que Marcos não testemunhou pessoalmente o ministério de Jesus?
Se o evangelho de Mateus tivesse sido escrito de fato por uma testemunha ocular, é de se supor que ele confiasse em suas observações.
É algo que só faz sentido se Marcos estivesse realmente baseando seu relato nas lembranças de Pedro, que foi testemunha ocular — disse ele. — Como você mesmo disse, Pedro pertencia ao círculo íntimo de Jesus. Ele ouviu e viu coisas que os outros discípulos não puderam ver nem ouvir. Portanto, seria lógico que Mateus, embora testemunha ocular, confiasse na versão dos fatos que Pedro transmitira a Marcos.
Satisfeito com as observações iniciais de Blomberg relativas aos três primeiros evangelhos — chamados sinóticos, palavra que significa "ver ao mesmo tempo", por causa da semelhança de suas linhas gerais e do modo como se inter-relacionam — passei a me preocupar em seguida com o evangelho de João. Quem quer que leia os quatro evangelhos perceberá prontamente que existem diferenças óbvias entre os sinóticos e o evangelho de João. Será que isso implica a existência de contradições irreconciliáveis entre eles?
O senhor poderia me explicar as diferenças entre os evangelhos sinóticos e o evangelho de João?
Que pergunta extraordinária! Um dia espero escrever um livro inteiro só sobre esse tópico.
Bem, é verdade que João é mais diferente do que semelhante aos sinóticos — disse ele inicialmente. —Apenas umas poucas histórias mais importantes que aparecem nos outros três evangelhos surgem novamente em João, muito embora haja uma diferença bastante significativa com relação à última semana de Cristo. Daquele ponto em diante, os paralelos são muito mais próximos. O estilo lingüístico parece também sofrer uma modificação muito significativa. Em João, Jesus emprega uma terminologia diferente. Ele faz longos sermões, a cristologia parece ser de qualidade superior — isto é, afirma mais diretamente e com mais ênfase que Jesus é um com o Pai, que é o próprio Deus, o Caminho, a Verdade, a Vida, a Ressurreição e a Vida.
A que se devem as diferenças?
Durante muitos anos, supôs-se que João soubesse tudo o que Mateus, Marcos e Lucas tinham escrito, portanto achava desnecessária a repetição e por isso optou por complementá-los. Mais recentemente, prevalece a opinião de que João é em grande parte independente dos outros três evangelhos, o que explicaria não somente as escolhas diferentes de material como também as diferentes perspectivas de Jesus.
Existem algumas particularidades teológicas em João?
Sem dúvida, mas será que merecem ser chamadas de contradições? Creio que a resposta é não, porque grande parte dos temas mais importantes ou específicos de João têm paralelos em Mateus, Marcos e Lucas, embora sejam bem menos desenvolvidos.
João afirma muito explicitamente que Jesus é Deus, o que alguns atribuem ao fato de ter ele escrito depois dos demais e de ter começado a dar um colorido às coisas — eu disse. — Será possível encontrar nos sinóticos o tema da divindade?
Sim, é possível — disse ele. — É mais implícito, mas pode-se encontrá-lo ali também. Lembra-se de quando Jesus caminhou sobre as águas? Está lá em Mateus 14.22-33 e Marcos 6.45-52. A maior parte das traduções em inglês ocultam o grego ao verter da seguinte forma as palavras de Cristo: "Não temam, sou eu". Na verdade, o grego diz literalmente: "Não temam, eu sou". Essas duas últimas palavras são idênticas às que Jesus pronuncia em João 8.58, quando toma sobre si o nome divino Eu Sou, que é como Deus se revelou a Moisés na sarça ardente, em Êxodo 3.14. Portanto, Jesus se revela como aquele que tem o mesmo poder divino sobre a natureza que tem IAVÉ, o Deus do Antigo Testamento. Balancei a cabeça concordando.
Esse é um exemplo — eu disse. — O senhor teria outros?
Sim, os outros são do mesmo tipo — disse Blomberg. — Por exemplo, o título que Jesus mais aplica a si mesmo nos primeiros três evangelhos é "Filho do Homem" e ...
Ergui a mão pedindo-lhe que esperasse um pouco.
Um momento — eu disse. Abri minha valise e peguei um livro. Folheei-o até localizar o que estava procurando. — Segundo Karen Armstrong, a ex-freira autora do best-seller A history of God [Uma história de Deus], o termo "Filho do Homem", ao que parece, servia simplesmente para "enfatizar a fraqueza e a mortalidade da condição humana"; portanto, ao empregá-lo, Jesus nada mais fazia que chamar a atenção para o fato de que "ele era um ser humano frágil que um dia haveria de sofrer e morrer". Se isso for verdade — eu disse —, não me parece que a expressão seja uma declaração de divindade muito convincente.
Olhe — disse ele peremptório —, ao contrário da crença popular, "Filho do Homem" não se refere originariamente à humanidade de Jesus. Pelo contrário, trata-se de uma alusão direta a Daniel 7.13,14.
Dito isso, abriu o Antigo Testamento e leu as palavras do profeta Daniel:
Em minha visão à noite, vi alguém semelhante a um filho de homem, vindo com as nuvens dos céus. Ele se aproximou do ancião e foi conduzido à sua presença. Ele recebeu autoridade, glória e o reino; todos os povos, nações e homens de todas as línguas o adoraram. Seu domínio é um domínio eterno que não acabará, e seu reino jamais será destruído.
Veja, portanto, o que Jesus faz quando aplica a si mesmo a expressão "Filho do Homem" — prosseguiu. — Estamos diante de alguém que se aproxima de Deus, na sala do trono celestial, alguém a quem é concedida autoridade e domínio universais. Isso faz de "Filho do Homem" um título de grande exaltação, e não de mera humanidade.
Mais tarde, deparei com um comentário de outro erudito, William Lane Craig, que eu viria a entrevistar para este livro, e que fazia a mesma observação.
É muito comum a idéia de a expressão "Filho do Homem" ser usada em referência à humanidade de Jesus, assim como a expressão contrária, Filho de Deus, remeter à sua divindade. Acontece que a realidade é o oposto.
O Filho do Homem era uma figura divina do livro de Daniel, no Antigo Testamento, que surgiria no final do mundo para julgar a humanidade e reinar para todo o sempre. Portanto, autodenominar-se Filho do Homem seria, na verdade, reivindicar para si a divindade.
Blomberg prosseguiu:
Além disso, Jesus se diz capaz de perdoar pecados nos evangelhos sinóticos, algo que só Deus pode fazer. Jesus aceita que lhe dirijam orações e adoração. Ele diz: "Quem, pois, me confessar diante dos homens, eu também o confessarei diante do meu Pai que está nos céus". O julgamento final baseia-se na tomada de posição de um indivíduo perante quem? Um simples ser humano? Não. Essa seria uma reivindicação muito arrogante. O julgamento final baseia-se na tomada de posição do indivíduo perante Jesus por este ser Deus. Como você pode ver, há todo tipo de material nos sinóticos relacionado à divindade de Cristo, que em João se torna mais explícito.
Será que o fato de João escrever com uma preocupação teológica maior teria prejudicado o material histórico de seu evangelho, tornando-o menos confiável?
Não creio que João seja mais teológico — ressaltou Blomberg. — Simplesmente sua ênfase teológica gira em torno de outras questões. Mateus, Marcos e Lucas têm, cada um, ângulos teológicos distintos que desejam destacar. Lucas, o teólogo dos pobres, tem preocupações sociais; Mateus é o teólogo que procura entender a relação do cristianismo com o judaísmo; Marcos mostra Jesus como o servo sofredor. Uma lista que procurasse determinar as diferenças entre as teologias de Mateus, Marcos e Lucas ficaria bem comprida.
Muito bem, mas será que essas motivações teológicas não colocam em dúvida a capacidade e disposição dos apóstolos de informar com precisão o que aconteceu? Não é possível que a pauta teológica deles os levasse a dar um colorido à história no momento de registrá-la, chegando mesmo a distorcê-la?
Muita gente distorce a história para adequá-la aos seus propósitos ideológicos. Infelizmente, as pessoas acham que isso sempre acontece, o que é um erro. No mundo antigo, a idéia de uma história escrita sem paixão, de maneira objetiva, com o único propósito de registrar os acontecimentos, sem que houvesse algum objetivo ideológico, era algo inédito. Ninguém escrevia história se não pudesse aprender algo com ela.
Suponho então que, diante disso, tudo se torna muito suspeito — sugeri sorrindo.
Sob certo aspecto, sim — disse ele. — Mas, se podemos reconstruir de modo razoavelmente seguro a história com base em vários outros tipos de fontes antigas, poderemos igualmente fazê-lo com os evangelhos, muito embora eles também sejam ideológicos.
Vamos tomar um paralelo moderno colhido na experiência da comunidade judaica, que poderá ajudar a esclarecer o que quero dizer. Algumas pessoas, normalmente movidas pelo anti-semitismo, negam ou atenuam os horrores do Holocausto. Todavia, foram os estudiosos judeus que fundaram museus, escrevei, a livros, preservaram artefatos e registraram os depoimentos de testemunhas oculares sobre o Holocausto. Claro que seu propósito é ideológico — a saber, certificar-se de que tal atrocidade nunca mais se repita —, mas foram também extremamente fiéis e objetivos na documentação dessa verdade histórica. O cristianismo baseou-se igualmente em certas alegações históricas segundo as quais Deus teria entrado no espaço e no tempo na pessoa de Jesus de Nazaré, portanto a ideologia que os cristãos tentavam promover exigia um arcabouço histórico bastante meticuloso.
Uma coisa é dizer que os evangelhos procedem direta ou indiretamente do testemunho ocular; outra coisa é afirmar que a informação neles contida ficou preservada de modo confiável até que fosse finalmente registrada por escrito anos mais tarde. Eu sabia que esse era um dos principais pontos em disputa, por isso queria desafiar Blomberg, o quanto antes, com essa questão.
Peguei novamente o livro de Karen Armstrong, A history of God, e lhe disse:
Ouça o que mais diz a autora:
Sabemos muito pouco sobre Jesus. O primeiro relato mais abrangente sobre sua vida aparece no evangelho segundo São Marcos, que só foi escrito por volta do ano 70, cerca de 40 anos depois de sua morte. Àquela altura, os fatos históricos achavam-se misturados a elementos míticos que expressavam o significado que Jesus havia adquirido para seus seguidores. É esse significado, basicamente, que o evangelista nos apresenta, e não uma descrição direta e confiável.
Alguns estudiosos dizem que os evangelhos foram escritos muito depois dos acontecimentos por eles registrados. Com isso, as lendas que se desenvolveram durante esse período acabaram por contaminar sua redação, alçando Jesus de simples professor sábio ao mitológico Filho de Deus. O senhor acha razoável essa hipótese ou será que existem indícios suficientes de que a composição dos evangelhos é anterior a essa data, ou seja, antes que a lenda pudesse corromper totalmente o que ficou registrado?:
Temos duas questões distintas aqui, e é importante que as conservemos assim. Estou certo que temos indícios suficientes para fixar a data da redação dos evangelhos em um período mais antigo. Mas, mesmo que não tivéssemos, o argumento de Armstrong seria falho do mesmo jeito.
Por quê?
As datas estabelecidas no meio acadêmico, mesmo nos círculos mais liberais, situam Marcos nos anos na década de 70, Mateus e Lucas na década de 80, e João na década de 90. Observe que essas datas ainda estão dentro do período de vida de várias pessoas que foram testemunhas oculares da vida de Jesus, inclusive daquelas que lhe foram hostis, e que por isso poderiam atuar como parâmetro de correção caso houvesse em circulação algum ensinamento falso sobre Jesus. Conseqüentemente, essas datas mais recentes para os evangelhos não são assim tão recentes. Na verdade, é possível fazer uma comparação muito instrutiva. As duas biografias mais antigas de Alexandre, o Grande, foram escritas por Ariano e Plutarco depois de mais de 400 anos da morte de Alexandre, ocorrida em 323 a.C, e mesmo assim os historiadores as consideram muito confiáveis. É claro que surgiu um material lendário com o decorrer do tempo, mas isso só aconteceu nos séculos posteriores aos dois autores. Por outras palavras, nos primeiros 500 anos, a história de Alexandre ficou quase intacta. O material lendário começou a aparecer nos 500 anos seguintes. Portanto, comparativamente, é insignificante saber se os evangelhos foram escritos 60 ou 30 anos depois da morte de Jesus. Na verdade, a questão praticamente inexiste.
Vamos admitir, por enquanto, que seja isso mesmo, mas voltemos à data de registro dos evangelhos — eu disse. — O senhor acredita que eles foram escritos possivelmente antes da data mencionada?
Sim, antes — disse Blomberg. — Podemos confirmar isso pelo livro de Atos, escrito por Lucas. Atos termina, aparentemente, sem uma conclusão. Paulo é a personagem principal do livro, e se encontra preso em Roma. É assim, abruptamente, que o livro acaba. O que acontece com Paulo? Atos não nos diz, provavelmente porque o livro foi escrito antes da morte dele.
Isso significa que o livro de Atos não pode ser posterior a 62 d.C. Assim, podemos recuar a partir desse ponto. Uma vez que Atos é o segundo tomo de um volume duplo, sabemos que o primeiro tomo — o evangelho de Lucas — deve ter sido escrito antes dessa data. E já que Lucas inclui parte do evangelho de Marcos, isto significa que Marcos é ainda mais antigo. Se trabalharmos com a margem aproximada de um ano para cada um, chegaremos à conclusão de que Marcos foi escrito por volta de 60 d.C, talvez até mesmo em fins da década de 50. Se Jesus foi morto em 30 ou 33 d.C, temos aí um intervalo de, no máximo, 30 anos aproximadamente.
Vejamos se é possível recuar mais ainda no tempo — disse, virando-me para Blomberg. De que época datam os primeiros testemunhos mais importantes sobre a expiação, a ressurreição e a relação única de Jesus Cristo com Deus?
É bom lembrar que os livros do Novo Testamento não estão em ordem cronológica — disse Blomberg inicialmente. Os evangelhos foram escritos praticamente depois das cartas de Paulo, cujo ministério epistolar começou por volta do fim da década de 40. A maior parte de suas cartas mais importantes são da década de 50. Para saber qual a informação mais antiga, vamos às cartas de Paulo com a seguinte pergunta: "Existem sinais aqui de que fontes mais antigas teriam sido usadas na redação dessas cartas?".
E o que encontramos?
Descobrimos que Paulo havia abraçado alguns credos, confissões de fé ou hinos da igreja cristã mais antiga. Esses elementos remontam ao alvorecer da igreja pouco depois da ressurreição. Os credos mais famosos são os de Filipenses 2.6-11, que fala de Jesus como tendo a mesma natureza de Deus, e Colossenses 1.15-20, onde Jesus é descrito como a "imagem do Deus invisível", que criou todas as coisas e por meio de quem todas as coisas foram reconciliadas com Deus, "estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz". Essas passagens sem dúvida são importantes porque mostram o tipo de crença que tinham os primeiros cristãos em relação a Jesus. Todavia, talvez o credo mais importante no que se refere ao Jesus histórico seja o de 1Coríntios 15, onde Paulo usa uma linguagem técnica para indicar que estava transmitindo essa tradição oral de uma forma relativamente fixa.
“Pois o que primeiramente lhes transmiti foi o que recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras, e apareceu a Pedro e depois aos Doze. Depois disso apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma só vez, a maioria dos quais ainda vive, embora alguns já tenham adormecido. Depois apareceu a Tiago e, então, a todos os apóstolos. ”
Essa é a questão — disse Blomberg. — Se a crucificação ocorreu em 30 d.C, a conversão de Paulo se deu aproximadamente em 32. Ele foi então levado imediatamente para Damasco, onde se encontrou com um cristão chamado Ananias e alguns outros discípulos. Seu primeiro encontro com os apóstolos em Jerusalém teria ocorrido em 35 d.C. Em algum momento desse período, Paulo recebeu esse credo, que fora formulado pela igreja primitiva e era usado por ela. Temos aqui, portanto, os principais fatos sobre a morte de Jesus pelos nossos pecados, além de uma lista detalhada daqueles para quem ele apareceu ressuscitado — tudo isso se dá no intervalo de dois a cinco anos depois dos eventos propriamente ditos! Não se trata aí de mitologia elaborada cerca de 40 anos ou mais depois, conforme pretende Armstrong. Pode-se perfeitamente argumentar a favor da crença na ressurreição, muito embora não haja nenhum registro escrito, que ela remonta aos dois anos posteriores ao evento. Isso é de suma importância.
Não estamos comparando 30 ou 60 anos com os 500 anos normalmente aceitos para outros dados — estamos falando de dois anos!
.Será que esses autores do século 1 estavam preocupados em registrar com precisão o que de fato aconteceu?
Ele fez que sim com a cabeça.
Sim, estavam — disse ele. — Pode-se ver isso no início do evangelho de Lucas, que se parece muito com os prefácios de outras obras da Antigüidade, biográficas ou históricas, dignas de confiança.
Blomberg abriu a Bíblia e leu a introdução do evangelho de Lucas:
“Muitos já se dedicaram a elaborar um relato dos fatos que se cumpriram entre nós, conforme nos foram transmitidos por aqueles que desde o início foram testemunhas oculares e servos da palavra. Eu mesmo investiguei tudo cuidadosamente, desde o começo, e decidi escrever-te um relato ordenado, ó excelentíssimo Teófilo, para que tenhas certeza das coisas que te foram ensinadas.”
Como podemos ver, Lucas diz claramente que ele pretendia escrever com precisão sobre as coisas que havia investigado e que comprovara com o respaldo extremamente confiável de testemunhas.
E quanto aos outros evangelhos? Eles não começam com declarações desse tipo. Isso significa então que os autores não tinham a mesma intenção?
É verdade que Marcos e Mateus não afirmam isso explicitamente — disse Blomberg. — No entanto, estão próximos de Lucas em termos de gênero, o que nos leva a crer que o objetivo histórico de Lucas refletiria muito de perto o deles.
E João?
A única afirmação do propósito dos evangelhos está em João 20.31: "Mas estes foram escritos para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e, crendo, tenham vida em seu nome".
Isto me parece muito mais uma declaração teológica que histórica — objetei.
Admito que sim — disse Blomberg. — Mas se o indivíduo acha que primeiro precisa estar suficientemente convencido para depois crer, é preciso que a teologia proceda de fatos históricos exatos. Além do mais, há uma prova implícita que não pode passar despercebida. Pense no modo como os evangelhos foram escritos — de maneira sóbria e responsável, com detalhes incidentais apurados, com cuidado e precisão óbvios. Não encontramos neles os rebuscamentos exóticos e a presença evidente da mitologia que vemos em vários outros escritos antigos.
Mas será que foi isso mesmo que aconteceu? Alguns críticos procuram fomentar um ambiente de idéias contraditórias e concorrentes.
Na opinião deles, os primeiros cristãos estavam convencidos de que presenciariam ainda em vida o retorno de Jesus para a consumação da história, por isso não achavam que fosse necessário preservar algum registro histórico sobre a vida de Jesus ou sobre seus ensinamentos. Afinal de contas, por que se dar ao trabalho de escrever se ele em breve voltaria para pôr fim ao mundo e consumar a história?
Portanto — eu disse —, anos mais tarde, quando ficou evidente que Jesus não retornaria logo, os cristãos se deram conta de que não possuíam nenhum material confiável em que pudessem se basear para escrever os evangelhos. Nada fora registrado com objetivos históricos. Não foi isso o que aconteceu de fato?
Existem ao longo da história, sem dúvida nenhuma, seitas e grupos, inclusive religiosos, para os quais esse argumento é válido, mas não para os primeiros cristãos — disse Blomberg.
Por que não? — perguntei desafiando-o. — O que tornava o cristianismo tão diferente?
Em primeiro lugar, acho que a premissa é um tanto exagerada. A verdade é que a maior parte dos ensinamentos de Jesus pressupõem um lapso significativo de tempo antes do fim do mundo. Em segundo lugar, mesmo que alguns dos seguidores de Jesus acreditassem que ele fosse voltar sem demora, lembre-se de que o cristianismo saiu do judaísmo. Durante oito séculos, os judeus viveram entre a tensão dos freqüentes discursos dos profetas de que o "Dia do Senhor" estava próximo e a marcha ininterrupta da história de Israel. E, mesmo assim, os seguidores daqueles profetas registraram, preservaram as palavras deles e as tinham em alta conta. Uma vez que os seguidores de Jesus o consideravam muito superior a um profeta, parece bastante lógico supor que tenham feito a mesma coisa.
Alguns eruditos dizem que era crença comum entre os primeiros cristãos que o Cristo fisicamente ausente dirigia-se à sua igreja por meio de mensagens, ou "profecias". Uma vez que essas profecias gozavam da mesma autoridade que tinham as palavras de Jesus durante sua existência terrena, os cristãos primitivos não faziam distinção entre os novos discursos e os que o Jesus histórico proferira. Conseqüentemente, esses dois materiais distintos aparecem juntos nos evangelhos, portanto não sabemos qual deles procede de fato do Jesus histórico. Esse é o tipo de crítica que atormenta muita gente. O que o senhor tem a dizer a esse respeito?
Esse argumento tem menos fundamento histórico que o anterior — disse Blomberg com um sorriso. — Na verdade, o próprio Novo Testamento desmente essa hipótese. Existem algumas passagens que fazem referência a profecias primitivas, mas elas nunca se confundem com as palavras de Cristo. Em 1Coríntios 7, por exemplo, Paulo distingue claramente a palavra que transmite do Senhor e a que procede do Jesus histórico. No livro de Apocalipse, pode-se distinguir perfeitamente todas as vezes em que Jesus fala diretamente com o profeta, o apóstolo João, conforme supõe a tradição, e as vezes em que João relata suas visões inspiradas. E, em 1Coríntios 14, quando Paulo discute os critérios da verdadeira profecia, ele fala da responsabilidade que tem a igreja local de testar os profetas. Com base em seus antecedentes judaicos, sabemos que, entre os critérios da verdadeira profecia de que fala o apóstolo, estava o seu cumprimento ou não, além do fato de que ela deveria estar de acordo com as palavras anteriormente reveladas pelo Senhor. O argumento mais forte, porém, é o que não encontramos nos evangelhos. Depois da ascensão de Cristo, diversas controvérsias rondaram ameaçadoramente a igreja primitiva: os crentes deveriam ou não ser circuncida-dos? Como disciplinar o falar em línguas? Como conservar unidos judeus e gentios? Quais as funções mais adequadas às mulheres no ministério? Os crentes podiam se divorciar de seus cônjuges não-cristãos? Essas questões poderiam ter sido muito bem resolvidas se os cristãos primitivos simplesmente lessem nos evangelhos o que Jesus lhes havia dito sobre o mundo. Isso, porém, nunca aconteceu. A persistência dessas controvérsias é sinal de que os cristãos estavam interessados em distinguir o que acontecera durante a vida de Jesus e o que fora debatido posteriormente nas igrejas.
O senhor não concorda que lapsos de memória, o desejo de as coisas serem de determinada maneira e o desenvolvimento de material lendário poderiam ter contaminado de modo irreparável a tradição vinculada a Jesus antes que os evangelhos fossem escritos?
Temos de nos lembrar de que estamos em terra estrangeira, num tempo e lugar remotos, em uma cultura que não havia inventado ainda o computador e nem mesmo a máquina impressora. Os livros — ou melhor, os pergaminhos de papiro — eram relativamente raros. Portanto, a educação, o aprendizado, a adoração e o ensino nas comunidades religiosas eram ministrados oralmente. Alguns rabinos ficaram famosos porque sabiam de cor todo o Antigo Testamento. Logo, os discípulos seriam perfeitamente capazes de guardar na memória — e passar adiante com precisão — muito mais do que aparece nos quatro evangelhos somados.
Espere um pouco — objetei. — Esse tipo de memorização parece realmente incrível. Como isso é possível?
Sim, é difícil para nós hoje conseguirmos imaginar como isso podia ser possível — admitiu Blomberg —, mas aquela cultura era oral e enfatizava muito a memorização. Lembre-se de que 80 a 90% das palavras de Jesus estavam originaria-mente em forma poética. Isso não significa que havia rimas, mas havia métrica, com versos harmônicos, paralelismos, e assim por diante — o que teria facilitado muito a memorização. Outra coisa que precisa ser dita é que a definição de memorização era mais flexível naquele tempo. Os estudos de culturas com tradição oral mostram que era possível introduzir variações em partes da história conforme a ocasião — incluir ou excluir detalhes, parafrasear este ou aquele trecho, explicar esta ou aquela parte, e assim por diante. De acordo com um estudo, cerca de 30 a 40% de toda tradição sagrada transmitida oralmente no antigo Oriente Médio apresenta variações de uma ocasião para a outra. Todavia, certos pontos nunca se alteravam, e a comunidade podia intervir para corrigir o narrador caso ele reproduzisse erroneamente os aspectos importantes da história. É...
É uma coincidência interessante: essa variação de 10 a 40% é praticamente a mesma que constatamos em qualquer passagem dos sinóticos.
O que o senhor está querendo dizer?
Estou querendo dizer que, provavelmente, muitas das semelhanças e das diferenças entre os sinóticos podem ser atribuídas ao fato de que os discípulos e outros cristãos primitivos devem ter memorizado muito do que Jesus disse e fez, mas sentiam-se à vontade para relatar aqueles episódios de diferentes maneiras, embora preservassem sempre a importância dos ensinamentos e dos atos originais de Jesus.
Você provavelmente já brincou de telefone-sem-fio: alguém cochicha alguma coisa no seu ouvido — por exemplo: "Você é o meu melhor amigo" —, depois, você cochicha a mesma coisa no ouvido do vizinho e assim por diante até completar a volta por todo o círculo de participantes. No fim, a mensagem sai completamente distorcida, por exemplo: "Você é o meu pior amigo".
Simplificando bastante — eu disse a Blomberg —, essa não é uma boa analogia para o que provavelmente aconteceu com a tradição oral sobre Jesus?
Não, de maneira alguma — ele disse. — Eu explico por quê. Quem procura memorizar com atenção alguma coisa e só resolve passá-la adiante depois de ter certeza que a sabe de cor faz algo bem diferente do que a brincadeira do telefone-sem-fio propõe. Na brincadeira, boa parte da diversão se deve ao fato de que a pessoa talvez não tenha entendido direito a mensagem que lhe cochicharam, e a regra não lhe permite pedir à pessoa que repita a frase. Logo em seguida, a mensagem é passada adiante, sempre sussurrada, o que aumenta mais ainda a possibilidade de distorções pelo caminho. No fim das contas, depois de passar por todo o círculo, o resultado será engraçado, sem dúvida nenhuma.
Por que então — perguntei a Blomberg — não podemos aplicar essa analogia à transmissão da tradição oral?
Se fôssemos transportar a brincadeira para o contexto da comunidade do século I, teríamos de submetê-la aos seus critérios. Isso significa que cada pessoa repetiria em alto e bom som o que ouvira do vizinho e em seguida pediria ao primeiro que passara a informação que a confirmasse: "Está correto o que eu disse?". Se não estivesse, ele se corrigiria. A comunidade monitoraria constantemente a reprodução da mensagem e interferiria sempre que fosse preciso fazer alguma correção. Isso preservaria a integridade da mensagem. E o resultado seria muito diferente do da brincadeira infantil.
Será que havia algum indício de desonestidade ou de imoralidade que pudesse macular sua capacidade ou sua disposição de transmitir com precisão a história?
Simplesmente não existem provas de que aqueles homens não fossem pessoas de muito caráter — disse ele. Observamos como narram as palavras e ações do homem que exigiu deles um nível de integridade tão severo quanto o de qualquer outra religião de que se tem notícia. Aqueles homens estavam tão determinados a viver sua fé que dez deles, do grupo de 11 apóstolos, tiveram mortes terríveis, o que demonstra sua grandeza de caráter. Em termos de honestidade, verdade, virtude e moralidade, essas pessoas tinham uma bagagem de dar inveja.
Eis aqui um teste no qual, dizem os céticos, os evangelhos sempre são reprovados. Afinal, eles não se contradizem? Não há discrepâncias inconciliáveis entre os vários relatos evangélicos? E, se há, como é que podemos confiar no que dizem?
Blomberg concordou que os evangelhos parecem estar em contradição em inúmeros pontos.
As incongruências vão de pequenas variações no fraseado até as contradições aparentes mais famosas — disse ele. — Na minha opinião, se você admite os elementos que mencionei anteriormente, ou seja, a paráfrase, a abreviação, os acréscimos explicativos, a seleção e a omissão, os evangelhos se mostram muito harmoniosos entre si pelos padrões antigos, que são os únicos pelos quais devemos julgá-los.
Ironicamente — ressaltei —, se os evangelhos fossem exatamente idênticos, palavra por palavra, os críticos acusariam seus autores de estar mancomunados, para que suas histórias saíssem exatamente iguais, o que os colocaria sob suspeita.
Exatamente — concordou Blomberg. — Se os evangelhos fossem 100% harmoniosos, isso os impossibilitaria de ser testemunhos independentes. As pessoas diriam então só haver um testemunho, os demais seriam só imitação.
Lembrei-me instantaneamente das palavras de Simon Greenleaf, da Faculdade de Direito de Harvard, uma das personagens mais importantes da história do direito e autor de um tratado muito influente sobre a prova. Depois de estudar o nível de harmonia dos quatro evangelistas, ele deu seu parecer:
Existe um volume significativo de discrepância, o que aponta para o fato de os autores não poderem ter estabelecido nenhum tipo de acordo entre si; por outro lado, há também uma harmonia de tal magnitude que demonstra sua condição de narradores independentes de uma transação de grande importância.
Para Hans Stier, estudioso alemão da escola historiográfica clássica, a harmonia dos dados básicos e a divergência de detalhes são sinais de credibilidade, uma vez que as narrativas fabricadas costumam ser integralmente consistentes e harmônicas. "Todo historiador", diz ele, "torna-se muito cético no momento em que algo extraordinário só aparece relatado em narrativas completamente isentas de contradições".
Em Mateus, lemos que um centurião foi pessoalmente a Jesus e lhe pediu que curasse seu servo. Lucas, porém, nos diz que o centurião mandou que os anciãos fossem até Jesus. Naturalmente trata-se de uma contradição, não é verdade?
Acho que não — respondeu Blomberg. — Pense da seguinte forma: no mundo atual, ouvimos no noticiário "que o presidente declarou hoje...", quando na verdade o discurso foi redigido por alguém encarregado de escrevê-lo e lido pelo secretário de imprensa — e, com um pouco de sorte, talvez o presidente tivesse a oportunidade de vê-lo em um certo momento entre a primeira e a segunda etapa. Nem por isso podemos dizer que a reportagem estava errada.
Da mesma forma, no mundo antigo, era perfeitamente compreensível e aceitável que se atribuíssem às pessoas ações que, na verdade, foram praticadas por seus subordinados ou emissários — no presente caso, pelos anciãos do povo judeu.
Então, em outras palavras, o senhor está dizendo que tanto Mateus quanto Lucas têm razão?
Exatamente — disse ele.
E quanto à afirmação de Marcos e Lucas, segundo a qual Jesus enviara alguns demônios para uma vara de porcos em Gerasa, enquanto Mateus refere-se a Gadara. As pessoas dizem que a contradição é óbvia nesse caso e que não há como resolvê-la: trata-se de dois lugares diferentes. Caso encerrado.
É melhor não dar o caso por encerrado tão cedo — disse Blomberg com um sorriso sutil. — Uma possível solução para isso é que um dos lugares mencionados era uma cidade, e o outro, uma província.
Acho que a coisa é um pouco mais complicada — eu disse. — A cidade de Gerasa nem sequer ficava perto do mar da Galiléia. Mas foi exatamente para lá que os demônios se dirigiram depois de entrar nos porcos, precipitando-os para a morte de cima de um penhasco.
Muito bem, boa questão — disse Blomberg. — Mas existem ruínas de uma cidade cujo sítio de escavação fica exatamente na margem oriental do mar da Galiléia. A forma que o nome da cidade geralmente toma (em inglês) é "Khersa". No entanto, como toda palavra hebraica traduzida ou transliterada para o grego, é provável que soasse bem próxima de "Gerasa". Portanto, o episódio pode ter ocorrido em Khersa (cuja grafia em grego acabou dando "Gerasa"), na província de Gadara.
Ponto seu. Mas há um problema que não é nada fácil de resolver: as discrepâncias entre as genealogias de Jesus em Mateus e Lucas? Os céticos normalmente as consideram totalmente inconciliáveis.
Trata-se de um outro caso de múltiplas opções — disse Blomberg.
E que opções são essas?
Segundo as duas mais comumente aceitas, Mateus refletiria a linhagem de José, já que a maior parte do primeiro capítulo adota a perspectiva de José que, como pai adotivo, seria o antepassado legal por meio de quem a linhagem real de Jesus seria traçada. São esses os temas que importam a Mateus. Lucas, por sua vez, teria traçado a genealogia de Jesus com base na linhagem de Maria. E, já que ambos são descendentes de Davi, basta recuar mais um pouco para ver que ambas as linhagens acabam convergindo. A outra opção postula que ambas as genealogias refletem a linhagem de José, porque têm como objetivo o estabelecimento de rotinas legais necessárias. Uma delas, porém, seria a linhagem humana de José (evangelho de Lucas), ao passo que a outra seria a linhagem legal de José, sendo que ambas divergem nos pontos em que determinam antepassados que não tiveram descendentes diretos. Estes eram obrigados a suscitar descendência por meio de várias práticas previstas no Antigo Testamento. O problema torna-se maior porque alguns nomes são omitidos, o que era perfeitamente aceitável pelos padrões do mundo antigo. Existem ainda variantes textuais: nomes que, traduzidos de uma língua para outra, geralmente recebiam grafias diferentes e eram facilmente confundidos com os de outros indivíduos.
Não podemos subestimar o fato de essas pessoas amarem Jesus — eu disse enfaticamente. — Não eram observadores neutros; eram seguidores fiéis a Cristo. Será que isso não poderia levá-los a fazer certas modificações para que Jesus parecesse bom?
Admitamos que a situação possibilite isso — disse Blomberg. — Mas também as pessoas são capazes de honrar e respeitar alguém a tal ponto que se sintam impelidas a registrar sua vida com a maior integridade possível. Essa seria a forma de demonstrar seu amor por tal pessoa. E é o que eu acho que aconteceu aqui. Além disso, esses discípulos nada tinham a ganhar exceto críticas, o ostracismo e o martírio. Com certeza nada lucraram financeiramente. Na verdade, foram pressionados a ficar quietos, a negar a Jesus, a diminuí-lo, e até mesmo a esquecer que um dia o conheceram.
No entanto, por causa de sua integridade, proclamaram o que viram, ainda que com isso tivessem de sofrer e morrer.
Os autores dos evangelhos registraram algum tipo de material que poderia ser fonte de embaraço ou o acobertaram para que parecesse decente? Será que inseriram em seu relato alguma coisa incômoda ou de difícil explicação?
Há de fato muito o que dizer a esse respeito — ele respondeu. — Grande parte dos ensinamentos de Jesus consiste em palavras duras. Alguns ensinamentos exigem muito no plano ético. Se eu tivesse de inventar uma religião para satisfazer minha fantasia, provavelmente não cobraria de mim mesmo perfeição igual à do meu Pai celestial, tampouco diria que a lascívia que sinto no coração já é, por si mesma, adultério.
Porém — objetei —, outras religiões também fazem exigências muito duras.
Sim, é verdade, por isso mesmo as exigências mais duras eram as que colocavam as maiores dificuldades para o que a igreja se propunha a ensinar sobre Jesus.
Dê-me alguns exemplos, por favor — pedi.
Por exemplo, em Marcos 6.5, lemos que Jesus não pôde fazer muitos milagres em Nazaré porque as pessoas dali eram incrédulas, o que parecia limitar seu poder. Jesus disse em Marcos 13.32 que não sabia a hora de seu retorno, o que parece limitar sua onisciência. Atualmente, essas declarações não são mais problema para a teologia, porque Paulo, em Filipenses 2.5-8, nos diz que Deus, em Cristo, quis, de maneira espontânea e consciente, limitar o exercício independente de seus atributos divinos. Mas, se pudesse passar pela história dos evangelhos sem lhe dar muita atenção, seria muito mais conveniente deixar de fora todo esse material, o que me pouparia o trabalho de ter de explicá-lo. O batismo de Jesus é outro exemplo. Existe uma explicação para que Jesus, que não tinha pecados, se deixasse batizar, mas por que não facilitar as coisas e deixar esse episódio de fora? Na cruz, Jesus gritou: "Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?". Teria sido muito melhor para os evangelistas omitir essa passagem, já que ela dá margem a tantas perguntas.
Também há muito material constrangedor sobre os discípulos — acrescentei.
Sem dúvida — disse Blomberg. — Sempre que Marcos fala de Pedro, o tom é bem pouco elogioso. E olhe que Pedro era o líder! Os discípulos quase sempre entendiam mal o que Jesus queria dizer. Tiago e João queriam os lugares à direita e à esquerda de Jesus, por isso Cristo lhes deu lições muito duras para mostrar-lhes que o líder é quem deve servir primeiro. Eles se comportavam como um bando de egoístas, interesseiros e tolos na maior parte das vezes.
Quando os evangelhos falam de pessoas, lugares e acontecimentos, é possível confirmar as informações dos evangelistas por meio de fontes independentes? Normalmente, esse tipo de corroboração é inestimável sempre que se quer avaliar se um autor tem ou não comprometimento com a precisão.
Sim, é possível, e quanto mais exploramos esse tópico, tanto mais os detalhes se confirmam — respondeu Blomberg. — Nos últimos séculos, a arqueologia trouxe à luz, inúmeras vezes, descobertas que confirmaram referências específicas dos evangelhos, principalmente de João — ironicamente, o que desperta mais desconfianças!
Claro que existem algumas questões que ainda não foram resolvidas; por vezes, a arqueologia surgiu com novos problemas, mas que são pouquíssimos se comparados com o número de exemplos que corroboram as informações dos evangelistas. Além disso, sabemos por meio de fontes não-cristãs muitos fatos sobre Jesus que confirmam os principais ensinamentos e ocorrências de sua vida. E, se considerarmos que os historiadores antigos lidavam, na maior parte das vezes, só com legisladores políticos, imperadores, reis, batalhas militares, autoridades religiosas e movimentos filosóficos de grande importância, é notável o quanto podemos aprender sobre Jesus e seus seguidores, ainda que não se encaixem em nenhuma dessas categorias na época em que os historiadores escreveram seus livros.
Esse teste faz a seguinte pergunta: Haveria outras pessoas presentes que poderiam contradizer ou corrigir os evangelhos, caso apresentassem alguma distorção ou erro? Em outras palavras, temos algum exemplo de contemporâneos de Jesus que teriam se queixado dos relatos evangélicos por conterem erros?
Muitas pessoas tinham motivos para querer desacreditar o movimento e, se tivessem mais competência para escrever a história, certamente o fariam — disse Blomberg. — No entanto, veja o que disseram seus adversários. Nos escritos judeus tardios, Jesus é chamado de o feiticeiro que desviou Israel, o reconhecimento de que ele fez de fato obras maravilhosas, embora os autores coloquem em dúvida a fonte de seu poder. Essa seria a oportunidade perfeita para dizer alguma coisa do tipo: "Os cristãos vão lhe dizer que ele fez milagres, mas nós estamos de prova que ele não fez". Nunca vemos, porém, seus opositores dizer esse tipo de coisa. Em vez disso, eles admitem implicitamente que é verdade o que lemos nos evangelhos, ou seja, que Jesus fez milagres.
Será que esse movimento cristão teria fincado raízes precisamente em Jerusalém, no lugar exato onde Jesus passou a maior parte de seu ministério, foi crucificado, morreu e ressurgiu, se as pessoas que o conheceram soubessem que os discípulos estavam exagerando ou distorcendo as coisas que ele fez?
Creio que não — respondeu Blomberg. — Sabemos que o movimento foi inicialmente muito vulnerável, frágil e perseguido. Os críticos poderiam ter-se aproveitado dessa situação para atacá-lo, acusando-o de falsidades e distorções. Mas — concluiu Blomberg com ênfase — não é isso o que acontece.
E quanto à sua fé pessoal? De que modo as suas pesquisas afetaram as coisas em que o senhor crê?
Elas a fortaleceram, sem dúvida nenhuma. Sei pelos meus estudos que são muitos os indícios que apontam para a confiabilidade do relato evangélico. Sabe, é irônico: a Bíblia louva a fé que dispensa as provas. Lembre-se da resposta de Jesus a Tome: "Porque me viu, você creu? Felizes os que não viram e creram". Sei que as provas nunca podem compelir ou coagir a fé. Não podemos tomar o lugar do Espírito Santo, o que é sempre uma preocupação dos cristãos quando ouvem discussões desse tipo. Sabe, há muitas histórias de estudiosos especializados no Novo Testamento que não eram cristãos, mas pelo estudo dessas mesmas questões chegaram a Cristo pela fé. Muitos outros eruditos, que eram cristãos, tiveram sua fé fortalecida, mais solidificada e mais bem fundamentada por causa das provas: é nessa categoria que eu me encaixo.
ENTREVISTA DO REPÓRTER LEE STROBEL AO HISTORIADOR E ARQUEÓLOGO EDWIN YAMAUCHI