quarta-feira, 17 de março de 2010

Grécia, Roma, Israel e a Plenitude dos Tempos

A Plenitude dos Tempos: Em Gálatas 4.4, Paulo chama a atenção para a era histórica da preparação providencial que antecedeu a vinda de Cristo a terra em forma humana: “Vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho...”. Marcos também indica que a vinda de Cristo aconteceu quando estava tudo já preparado na terra (Mc 1.15). O estudo dos eventos que antecederam o aparecimento de Cristo sobre esta terra faz com que o estudante equilibrado reconheça a verdade das afirmações de Paulo e Marcos.

Na maioria das discussões sobre este assunto, esquece-se que não apenas os judeus, mas os gregos e os romanos também, contribuíram para a preparação religiosa para a aparição de Cristo. A contribuição grega e romana foi, na realidade, negativa, mas em muito contribuiu para levar o desenvolvimento histórico até o ponto em que Cristo pudesse exercer o impacto máximo sobre a história de uma forma até então impossível.

01 – O Ambiente
A – Contribuições Políticas dos Romanos

A contribuição política anterior à vinda de Cristo foi basicamente obra dos romanos. Este povo, seguidor do caminho da idolatria, dos cultos de mistérios e do culto ao imperador, foi então usado por Deus, a quem ignoravam, para cumprir a sua vontade.

1 – Os romanos, como nenhum outro povo até então, desenvolveram um sentido de unidade da espécie sob uma lei universal. Este sentido da solidariedade do homem no Império criou um ambiente favorável à aceitação do Evangelho que proclamava a unidade de raça humana, baseada no fato de que todos os homens estavam sob pena do pecado e no fato de que a todos era oferecida a salvação que os integra num organismo universal, a Igreja Cristã, o Corpo de Cristo.

Nenhum Império do antigo Oriente Próximo, nem mesmo o império de Alexandre, tinha conseguido dar aos homens um sentido de unidade numa organização política. A unidade política seria contribuição particular de Roma. A aplicação da lei romana aos cidadãos de todo o Império era imposta diariamente a todos os cidadãos e súditos do Império pela justiça imparcial das cortes romanas. Esta lei romana se originava da lei consuetudinária da antiga monarquia. Durante a primeira república no quinto século, antes de Cristo, esta lei foi codificada nas Doze Tábuas, que eram parte essencial na educação de toda criança romana. A compreensão de que os grandes princípios da lei romana eram também parte das leis de todas as nações sob o domínio dos romanos como praetor peregrinus, que era encarregado da tarefa de tratar com as cortes em que estrangeiros estivessem sendo julgados, tornou-se realidade para todos os sistemas jurídicos desses estrangeiros. Assim, o código das Doze Tábuas, baseado no costume romano, foi enriquecido pelas leis de outras nações. Os romanos de inclinação filosófica explicavam essas semelhanças pelo uso de conceito grego de uma lei universal cujos princípios foram escritos na natureza do homem e seriam descobertos por um processo racional.

Um passo adicional no estabelecimento da idéia de unidade foi a garantia de cidadania romana aos não romanos. Este processo foi principiado no período anterior ao nascimento de Cristo e foi completado quando Caracala concedeu , em 212, a todos os homens livres do Império Romano a cidadania romana. O Império Romano reunia todo o mundo mediterrâneo que contava na história de então; desse modo para todos os propósitos práticos, todos os homens estavam debaixo de um sistema jurídico, como cidadãos de um só reino.

A lei romana, com sua ênfase sobre a dignidade do indivíduo, e no direito deste à justiça e à cidadania romana, além de sua tendência a agrupar homens de raças diferentes numa só organização política, antecipou um Evangelho que proclamava a unidade da raça ao anunciar a pena do pecado e o Salvador do pecado. Paulo lembrou aos da igreja filipense que eles eram membros de uma comunidade celestial (Fp 3.20).

2 – A movimentação livre em torno do mundo mediterrâneo teria sido mais difícil para os mensageiros do Evangelho antes de César Augusto (27 a.C. – 14 d.C.). A divisão do mundo antigo em grupos, cidades-estados ou tribos, pequenos e enciumados um do outro, impedia a circulação e a propagação de idéias. Com o aumento do poderio imperial romano no período da expansão imperial, uma era de desenvolvimento pacífico ocorreu nos países ao redor do Mediterrâneo. Pompeu tinha varrido os piratas do Mediterrâneo e os soldados romanos mantinham a paz nas estradas da Ásia, África e Europa. Este mundo relativamente pacífico tornou mais fácil a movimentação dos primeiros cristãos nas cidades onde pregavam o Evangelho a todos os homens.

3 – Os romanos criaram um ótimo sistema de estradas que iam do marco áureo no fórum a todas as regiões do Império. As estradas principais eram de concreto e duraram séculos. Elas passavam por montes e vales até chegarem aos pontos mais distantes do Império; algumas delas são usadas até hoje. Um estudo das viagens de Paulo indica que ele se serviu muito deste ótimo sistema viário para atingir os centros estratégicos do Império Romano. As estradas romanas e as cidades estrategicamente localizadas às margens dessas estradas foram uma ajuda indispensável na concretização da missão de Paulo.

4 – O papel do exército romano no desenvolvimento do ideal de uma organização universal e na propagação do Evangelho não pode ser ignorado. Os romanos adotavam a prática de usar habitantes das províncias no exército como forma de suprir a falta de cidadãos romanos atingidos pelas guerras e pelo conforto da vida. Os provincianos entravam em contato com a cultura romana e ajudavam a divulgar suas idéias através do mundo antigo. Em muitos casos, alguns destes homens converteram-se ao cristianismo e levaram o Evangelho às regiões para onde eram designados. É provável que a introdução do cristianismo na Bretanha seja um resultado dos esforços de soldados cristãos que acantonaram por lá.

5 – As conquistas romanas levaram muitos povos à falta de fé em seus deuses, uma vez que eles não foram capazes de protegê-los dos romanos. Tais povos foram deixados num vácuo espiritual que não estava sendo satisfeito pelas religiões de então.

Além disso, os substitutos que Roma tinha a oferecer em lugar das religiões perdidas nada mais podiam fazer além de levar os povos a compreenderem sua necessidade de uma religião mais espiritual. O culto ao imperador romano, que surgiu cedo na Era Cristã. Fazia um apelo ao povo somente como um meio de tornar tangível o conceito de Império Romano.

As várias religiões de mistério pareciam oferecer muito mais que isso como um meio de auxílio espiritual e emocional, e nelas o Cristianismo achou seu maior rival. A adoração de Cibele, a grande mãe terra, foi trazida da Frigia para Roma. A adoração desta deusa da fertilidade tinha ritos tais como o drama da morte e ressurreição do consorte de Cibele, Átis, o que parecia suprir as necessidades emocionais dos homens. O culto à Ísis, importado do Egito, era semelhante ao de Cibele, com sua ênfase sobre a morte e ressurreição. O Mitraísmo, importado da Pérsia, teve aceitação especial entre os soldados romanos. Tinha um festival em dezembro, um Maligno, um Salvador nascido miraculosamente – Mitra, um deus-salvador – além de capelas e cultos de adoração.

Todas essas religiões enfatizam o deus-salvador. O culto de Cibele conclamava seus adoradores ao sacrifício de um touro e o batismo de seus seguidores com o sangue desse touro. O mitraísmo possuía, além de outras coisas, refeições sacrificiais. Por causa da influência dessas religiões, elas pareciam algo esquisitas frente ao Cristianismo e suas demandas sobre o indivíduo. Quando muitos descobriram que os sacrifícios de sangue dessas religiões nada podiam fazer por eles, foram guiados pelo Espírito Santo a aceitar a realidade oferecida a eles no Cristianismo.

A consideração destes fatores permite concluir que o Império Romano criou um ambiente político favorável para a propagação do cristianismo nos primórdios da sua existência. Mesmo a Igreja da Idade Média não conseguiu se desfazer da glória da Roma imperial, acabando por perpetuar seus ideais num sistema eclesiástico.

B – Contribuições Intelectuais dos Gregos

Embora importante para a preparação para a vinda de Cristo, a contribuição romana foi ofuscada pelo ambiente intelectual criado pela mente grega. A cidade de Roma pode ser identificada com o ambiente político do cristianismo, mas foi Atenas que ajudou a criar um ambiente intelectual propício à propagação do Evangelho. Os romanos podem ter sido os conquistadores dos gregos, mas como indicou Horácio (65 a.C. – 8 d.C.) em sua poesia, os gregos conquistaram os romanos culturalmente. A mente prática dos romanos pode ter construído boas estradas, pontes fortes e belos edifícios, mas a grega erigiu os grandiosos edifícios da mente. Foi graças à influência grega que a cultura basicamente rural da antiga República deu lugar à cultura intelectual do Império.

1 – O Evangelho universal precisava de uma língua universal para poder exercer um impacto real sobre o mundo. Os homens têm procurado desde a Torre de Babel criar uma língua universal para que possam comunicar suas idéias uns aos outros sem problemas. Assim como o inglês no mundo moderno e o latim no mundo medieval erudito, o grego tornou-se no mundo antigo, ao tempo em que o Império Romano apareceu, a língua universal. Os romanos mais ilustres sabiam grego e latim.

O processo pelo qual o grego se tornou o vernáculo do mundo é interessante. O dialeto ático usado pelos atenienses começou a ser usado amplamente no quinto século antes de Cristo com a solidificação do Império Ateniense. Mesmo depois de o Império ser destruído ao final do quinto século, o dialeto de Atenas, que se originara da literatura grega clássica, tornou-se a língua que Alexandre, seus soldados e os comerciantes do mundo helenístico, entre 338 e 146 a.C., modificaram, enriqueceram e espalharam através do mundo mediterrâneo.

Foi através deste dialeto de homem comum, conhecido como Koinê e diferente do grego clássico, que os cristãos foram capazes de se comunicar com os povos do mundo antigo, usando-o inclusive para escrever o seu Novo Testamento, o mesmo fazendo os judeus de Alexandria para escrever seu Velho Testamento, a Septuaginta. Só recentemente se soube que o grego do Novo Testamento era o grego do homem comum dos dias de Jesus Cristo, o que o diferencia do grego dos clássicos. Um teólogo alemão chegou mesmo a dizer que o grego do Novo Testamento era um grego especial criado pelo Espírito Santo para a produção do Novo Testamento.

Adolf Deissman (1866-1937) descobriu, no final do século passado, que o grego do Novo Testamento era o mesmo usado pelo homem comum do primeiro século nos relatos deixados em papiros sobre seus negócios e em documentos fundamentais de sua vida diária. Desde então, eruditos como James Hope Moulton (1863-1917) e George Millgan (1860-1934) deram uma base científica à descoberta de Deissman ao estudarem comparativamente o vocabulário dos papiros e o do Novo Testamento. Esta descoberta deu origem ao surgimento de inúmeras traduções modernas. Se o Evangelho foi escrito na língua do povo comum à época de sua produção, raciocinam os tradutores, deve ser colocado então na língua do homem comum de nossos dias.

2– A filosofia grega preparou o caminho para a vinda do Cristianismo por ter levado à destruição as antigas religiões. Qualquer um que chegasse a conhecer seus princípios, fosse grego ou romano, logo perceberia que sua disciplina intelectual tornou a religião tão ininteligível que a acabava abandonando em favor da filosofia. A filosofia falhou, porém, na satisfação das necessidades espirituais do homem, que se via obrigado então a tornar-se um cético ou a procurar conforto nas religiões de mistério do Império Romano. À época do advento de Cristo, a filosofia descera do ponto elevado que alcançara com Platão para um sistema de pensamento individualista egoísta, como é o caso do Estoicismo ou do Epicurismo. Na maioria dos casos, a filosofia apenas aspirava por Deus, fazendo dEle uma abstração; jamais revelava um Deus pessoal de amor. Este fracasso da filosofia do tempo da vinda de Cristo tornou as mentes humanas prontas para entender uma apresentação mais espiritual da vida. Só o cristianismo pode preencher o vazio na vida espiritual de então.

A outra forma pela qual os grandes filósofos gregos ajudaram o cristianismo está ligada ao fato de chamarem a atenção dos gregos para uma realidade que transcendia o mundo temporal e visível em que viviam, Tanto Sócrates quanto Platão ensinaram, cinco séculos antes de Cristo, que este presente mundo temporal dos sentidos é apenas uma sombra do mundo real em que os ideais supremos são ao mesmo tempo abstrações intelectuais, o bem, a beleza e a verdade. Insistiam que a realidade não era temporal e material, mas espiritual e eterna. Sua busca da verdade jamais lhes conduziram a um Deus pessoal, mas evidenciou que o melhor que o homem deve fazer é buscar a Deus através do intelecto. O cristianismo ofereceu a este povo que aceitava a filosofia de Sócrates e Platão, a revelação histórica do Bem, da Beleza e da Verdade na pessoa do Deus-homem, Cristo. Os gregos aceitavam a imortalidade da alma, mas não tinham lugar para ressurreição do corpo.

A literatura e história grega evidenciam claramente que os gregos estavam preocupados com os problemas do certo e do errado e com o futuro eterno do homem. Ésquilo (525-456 a.C.) em sua peça Agamenon, aproxima-se da afirmação bíblica (“Estai certos de que o vosso pecado vos há de atingir” – Nm 32.23), ao propor que os problemas de Agamenon eram conseqüência de seu mau procedimento. Os gregos, entretanto, viam o pecado como um problema mecânico e contratual; não o viam como um problema pessoal que afrontava a Deus e prejudicava os homens.

À época da vinda de Cristo, os homens tinham compreendido finalmente a insuficiência da razão humana e do politeísmo. As filosofias individualistas de Epicuro (341-270 a.C.) e Zenão e as religiões de mistério testemunham do desejo humano por um relacionamento mais pessoal com Deus. O cristianismo, com sua oferta de um relacionamento pessoal, forneceu aquilo para o que a cultura grega, em função de sua própria inadequação, tinha produzido muitos corações famintos.

3 – O povo grego também contribuiu no campo da religião para preparar o mundo a aceitar a nova religião cristã quando ela surgisse. O advento da filosofia grega materialista no sexto século antes de Cristo destruiu a fé das pessoas no velho culto politeísta como descrito na Ilíada e na Odisséia de Homero. Embora os elementos deste culto se baseassem no culto mecânico oficial, logo perderiam a sua vitalidade.

O povo voltou, então, à filosofia. Esta também, entretanto, perdeu o seu vigor. A filosofia tornou-se um sistema de individualismo pragmático, dirigido pelos sucessores dos sofistas ou um sistema de individualismo subjetivista, como se apresentava nos escritos de Zenão, o estóico, e Epicuro. Lucrécio (I século a.C.), o expoente poético da filosofia epicurista, fundamentava seus ensinos de recusa ao sobrenatural numa metafísica materialista que considerava até o espírito do homem um tipo desenvolvido de átomo. O estoicismo ainda considerava o sobrenatural, mas seu deus era de tal modo identificado com a criação que acabava caindo num panteísmo. Embora ensinasse a paternidade de Deus e a fraternidade do homem e sustentasse um elevado código de ética, o estoicismo deixava que o homem, por um processo racional, praticasse sua própria obediência às leis naturais que deveriam ser descobertas apenas pela razão.

Desse modo, os sistemas gregos e romanos de filosofia e religião contribuíram negativamente para avinda do cristianismo, ao destruírem as velhas religiões politeístas e demonstrarem a incapacidade da razão para alcançar Deus. As religiões de mistério, para onde muitos foram, familiarizaram o povo a pensar em termos de pecado e redenção. Então, quando o cristianismo apareceu, as pessoas do Império Romano estavam bem receptivas a uma religião que parecia oferecer uma perspectiva espiritual para a vida.

02 – Contribuições Religiosas dos Judeus

As contribuições religiosas para a “plenitude do tempo” incluem tanto a dos gregos e romanos como a dos judeus. Todavia, por mais importantes que as contribuições de Atenas e Roma, como pano-de-fundo histórico, tenham sido par o cristianismo, as contribuições dos judeus formam a Herança do Cristianismo. O cristianismo pode ter se desenvolvido no sistema político de Roma e pode ter encontrado o ambiente intelectual criado pela mente grega, mas seu relacionamento com o Judaísmo foi muito mais íntimo. O Judaísmo pode ser considerado como o botão do qual a rosa do cristianismo abriu-se em flor.

Ao contrário dos gregos, os judeus não intentavam encontrar a Deus pelos processos da razão humana. Eles pressupunham Sua existência e lhe prestavam o culto que sentiam lhe dever. O povo judeu foi muito influenciado a estas atitudes pelo fato de que Deus o procurou e Se revelou a ele na história por Suas aparições a Abraão e a outros grandes líderes da raça. Jerusalém tornou-se o símbolo de uma preparação religiosa positiva para a vinda do cristianismo. A salvação viria, pois “dos judeus”, como Cristo diria à mulher no poço (Jo 4.22). Desta pequenina nação cativa, situada no caminho da Ásia, África e Europa, viria um Salvador. O judaísmo tornou-se o berço do cristianismo e, ao mesmo tempo, forneceu o abrigo inicial da nova religião.

A – Monoteísmo

O Judaísmo contrastava flagrantemente com a maioria das religiões pagãs, ao fundamentar-se num sólido monoteísmo espiritual. Nunca, depois da sua volta do cativeiro babilônico, os judeus caíram em idolatria. A mensagem de Deus para eles através de Moisés ligava-os ao único Deus verdadeiro de toda a terra. Os deuses dos pagãos eram apenas ídolos que os profetas judeus condenavam em termos muito claros. Este sublime monoteísmo foi espalhado por numerosas sinagogas localizadas em volta da área mediterrânea durante os três últimos séculos anteriores à vinda de Cristo.

B – Esperança Messiânica

Os judeus ofereceram ao mundo a esperança de um Messias que estabeleceria a justiça na Terra. Esta esperança messiânica estava em claro antagonismo com as aspirações nacionalistas pintadas por Horácio (65-68 a.C.) no poema em que descrevia um rei romano ideal que haveria de vir – o filho que nasceria a Augusto. A esperança de um Messias tinha sido popularizada no mundo romano a partir desta firme proclamação pelos judeus. Até mesmo os discípulos depois da morte e ressurreição de Cristo ainda esperavam por um reino messiânico sobre a terra (At 1.6). Certamente, os homens instruídos que viveram em Jerusalém na época imediatamente anterior ao nascimento de Cristo tiveram contato com esta esperança. A expectativa de muitos cristãos hoje em torno da vinda de Cristo ajuda-nos a compreender a atmosfera da expectação no mundo judeu acerca da vinda do Messias.

C – Sistema Ético

Na parte moral da lei judaica, o judaísmo também ofereceu ao mundo o mais puro sistema ético de então. O elevado padrão proposto nos Dez Mandamentos se chocava com os sistemas éticos prevalecentes e com as práticas por demais corruptas dos sistemas morais pelos quais se pautavam. Para os judeus, o pecado não era o fracasso externo, mecânico e contratual dos gregos e romanos, mas era uma violação da vontade de Deus, violação esta que se expressava num coração impuro e, mais ainda, em atos pecaminosos, externos e visíveis. Esta perspectiva moral e espiritual do Velho Testamento favoreceu uma doutrina de pecado e redenção que realmente resolvesse o problema do pecado. A salvação vinha de Deus e não seria encontrada em sistemas racionalistas de ética ou nas subjetivas religiões de mistério.

D – O Antigo Testamento

O povo judeu, ademais, preparou o caminho para a vinda do cristianismo ao legar à Igreja em formação um livro sagrado, o Velho Testamento. Mesmo um estudo superficial do Novo Testamento revela a profunda dívida de Cristo e dos apóstolos para com o Velho Testamento e sua reverência por ele como a palavra de Deus para o homem. Muitos gentios também o leram e se familiarizaram com os fundamentos da fé judaica. Este fato é indicado pelos relatos de vários prosélitos judeus. Muitos desses prosélitos foram capazes de passar do judaísmo ao cristianismo por causa do Velho Testamento, o livro sagrado da nova Igreja. Muitas religiões, o Islamismo por exemplo, confiam em seu fundador por causa do seu Livro sagrado, mas Cristo não deixou textos sagrados para a Igreja. Os livros do Velho Testamento e os do Novo Testamento, produzidos sob a inspiração do Espírito Santo, seriam a literatura viva da Igreja.

E – Filosofia da História

Os judeus tornaram possível uma filosofia da história por insistirem que a história tem significado. Eles se opuseram a toda e qualquer visão que deixasse a história sem significado, como uma série de círculos ou como um processo de evolução linear. Eles sustentavam uma visão linear e cataclísmica da história, na qual o Deus soberano, que criou a história, iria triunfar sobre a falha do homem na história para trazer uma era dourada.

F – A Sinagoga

Os judeus também forneceram uma instituição da qual muitos cristãos esqueceram a utilidade, no surgimento e desenvolvimento do cristianismo primitivo. Esta instituição era a sinagoga judia. Nascida da necessidade decorrente da ausência dos judeus do templo de Jerusalém durante o cativeiro babilônico, a sinagoga se tornou parte integrante da vida judaica. Através dela, os judeus e também muitos gentios se familiarizaram com uma forma superior de viver. Foi também o lugar em que Paulo primeiro pregou em todas as cidades por onde passou no itinerário de suas viagens missionárias. Foi ela a casa de pregação do cristianismo primitivo. Há algo de convincente na idéia de que o sistema de governo praticado na Igreja primitiva tenha sido apropriado de antecedentes judaicos na sinagoga. O judaísmo foi, pois, o paidagogos para conduzir os homens a Cristo (Gl 3.23-25).

Os assuntos que têm sido discutidos demonstram o quão beneficiado foi o cristianismo, tanto quanto à época como quanto à região, no período de sua formação. Em nenhum outro lugar na história do mundo antes da vinda de Cristo houve uma região tão grande sob uma mesma lei e um mesmo governo. O mundo mediterrâneo tinha seu centro cultural em Roma. Uma língua comum tornou possível levar o Evangelho à maioria das pessoas do Império numa língua comum a elas e ao pregador. A Palestina, o berço da nova religião, estava estrategicamente neste mundo. Paulo estava certo ao mostrar que o cristianismo “não se fez em qualquer canto” (At 26.26), porque a Palestina era um importante cruzamento que ligava os continentes da Ásia e da África com a Europa por via terrestre. Muitas das batalhas importantes da historiai antiga foram travadas por causa da posse desta estratégica região. Nunca nas épocas antiga e medieval, as condições para a propagação do cristianismo através do mundo mediterrâneo foram tão favoráveis como no período de sua formação e durante os seus três primeiros séculos de existência. Esta é também a opinião do principal erudito do mundo em missões.

Negativamente, através da contribuição do mundo grego e romano, e positivamente, através do judaísmo, o mundo foi preparado para a “plenitude dos tempos” quando Deus enviou Seu Filho para levar a redenção a uma humanidade partida pelas guerras e fatigada pelo pecado. É significativo que, de todas as religiões praticadas no Império Romano ao tempo do nascimento de Cristo, apenas o judaísmo e o cristianismo tenham conseguido sobreviver ao curso dinâmico da história humana.


sábado, 13 de março de 2010

A Base da Hipótese Documental

Texto Base:
“Falou mais Deus a Moisés, e disse-lhe: Eu sou Iavé. Eu apareci a

Abraão, a Isaque e a Jacó, como El Shadday; mas pelo meu

nome , Iavé, não lhes fui conhecido.” (Êxodo 6:2,3)

O propósito deste ensaio, como se vê por seu título, é demonstrar a base da Hipótese Documental. Primeiramente, deixo claro que essa é uma teoria científica; não é um dogma religioso, nem uma verdade de fé. Sendo assim, está sujeita a críticas e modificações. Diversos expositores da Hipótese têm idéias próprias, e podem chegar a discordar entre si em diversos pontos. Em outros pontos, contudo, concordam unanimemente. Consequentemente, está sujeita a desenvolvimento, conforme novos argumentos se acrescentam e velhos argumentos mostram-se imperfeitos. Fique claro que a Hipótese busca uma explicação racional da realidade das Escrituras, e não simplesmente agrupar suposições.

A Hipótese, contudo, tem um peso forte sobre o Judaísmo e o Cristianismo. Questões como, por exemplo, as citações do Pentateuco feitas por autores do Novo Testameto, devem ser consideradas conforme o contexto histórico e social da Igreja dos primeiros séculos. A Hipótese Documental, portanto, desconsidera completamente a inerrância das Escrituras; não se nega o valor espiritual e a inspiração das Escrituras, mas que estas sejam completamente inerrantes. Em outros pontos, por exemplo, a Hipótese até corrobora com a doutrina do Cristianismo (Romanos 8:3; Hebreus 7:16), embora pareça uma tendência marcionista, ou mesmo anti-semita. Em muitos pontos, contudo, a Hipótese é uma pedra no papato, como no caso dos dogmas legalistas pregados por muitas denominações da atualidade.

Antes, porém, de apresentarmos a Hipótese em si, é preciso lançar seus fundamentos, sobre os quais a Hipótese será construída. Sendo assim, não são suposições, mas conclusões tiradas à partir das Escrituras do Velho Testamento. A doutrina do Novo Testamento é completamente desconsiderada neste ensaio, uma vez que é posterior. O Antigo Testamento diz respeito à religião judaica, não ao Evangelho (Romanos 7:1-4)! Harmonização doutrinária entre o Evangelho e a Hipótese Documental (lembrando que esta última não é dogma religioso) é um assunto para outro ensaio.

Pessoalmente: Não creio inteiramente na Hipótese Documental. É um ótimo método-sistema; explica muito bem a relação, por exemplo, entre Samuel, Reis e Crônicas. Mas também é um pouco simplista em alguns pontos, especialmente por tratar as fontes como manuscritos; creio que a formação do Hexateuco foi muito mais lenta e passou por muito mais revisões, até formar o atual texto, coerente e harmônico em muitos pontos, mas ainda cheio de discrepâncias. Esse é o problema em discorrer sobre um tempo desconhecido, um contexto desconhecido e pessoas desconhecidas; não creio que a arqueologia vá, algum dia, confirmar a Hipótese Documental inteiramente, mas tenho sim a experança de que ela conforme o efeito tremendo causado na religião judaica pelo Exílio.

Será adotado, para o conjunto dos seis primeiros livros do Antigo Testamento (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué), o termo 'Hexateuco', levando em conta o acrescimo de 'Josué' à Torá em Josué 24:26.

Além disso, a seguinte terminologia será empregada para as secções da Lei de Moisés:

Decálogo Ético: Êxodo 20:1-17 (também Deuteronômio 5:6-21).

Livro do Concerto: Êxodo caps. 21, 22 e 23. Leis altamente casuísticas e de caráter jurídico (processual-penal); perceba-se que diversos crimes recebem punições diferentes em outras áreas da Lei. (Nome deriva de Êxodo 24:7)

Decálogo Ritual: Êxodo 34.

Código Deuteronômico (Deuteronomic Code): Deuteronômio, caps. 12 a 26. São leis com um caráter mais social e congregacional. O código em si é mais avançado que o Livro do Concerto; não é simplesmente um conjunto de diversas leis-mandamentos justapostos: trata-se de um método-modelo de integração de toda a congregação judaica. Seu ponto principal a ser considerado é a unificação do culto (capítulo 12). Seus crimes tem, de modo geral, uma única punição: a morte (17:2-7; cf. Hebreus 10:28).

Lei Sacerdotal (Priestly Code): Todos os demais mandamentos, mas em especial os dos livros de Levítico e Números. No geral, regem a ordem no Templo e no Tabernáculo, os sacrifícios, ofertas e holocaustos, e a vida dos sacerdotes, lhes concedendo certos direitos e sustento. A secção dos capítulos 17 a 26 de Levítico é chamada 'Lei da Santidade', e parece ser anterior ao texto de Levítico.
Texto Massorético = TM
Septuaginta = LXX

I – Datando o Antigo Testamento
(ou De como eu resolvi começar pela parte mais chata)

Datar alguns livros do Antigo Testamento é importantíssimo para a crítica textual do Hexateuco, uma vez que esses livros carregam (ou não) o testemunho não apenas da época acerca da qual falam, mas PRINCIPALMENTE acerca da época em que foram escritos. Um livro escrito em 100 a.C. não pode prestar um testemunho válido acerca do Hexateuco; a imparcialidade estaria em jogo. Semelhantemente, um livro escrito em uma época anterior ao Hexateuco também não pode testemunhar. Esse é o ponto, como veremos ao longo deste ensaio.

É evidente que alguns livros podem sofrer adulterações posteriores no intuito de: a) harmonizar as discrepâncias; b) defender uma idéia mais recente. Um exemplo para os cristãos: o Evangelho conforme Lucas do cânon de Marcion. Este Evangelho é uma versão do Evangelho conforme Lucas da qual foram removidos os antecedentes judaicos de Jesus; a idéia de Márcion era defender um credo contrário às idéias judaicas. Portanto, mesmo livros velhos podem carregar informações incorretas (adultérios, interpolações, deleções, conflações, etc...), mas ainda assim carregam bom testemunho se considerados em seu todo e ao lado de outros livros da mesma época, ou em contraste com livros de épocas diferentes.
Vale salientar que deleções são sempre o método mais razoável e menos arriscado de adulterar o texto original; é muito mais simples apagar um versículo incômodo que adicionar uma perícope desejada.

Os livros a serem considerados, neste ponto, são Juízes; I e II Samuel, I e II Reis, I e II Crônicas, Esdras-Neemias e Ezequiel. Todos esses livros são importantíssimos na crítica textual da Lei de Moisés. Suas datações serão fundamentais quando considerarmos a Parte IV – Testemunhos dos Livros Históricos e Ezequiel.

Juízes: Datar este livro é muito complicado. Se o leitor observar atentamente, este livro tem duas introduções (1:1-2:5 vs 2:6-3:7), o que nos leva a pensar que o livro é a união de duas obras distintas, ou que o core (parte principal, o esqueleto do livro) sofreu adições; a primeira introdução parece ser um resumo do livro de Josué. Provavelmente uma das duas obras foi escrita durante a monarquia (17:6; 18:1; 19:1; 21:25), ou seja, depois de ter terminado o período dos Juízes; depois da expulsão dos Jebuseus (1:21; cf. 2 Samuel 5:6), ou antes da expulsão dos Jebuseus (1:8). Parace também ter sido escrito bem depois da queda de Samaria, ou seja, a queda do Reino do Norte (722 a.C.; 18:30). O autor de Juízes parece ter copiado o autor de Josué, ou vice-versa, ou mesmo ambos copiaram da mesma fonte no que tange a morte de Josué (2:6-9; Josué 24:29-31) e a questão de Otniel (1:11-15; Josué 15:15-19).
Além disso, os capítulos finais (17 a 21) são um apêndice que não trata dos juízes em si.

I e II Samuel: Evidentemente escrito após a morte de Davi, e provavelmente bem depois (1 Samuel 9:9). Analisando 1 Samuel 27:6, fica evidente que foi escrito após a divisão dos reinos (Norte e Sul; 931 a.C.), mas provavelmente antes do exílio babilônico (587 a.C.). Isto não significa, porém, que o livro não tenha sofrido modificações posteriores em certos detalhes.

I e II Reis: Pelo último capítulo de II Reis fica demonstrado que esta obra foi escrita após o começo do exílio (587 a.C), e após o início do reinado de Amel-Marduk (2 Reis 25:27; 562 a.C.). Aparentemente não há motivos para crer que este livro tenha sido escrito após o fim do Exílio (537 a.C.); conforme se observa nos Salmos exílicos e em diversos pontos proféticos, a esperança da libertação era muito grande; muito provavelmente o evento da libertação estaria estampado em 2 Reis da mesma forma que está em 2 Crônicas e Esdras. Note-se também que há semelhança incrível entre 2 Reis 24:18-20; 25:ff e o último capítulo do livro do profeta Jeremias.

I e II Crônicas: Escritos, com certeza, após o Exílio Babilônico, como se mostra pelos versículos finais (2 Crônicas 36:22,23).

Se as genealogias da primeira parte de 1 Crônicas realmente fazem parte do trabalho original, então o livro foi escrito muito após o Exílio Babilônico (este finda em 537 a.C.), uma vez que mostra a descendência de Zorobabel (1 Crônicas 3:19-ss). Existe também a possibilidade de que os dois livros de Crônicas, Esdras e Neemias, fizessem parte de uma só obra. Teoricamente, esta obra teria sido dividida ao meio, levando o final de Crônicas a ficar incompleto, mas tendo sido reescrito em Esdras o que naquele sobrou (compare 2 Crônicas 36:22,23 a Esdras 1:1-4). Se for verdade, então Crônicas não pode ser mais antigo que Esdras-Neemias.De todo modo, a questão da genealogia me parece ter a palavra final, evidenciando que este livro, da forma como se nos apresenta hoje, foi escrito por volta do século IV a.C. (537 a.C., menos 120-180 anos das genealogias). O escritor das Crônicas será chamado, daqui em diante, Cronista.

Esdras-Neemias: Originalmente um único livro, embora contenha relatos diferentes. Pela data retratada nos livros, só pode ter sido escrito a partir do século V a.C, provavelmente século IV a.C., o que coloca Crônicas e Esdras-Neemias na mesma época, evidenciando a teoria sobre a unidade na obra (embora o livro hipotético Crônicas-Esdras-Neemias provavelmente seja uma compilação).Ezequiel: Não parecem haver métodos seguros para datar o livro, mas tanto sua história quanto sua mensagem têm significado no contexto do Exílio. Há uma forte unidade no estilo, evidenciando que possivelmente toda a obra tenha realmente sido escrita por Ezequiel ou um possível discípulo (não antes de 571 a.C., conforme Ez 29:17).

II – Autoria Não-Mosaica: Evidências Externas
(ou De como os profetas denunciam os sacerdotes)

Analizemos agora o que dizem alguns livros proféticos acerca do Hexateuco. Fique claro, a princípio, o papel do profetismo no Israel antigo. Os profetas (nabiy) não eram simplesmente videntes, sábios ou membros de uma ordem clerical. Eles eram pessoas comuns dentre a sociedade, que recebiam um chamado de Deus para corrigir o povo. Uma leitura do livro de Jeremias mostra perfeitamente este caráter; o profeta não necessariamente era um douto, sacerdote ou nobre. Sua vocação ministerial desconsidera seus antecedentes. O profeta é chamado, acima de tudo, para pregar, seja pela ameaça (como os Pesos contra as Nações, em Jeremias, Isaías, Ezequiel), seja pela promessa, muitas vezes messiânica.

Não está em jogo, aqui, determinar se o profeta era ou não inspirado pelo Espírito de Deus, mas sim demonstrar seu caráter: o mártir-pregador fervoroso em favor da ortodoxia da religião judaica, no melhor estilo Elias e Eliseu. Este caráter fica evidente não só na mensagem de Jeremias, mas especialmente quando observamos como a profecia em si é encarada em Amós 7:14,15: não um vaticínio, mas, como foi dito, uma correção. Os profetas eram, em si, a crítica (antítese) à situação: o clero e a família real.

Sendo assim, o profeta estaria pronto e preparado para corrigir todos os erros doutrinários cometidos em seu tempo. Nos relatos deixados pelo profeta (ou por seus discípulos), traços da pregação original do profeta, contra os erros contemporâneos, nos ajudam na crítica do Hexateuco.

Nunca existiu, é claro, profeta contra a Lei de Moisés; tais profetas, se existiram, não poderiam ter perpetuado seus escritos, umas vez que a Bíblia hebraica, através de Esdras e dos escribas, foi mantida pelo partido favorável ao Templo e o sacerdócio. Um suposto grupo de profetas contrários à religião estabelecida seriam caçados e teriam seus escritos (caso existam) queimados.

Um ponto importantíssimo aqui é o Exílio Babilônico: escritos proféticos que antes dele seriam taxados como, digamos, 'heréticos', após ele poderiam ser reconhecidos como canônicos, se fossem mantidos nas mãos da elite sacerdotal letrada, uma vez que não mais os profetas escritores teriam reconhecimento, por já estarem mortos. Antes do Exílio, a mensagem de Jeremias era repudiada; depois, contudo, sua mensagem recebeu valor, no sentido de mostrar o cumprimento das profecias de Levítico e Deuteronômio contra a idolatria do povo. É muito mais facil aceitar uma mensagem DEPOIS que ela se cumpre, ou seja, se mostra verdadeira.

Sim, não existiu profeta contra a Lei de Moisés. Nem tudo, porém, que os sacerdotes defendiam como sendo Lei de Moisés era aceito pelos profetas.

As religiões do oriente próximo tinham muitas semelhanças, o que evidenciavam: a) uma origem comum; ou b) sincretismo religioso. Os sacerdotes judaicos, como seres humanos, poderiam realizar inovações no culto, tornando-o mais formal. Inovações não apenas no sentido de mudar as formas de adoração, mas também de se beneficiarem. Características dos cultos mesopotâmicos, siríacos, canaaneus e egípicios poderiam ser assimiladas pelos sacerdotes, tanto ao longo da formação do povo judaico quanto nas relações entre os povos.

O processo passado pela “Igreja Judaica” (i.e., a congregação e o sacerdócio do Templo) foi a mesma vivida pela Igreja Católica: formalização do culto e assimilação de características pagãs. Aqui papel fundamental, não apenas por aproximar o povo judaico do culto mesopotâmico, mas também por fazer com que as novas gerações não tivessem contato com o culto anterior, pré-exílico (Ageu 2:3). São 50 anos longe da própria terra, vivendo em uma terra idólatra estrangeira; tentativas de manter as tradições poderiam ter sido realizadas por fanáticos, e por sacerdotes com interesses próprios, uma vez que o sacerdote judaico depende do culto.

Perceba: Neste ponto, considerar o texto/manuscrito (LXX, TM, Mar Morto) a ser usado é fundamental. Passagens como Jeremias 33:14-26, que defende o culto judaico, simplesmente inexistem na LXX, que é mais antiga que o TM (sendo este medieval), e que em diversos pontos concorda com os escritos do Mar Morto (embora estes últimos sejam dos sectários Essênios).
Analise, agora, detalhadamente, cada uma destas passagens: Isaías 1:11-15; 5:24; 24:5; 58:3-7; 66:1-3; Jeremias 6:19,20; 7:21-23; 18:18; Oséias 2:11; 4:6-10,19 (compare este capítulo a Jr 22:16); 6:6; 8:1,12,13; 9:4,5; 14:2; Amós 5:21-27; Miquéias 6:6-8,16.

Nestas passagens existe uma forte crítica à forma de culto judaica (ou melhor, originalmente não-judaica).

O sacrifício de animais sempre fez parte, na história da humanidade, da adoração. Apenas formas mais modernas ou exóticas aboliram esta prática. O sacrifício de animais não está diretamente associado à expiação de pecados, mas sim na adoração expontânea, buscando de determinada divindade (no caso dos judeus, Iavé Deus) o seu favor, a sua atenção.

Nota: Cabe aqui diferenciar sacrifício (korban) e holocausto (olah). O sacrifício é uma espécie de ceia em que parte do alimento é oferecido a Deus, retirando o sangue e oferecendo a gordura. O resto é comido pelos que oferecem o sacrifício, tendo a participação do sacerdote. Já o holocausto é uma versão em que há dedicação completa a Deus, jogada no fogo; o sacrificante não come do alimento. O Código Deuteronômico estabelece que os sacrifícios só podem ser realizados no lugar escolhido por Deus (Dt 12); todas as outras 'casas de sacrifício' (ilegais) são chamadas “altos” (bamoth), e foram rejeitadas pelos profetas. O Código Sacerdotal presume a existência da unidade de culto.

E, desta forma, genericamente e pela evolução do culto, a expiação de pecados surge como uma forma de buscar a atenção de uma divindade que, segundo os sacerdotes, está zangada. Irada com seu povo, e sem vontade de atender a simples orações. Veja que as passagens bíblicas sitadas são, em sua maioria, pré-exílicas, cada uma refletindo a perspectiva de sua época: Isaías é contra. Jeremias, Oséias e Miquéias não são contra, mas deixam claro que o culto não é o sacrifício de animais. Portanto, se os profetas são contra certa forma de adoração, isto significa que o culto estabelecido está sofrendo inovações. Independe de os profetas serem inspirados ou não; eles apenas estão agindo como testemunhas de seu tempo, e colocando o nome do Senhor onde o nome do Senhor realmente deve ser colocado: contra a falsidade e 'heresia'.
Existem, evidentemente, passagens nos profetas em que eles se mostram favoraveis aos sacrifícios. Um destes profetas é Ezequiel, contemporâneo de Jeremias, além dos profetas pós-exílicos de modo geral. Os últimos 9 capítulos de Ezequiel tratam justamente do culto; falaremos mais acerca deste assunto na parte.

IV - Testemunho dos Livros Históricos e Ezequiel

De todo modo, os profetas citados servem de evidência de que, em seu tempo, certas formas estão sendo inseridas no culto. Por conseguinte, estas formas não se encontram na Lei de Moisés. Veja que Lei de Moisés não significa necessariamente certos livros da bíblia, mas a Lei que vigorava no tempo desses profetas, atribuida a Moisés. Propor origem divina/heróica às leis sempre foi uma forma de outorgá-las: assim como foi com Licurgo em Esparta, também foi com Hamurábi entre entre os babilônicos. Princípio semelhante foi usado pelo teórico absolutista Jacques Bossuet para justificar o direito do monarca.

Perceba: Há muitas semelhanças entre a Lei de Moisés e os códigos mesopotâmicos, em especial o de Hamurábi. Ambas obras são atribuidas a legisladores apontados por Deus, e escritas em tábuas de pedra. Existem muitas semelhanças entre o Livro do Concerto e as leis do código de Hamurábi, especialmente por serem casuísticas. O código de Hamurábi, contudo, é muito mais antigo.

III – Autoria Não-Mosaica: Evidências Internas
(ou De como o Hexateuco deixa claro que foi escrito enquanto o povo
já estava na terra de Canaã, durante ou depois da monarquia)

A Hipótese Documental lida justamente com a autoria do Hexateuco. Não existe, do começo ao fim do Hexateuco, qualquer prova de que a autoria seja mosaica. Pelo contrário, existem evidências fortes de o Pentateuco ter sido escrito séculos DEPOIS da morte de Moisés. Atribuir a autoria a Moisés é uma tradição judaica mantida pelo cristianismo; o texto em si não clama a autoria de Moisés. Existem, é verdade, certas passagens em que Moisés mostra-se escritor (Ex 24:4; Nm 33:2; Dt 31:9,22); mas isto não prova que Moisés realmente escreveu os livros que temos em nossas mãos.

A evidência mais conhecida é a do último capítulo de Deuteronômio, em que fica provado a obra (ao menos este capítulo) não ser de autoria mosaica. Ao contrário do que podem querer teorias harmonizantes, este capítulo não poderia ter sido “profeticamente” escrito, porque o texto trata claramente a morte de Moisés como um evento de um passado um tanto distante (Deuteronômio 34:6,10-12).

Uma das mais fortes (e conhecidas) evidências (já identificadas pelos rabinos judaicos) se encontra, ao mesmo tempo, em Gn 12:6 e 36:31, em que eventos que, pela perspectiva de Moisés, são futuros, mas estão relatados como passados. Moisés não falaria de “reis de Israel” no passado se estivesse escrevendo sobre o futuro; tampouco falaria dos canaaneus como habitantes passados da terra se em seu presente eles ainda estivessem lá, e só no futuro viesse a ocupação da terra.

Ver também Êxodo 16:35, que não é outra coisa, senão uma retrospectiva, assim como Números 15:32 só pode ter sido escrito quanto o povo não mais estava no deserto. Ver Gênesis 32:32. Semelhantemente no cântico de Êxodo 15, algumas partes estão na perspectiva de judeus vivendo na terra de Canaã.

Gênesis 14:14 só pode ter sido escrito após Dã tomar sua herança, ou mesmo após boa parte do período dos Juízes (Jz 18:29), a menos que seja uma “atualização escribal”, o que simplesmente provaria que a Bíblia é alterável. Aliás, o caso de Dã é uma contradição bíblica: compare Josué 19:40-ss a Juízes 18:1; independente de qual destas duas passagens seja mais histórica (aparentemente a de 'Juízes'), o termo Dã em Gênesis só pode ter sido escrito após (não antes) o evento de Josué. Possivelmente também Gênesis 23:2, pelo mesmo motivo, deve ter sido escrito após o evento de Josué 14:14,15.

Números 21:14 cita uma fonte; ora, como pode Números ter sido escrito por Moisés se já havia, àquele tempo, um livro que falasse acerca do mesmo assunto? Se o livro das Guerras do Senhor, hoje desaparecido, foi escrito por Moisés (cf. Ex 17), então Números não foi. Se este livro não foi escrito por Moisés, tampouco Números foi; à épooa em que Números foi escrito, o livro perdido já deveria estar popularizado, ou ao menos conhecido entre a casta sacerdotal. Pelo nome, parecem ser anais de guerra, talvez uma fonte que relate as guerras nais quais o Senhor teria ajudado o povo de Israel (guerras contra os cananeus).

É interessante notar como em Êxodo 11:3 e Números 12:3, fala-se muito bem acerca de Moisés. Teria Moisés se exaltado ao ponto de pensar ser o homem mais manso da face da Terra?

Há também inconsistências internas que evidenciam mais de um autor, ou redação gradual:

Compare:

- Êxodo 16:31 a Números 11:8

- Êxodo 18:17,24 a Deuteronômio 1:9-18 e a Números 11:16

- Êxodo 34:17-26 a Exodo 23

- Levítico 18 a Levítico 20

- Números 20:1,22-28 a Números 33:38

- Deuteronômio 3:14 a Juízes 10:3,4

- Deuteronômio 9:1 a Josué 1:1,2

Compare Êxodo 20:11; 31:17 a Deuteronômio 5:15. São expostos dois diferentes motivos para a guarda do sétimo dia. Em Êxodo, o motivo da guarda é lembrar que a criação foi de seis dias, e ao sétimo Deus descansou. Já em Deuteronômio, o motivo da guarda é lembrar a libertação da casa da escravidão, descansando em um dia em que eles deveriam estar na escravidão. Na antiguidade, os judeus não eram os únicos a guardarem o sétimo dia; também os assírios guardavam o sétimo dia, mesmo não conhecendo a Lei. Essas passagens, evidentemente, são de autores diferentes.

Deste modo, além de Moisés não ser o escritor do Hexateuco, existiu mais de um autor.

IV – Testemunho dos Livros Históricos e Ezequiel
(ou De como a Lei foi gradualmente introduzida pelos
sacerdotes, antes e depois do Exílio)

Tratemos agora dos outros livros do Antigo Testamento, usando o mesmo método empregado pelos profetas, mas desta vez analisando não a pregação profética, mas sim o estilo e a narrativa. Recomenda-se que, antecipadamente, o leitor estude estes livros históricos, percebendo as características de cada um, e a forma como o culto e a Lei são tratados, levando em conta as datações da Parte I.

Juízes – Trata da tomada da terra de Canaã, como um processo lento e tribal, sem haver uma unidade entre os israelitas (unidade esta que só passou a existir com a monarquia); neste sentido, é muito mais histórico que Josué. Cada Juíz mostra autoridade sobre sua tribo (heróis regionais). No corpo do livro (capítulos 3 a 16), as formas de adoração são mais expontâneas. Qualquer um pode sacrificar a Deus em qualquer lugar, e existe uma consciência um tanto henoteísta (11:24). Tendências henoteístas (monolatria inclusiva) estão presentes em muitas partes da bíblia hebraica [Jó 3:8; 26:12,13; 40:15ss; 41; Sl 74:13,14; 82:1; 89:10 (TM); 104:26; Is 27:1; 51:9 (TM); Hc 3:5 (TM)]. É uma religião puramente dinâmica e expontânea, sem formalização. Todo lugar é lugar de adoração e sacrifício (Jz 6:19-21; 13:19).

Não há evidência do Tabernáculo e de uma ordem sacerdotal separada: era possível para um membro da tribo de Judá se tornar levita (17:7). A distinção entre levita e sacerdote é cronologicamente posterior, como será visto. Juízes 17:3-6,10-13; 18:30,31 evidencia a forma livre como a adoração era feita; até mesmo imagens de escultura eram permitidas, algo reprovável por Deuteronômio 16:22.

Porém, nos capítulos 19 a 21 (apêndices), está claramente presente a idéia de unidade de culto (adoração institucionalizada): A Congregação (20:1,2,26), tendo como harmonização os versículos 19:1 e 21:25.

I e II Samuel – Trata do período final dos Juízes e da ascenção monarquia, com ênfase em Davi e sua relação com Saul. Os sacrifícios, assim como em Juízes, podem ser realizados em qualquer lugar e por qualquer um, sem dogmas; o sacerdote não exerce função de “sacrificador”, mas de ministro do Templo. Samuel, mesmo não sendo da tribo de Levi (1 Samuel 1:1), é ministro na Casa de Deus em Siló (1 Samuel 2:18; Jeremias 7:12). Evidentemente não existia, assim como em Juízes, à época em que o livro foi escrito, a idéia de que somente membros da tribo de Levi poderiam ser sacerdotes: em 2 Samuel 8:18, o termo hebreu usado é kohen, traduzido 744 vezes como sacerdote, na Bíblia. Além disso, os pães da proposição os quais não era lícito comer senão só aos sacerdotes são dados para Davi e seus companheiros comerem (1 Samuel 21:1-6; cf. Lucas 6:4), contrariando a Lei (Levítico 22), como se este mandamento ainda não existisse.

I e II Reis – As “crônicas” da Monarquia. Aqui, diferentemente de Juízes e I e II Samuel, já existe formalização do culto, embora não tão profunda quanto a do Código Sacerdotal. O autor é suficientemente sincero para admitir que o povo do período dos Reis sacrificava nos altos (1 Reis 3:2,3; 22:44; 2 Reis 12:3,4; 15:4,35), contrariando Deuteronômio 12, algo que para ele era errado. Ou seja: quando o livro de Reis foi escrito, o Código Deuteronômico estava em vigor, mas na época da qual o livro fala, este mandamento estava sendo ignorado. Além disso (importantíssimo), 2 Reis 14:6, citando Deuteronômio 24:16, evidencia que o Código Deuteronômico já estava em vigor quando o livro de Reis foi escrito.

Outro ponto muito importante é que o autor usa os meses pelos nomes (1 Reis 6:1,37,38; 8:2), como Aviv (Abibe), Ziv (Zife), Eitanin, Bul, como acontece no Código Deuteronômico (Dt 16:1). Os livros escritos após o Exílio babilônico esquecem os nomes judaicos dos meses, chamando os meses pelo número (cf. Es 3:1,6,8; 6:19; 7:8,9; 10:9,16,17; Ne 8:1,2,14,31) ou por nomes siro-babilônios (Ne 1:1; Et 1:1; 3:7; Zc 1:7), justamente porque o calendário judaico anterior ao Exílio não poderia mais estar em vigor, tendo o povo judeu estado sob cativeiro na Babilônia. Algumas partes de I e II Reis, contudo, já começa a enumerar os mêses.

2 Reis relatava um fato que é também muito importante: 2 Reis 22:8-20. Durante a reforma do rei Josias (fim do século VII a.C.), foi achado o livro da Lei, livro este que era desconhecido dos sacerdotes e escribas da época (caso contrário não seria necessário um profeta para identificá-lo, uma vez que todos leram o livro), ou seja, a Lei até então era oral; não haviam mandamentos escritos como os desse livro, que condenassem práticas da época como o sacrifício em bamah (cf. 2 Reis 23). O Código Deuteronômico se encaixa perfeitamente neste contexto; embora a obra dos Reis ignore o Código Sacerdotal, ela foi escrita sob o Código Deuteronômico, e o “livro da Torá” encontrado condena os altos, assim como o Código Deuteronômico (Dt 12).

Veja que desde o período dos Juízes até aquele momento não se havia realizado Páscoa (2 Reis 23:21-23), concordando com o resto das narrativas, exceto Crônicas. Jeremias também evidencia que durante o Exílio o Código Deuteronômico já estava em vigência (Jr 34:13,14; Dt 15).

Ezequiel – Os nove últimos capítulos do livro do profeta Ezequiel propoem uma “Torá” relacionada à organização da adoração do Templo, tendo como cabeça não o sumo-sacerdote, mas o príncipe.

É evidente que a Torá de Ezequiel não está em acordo com o Código Sacerdotal; não exatamente se contradizem, mas só é possível usar UM código de uma vez: ou o de Ezequiel, ou o Sacerdotal (compare, por exemplo, Ezequiel 46:6 a Números 28:11). Isto implica em dizer que até o tempo de Ezequiel não existia um código de leis com vigência sobre a ordem no Templo. É impossível harmonizá-los de forma que o código de Ezequiel seja apenas mandamentos para um “futuro messiânico”; a Torá de Ezequiel deveria ser usada quando o povo retornar para sua terra, por seus contemporâneos (Ez 43:11). Vale salientar que o código presente em Ezequiel, embora não seja harmônico com o Código Sacerdotal, é harmônico com o Código Deuteronômico, sendo que por I e II Reis já foi evidenciada a existência do Código Deuteronômico antes e durante o exílio, ou seja, durante a vida de Ezequiel.

Outro ponto a ser considerado é o lugar de destaque que Ezequiel confere aos sacerdotes de Jerusalém, da linhagem de Zadoque (40:46; 43:19; 44:15), daqui em diante chamados zadoquitas. Leia atentamente Ezequiel 48:11: os outros levitas são considerados igualmente sacerdotes, mas Ezequiel introduz um novo conceito, uma nova idéia: a de que a partir de então somente os zadoquitas (ques são descendentes de Arão) podem ser sacerdotes; os sacerdotes de OUTROS TEMPLOS, ou seja, dos bamoth (sing. bamah), que não obedecem Deuteronômio 12, são considerados a partir daí simples levitas, não mais sacerdotes, como eram no período dos Juízes. Ezequiel ainda usa a fórmula presente no Código Deuteronômico (Dt 17:9,18; 18:1; 24:8; 27:9; Js 3:3; 8:33; Jr 33:18): “sacerdotes levitas”, nunca “sacerdotes e levitas” (esta segunda fórmula superabunda em Crônicas).

Desta forma, os ex-sacerdotes, agora simples levitas sujeitos aos sacerdotes de Jerusalém, passam a sobreviver de alguns direitos concedidos pela Lei, conforme será explicado mais adiante. Perceba: o próprio Ezequiel era um sacerdote.

I e II Crônicas – Releitura de I e II Samuel e I e II Reis. O culto é o foco desta obra; o povo de Israel, ao contrário de Samuel e Reis, vive completamente em torno da Lei de Moisés e age como um só corpo (para o bem ou para o mal). Em todos os pontos nos quais este livro contradiz, modifica, acrescenta ou remove algo de I e II Samuel ou I e II Reis é no intuito de: a) exaltar a monarquia de Judá em detrimento da de Samaria; b) harmonizar os eventos com os mandamentos da Lei de Moisés; c) forjar direito divino e respaldo “histórico” para os sacerdotes zadoquitas.
Para isso, são removidas histórias que dão pouca glória aos reis, como o sangrento caso de Davi com Bateseba, e a não menos sangrenta e puramente histórica ascenção de Salomão (não necessariamente verdadeira, mas aparenta ser muito real), forçando uma unção de Davi a Salomão antes de sua morte. Davi chega até mesmo a realizar uma grande preparação para o Templo, associando os sacerdotes de Jereusalém à cabeça da família real, uma vez que colocar o próprio Davi como contrutor do Templo seria uma harmonização inaceitável. Em I e II Samuel e I e II Reis, vemos os sacerdotes sujeitos ao monarca; em Crônicas, os sacerdotes são sujeitos apenas ao seu próprio rei, o sumo-sacerdote.

Outro ponto interessante é como a festa dos Tabernáculos, que em 2 Reis 8:65,66 está de acordo com o Código Deuteronômico (Dt 16:13-15), aqui (2 Cr 7:8-10) é realizada como no Código Sacerdotal (Lv 23:33-36).

São tantos pontos que é recomendável ao leitor realizar um estudo comparativo profundo, buscando todas as diferenças: a explicação geralmente será de que em Crônicas a nova versão da história é muito mais vantajosa à elite sacerdotal e à linhagem davídica, de um modo ou de outro, removendo (ou separando) o secular e exaltando o heróico. Listas de 'contradições' preparadas por céticos e ateus são úteis neste intuito, mas geralmente só cobrem as contradições mais simples e básicas, ignorando contradições com grande peso contextual.

Esdras-Neemias: Assim como nas Crônicas, o povo vive em torno do Templo e da Lei, do mesmo modo que vemos nos profetas pós-exílicos (Ag 2:1-9; Zc 6:9-15; 14:16ss; Ml 2:4-7; 4:4). Apresentam, sob o Templo de Zorobabel, a Lei sendo outorgada por Esdras (cf. Neemias caps. 8, 9 e 10). É interessante perceber que o capítulo 10 de Neemias concorda muito bem com o Código Sacerdotal, com exceção de um ponto: o versículo 32 (cf. Ex 30:15), mostrando que os sacerdotes, por seu próprio interesse, elevaram uma taxa já estabelecida quando Neemias foi escrito (de 1/3 para ½). Além deste ponto, existe um outro detalhe acerca do qual trataremos na parte VI – Evolução da Lei. 8:17 evidencia que a festa dos Tabernáculos (da qual tratamos nas Crônicas) não estava sendo corretamente guardada.

Consideremos agora todos os pontos apresentados.
- Os livros escritos antes do Exílio desconhecem a Torá que temos em nossas Bíblias;
- Os livros escritos durante o Exílio conhecem parte da Torá que temos em nossas Bíblias;
- Os livros escritos depois do Exílio conhecem a Torá.

Está clara e evidente a evolução da religião judaica na antigüidade. Esta religião passou por um lento processo de formalização, acelerado pelo Exílio babilônico. Durante o Exílio, para manter as tradições (e, assim, a unidade judaica em meio ao paganismo), houve a normatização do culto, mas que só entrou em pleno vigor com a reconstução do Templo.

Ezequiel é a ponte entre o Código Deuteronômico (daqui em diante chamado D), já conhecido, embora paralisado pelo cativeiro, e o que viria depois: o Código Sacerdotal (daqui em diante chamado P). As revisões eram realizadas por sacerdotes-escribas.

Nota: O Código Deuteronômico e D não são exatamente a mesma coisa. O Código Deuteronômico é apenas um conjunto de leis; D é este conjunto somado à narrativa que o cerca no livro de Deuteronômio (e possivelmente Josué e outros livros).

V – A Natureza Tripla de Gênesis e da narrativa do
Hexateuco
(ou De como aquelas contradições são naturais)

O livro de Gênesis apresenta diversas repetições; são as mesmas histórias sendo contadas de duas ou três formas diferentes. Qualquer um que já leu este livro pode ter percebido a semelhança, por exemplo, entre as três histórias d'a esposa confundida com irmã, que ocorrem duas vezes com Abraão (Gn 12:10-20; 20:1-8) e uma vez com Isaque (Gn 26:6-11), sendo duas destas histórias acontecidas em Gerar, com o rei filisteu Abimeleque. Não é incomum vermos histórias serem contadas de modos diferentes e com características diferentes quando as ouvimos em lugares diferentes; se o modo como cada história é contado for escrito em um lugar diferente, e essas narrativas eventualmente fossem unidas por um 'historiador' que não citasse suas fontes e não quisesse determinar a mais histórica, as três seriam colocadas lado a lado como 'coincidências'. Não é muito diferente disso que aparentemente as três histórias presentes em Gênesis vieram a unir-se.
Mais exemplos:
- Gn 21:31 vs Gn 26:33
- Gn 6:5-8 vs 6:11-13.

Em todas essas passagens existe um padrão: os nomes de Deus. Não é segredo que em Gênesis porções inteiras (como o primeiro capítulo, até Gn 2:3) usem para Deus o nome El ou Elohim, enquanto outras (a partir de Gn 2:3) usem o tetragrama YHWH (Iavé).

O chamado de Abraão é feito em Gn 12, e até o capítulo 16 (com exceção da perícope de Melquisedeque) usa-se o nome YHWH. Já no capítulo 17, o nome usado para Deus é Elohim (Deus). Embora o termo El Shaddai (traduzido como “Deus Todo-poderoso”) apareça no TM, este capítulo apresenta o nome Deus (ThEOS) em seu lugar na LXX (“Eu sou teu Deus”; EGW EIMI hO ThEOS SOY), que é mais antiga, ou seja, entre os capítulos 16 e 18 está novamente relatado o chamado de Abraão, mas desta vez usando um nome diferente para Deus. Também Genesis 21:5-34 predominantemente chama Deus como Elohim, não YHWH (veja que Gn 21:1-4 é outra versão da mesma história, usando YHWH, e não Elohim como nome). Porções da história de José favorecem o nome Elohim. Ora, as passagens do princípio de Gênesis (os primeiros três capítulos) são na realidade duas diferentes histórias da Criação, uma mais simples (o Hino da Criação), cronologicamente distintas no que tange à ordem em que cada coisa foi criada.

Neste sentido, Êxodo 6:2,3, em especial a versão encontrada na LXX, é um divisor de águas. Quando, em Gênesis 17:1 (LXX), Deus diz “Eu sou teu Deus”, é a isso que Êxodo 6:2,3 se refere quando diz que diz se apresentou aos patriarcas como “Deus deles”; conferir também Gn 35:11 na LXX.

Essas passagens que apresentam nomes diferentes para Deus também têm características diferentes. Segue um sumário dessas cacterísticas:

Favorecem o nome ELOHIM:

- Deus aparece em sonhos ou envia anjos, e é superior e inatingível.
- Moralidade (Abraão não mentiu, apenas falou uma 'meia-verdade').
- Temor a Deus.
- Deus se arrepende.
- Patriarcas são profetas.
- Concerto Mosaico.
- Favorece Israel (Reino do Norte) e os sacerdotes de Siló. Provavelmente escrito durante o Reino do Norte: 922 a.C. a 722 a.C.
- Vocabulário: “Horebe”; “amorreus”.

Favorecem o nome YHWH:

- Deus manifesta-se.
- Promessas e ameaças.
- O monte de Deus se chama Sinai.
- Concerto Abraâmico.
- Favorece Judá (Reino do Sul) e os sacerdotes de Jerusalém.
- Vocabulário: “Sinai”; “Conhecer” (sexo); “achar graça”; “cananeus”; “Reuel/Hobabe”; “Israel” (em vez de Jacó); “Edom”.

A partir de agora grupo que favorece o nome YHWH serão chamadas J (do inglês Jehovist, ou “Javísta”), o grupo que usa o nome ELOHIM será chamado E (do inglês Elohist, ou “Eloísta”). Contudo, não são apenas duas as fontes usadas na composição de Gênesis. Como foi mostrado na história repetida com Abraão (2) e Isaque (1), existêm ao menos três fontes distintas na narrativa de Gênesis. A terceira fonte, que usa ambos os nomes, tem características próprias. Esta fonte é a narração do já falado Código Sacerdotal, a partir de agora chamado P (do inglês Priestly Code).
Características de P:

- Deus é visto como punitivo, e não mostra misericórdia gratuita.
- Bênçãos hereditárias.
- Usa diversos nomes para Deus, variando conforme a época, mas em especial 'Deus Todo-poderoso' no TM (equivalente a “teu Deus” ou “Deus deles [Abraão, Isaque, Jacó]” na LXX).
- Genealogias.
- Sacerdotes. Estes são colocados como sendo o único caminho para Deus (cf. Nm 16:46-49).
- Circuncisão.
- Eventos religiosos e culto.
- A 'presença' de Deus habita em determinados lugares, como a terra de Canaã como um todo ou especificamente a Casa de Deus (Gn 4:6; 46:4; Ex 15:17; compare a Jonas 1:1-10 e Oséias 9:3-5;15).
- Meses chamados pelos números.
- Concede aos antigos características da lei judaica (ex: Gn 32:32).- Associa o sacerdócio a Arão. Somente os levitas descendentes de Arão poderiam ser sacerdotes.
- Vocabulário: “Frutificai e multiplicai-vos”; “gerações”; “até o dia de hoje”; “estabelecer concerto”, “Eu sou o Senhor vosso Deus”, “santidade”; “congregação”.

Aliás, o vocábulo “congregação” (EDAH pelo TM; EKKLESIA na LXX) é fundamental, uma vez que o Exílio jogou o povo de Israel no meio dos pagãos. Aqueles que buscaram ser fiéias ao ideal nacionalista evidentemente buscaram manter unidade mesmo em terra estrangeira, por meio de costumes e até mesmo aparência distintas. A 'congregação', portanto, é um fenômeno sociológico impresso em P. Efetivamente P geralmente impõe regras não para o indivíduo, mas para o povo. Mesmo os mandamentos com relação a barba e cabelo visam uma unidade. Há muito pouco espaço para individualismo.

P, por ter sido escrito posteriormente, usa diversos nomes para Deus (Elohim em Gênesis 1:1-2:3; El Shaddai ao longo dos patriarcas; YHWH quando revela seu nome em Êxodo 6:2,3). Perceba-se que essas fontes não incluem apenas Gênesis. De Êxodo a Números essas três fontes são usadas. Deuteronômio é praticamente isolado deste todo.

Sendo assim, a narrativa dos quatro primeiros livros da Bíblia é tripla; em alguns pontos, como a subida ao Horebe/Sinai e o Dilúvio, duas narrativas se misturam e se confundem. Leve-se em conta que o redator do texto não simplesmente copiou justapondo as narrativas; ele revisou o texto em si. Em algum momento da história (provavelmente após a queda de Samaria, 722 a.C., quando os fugitivos de Israel vieram a Judá) J e E vieram a se fundir, formando o JE (Javístico). Partes das narrativas originais se perderam entre correções, redações ou imprevistos. Fazem parte de JE, por exemplo, os Decálogos e o Livro do Concerto. Como foi visto anteriormente, o P só foi introduzido ao Hexateuco após (ou ao longo) o Exílio Babilônico. Nesse período já vigorava D. Veja que, ao contrário de P, que se mistura e confunde com JE, D é praticamente isolado.

Temas comuns em D:

- Na narrativa: “portas” (= cidade), “braço estendido” (+ “grandes espantos”), “casa da servidão”. O texto é desfavorável a Arão e ao sacerdócio aarônico, se comparado ao que é apresentado em JE.
- Na legislação: “portas” (= cidade).
Após todas as fontes serem unidade (primeiramente J e E, e depois D, e, por fim, P), o Hexateuco passou por uma revisão final. Este revisor é conhecido como R.

VI – A Evolução da Lei
(ou De como aquelas OUTRAS contradições TAMBÉM são naturais)

Como vimos, os mandamentos foram gradualmente incorporados à Lei. Não devemos ignorar que, mesmo havendo um código escrito, existiam também mandamentos orais. D não era suficiente para reger a ordem do Templo. Naturalmente muitos mandamentos de P já existiam e eram ensinados oralmente, embora talvez não dogmaticamente. Características não relacionadas ao culto, como a barba (Lv 19:27; 21:5), já eram parte da cultura judaica (Is 7:20; 15:2); os acadianos, assim como os hebreus, eram barbados; esse era um dos traços que os diferenciavam dos sumérios. Era uma característica puramente semítica. Também o pudor (Gn 9:22-27; Lv 18:6-18; 20:11-21; Dt 22:30; 27:20) já fazia parte da religião judaica oralmente (Is 3:17; Os 2:9; Mq 1:1; Na 3:5; Hc 2:15); são costumes que acabaram sendo deixados por escrito e passados adiante.

Existem diversos mandamentos que, ao longo da evolução da Lei de Moisés, foram modificados, seja porque seu cumprimento pleno não mais era possível (diferença socio-econômica entre Judá pré-exílio e pós-exílio), seja por interesse da classe sacerdotal (impostos), ou até mesmo pelo rebuscamento natural do culto, acumulando características. Analisemos agora alguns pontos.

O dízimo, muito diferente do que se prega nas igrejas da atualidade, não é uma taxa de 10% sobre a renda. Conforme D nos apresenta, o dízimo é apenas um tipo especial de sacrifício, feito a cada ano ou acada três anos (Dt 14:22-28; 26:12), sacrifício este em forma de 10% da colheita, jamais do dinheiro. A Torá desconhece completamente o dízimo em forma de dinheiro; na realidade, tal coisa inexiste na Bíblia.

O dízimo era trazido a Jerusalém (Dt 12) e lá oferecido como qualquer sacrifício, ou seja: o dizimista comia seu próprio dízimo. Era um banquete sacrificial, jamais um holocausto. Os levitas, os órfãos e as viúvas, conforme vemos em Deuteronômio, eram convidados para o banquete do dízimo; não constituia numa forma de sustento do sacerdote; estes viviam viviam do que pudessem conseguir nos sacrifícios e de convites para banquetes sacrificiais (cf. Dt 18:1,3,18; Lv 7:34; Dt 12:12,18-ss; Ez 44:29); quando não podiam exercer suas funções, eles até mesmo mendigavam, como se vê no Peso profético de 1 Samuel 2:36. Ver também Juízes 17:10 (a praxis antiga). Uma vez que D extingue os bamoth, ele concede aos ex-sacerdotes (agora levitas) um modo de sobrevivência, através do dízimo. Em P, além da colheita, o dízimo se estende aos animais: Em Nm 18 e Ne 10:38,39, esta característica não aparece; surge em Levítico 27:32 (veja, porém, Samuel 8:17).

Em JE e D, os sacerdotes não recebem as primícias: Ex 22:29; Dt 15:19,20. Essas primícias iriam para Deus, queimadas. Já em P, é para eles as primícias: Nm 18:15-ss. Vê-se aqui claramente o interesse sacerdotal, até mesmo porque sua subsistência estava ameaçada. Ezequiel reconhece JE e D, mas não P (44:28-31), sendo esta mais outra evidência de que P é posterior a D e JE, bem como posterior a Ezequiel, que é do princípio do Exílio. Cf. Ne 10:37 (já presente a característica).

JE desconhece o dízimo; o mais próximo seria a oferta dos primogênitos (dos animais), primícias (da plantação) e o melhor do fruto (Ex 22:29; 23:19; 34:26). Deste modo, as taxas progrediram da seguinte forma:
JE: Primícias/primogênitos e o melhor do fruto oferecidos a Deus.

D: Primícias/primogênitos, o melhor do fruto e o dízimo oferecidos a Deus, embora do último participem os levitas. Dos frutos, o sacerdote fica com uma pequena porção (reshith). Cf. Dt 14:22,23; 15:19-22; 26:1-4;10,11.

P: Tanto o dízimo quanto o reshith para o sacerdote (Nm 17:12-21). Desta vez é Deus quem fica com uma pequena porção (Nm 15:20). Em D (Dt 26), as primícias são uma solenidade; em Ne 10:35, são uma taxa anual.
As cidades-santuários nas quais os ex-sacerdotes ministravam (altos, bamoth, ilegais em D) agora são transformadas nas 48 'cidades levíticas'. Veja que em D, existe a semelhança com as cidades de refúgio. A conexão entre ambas (cidade levítica vs cidade de refúgio) se encontra na legislação primitiva: Ex 21:4 (cf. 1 Reis 2:28). Os altares e santuários funcionavam como forma de abrigo para fugitivos. Ver Josué 20 e 21 (diversas cidades contadas ao mesmo tempo em ambas as categorias). Essas cidades eram reconhecidamente altos sacrificiais, como se pode ver nos livros históricos. Antes da dominação dos hebreus, esses altos eram cidades-santuários das religiões cananéias, dedicadas a Iavé pelos dominadores.

Especial: Uma evidência de que D é realmente anterior a P está justamente nessas cidades. Enquanto D oferece três cidades e dá possibilidade de mais três (Dt 19:2,8,9), P estabelece o número de seis cidades (Nm 35:13), contemplando o passado através do futuro. Cf. Dt 4:41-43; Jos 20:7,8.

O calendário judaico gira em torno das três solenidades principais: Colheita (asiph), Sega (qacir) e Pães Asmos (maccoth). Diversas passagens da Lei mostram isso: Ex 23:14,17; 34:23,24; Dt 16:16. Como se pode ver pelos nomes, são festas com características puramente agriculturais. Era de se esperar que estas festas, sendo comemorações da plantação, não tivessem datas fixas, mas variassem de um dia para outro tanto quanto a 'colheita' e a 'sega' propriamente ditas variam, e verdadeiramente é assim que JE (cf. Livro do Concerto e Decálogo Ritual) as apresenta. Não existem datas fixas; existem apenas mêses/estações, como mês judaico pré-exílico de Aviv, no caso da festa dos Asmos, e o 'fim do ano' para a festa da Colheita.

Já em JE, a festa da Sega é chamada festa das Semanas (shavuoth), porque ocorre sete semanas (49 dias) após a festa dos asmos. A Páscoa (pesach) é uma festa entrelaçada à festa dos Pães Asmos, e é a abertura das semanas, enquanto o Pentecostes é o fechamento. O Livro do Concerto (Êxodo caps. 21, 22 e 23), contudo, não conhece a Páscoa.

Já em D, mudanças começam a ocorrer. A festa da Sega passa a ser chamada exclusivamente festa das Semanas, enquanto a festa da Colheita passa a se chamar exclusivamente Tabernáculos (Dt 16:13,16). 2 Crônicas 8:13 usa esta mesma nomenclatura. Veja que esta é uma inovação de D: em JE não haviam 'tabernáculos' nesta festa, demonstrando o real sentido que o autor de Neemias inconscientemente deixa passar em Ne 8:14,17. Provavelmente em sua época existiam relatos afirmando que Josué guardou esta festa. 1 Reis 8:65,66, por também ter sido escrito após D, já apresenta a inovação das “cabanas”. Esta inovação, contudo, é na lesgislação, e não na praxis. Já havia esse costume, como mostra Oséias 12:9b.

Em P, as festas já estão datadas no calendário: Lv 23:5,34. A quê se deve este fenômeno? Novamente, a causa é o Exílio Babilônico, associado à centralização do culto em Deuteronômio 12. O período de cativeiro fez com que o modo de vida de Israel mudasse. Eles deixaram de ser um povo agropecuarista para se tornarem urbano-mercantis; os antigos proprietários não tiveram suas terras de volta, cinquenta anos depois. As festas não poderiam ter mais seu antigo significado; a vida não mais estava diretamente associada ao primitivo modo de produção asiático. Portanto, as datações das festas de acordo com a natureza era agora impossível; era preciso normatizar as datas de acordo com um calendário (no caso, o calendário babilônico). Esta normatização foi feita pela elite sacerdotal.

Uma outra consequência foi justamente o aumento das taxas, uma vez que os zadoquitas dependiam das colheitas, agora reduzidas.

Consequentemente, isso acelerou o processo de urbanização, pois haviam grandes dificuldades para os grandes produtores. Não se deve, contudo, imaginar que todos os hebreus de toda Palestina fossem perfeitamente obedientes à Torá. Tendo D centralizado o culto em Jerusalém, não seria possível, mesmo com um monarca forte, obrigar toda população a obedecer. Após o Exílio não houvem nem mesmo tal monarca; o rei do segundo templo é o sumo-sacerdote (Zc 6:9-15). O Templo e a casa real oficialmente se separam.

As solenidades não eram mais comemorações da agricultura. Agora eram dias de festas realizadas em Jerusalém.

Veja a evolução da Páscoa:

-em D: Dt 16:4,8.
- em P: Ex 12:18; Lv 23:6; Nm 28:17.

Perceba: a Páscoa de Dt 16 é a mesma de Josias (2 Reis 23:21,22).

A Festa dos Tabernáculos passa de sete (D, 1 Reis 8:65,66) para oito dias (P, 2 Crônicas 7:9), como foi mostrado. Ezequiel mostra, neste ponto, semelhanças com P: Ezequiel 45:21-25.

P introduz duas novas festas (Lv 23; Nm 28; 29): Dia da Expiação (Yom Kippur) e Festa das Trombetas (Yom Teruah). Nenhuma destas festas tem qualquer significado para os hebreus agricultores anteriores ao Exílio. Há também evolução no caso do Ano Sabático e o Ano do Jubileu. Veja que o Ano Sabático só poderia ser obedecido quando o povo não mais fosse dependente do campo. P introduz também novas formas de sacrifício, como a oficialização do uso do incenso..

VII – Considerações Finais

Uma coisa não deve ser ignorada: só está sendo considerada, dentro da Hipótese, o judaísmo considerado 'ortodoxo' de cada época. Todas as religiões produzem ramos sectários. Um evento de peso tão grande para a religião judaica como o Exílio exterminaria diversos ramos do judaísmo pré-exílico. Algumas vertentes, é claro, sobreviveriam durante o exílio, sofreriam metamorfoses e uniões. O que sobreviveu deu origem ao judaísmo do segundo Templo; não se deve tratar P como o trabalho de uma única vertente.

Por exemplo, o judaísmo rabinico descende do farisaísmo. Sabemos que durante a época de Jesus existiram diversos movimentos sectários além do farisaísmo, cada um com características e crenças próprias (e mesmo escrituras diferentes), mas foi este que sobreviveu à diáspora. É impossível precisar quantos ramos do judaísmo existiam na época do primeiro Templo. Talvez cada região tivesse sua própria midrash. Assim como as culturas babilônica, persa e helenística serviram para moldar o judaísmo da “era dos apocalipses”, também as culturas com as quais Israel teve contato maior (canaaneus, fenícios, sírios) moldaram o judaísmo pré-exílico. Embora o atual judaísmo ortodoxo pareça estático, ao longo do tempo sempre houve abertura para novas práticas, como o Hannukkah e o Purim.
----------------------------------------
Recomendações:

- TRACTATUS THEOLOGICO-POLITICUSPor Baruch Spinoza (1670)
- PROLEGOMENA TO THE HISTORY OF ISRAELPor Julius Wellhausen (1883)
Ambas as obras podem ser encontradas na internet.

A obra de Spinoza traz uma crítica ao judaísmo e origina diversos argumentos que eu usei para provar que Moisés não foi o escritor da Torá. Já a obra de Wellhausen, além de posterior no tempo (mais de dois séculos), foi escrita num período em que houve muita pesquisa na área.

Para leitores com conhecimento de alemão, seria interessante ler também outros livros de Wellhausen, bem como de Karl H. Graf (aliás, os alemães foram muito frutíferos nesta área, sobretudo no século XIX). Wellhausen dedica um capítulo da Prolegomena a rebater os argumentos de Graf, que propunha uma hipótese diferente. A hipótese documental também é conhecida, pelo trabalho de ambos, como Hipótese de Graf-Wellhausen.



O Enigma do dia seguinte

No dia da prosperidade goza do bem,
mas no dia da adversidade considera:
Deus fez a este
em oposição àquele,
para que o homem nada
descubra
do que há de vir depois
dele.
Eclesiastes 7.14
E disse mais o sábio de sobrenome Qoelet:

“Tudo sucede igualmente a todos;
o mesmo sucede ao justo e ao ímpio,
ao bom e ao mau, ao puro e ao impuro.
Assim ao que sacrifica como ao que não sacrifica;
assim ao bom
como ao pecador,
ao que jura
como ao que teme o
juramento.
Este é o mal que há em tudo o
que se faz debaixo do sol; que a
todos sucede o mesmo...”
Eclesiastes 9.2:3

Dou Graças a Deus por Ele ter mudado o meu coração, pois em tempos atrás, essas palavras aliadas a outras passagens onde não existe distinção entre justos e ímpios, onde homens, mulheres e crianças, tementes a Deus ou não, tem suas vidas ceifadas pela praga, pela guerra, pela fome, pela sede, pela peste, representavam em minha vida um grande obstáculo para que pudesse contemplar a Bondade de Deus.

Lembro-me de alguns textos onde descarreguei toda a minha indignação e ódio contra Deus, pois não aceitava que nações inteiras pudessem estar fadadas ao "descaso de Deus", entregues a uma vida de dor e sofrimento permanente (Os profetas de Jó e O Senhor de todas as Vontades).

Foram muitos dias e noites "lutando contra Deus" tentando "ensinar" a Ele que, se eu sendo pecador, limitado e egoísta tenho compaixão pelo sofrimento humano. Por que Ele se mostra indiferente diante da agonia do mundo?

Senti na pele a frustração de Moisés, a aflição de Davi, a perturbação de Asafe, a amargura de Jó, o lamento de Jeremias, a vergonha de Oséias, a decepção de Habacuque, e a angústia de Paulo. Homens de Deus que por algum momento se sentiram "traídos ou abandonados por Deus".

Dias atrás, conversava com um amigo de infância, falávamos do nosso passado, das aventuras de nossa adolescência. E em determinado momento comentei que gostaria de voltar no tempo, porém, com a percepção que tenho hoje da vida. E meu amigo ponderou: Não seria a mesma coisa, pois sabendo diante mão do início, meio, e fim das coisas, não haveria a mesma alegria e o mistério que a vida nos oculta.

Fui para casa e meditei sem parar sobre o que meu amigo acabara de me dizer “o mistério que a vida nos oculta”.

Isso me fez lembrar um livro chamado O Doador. É a história de um menino chamado Jonas que vive num mundo onde não há pobreza, crime, doença, fome, divórcio, medo ou dor. Todos têm família, saúde, emprego, educação e lazer. As pessoas são treinadas para manter seus sentimentos sob controle. As regras de conduta são invioláveis. Ele também é escolhido para desempenhar um papel especial: o de recebedor de Memórias. Isso significa que será o único a guardar lembranças do passado e a ter conhecimento de sensações, experiências e sentimentos humanos que foram banidos daquele mundo. Porém, á medida que seu treinamento progride, ele começa a desvendar os sombrios segredos que se escondem sob aquela frágil perfeição.

Aos poucos ele passa a questionar o alto preço que sua sociedade paga para eliminar o sofrimento. E até que ponto evitar a dor pode nos tornar mais felizes? Ou, se vale à pena abrir mão das emoções para permanecer no caminho certo? Também, não são os sonhos, os desejos e as angústias que dão sentido a nossa vida?

Então, qual é a necessidade do sofrimento na vida do Homem?
Devemos encarar o sofrimento como algo inerente à vida?
Ter uma concepção filosófica de que o sofrimento é conseqüência do livre-arbítrio humano?
Ou tratá-lo apenas como uma falta de perfeição?

Ainda que seja possível optar por mais de uma resposta, resta apenas uma certeza, o sofrimento humano existe, e muitas vezes acontece, permanece ou desaparece sem dar explicação.

Algumas perguntas para sempre ficarão sem respostas, pois, a vida é cheia de mistérios e o mistério nos cerca. E ele faz parte do ciclo da vida de poder viver.

Entretanto, a maioria de nós deseja ver a vida esmiuçada em pequeninas partes, precisamos do significado e interpretação sobre o nosso passado, presente, e futuro. Para que não sejamos emboscados pela incerteza, pela dor, pelo luto, pela miséria, pela traição, pela perda. E, por isso, ficamos desapontados constantemente, pois a vida não é assim. Ela é oculta e misteriosa, enigmática e zombadora, sem sentimento e impiedosa.

Se quisermos viver uma vida sem angústias e medos precisamos estar conscientes para admitir esse grande mistério de saber que nada sabemos. Temos de aceitar o fato de que nunca saberemos tudo que gostaríamos de saber. E muitas situações estarão sempre fora do alcance da nossa compreensão, e algumas questões estarão eternamente além de nosso entendimento.

Não tenho certeza quanto ao fato de se compreender e aceitar essa verdade torna a vida muito mais simples, todavia, tornam as palavras de Jesus incontestáveis “... basta a cada dia o seu próprio mal”.

AMÉM!