quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Madden-Hare-Cahn-Stein: E as" balanças" do deus benévolo e do deus malévolo

Este artigo desenvolve um desafio ao teísmo. O desafio é explicar por que a hipótese de que existe um Deus onipotente, onisciente e onibenevolente deveria ser considerada significativamente mais razoável do que a hipótese de que existe um Deus onipotente, onisciente e onimalevolente. Os teístas geralmente descartam de imediato a hipótese do Deus malévolo devido ao problema do bem – não há dúvidas de que existem muitas coisas boas no mundo para que este seja a criação de tal ser. Mas então por que razão o problema do mal não provê razões igualmente boas para se descartar a crença num Deus bondoso?

O desafio do Deus Malévolo

Denominemos a afirmação central clássica do monoteísmo – segundo a qual existe um criador onipotente, onisciente e supremamente benévolo – a hipótese do Deus benévolo. Geralmente, os que acreditam nesta hipótese , embora talvez insistam que esta seja uma ‘atitude de fé’, ainda assim não a consideram desarrazoada. Acreditar na existência de Deus, eles sustentam, não é como acreditar na existência do Papai Noel ou de fadas. É uma crença muito mais razoável do que estas.

Em resposta, os críticos muitas vezes assinalam que, mesmo que os argumentos mais populares para a existência de Deus forneçam evidências respaldando a hipótese de que que existe algum tipo de inteligência sobrenatural por trás do universo, estas evidências pouco ou nada dizem sobre seu caráter moral. Suponha, por exemplo, que o universo mostre evidências inequívocas de ter sido projetado. Concluir, unicamente com base nisso, que o projetista seja supremamente benevólo seria tão injustificado quanto seria concluir que ele seja, digamos, supremamente malévolo, o que claramente não seria justificado em qualquer sentido. Os críticos podem acrescentar que existe, além disso, uma vasta gama de evidências contrárias à hipótese da existência de tal ser supremamente benévolo. Mais especificamente, eles podem invocar o problema probabilístico do mal.

Versões do problema do mal

Existem pelo menos dois argumentos englobados pelo rótulo ‘problema do mal’. O problema lógico começa com a idéia de que a proposição:

(1) Existe um Deus onipotente, onisciente e maximamente bom.

é logicamente inconsistente com a proposição

(2) O mal existe.

Utilizo o termo ‘mal’ como significando tanto sofrimento como ações moralmente condenáveis. O argumento então prossegue da seguinte maneira. (2) é inegavelmente verdadeira. Portanto, (1) é falsa. Observe que a qualidade e a quantidade de mal são irrelevantes para esta versão do argumento – tudo o que ela exige é que exista uma quantidade mínima, não importa o quão irrisória. Talvez o problema lógico do mal não confronte o teísmo com um desafio realmente difícil. Para lidar com ele, bastaria mostrar que um Deus onipotente, onisciente e maximamente bom pode permitir a ocorrência de algum mal para alcançar um bem maior.

Um segundo problema – o problema probabilístico - apóia-se não na idéia de que (2) é logicamente incompatível com (1), mas na idéia de que (2) nos municia com boas evidências contrárias a (1). A quantidade de mal agora se torna relevante. Mesmo se admitirmos que Deus pode possuir razões para permitir a ocorrência de algum mal, certamente pode não existir nenhuma boa razão para a quantidade aterradora com que nos deparamos. Podemos aperfeiçoar o problema observando que Deus presumivelmente não permitiria a existência de qualquer sofrimento gratuito. Deve haver uma boa razão para cada ínfima ocorrência dele.

Muitos afirmam que não somente existem poucas razões para supor que o Deus do monoteísmo clássico existe; a atordoante quantidade de mal existente fornece-nos evidências esmagadoras de que ele não existe. Os teístas que sustentam que a crença em Deus, embora não seja conclusiva, é pelo menos não-desarrazoada, estão equivocados. Longe de ser ser um problema que a razão não pode resolver, a afirmação de que o Deus do monoteísmo clássico existe parece ser franca e empiricamente falseada.

Teodicéias

Confrontados com esta objeção, os teístas podem oferecer várias respostas. Eles podem sugerir que possuímos boas bases para acreditar não somente que existe um criador, mas que este ser de fato possui as propriedades a ele atribuídas no monoteísmo tradicional. Retornarei a esta idéia adiante. Eles também podem sugerir que o problema do mal pode, num grau considerável, ser resolvido. Várias explanações teístas para o mal foram oferecidas, incluindo as seguintes.

A solução do livre-arbítrio simples Não somos autômatos cegos, mas agentes livres. Como consequência do livre-arbítrio que Deus nos concedeu, as vezes escolhemos agir errado. O sofrimento acontece. Entretanto, o livre-arbítrio torna possível a existência de bens importantes, como a possibilidade de ações moralmente virtuosas. Deus poderia ter criado um universo habitado por marionetes que sempre fizessem a vontade de Deus. Mas ao comportamento de tais marionetes faltaria a dimensão de responsabilidade moral que torna nossas ações moralmente virtuosas. Ao nos emancipar e nos tornar livres, Deus inevitavelmente permitiu algum mal, mas este mal é mais do que superado pelos importantes bens que o livre-arbítrio acarreta.

A solução do aprimoramento espiritual: Este universo é, tomando emprestado a expressão de John Hick, um ‘vale onde as almas são forjadas’. Sabemos que uma experiência ruim pode as vezes nos tornar mais fortes. Pessoas que padeceram de alguma doença terrível as vezes afirmam terem se beneficiado muito dela. De maneira similar, ao nos infligir dor e sofrimento, Deus nos permite crescer e nos desenvolvermos moral e espiritualmente. É somente através de nossa experiência do sofrimento que podemos nos tornar as nobres almas que Deus deseja que sejamos.

Bens de sgunda ordem exigem males de primeira ordem Os teístas podem nos lembrar que Deus tem inevitavelmente que incluir uma boa dose de sofrimento em Sua criação a fim de que certos bens importantes possam existir. Considere, por exemplo, a caridade. A caridade é uma grande virtude. Todavia só podemos ser caridosos se existirem pessoas necessitadas. A caridade é um dos assim chamados bens de segunda ordem que exigem males de primeira ordem como a carência e o sofrimento (ou ao menos sua simulação) para existir. O bem de segunda ordem supera os males de primeira ordem, o que justifica Deus ao permiti-los.

Quando oferecidas em resposta ao problema probabilístico do mal, tais explanações são as vezes chamadas teodicéias. É sobre o problema probabilístico do mal e sobre as teodicéias que me concentrarei aqui. Obviamente, como teodicéias, estas explicações possuem limitações óbvias. Por exemplo, mesmo que a solução do livre-arbítrio simples seja bem-sucedida em explicar o mal acarretado por nossa livre agência, ela falha em explicar os assim chamados males naturais – tais como o sofrimento acarretado pelos desastres naturais. Não há dúvidas de que as três teodicéias resumidas acima fracassam em explicar porque existe tanto sofrimento no mundo. É verdade que outras explicações mais sofisticadas foram oferecidas, como veremos. Alguns acreditam que estas teodicéias, se não individualmente, pelo menos em conjunto, enfraquecem sensivelmente o problema probabilístico do mal. O problema, eles supõem, pode não ter sido inteiramente solucionado, mas foi pelo menos reduzido a uma escala manejável.

Ainda assim, permanece o reconhecimento por parte de vários teístas de que certamente não é fácil explicar definitivamente porque um ser onipotente, onisciente e onibenevolente deflagaria tanto horror sobre os habitantes sencientes deste planeta ao longo de centenas de milhões de anos. Isto leva alguns a suplementar estas explicações com um apelo adicional – ao mistério. Deus trabalha de maneiras misteriosas. Porque Deus é infinitamente inteligente e informado, é provável que seu plano divino seja vastamente ‘além de nossa compreensão’. Caso em que o fato de que a razão para muito do mal que existe se encontrar além de nossa capacidade de compreensão não é uma boa evidência para sua inexistência.

Como eu disse, as três teodicéias delineadas acima foram desafiadas. Também pretendo desafia-las, e a várias outras, mas de uma maneira incomum. Pretendo recuar um passo e questionar a natureza e a plausibilidade destas explanações em conjunto, através de uma analogia.

A hipótese do deus malévolo

Considere uma hipótese diferente . Suponha que o universo possui um criador. Suponha também que este ser é onipotente e onisciente. Mas imagine que ele não é maximamente bom. Em vez disso, imagine que ele é maximamente maligno. Sua perversidade é ilimitada. Sua crueldade não conhece fronteiras. Não existe nenhum outro deus ou deuses – apenas este ser supremamente vil. Chamemos a este cenário a hipótese do deus malévolo.

O quão razoável é a hipótese do deus malévolo? Eu já mostrei que, ao menos em suas versões mais simples, a maioria dos argumentos populares para a existência de Deus falha em oferecer qualquer pista sobre o caráter moral de nosso criador. Caso em que, na medida em que eles favorecem a hipótese do deus bondoso (ou seja, não muito, se tanto), eles também respaldam a hipótese do deus malévolo.

O problema do bem

Por outro lado, não existem evidências esmagadoras contra a hipótese do deus malévolo? Refiro-me, é claro, ao que pode ser chamado de problema probabilístico do bem. O problema é explicar porque um ser onipotente, onisciente e supremamente maligno permitiria tamanha quantidade de coisas boas no universo que criou. Por que, por exemplo, um deus malévolo:

(i) Nos daria imensa saúde, prosperidade e alegria?

(ii) Colocaria a beleza natural no mundo, uma indiscutível fonte de prazer e deleite para nós?

(iii) Permite-nos ajudar uns aos outros, de modo a reduzir o sofrimento e aumentar a quantidade de coisas que o deus malévolo despreza, como o amor?

(iv) Presentou-nos com filhos para amar e que nos retribuem com amor incondicional?

(v) Dotou-nos com corpos belos, jovens e saudáveis?

Certamente, se um ser supremamente malévolo vai introduzir seres sencientes em sua criação, irá tortura-los e infligir-lhes o mal. Certamente não permitirá o amor, o riso, os pores-do-sol, os arco-íris. Tampouco nos permitirá realizar o tipo de ações corajosas e altruístas que nos enobrecem e reduzem a dor e o sofrimento de nossos semelhantes. Portanto, sim, o mundo contém muitas coisas ruins. Mas também possui uma grande quantidade de coisas boas – na verdade, coisas de uma bondade tal que coloca em xeque a plausibilidade da hipótese de que seja a criação de tal ser desmesuradamente poderoso e maligno.

Observe agora que o problema probabilístico do mal espelha o problema probabilístico do bem. Se você acredita em um deus onipotente, onisciente e maximamente benévolo, então você defronta-se com o desafio de explicar porque existe tamanha quantidade de mal no mundo. De maneira similar, se você acredita em um deus onipotente, onisciente e maximamente malévolo, você defronta-se com o desafio de explicar porque o mundo contém tantas coisas boas.

Algumas teodicéias reversas

Obviamente, poucos, se tanto, de nós acredita na hipótese do deus maligno. Prima facie, não somente existem poucas razões para supor que tal ser existe, existem também evidências esmagadoras contra sua existência. Quando apresentados à hipótese do deus malévolo, a maioria de nós de imediato a descarta como absurda, geralmente porque consideramos o problema do bem decisivo.

Mas observe que, assim como existem estratégias desenvolvidas pelos teístas para tentar lidar com o problema do mal, também existem estratégias similares que podemos desenvolver para tentar lidar com o problema do bem. Aqui estão alguns exemplos.

A solução do livre-arbítrio simples: O deus maligno nos concedeu o livre-arbítrio. Possuir o livre-arbítrio significa que as vezes escolhemos o bem, o que desagrada ao deus malévolo. Entretanto, ele também introduz a possibilidade de más ações pelas quais os agentes podem ser responsabilizados moralmente. Um deus maligno poderia ter criado um universo habitado por marionetes que ele asseguraria que sempre se comportassem desagradavelmente. Mas ao comportamento de tais autômatos falta a dimensão de responsabilidade moral que transforma tais atos em ações de um tipo mais perverso e repugnante. Para maximizar o mal, o deus maligno deseja que realizemos atos cruéis e egoístas por nossa própria vontade.

Em resposta a esta primeira idéia, alguém pode objetar: ‘Mas porque um mundo como este, no qual possuímos livre-arbítrio, seria pior do que um mundo no qual não possuímos nenhuma liberdade e somos simplesmente obrigados a atormentar indefinidamente nossos semelhantes? Certamente este último cenário seria de longe muito mais ruim. Então por que o deus malévolo não o criou?’ Mas isto é esquecer que um mundo no qual somos obrigados a maximizar o sofrimento é um mundo no qual nenhuma ação moralmente condenável é realizada. E o mal moral é uma forma particularmente profunda e importante do mal (como os teístas geralmente reconhecem). Assim como, do ponto de vista de um deus bondoso, um mundo sem ações moralmente boas é gravemente deficiente, de maneira similar, do ponto de vista de um deus maligno, um mundo sem ações moralmente ruins também possui deficiências graves.

Em resposta, pode-se dizer: ‘Por outro lado, um mundo no qual o livre-arbítrio exista é, de longe, preferível para nós do que um mundo no qual somos obrigados a atormentarmo-nos uns aos outros indefinidamente. Este segundo tipo de existência infernal seria muitíssimo pior. E portanto preferível do ponto de vista de um deus malévolo. Então por que o deus maligno não o criou?’

Há alguma plausibilidade nesta resposta. Observe, contudo, que quase o mesmo tipo de reserva pode ser, e na verdade foi, aplicado às teodicéias do livre-arbítrio que utilizamos como modelo. O personagem de Dostoyevsky Ivan Karamazov, por exemplo, questiona se nossa liberdade não é um preço inaceitavelmente alto se seu resultado é a tortura de crianças inocentes. Certamente, Ivan e outros sugerem, diante da escolha entre criar um mundo paradisíaco no qual fomos feitos nobres e virtuosos e desfrutamos de uma existência profundamente rejubilante, e um mundo no qual, como resultado de nos ter sido dado o livre-arbítrio, a humanidade padece de guerras intermináveis, assassinatos, estupros, torturas, o Holocausto, e por aí vai, um bom deus deveria escolher o primeiro ( sem dúvidas vários de nós prefeririam muito mais habitar o primeiro mundo celestial; de fato, vários teístas esperam e oram para que eventualmente venham a habita-lo).

Assim, conquanto possa existir aqui uma dificuldade para a solução do livre-arbítrio ao problema do bem, esta não se revela nem um pouco menos plausível do que a resposta-modelo do livre-arbítrio ao problema do mal, dado que este tipo de preocupação é comum a ambas.

Aqui estão mais duas soluções.

A solução da destruição espiritual Hick estava enganado: isto é um vale, não de edificação e aprimoramento espiritual, mas de degradação, degeneração, decadência e destruição espiritual. O deus malévolo quer que soframos, façamos o mal e nos desesperemos. Por que, então, um deus malévolo criou belezas naturais? Para nos oferecer algum contraste. Para fazer o que é feio parecer ainda pior. Se tudo fosse uniformemente, maximamente feio, não teríamos nem a metade dos tormentos proporcionados por uma feiúra salpicada com alguma beleza.

A necessidade de contraste também explica porque o deus maligno agraciou a poucos com uma vida luxuosa e bem-sucedida. Sua felicidade foi projetada para intensificar ainda mais o sofrimento do resto de nós. Quem pode sentir-se contente e satisfeito sabendo que uma minoria possui muito mais, que eles não fizeram por merecer, e que não importa o quão arduamente nos empenhemos, nunca alcançaremos seu patamar (e não se esqueça, além disso, que mesmos aqueles poucos sortudos não são realmente felizes).

Por que o deus malévolo nos permite ter filhos para amar e que nos amem incondicionalmente em troca? Porque nos preocuparemos interminavelmente com eles. Somente um pai ou uma mãe conhecem a intensidade da angústia e do sofrimento acarretados pela paternidade.

Por que um deus malévolo nos daria corpos belos, jovens e sadios? Porque sabemos que nossa saúde e vitalidade são efêmeras, que ou morreremos jovens ou então definharemos lentamente. Ao nos presentear com algo maravilhoso por um momento, e então gradualmente retira-lo de nós, um deus malévolo pode nos fazer sofrer ainda mais do que sofreríamos se essa coisa maravilhosa nunca nos tivesse pertencido.

Males de segunda ordem exigem bens de primeira ordem permitem Alguns males são males de segunda ordem que requerem bens de primeira ordem. Considere a inveja. Eu não posso sentir inveja a menos que saiba que outros possuem algo que vale a pena invejar. O deus malévolo permite a poucos de nós possuir bens (ou características que podem ser percebidas como valiosas) de maneira que a inveja possa existir.

Chamemos tais tentativas de explicar o problema do bem de teodicéias reversas. Se estas teodicéias reversas não o persuadiram, lembre-se que, da mesma maneira que um defensor da hipótese do deus bondoso, também podemos tirar da manga a carta do ‘mistério’. Sendo infinitamente inteligente e bem informado, é provável que o plano supremamente engenhoso e diabólico do deus malévolo esteja muito além de nossa limitada capacidade de compreensão. Neste caso, o fato de não sermos capazes de compreender porque existem tantas coisas boas no mundo se ele existe não é uma boa evidência para sua inexistência.

A tese da simetria

As três teodicéias reversas apresentadas acima para lidar com o problema probabilístico do mal obviamente espelham as três teodicéias que vimos antes. Na verdade, outras teodicéias também podem ser parodiadas desta maneira (veja abaixo). Isto sugere uma maneira interessante de desafiar o teísmo.

Quão persuasivas são nossas três teodicéias reversas? Intuitivamente, não convencem nem um pouco. Em vez de serem consideradas seriamente, elas geralmente causam diversão tanto entre teístas como entre não-teístas. Mas isto levanta a questão: se as teodicéias reversas são fracas e ineficazes, por que deveríamos considerar as teodicéias convencionais mais eficazes?

Podemos também levantar uma questão mais geral. Em termos de razoabilidade, não existe uma ampla simetria entre a hipótese do deus benévolo e a hipótese do deus malévolo? Considere os argumentos que respaldam as duas hipóteses. Eu assinalei antes que vários dos argumentos populares que corroboram a hipótese do deus bondoso acabam por providenciar quase o mesmo tipo de respaldo (isto é, não muito) para a hipótese do deus malévolo. Além disso, quando se trata de lidar com as evidências contrárias às respectivas hipóteses oferecidas pelas enormes quantidades tanto de bens quanto de males encontradas no mundo, podemos construir tipos similares de explicação. Em particular, as três teodicéias oferecidas para lidar com o problema probabilístico do mal são equivalentes às teodicéias reversas esboçadas acima.

Denominarei a idéia de que, em termos de razoabilidade, realmente existe tal simetria aproximada entre as hipóteses do deus bondoso e do deus malévolo, a tese da simetria.

A analogia das balanças

Suponha que a razoabilidade das hipóteses do deus bondoso e do deus malévolo seja em cada caso indicada por um ponteiro num conjunto de balanças. Dependendo de como cada uma de nossas duas balanças seja carregada – considerações que aumentam a razoabilidade são colocadas à esquerda de cada balança; considerações subtraindo razoabilidade são colocadas à direita – o ponteiro em cada balança movimenta-se desde altamente razoável, passando por uma série de posições (relativamente razoável, não irracional, etc.) até altamente desarrazoado.

Certamente, constatamos que vários dos argumentos populares colocados por alguns teístas do lado esquerdo da balança da hipótese do bom deus bondoso podem com eficácia (ou ineficácia) similar serem colocados do lado esquerdo da balança da hipótese do deus malévolo. Também constatamos que as três teodicéias que vimos utilizadas por teístas para tentar remover ou aliviar o peso do problema do mal na balança da hipótese do deus bondoso (talvez possamos pensa-las como grandes balões de hélio afixáveis ao problema para atenuar seu peso) são equivalentes às teodicéias reversas que podem ser utilizadas para reduzir o peso do problema do bem.

A tese da simetria afirma que, quando carregamos as balanças corretamente com todas as evidências disponíveis e outras considerações pertinentes à razoabilidade de uma crença, (a propósito, não assumo qualquer compromisso com o evidencialismo aqui), as duas balanças estabilizam aproximadamente nas mesmas posições.

Agora, a maioria de nós, incluindo os teístas, consideram a hipótese do deus malévolo altamente desarrazoada. Imaginamos que existe pouco material para colocar no lado esquerdo da balança, e que, quando o monólito representado pelo problema do bem é adicionado, a balança dá uma guinada violenta para a direita, apesar dos efeitos de qualquer dos balões de hélio representados pelas teodicéias reversas que podemos lhe afixar. Mas os adeptos da hipótese do deus bondoso usualmente imaginam a balança do deus bondoso muito mais equilibrada. Acreditar num deus bondoso, eles pensam, não é como acreditar em fadas, no Papai Noel, ou, naturalmente, num deus malévolo. Quando esta balança é adequadamente carregada e a posição do ponteiro observada, eles dizem, encontramo-lo indicando ‘não desarrazoado’ ou até mesmo ‘bastante razoável‘.

Resumindo, os que adotam a hipótese do deus bondoso caracteristicamente rejeitam a tese da simetria. O desafio que estou apresentando àqueles que acreditam no deus do monoteísmo clássico, então, é explicar por que, se a crença num deus malévolo é altamente desarrazoada, deveríamos considerar a crença num deus bondoso significativamente mais razoável?

Podemos chama-lo de o desafio do deus malévolo.

O problema do bem na literatura

Não sou o primeiro a observar como o problema do bem pode ser utilizado para produzir um problema para os teístas.

A mais antiga discussão parece estar no livro de 1968 Evil and the Concept of God escrito por Edward Madden e Peter Hare, em que os autores dedicam três páginas ao problema do bem. Após esboçar rapidamente algumas teodicéias reversas, Madden e Hare concluem:

A esta altura já deveria estar claro que os problemas do mal e do bem são totalmente isomórficos; o que pode ser dito sobre um pode, num sentido inverso, ser dito sobre o outro. Para qualquer solução para um dos problema existe uma solução equivalente para o outro, e para cada contraargumento de um existe um contraargumento paralelo do outro.

O artigo de 1976 ‘Cacodaemony’, Stephen Cahn (de forma independente) extrai a mesma conclusão, afirmando que: ‘os argumentos clássicos em defesa da idéia de que todo mal existente no mundo torna possível um mundo contendo bens ainda maiores podem ser equiparados a argumentos em defesa da idéia de que todas as coisas boas existentes no mundo tornam possível um mundo contendo males ainda maiores’. Em ‘God, the demon, and the status of theodicies’, publicado em 1990, Edward Stein concorda com Hare, Madden e Cahn em que ‘[um] demonista pode idealizar uma demonologia que é isomórfica a qualquer teodiceia’.

Christopher New (também ignorando a literatura anterior), em seu artigo de 1993, ‘Antitheism’, desenvolve alguns argumentos correspondentes para, e teodicéias reversas em defesa da, crença num deus malévolo. Finalmente, em ‘God, devil, good, evil’ publicado em 1997, Charles Daniels aventura-se a lidar com os argumentos de Hare, Madden, Cahn e Stein sugerindo a existência de uma assimetria crítica entre as hipóteses do deus bondoso e do deus malévolo – Daniels argumenta que um deus malévolo é na verdade uma impossibilidade lógica. Responderei à objeção de Daniels no fim deste artigo.

Existe uma série de diferenças importantes entre meu desafio do deus malévolo e os desafios prévios lançados por Madden e Hare, Cahn, Stein e New.

Primeiro, como ficará claro, eu rejeito a afirmação central de Hare, Madden, Cahn e Stein: que os problemas do bem e do mal e suas respectivas soluções são ‘exatamente equivalentes’ (Madden e Hare). As soluções não são exatamente equivalentes. Eu mostrarei algumas assimetrias entre os dois problemas e conjuntos de teodicéias (e também assimetrias nos argumentos que podem ser construídos para estes respectivos deuses). Entretanto, eu explicarei porque estas assimetrias locais não necessariamente, e muito provavelmente não, ameaçam a tese da simetria.

Segundo, eu vejo falhas na tentativa de New de lidar com certos argumentos para um deus bondoso aparentemente não-reversíveis, e forneço uma resposta melhor àqueles argumentos.

Terceiro, pretendo que minha hipótese do deus malévolo proporcione um desafio mais robusto, espinhoso e nuançado ao teísmo do que os lançados pelos que contribuíram anteriormente com esta discussão, não apenas reconhecendo e respondendo ao problema das assimetrias locais, mas também antecipando e enfrentando uma ampla gama de possíveis respostas teístas.

Respostas ao desafio do deus malévolo

Algumas pessoas podem pensar que o desafio do deus malévolo é facilmente refutável. Por exemplo, não omitimos vários argumentos importantes para a existência de Deus que são argumentos específicos para um deus bondoso, e que não são equiparados por nenhum argumento correspondente para um deus malévolo? Não mostram estes argumentos que a crença num deus bondoso é, afinal de contas, um pouco mais razoável do que a crença num deus malévolo?

Milagres e experiências religiosas

Considere por exemplo o argumento dos milagres. Curas milagrosas e outros fenômenos supostamente sobrenaturais são observados regularmente. Alguns são investigados oficialmente e confirmados por autoridade religiosas como a Congregação Católica para as Causas dos Santos. Não proporcionam tais eventos pelo menos algumas evidências para a existência não somente de um deus, mas de um deus bondoso disposto a realizar grandes obras benéficas em resposta às nossas orações?

Ou considere o argumento da experiência religiosa. Experiências religiosas são quase sempre interpretadas como experiências de alguma coisa imensamente positiva. Mais uma vez, não nos fornecem elas pelo menos alguma evidência de que não somente existe algum tipo de inteligência por trás do universo, mas que esta inteligência é uma força benévola, não malévola?

Mesmo que tais argumentos estejam longe de serem conclusivos quando considerados individualmente, podemos supor que eles contribuem para fazer um caso cumulativo para a existência não de um deus qualquer, mas da divindade supremamente benevolente do monoteísmo clássico. Mas se isto é verdade, então o equilíbrio da balança do deus benévolo agora se altera. Dispomos agora de algo um pouco mais convincente para colocar no lado esquerdo da balança do deus benévolo, algo para o qual não há nada correspondente que possa ser colocado no lado esquerdo da balança do deus malévolo. Possuímos agora algum motivo para rejeitar a tese da simetria?

New sobre os argumentos dos milagres e das experiências religiosas

Em ‘Antitheism’, New tenta lidar com esta aparente assimetria construindo argumentos correspondentes para um deus malévolo. Ele pede que imaginemos um mundo cujos habitantes tem experiências com um deus malévolo (New as chama de ‘experiências antirreligiosas’) e que observam eventos perigosos ou desagradáveis que não podem ser explicados cientificamente (New os chama de ‘antimilagres’). Possuímos agora evidências hipóteticas para um deus malévolo que correspondem exatamente às evidências para o deus benévolo. O problema com a estratégia de New, porém, é que evidências imaginárias não são realmente evidências. Eu não posso providenciar evidências contrárias a uma teoria científica simplesmente imaginando alguma. Para possuir algum valor, as evidências devem existir concretamente.

Vários teístas insistem que dispomos de evidências reais para um deus benévolo – a evidência proporcionada pelos milagres e pelas experiências religiosas. O problema com a tese da simetria, o teísta pode insistir, é que simplesmente não existe qualquer coisa similar a este tipo de evidências para experiências antirreligiosas e antimilagres. A tentativa de New de produzir argumentos correspondents aos argumentos dos milagres e das experiências religiosas é um fracasso. Entretanto, como explicarei em seguida, existe uma maneira melhor de responder aos argumentos dos milagres e das experiências religiosas.

Uma resposta melhor

Os argumentos dos milagres e das experiências religiosas fornecem evidências melhores para um deus benévolo do que para um deus malévolo?

Suponha que a hipótese do deus malévolo seja verdadeira. Este ser maligno pode não querer que saibamos de sua existência. Para maximizar o mal, na verdade pode lhe ser útil nos enganar sobre sua verdadeira natureza. Um ser onipotente e maligno não teria dificuldades em ludibriar os seres humanos e faze-los acreditar que ele é bom. Assumindo uma aparência ‘boa’, ele pode aparecer num canto do mundo, revelar-se em experiências religiosas e realizar milagres em resposta às orações, e talvez também dar instruções sobre o que seus seguidores devem acreditar. Ele pode então fazer o mesmo em outras regiões do globo, exceto pelas instruções sobre o que se deve crer, que contradizem tudo o que ele disse em outros lugares.

Nosso ser maligno então retira-se e observa inevitáveis conflitos surgirem e assumirem proporções globais entre as comunidades para as quais ele se revelou fraudulentamente, cada uma delas totalmente convencida por seu próprio estoque de milagres e experiências religiosas de que o único deus verdadeiro está a seu lado. Temos aqui uma receita para conflitos intermináveis, violência e sofrimentos.

Quando observamos como as experiências religiosas e os milagres estão realmente distribuídos, este é aproximadamente o padrão que encontramos. Portanto, mesmo que eles sejam genuinamente sobrenaturais, será que estes fenômenos miraculosos constituem melhor evidência para um deus benévolo do que para um malévolo? Conquanto um deus benévolo possa criar milagres e experiências religiosas, é difícil ver por que ele os produziria desta maneira, considerando-se as previsíveis e terríveis consequências. Talvez os milagres e as experiências religiosas de fato indiquem a atividade de agentes sobrenaturais, mas é discutível que sua configuração real corrobore melhor a hipótese do deus benévolo que a do deus malévolo. Não deveríamos, a esta altura, descartar a possibilidade de que, se existe uma assimetria entre as duas hipóteses, esta deva-se na verdade à maior razoabilidade da hipótese do deus malévolo do que a do deus benévolo.

Em resposta à esta defesa da hipótese do deus malévolo, pode-se perguntar: ‘Mas por que uma deus malévolo se importaria em nos enganar sobre seu verdadeiro caráter, considerando-se que o pleno conhecimento deste carrasco cruel e todo-poderoso seria na verdade bem mais terrível?’

A resposta, é claro, é que um deus malévolo desejaria permitir a realização de atos moralmente condenáveis dentro de sua criação. Como já observado, um mundo sem agentes morais capazes de realizar ações de uma natureza profundamente perversa é um mundo seriamente deficiente deste ponto de vista. Portanto não somente o deus malévolo criou um mundo no qual nós somos agentes morais livres, como também arquitetou o tipo de circunstâncias nas quais somos, então, prováveis de escolher livremente o mal. Conflitos motivados pela religião claramente foram, e continuam a ser, uma das principais fontes de mal moral no mundo. Através deste engano, um deus malévolo é capaz de criar um ambiente no qual é provável que o mal moral floresça.

Uma última objeção ainda pode ser levantada: ‘Mas certamente nada poderia ser pior do que o inferno segundo sua concepção tradicional. Por que um deus malévolo simplesmente não nos envia direto para o inferno?’ Entretanto, como já observado, um enigma correspondente desafia os que acreditam num deus benévolo. Considerando-se que um cenário paradisíaco seria profundamente mais jubiloso do que este, por que um bom deus não nos envia direto para o Céu? Por que permite-se que tantos de nós atravessem sofrimentos tão terríveis aqui?

Considerando-se que ambas as hipóteses enfrentam este tipo de objeção, como está ela não representa nenhuma ameaça à tese da simetria. Além disso, podemos, em ambos os casos, tentar lidar com a objeção recorrendo a um pós-vida. Somos enviados a este mundo primeiro, onde nos é dada a oportunidade de realizar ações morais profundamente boas e más (isto é importante para ambos os deuses). Nós então passamos para um pós-vida: uma eternidade no Céu ou (sob a hipótese do deus malévolo) no Inferno, onde a felicidade ou (sob a hipótese do deus malévolo) a dor e o sofrimento são maximizados e quaisquer sofrimentos ou (sob a hipótese do deus malévolo) alegrias na primeira etapa de nossa existência são compensados. Eu examinarei brevemente os exemplos de tais teodicéias do pós-vida.

Evidências históricas

A propósito, as respostas acima podem ser ampliadas para lidar com argumentos para um deus benévolo baseados em evidências históricas, como as evidências fornecidas pelas escrituras (as quais nem todas são baseadas em experiências religiosas e milagres). Alguns insinuarão que existe um volume considerável de evidências históricas e textuais que podem ser apresentadas e combinadas para respaldar a crença numa divindade benévola, mas nenhuma evidência correspondente para respaldar a crença numa divindade malévola – e isto constitui uma assimetria significativa entre nossas duas hipóteses.

Em resposta, podemos perguntar mais uma vez – estas evidências históricas realmente corroboram melhor a hipótese do deus benévolo do que a do deus malévolo? Não se nossos deus malévolo deseja criar a ilusão de que é bom, a fim de fomentar a fraude delineada acima. Pode muito bem ser de seu interesse fabricar evidências enganosas sobre seu próprio caráter.

Quando consideramos a distribuição das evidências proporcionadas pelos milagres, experiências religiosas e também as evidências históricas associadas com as inúmeras fés diferentes, é no mínimo razoável que o padrão encontrado corrobore melhor a hipótese do deus malévolo do que a do benévolo. Pois, reiterando, por que diabos um deus benévolo produziria estes fenômenos de maneira a assegurar a existência de conflitos religiosos intermináveis? Sem dúvidas, é um pouco mais provável que a desastrosa distribuição real seja obra de um ser maligno.

Um argumento moral

Outra estratégia disponível para o teísta a fim de estabelecer uma assimetria significativa entre as duas hipóteses seria sustentar que existem argumentos morais para a existência de um deus benévolo que não podem ser equiparados por argumentos correspondentes para um deus malévolo. Por exemplo, eles podem defender que nossos senso moral poderia possuir unica e exclusivamente uma origem sobrenatural, e que somente um deus benévolo estaria interessado em que o possuíssemos. De maneira que o fato de possuirmos um senso do certo e do errado é uma poderosa evidência favorecendo a hipótese do deus benévolo sobre a hipótese do deus malévolo.

Contudo, este argumento particular fracassa. Conquanto possa ser verdadeiro que apenas um ser sobrenatural seja capaz de nos equipar com um senso moral, o fato é que um deus malévolo poderia muito bem ter interesse em nos fornecer tal senso. Pois ao nos dotar tanto de livre-arbítrio como de conhecimento do bem e do mal, um deus malévolo pode permitir o extraordinário mal de nossas más ações livremente realizadas com plena consciência de que elas são verdadeiramente más.

Por que, então, seria o fato de que possuímos um senso do certo e do errado uma evidência favorecendo a hipótese do deus benévolo em detrimento da do malévolo?

Um segundo argumento moral

Um tipo diferente de argumento moral especificamente para a existência de um deus benévolo concentra-se não sobre nossa consciência dos valores morais objetivos, mas em sua existência. Alguns insistirão que os fatos morais são tanto objetivos como não-naturais, e que um deus benévolo é por conseguinte exigido para sustenta-los (ou ao menos fornecer-lhes a melhor explicação.)

É no mínimo controverso se um argumento cogente ao longo destas linhas pode ser construído. Notoriamente, tais argumentos são desafiados pelo dilema de Eutífron. Imagine que afirmamos que Deus, como legislador divino, decreta que certas coisas, como o roubo e o assassinato, são erradas. Deus as decreta porque reconhece que roubar e matar são, independentemente, erradas, ou elas são erradas somente porque ele assim decretou? A primeira resposta torna Deus redundante na medida em que refere-se ao estabelecimento de um padrão de certo e errado – o assassinato seria errado de qualquer maneira, Deus existindo ou não, ou, na verdade, aconteça ou não de ser o próprio Deus bom ou mau. Mas então a natureza proibitiva objetiva, não-natural, do assassinato, seria obtida de qualquer forma, mesmo se existisse um deus malévolo. Sob a primeira resposta, podem ambos existir: um padrão de certo e errado objetivo, não-natural, e um deus malévolo.

A segunda resposta, notoriamente, parece tornar a condenabilidade moral do assassinato arbitrária e relativa. Observe que isto é um problema não importa qual de nossas duas hipóteses seja favorecida. Resumindo, sob a primeira resposta não há nenhum problema para a hipótese do deus malévolo; sob a segunda, existe, prima facie, um problema que afeta igualmente ambas as hipóteses. O dilema de Eutífron constitui assim o principal obstáculo para a construção de um argumento moral para a existência de um deus especificamente benévolo, em vez de malévolo.

É claro, permanece possível que um argumento moral cogente ao longo das linhas acima ainda possa vir a ser formulado. Eu suspeito que, para os que rejeitam a tese da simetria, esta é a mais promissora linha de ataque. Contudo, mesmo entre os teístas, até hoje permanece a controvérsia sobre a existência de qualquer argumento do tipo.

Outras teodicéias reversas

Retornemos agora às teodicéias convencionais e suas versões adaptadas. Talvez tenhamos subestimado o alcance e a eficácia das teodicéias convencionais disponíveis. Existe alguma que não seja reversível? Com certeza existem muitas que ainda não discutimos. Contudo, em vários casos, se não todos, as teodicéias reversas insinuam-se prontamente. Para ilustrar, esboçarei mais três exemplos: (1) uma teodicéia reversa das leis da natureza, (2) uma teodicéia reversa do pós-vida, e (3) uma teodicéia reversa semântica.

Teodicéia das leis da natureza Ações intencionais efetivas exigem que o mundo se comporte de maneira regular (por exemplo, sou capaz de acender deliberadamente este fogo riscando meus fósforos somente porque existem leis que determinam que, sob tais circunstâncias, meu ato resultará em fogo). A existência de leis da natureza é um pre-requisito para nossa capacidade tanto de agir sobre nosso ambiente natural como para interagir com os outros dentro dele. Estas habilidades permitem a existência de bens grandiosos. Elas nos dão a oportunidade para agir de um modo moralmente virtuoso, por exemplo.

Entretanto, tal mundo regido por leis inevitavelmente produz alguns males. Por exemplo, o tipo de leis e condições iniciais que produzem massas de solo estáveis nas quais podemos sobreviver e evoluir também produzem movimentos tectônicos que resultam em terremotos e tsunamis. Não obstante, o mal causado pelos terremotos e tsunamis é mais do que soprepujado pelos bens que aquelas leis permitem. Podemos pensar que somos capazes de conceber mundos possíveis que, como resultado de serem regidos por diferentes leis e/ou condições iniciais, contém uma porcentagem muito maior de bem do que de mal (que contém massas de solo estáveis mas nenhum terremoto,por exemplo), mas em virtude das consequências que fracassamos em antecipar (talvez a ausência de terremotos só seja possível ao custo de algum tipo muito pior de catástrofe global), tais mundos podem, na realidade, sempre serem piores do que o mundo real.

Uma teodicéia das leis da natureza reversa pode ser construída da seguinte forma.

Teodicéia reversa das leis da natureza Ações intencionais efetivas exigem que o mundo se comporte de maneira regular. A existência de leis da natureza é um pre-requisito para que sejamos dotados com a capacidade tanto de agir sobre nosso ambiente natural como de interagir com os outros dentro dele. Estas habilidades permitem grandes males. Por exemplo, elas nos dão a oportunidade de agir de maneiras moralmente perversas – assassinando e torturando outras pessoas, por exemplo. Ao nos conceder estas capacidades, o deus malévolo também consentiu que experimentássemos certas formas importantes de sofrimento psicológico como a frustração – não poderíamos tentar, e nos frustrarmos após repetidos fracassos, a menos que primeiro nos fosse dada a oportunidade de agir.

É verdade, tal mundo regido por leis inevitavelmente produz algumas coisas boas. Por exemplo, ao nos conceder a habilidade de agir dentro de um ambiente físico, o deus malévolo nos deu a habilidade para evitar o que nos faz sofrer e para buscar o que nos dá prazer. Não obstante, tais coisas boas são mais do que sobrepujadas pelos males que estas leis permitem. Podemos pensar que somos capazes de conceber mundos possíveis que, como resultado de serem regidos por diferentes leis da natureza ou condições iniciais, contém um porcentagemo muito maior de mal do que de bem (que contém ainda mais dor física e bem menos prazer, por exemplo), mas, em virtude das consequências que fracassamos em antecipar (talvez o sofrimento maior resultaria em sermos significativamente mais compreensivos, caridosos e bons de uma maneira geral para com os outros), tais mundos na verdade sempre seriam melhores do que o mundo real.

A isto, alguém pode objetar: ‘Muito bem, um deus malévolo decreta leis da natureza que nos conferem o poder de fazer o mal – mas certamente ele também irá ocasionalmente suspender tais leis a fim de nos confundir e frustrar e para produzir males para os quais as leis da natureza nada mais seriam do que um empecilho.”

Observe, entretanto, que ambas as teodicéias defrontam-se com este tipo de objeção. Uma reserva similar pode ser aplicada à teodicéia convencional das leis da natureza. Sim, um deus benévolo produzirá um universo regular de maneira que sejamos capazes de fazer o bem, mas certamente ele estaria disposto a suspender aquelas leis e intervir a fim de, digamos, impedir algum evento particularmente vil de um ponto de vista moral (por exemplo, a ascensão de Hitler ao poder) ou para impedir algum desastre natural particularmente terrível, ou para nos ajudar a alcançar algum bem grandioso (talvez providenciando algum golpe de sorte num laboratório científico que leve à cura do câncer). Um deus benévolo simplesmente não contemplaria impassível centenas de crianças serem enterradas vivas num terremoto mesmo se o terremoto fosse o resultado de leis naturais que são amplamente benéficas de outras maneiras.

As teodicéias do pós-vida também são populares. Considere a seguinte versão apresentada por T. J. Mawson em seu livro Belief in God.

Teodicéia do pós-vida compensatório A dor e o sofrimento que experimentamos neste mundo são mais do que compensadas no pós-vida – onde experimentaremos uma felicidade ilimitada. A razão pela qual um deus benévolo simplesmente não nos enviaria direto para o Céu é que apenas dentro de um mundo regido por leis no qual possuímos livre-arbítrio (algo que, de acordo com alguns teístas, como Mawson, nos falta no Céu) podemos desfrutar bens importantes, incluindo a grandiosa alegria que é fazer o bem por nossa própria vontade. Como consequência de habitarmos este mundo por um curto período, nós sofremos, mas este sofrimento é mais do que compensado por uma eternidade em comunhão com Deus no Céu.

A teodicéia do pós-vida de Mawson também pode ser emulada.

Teodicéia reversa do pós-vida compensatório A alegria e a felicidade que experimentamos neste mundo são mais do que compensadas no pós-vida – onde experimentamos um mal ilimitado. A razão pela qual um deus malévolo simplesmente não nos envia direto para este mundo interminavelmente cruel é que somente dentro de um mundo regido por leis no qual possuímos livre-arbítrio podemos experimentar males importantes, incluindo o grandioso pecado de fazermos o mal por nossa própria vontade. Como consequência de habitarmos este mundo por um breve período, nós experimentamos algumas coisas boas, mas estas são mais do que compensadas pelo que lhe segue: uma eternidade de sofrimento na companhia de um ser supremamente maligno.

Teodicéia semântica Também é possível parodiar as respostas semânticas convencionais para o problema do mal. Considere este exemplo. Quando descrevemos Deus como sendo ‘bom’, o termo possui um significado diferente daquele aplicável a meros humanos. Esta diferença no significado pelo menos explica parcialmente porque um deus benévolo faria coisas que não chamaríamos de ‘boas’ se feitas por nós.

Podemos reverter esta teodicéia assim.

Teodicéia semântica reversa Quando descrevemos deus como sendo ‘mal’, o termo possui um significado diferente daquele aplicável a meros humanos. Esta diferença no significado explica ao menos parcialmente porque um deus malévolo faria coisas que não chamaríamos de ‘más’ se feitas por nós.

Com um pouco de engenhosidade, teodicéias reversas podem ser formuladas também para várias outras teodicéias convencionais. Entretanto, como explicarei agora, provavelmente deveríamos reconhecer que – ao contrário das afirmações feitas por Madden, Hare, Cahn e Stein – em alguns casos, nenhuma teodicéia ‘exatamente correspondente’ pode ser formulada.

Assimetrias

Considere, por exemplo as teodicéias baseadas numa história cristã em particular sobre a Queda e a Redenção. Quando examinamos a explicação de Santo Agostinho para os males naturais e morais – que ambos deitam raízes no pecado original de Adão e Eva – nenhuma narrativa correspondente surge espontaneamente. Uma tentativa de construir uma história invertida sobre um Adão e Eva invertidos cuja desobediência a seu criador malévolo acarretou uma Queda invertida depara-se com obstáculos insuperáveis.

Por exemplo, conquanto um deus benévolo possa ter alguma razão para permitir que os males naturais acarretados pelo pecado original continuem a existir (pois estas consequências ruins, recaindo sobre nós próprios, são merecidas, e além disso ainda resta a oferta de redenção feita por Deus), por que um deus malévolo permitiria a existência contínua dos bens naturais acarretados pela desobediência do casal Adão e Eva invertido? Pode ser que, com alguma criatividade, uma narrativa completamente diferente envolvendo um deus malévolo possa ser elaborada para explicar os bens naturais, mas é difícil ver como ela poderia corresponder à história cristã da Queda em detalhes suficientes para qualifica-la como uma teodicéia reversa. Pace Madden, Hare, Cahn e Stein, parece que nem toda teodicéia possui realmente uma versão equivalente, muito menos uma versão exatamente equivalente.

Mesmo nos casos em que uma teodicéia correspondente pode ser elaborada, ainda podem existir assimetrias. Por exemplo, se supormos que o livre-arbítrio em si é um bem intrínseco, então a teodicéia do livre-arbítrio reversa envolve um deus malévolo dotando-nos com o bem do livre-arbítrio. Conquanto um deus malévolo possa, não obstante, ser capaz de maximizar o mal concedendo-nos o livre-arbítrio, ainda ssim ele paga um preço (introduzir esse bem intrínseco) – um preço para o qual não há paralelo na teodicéia do livre-arbítrio convencional. Sem dúvidas, isto torna a teodicéia do livre-arbítrio convencional muito mais efetiva do que sua versão invertida. O teísta pode insistir que porque o livre-arbítrio é não somente um bem intrínseco, mas um bem grandioso, então quantidades colossais de males adicionais são exigidas para sobrepuja-lo – tão grandes, na verdade, que tornam a teodicéia reversa do livre-arbítrio significativamente menos plausível do que a teodicéia convencional.

De modo que parece que existem algumas assimetrias entre os dois conjuntos de teodicéias. Entretanto, o efeito destas assimetrias parece ser comparativamente menor, exercendo pouco efeito sobre o equilíbrio total da razoabilidade. Por exemplo, considerando-se o status mítico de Adão, Eva e a Queda, a teodicéia de Santo Agostinho fracassa.

Mas então a ausência de uma teodicéia correspondente nã afeta muito a comparação de razoabilidades ( e em todo caso, podemos ser capazes de elaborar um tipo diferente de narrativa para acompanhar a hipótese do deus malévolo que explique os bens naturais de outro modo).

E sobre a assimetria entre as teodicéias do livre-arbítrio convencional e reversa? Stein tenta defender a tese de que para cada teodicéia existe um ‘correspondente exato’ argumentando que o livre-arbítrio não é, verdadeiramente, um bem intrínseco. Contudo, suponha que concedamos a título de argumentação que o livre-arbítrio seja um bem intrínseco. Isso demanda que abandonemos a tese de Madden-Hare-Cahn-Stein de que para cada teodicéia existe uma teodicéia reversa que é sua ‘correspondente exata’. Mas isto realmente exige que abandonemos minha tese da simetria – a tese de que quando carregamos corretamente as balanças do deus benévolo e do deus malévolo com todas as evidências disponíveis e outras considerações pertinentes à razoabilidade de uma crença, as duas balanças acusarão valores aproximadamente semelhantes?

Acredito que não por pelo menos três razões.

Primeiro, esta assimetria entre as duas teodicéias pode muito bem ser neutralizada por outra. A fim de dispormos de uma gama completa de escolhas livres entre o bem e o mal, Deus, seja ele bom ou mal, deve introduzir a dor, o sofrimento e a morte não somente como possibilidades mas como realidades. Não somente deve Ele fazer-nos vulneráveis a dor, ao sofrimento e à morte (para nos dar a opção de torturar ou assassinar os outros), Ele deve realmente inflingir a dor e a morte de maneira que sejamos capazes de escolher livremente ajudar a alivia-los ou preveni-los. Agora se é prima facie plausível que o livre-arbítrio é um bem intrínseco, não é menos plausível que a dor, o sofrimento e a morte são males intrínsecos. Caso em que ambas as teodicéias do livre-arbítrio requerem a introdução de bens intrínsecos e males intrínsecos. Enquanto os bens intrínsecos demandam explicações adicionais da hipótese do deus malévolo, por sua vez os males intrínsecos também demandam explicações adicionais da hipótese do deus benévolo. Caso em que aparentemente as duas assimetrias se equivalem.

Segundo, mesmo se fosse verdade que a teodicéia do livre-arbítrio é significativamente mais efetiva do que a teodicéia reversa, isso pode não afetar a balança da razoabilidade entre as hipóteses do deus benévolo e do deus malévolo. Suponha, a título de argumentação, que a teodicéia do livre-arbítrio convencional seja inteiramente efetiva em explicar os males morais, e que a teodicéia reversa seja totalmente ineficaz em explicar os bens morais (isto sendo uma assimetria bem mais dramática do que a proposta). Assim, deixamos todo o peso do bem moral na balança do deus malévolo, mas removemos inteiramente o peso do mal moral da balança da balança do deus benévolo. Esta mudança no equilíbrio das duas balanças realmente resulta nos dois ponteiros indicando níveis de razoabilidade muito diferentes?

Obviamente não. Pois, ceteris paribus, ainda existe uma quantidade monstruosa de mal na balança do deus bnévolo (tal como as extraordinárias quantidades de sofrimento infligido sobre criaturas sencientes ao longo dos milhões de anos anteriores ao aparecimento dos agentes morais sobre a Terra). Pode-se argumentar (penso que com alguma plausibilidade) que quando os males explicados pela teodicéia do livre-arbítrio são removidos, ainda permanece um volume de mal mais do que suficiente para manter o ponteiro firmemente fixado na posição ‘altamente desarrazoado’. O ponteiro não indica agora ‘não desarrazoado’ ou ‘bastante razoável’ – ele continua resolutamente acusando ‘altamente desarrazoado’ no fim da escala. A balança moveu-se um pouquinho, talvez, mas não muito. Se assim for, (o que considero pelo menos plausível), então a tese da simetria permanece verdadeira.

Terceiro, lembremo-nos de que mesmo se a teodicéia do livre-arbítrio convencional for um pouco mais efetiva do que a teodicéia reversa, esta ssimetria pode em todo caso ser contrabalançada ou sobrepujada por outras assimetrias que favoreçam a hipótese do deus malévolo sobre a hipótese do deus benévolo. Na verdade, um exemplo já foi descoberto: prima facie, a evidência relativa aos milagres e experiências religiosas parece respaldar a hipótese do deus malévolo um pouco melhor do que a hipótese do deus benévolo.

Concluindo, então, parece que – pace Madden, Hare, Cahn e Stein – os dois conjuntos de teodicéias não se equivalem mutuamente. Existem assimetrias. Entretanto, encontramos poucas razões para supor que estas assimetrias exerçam algum efeito significativo sobre o nível geral de razoabilidade de nossas respectivas hipóteses. Ainda não encontramos boas razões para pensar que nossas duas balanças não estabilizam em posições aproximadamente semelhantes.

Outras estratégias

Para encerrar, antecipo agora cinco respostas que o desafio do deus malévolo pode provocar, e delineio resumidamente algumas das dificuldades que elas enfrentam.

Significativamente mais coisas boas do que ruins Podemos tentar refutar o desafio mostrando que existe uma quantidade significativamente maior de bem do que de mal no mundo. Isto, entretanto, será algo difícil de estabelecer, no mínimo porque bem e mal são difíceis de quantificar e mensurar. Alguns teístas consideram simplesmente óbvio que o mundo contém mais coias boas do que ruins, mas então vários (incluindo alguns teístas) são atordoados pela idéia exatamente oposta. Apelos a estimativas subjetivas possuem pouco força probatória.

Argumentos ontológicos Podem os argumentos ontológicos providenciarem fundamentos a priori para supor não somente que existe um deus, mas que ele é bom? A dificuldade mais óbvia aqui é que é discutível, para dizer o mínimo, se é possível formular qualquer argumento ontológico cogente. A cogência dos argumentos que foram apresentados continua não reconhecida não somente por não-teístas, mas também por vários teístas – talvez a maioria dos teístas filósofos. Eles sem dúvida não recorrerão ao argumento ontológico a fim de demonstrar por que a tese da simetria fracassa.

New chama a atenção para o fato de que alguns argumentos ontológicos são, em todo caso, reversíveis. Considere este exemplo (meu próprio – baseado em New e Anselmo):

Posso conceber um deus malévolo – um ser pior que o qual nenhum outro pode ser concebido. Mas este ser seria ainda pior se existisse na realidade do que apenas na imaginação. Portanto, o ser que concebi deve existir na realidade.

Argumentos da impossibilidade Poderíamos refutar o desafio do deus malévolo demonstrando que um deus malévolo é na verdade uma impossibilidade, pois a própria noção de um deus malévolo contém uma contradição? Eis dois exemplos de tal argumento.

No artigo ‘God, demon, good, evil’, Daniels sugere que as ferramentas para lidar com o desafio do deus malévolo podem ser encontradas no diálogo platônico Górgias. Daniels acredita que Platão demonstrou que um deus malévolo é uma impossibilidade. Sua ‘refutação platônica’ da hipótese de um deus malévolo é a seguinte. Primeiro, Daniels afirma que nós sempre fazemos o que julgamos ser bom. Mesmo quando fumo, apesar de acreditar que fumar seja ruim, eu o faço porque julgo que seria bom fumar este cigarro aqui e agora. Disso resulta, Daniels diz, que ninguém faz coisas ruins intencionalmente. Mas então segue-se que se um ser for onisciente, ele não fará nada ruim. Não é possível a existência de um ser onisciente porém maligno. A noção de um ser onisciente mas maligno envolve uma contradição.

Acredito que o argumento de Daniels incorre numa falácia de ambiguidade acerca do uso da palavra ‘bom’. É verdade, sempre que faço alguma coisa deliberadamente, eu julgo, em certo sentido, que o que eu faço é ‘bom’. Mas ‘bom’ aqui não precisa significar mais do que ‘aquilo que pretendo alcançar’. Ainda não nos foi dada qualquer razão para pensar que não posso julgar ser ‘bom’, neste sentido, o que eu também acredito ser perverso, porque eu desejo o mal. Sim, um deus malévolo julgará ‘boa’ a realização do mal, mas apenas no sentido trivial de que o mal é o que ele deseja. Pace Daniels, não existe nenhuma contradição envolvida quando um ser onisciente julga que o mal seja, neste sentido, ‘bom’.

Um argumento bem diferente seria: ‘Mas ao realizar o mal, seu deus malévolo intenta satisfazer seu próprio desejo pelo mal; e a satisfação de um desejo é um bem intrínseco. De maneira que a idéia de um deus maximamente malévolo visando produzir um bem intrínseco envolve uma contradição.’

Este argumento também fracassa. Mesmo se admitíssemos a questionável hipótese de que a satisfação de qualquer desejo – mesmo um desejo ruim – é um bem intrínseco, o máximo que descobriríamos aqui seria outra assimetria local – que, visando maximizar o mal, o deus malévolo teria também pretendido realizar pelo menos um bem intrínseco (isto é, a satisfação deste desejo de maximizar o mal). O que estabelecemos, talvez, é que existem certos limites lógicos sobre a perversidade de Deus (da mesma maneira que também existem certos limites lógicos sobre Seu poder: Ele não pode fazer uma pedra tão pesada que não seja capaz de ergue-la). O Deus malévolo ainda pode ser maximamente perverso – tão perverso quanto lhe é logicamente possível ser. Ainda não foi estabelecida uma contradição na noção de um ser maximamente malévolo.

Em todo caso, existe uma questão mais geral a ser levantada sobre os argumentos tentanto mostrar que um deus malévolo é uma impossibilidade e que portanto o desafio do deus malévolo está refutado. A questão é esta: mesmo supondo que um deus malévolo seja, por alguma razão X, uma impossibilidade, ainda podemos fazer a pergunta hipotética: colocando de lado o fato de que isso-e-aquilo estabelecem que um deus malévolo é uma impossibilidade, quão razoável seria, se ele não fosse impossível, supor que tal ser malévolo exista? Se a resposta for ‘altamente desarrazoada’, isto é, por causa do problema do bem, então o desafio do deus malévolo ainda pode ser aplicado. Ainda podemos perguntar aos teístas por que, se a hipótese do deus malévolo fosse possível, eles a rejeitariam como altamente desarrazoada, mas não pensam o mesmo sobre a hipótese do deus benévolo?

Argumentos da simplicidade E sobre a hipótese do deus benévolo ser significativamente mais simples do que a hipótse do deus malévolo?

Por exemplo, podemos sugerir que um deus benévolo pode ser definido de um jeito simples, por exemplo, como dotado de todos os atributos positivos. Como a bondade é um atributo positivo, segue-se que este deus é benévolo. O conceito de um deus malévolo, ao contrário, é mais complexo, pois ele possui tanto atributos positivos (onisciência e onipotência) como negativos (malevolência). O princípio de parcimônia exige, portanto, que favoreçamos a hipótese do deus benévolo sobre a do deus malévolo.

Reconheço que podem realmente existir assimetrias entre as hipóteses em termos de simplicidade e economia. Entretanto, observe que o fato de uma teoria ser bem mais econômica do que outra confere-lhe pouca credibilidade adicional se as evidências disponíveis favorecem esmagadoramente a idéia de que ambas as teorias são falsas.

Considere, por exemplo, estas duas hipóteses: (i) Swindom é habitada por 1000 elfos, e (ii) Swindom é habitada por 1000 elfos cada um dos quais possui uma fada sentada em sua cabeça. A primeira hipótese é mais econômica, já que postula metade das entidades da segunda. Mas isto torna a primeira hipótese significativamente mais razoável do que a segunda? Não. Pois não somente existem poucas razões para supor que qualquer delas seja verdadeira, como existe evidências esmagadoras de que ambas são falsas.

De maneira similar, se a razoabilidade de ambas as hipóteses, a do deus benévolo e a do deus malévolo, for muito baixa, assinalar que uma hipótese é um pouco mais econômica do que a outra faz pouco para aumentar a probabilidade de uma hipótese em relação a outra. A idéia de que as duas hipóteses são mais ou menos igualmente desarrazoadas permanece incólume.

Conclusão

O foco principal deste artigo foi o desafio do deus malévolo: o desafio de explicar por que a hipótese do deus benévolo deveria ser considerada significativamente mais razoável do que a hipótese do deus malévolo. Examinamos diversos dos mais populares argumentos para a existência de um deus benévolo e descobrimos que eles aparentemente conferem pouca ou nenhuma força probatória adicional à hipótese do deus benévolo do que à hipótese do deus malévolo. Também vimos que várias das teodicéias oferecidas pelos teístas para lidar com o problema do bem são emuladas por teodicéias reversas que podem ser aplicadas ao problema do bem. Prima facie, nossos dois conjuntos de balanças parecem encontrar pontos de equilíbrio bastante similares.

Agora, eu não afirmo que a tese da simetria seja verdadeira, e que o desafio do deus malévolo não possa ser refutado. Mas me parece que é um desafio que merece ser considerado com seriedade. O problema defrontando os defensores do monoteísmo clássico é este: até que eles sejam capazes de dar boas razões para supormos que a tese da simetria seja falsa, eles carecem de boas razões para supor que a hipótese do deus benévolo seja mais razoável do que a hipótese do deus malévolo – sendo a última hipótese algo que mesmo eles certamente admitirão que é de fato bastante desarrazoada.

Embora reconheça a possibilidade de refutação do desafio do deus malévolo, eu próprio não sou capaz de divisar a maneira como isso possa ser feito. Talvez existam razões para imaginar que o universo foi criado por um ser inteligente. Mas, a esta altura, a sugestão de que este ser seja onisciente, onipotente e maximamente bom parece-me pouco mais razoável do que a idéia de que ele seja onipotente, onisciente e maximamente perverso.


quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Emmanuel Levinas sobre: À intolerância ao Talmud e a literatura rabínica


O judaísmo frente à intolerância: reflexões teóricas sobre a resistência na história

Tão antigo quanto a humanidade, o fenômeno da intolerância construiu inúmeras representações. Da literatura às manifestações artísticas, da propaganda política ao controle da memória social, dos mitos à religião, veremos ao longo da História, grupos sociais e minorias étnicas sendo submetidos, manipulados, segregados e exterminados a partir da proposital difusão de discursos de poder.

Podemos ainda considerar que a intolerância ao judaísmo e aos judeus, manifestada na formação de pensamentos depreciativos e atitudes sectárias e destrutivas sobre esse povo, representa um dos processos mais longos e ininterruptos da história da marginalidade social.

Com base em tal premissa, o objetivo deste ensaio é refletir acerca dos aspectos ideacionais e práticos da intolerância aos judeus, construídos com base no pensamento religioso de natureza teológica/eclesiástica. Da Idade Média à Modernidade, a intolerância religiosa será apresentada a partir das dimensões concretas que assumiu na História Mediterrânea, tomada em sua essência e perversidade, articulando processos de exclusão e eliminação do ser judaico.

Essas questões evidenciam que todo discurso intolerante possui um projeto de dominação que não indicaria, necessariamente, um golpe político, ou usurpações de poder. Tal artifício de legitimidade do pensamento intolerante baseia-se numa espécie de raciocínio de projeção. Projetam-se sobre os alvos sociais do discurso e práticas intolerantes os males construídos pela própria sociedade ou grupo dominante. No imaginário da intolerância, o oprimido torna-se sempre um opressor, que deve ser combatido.

Tanto em Estado como em sociedade, atitudes concretas são tomadas para comprovar “a razão” ou o “sentido” das violências instituídas: No mundo antigo, temos os estigmas da rebeldia judaica contra o Império Romano, que redundaram em milhares de crucificações por todo o território.

Na Idade Média, o mito do judeu deicida e errante, através da difusão de uma lógica punitiva eterna ao povo do “Antigo Israel”, acusados de haverem supostamente tramado, renegado e traído o Deus que a eles foi revelado. Segundo o pensamento eclesiástico, a verdade e a salvação universais deixaram de estar ao lado do povo judeu quando estes pecaram contra Deus.

Para Paulo de Tarso (Epístola aos Romanos), um novo Israel (Israel Espiritual) e um Novo Testamento surgiam através do cristianismo, sobrepondo-se e anulando a existência do que chamou de “antigo Israel e seu Antigo Testamento” (Israel Carnal). A expressão paulina Verus Israel – O verdadeiro Israel, em configuração cristã, ilustra a gênese do distanciamento histórico que passou a demarcar as tensas relações entre Cristianismo e Judaísmo, até os dias atuais.

Na realidade, em alguns textos dos Pais da Igreja (Patrística), localizamos a idéia de anterioridade do cristianismo em relação ao judaísmo, e de sobreposição religiosa. Em História Eclesiástica, datada de inícios do século IV d.C, o bispo Eusébio de Cesaréia reportara-se aos "testemunhos do Antigo Testamento" para que, em sua hermenêutica, ficasse comprovada a relação mística e religiosa entre Moisés e Jesus.

No livro I De História Eclesiástica, Eusébio discorre sobre a cristianização de Moisés, definindo o judaísmo como obsoleto já desde tempos bíblicos. Defendia que Abraão, Isaac e Jacob já seriam cristãos em seus atos e identidades, e Moisés, um líder que teria se colocado contra costumes a posteriori praticados pelo Judaísmo, como o descanso aos sábados (Shabat), as regras alimentares judaicas (Kashrut) e a circuncisão (Brit-Milá). Segundo Eusébio:

(...) É agora o momento adequado de mostrar que o próprio nome Jesus, como também o de Cristo, foram honrados pelos profetas consagrados de outrora. Primeiro, o próprio Moisés reconheceu como é supremamente augusto e ilustre o nome de Cristo quando transmitiu a tradição dos tipos e símbolos místicos de acordo com o oráculo (...). Assim, evidentemente, ele compreendeu que Cristo era um ser divino. O mesmo Moisés, sob o Espírito divino, antevendo também o título Jesus, igualmente dignifica com certo privilégio de distinção.(...) Mas eles obviamente conheciam o Cristo de Deus, conforme apareceu a Abraão, comungou com Isaac, falou com Jacó e conversou com Moisés e os profetas após ele, conforme já foi demonstrado. (EUSEBIUS, 1992, I; III e IV)

Além dos patriarcas e profetas bíblicos perderem sua definição hebraica, Jesus é entendido como um não judeu. Seria angustiante aos principais líderes eclesiásticos da Idade Média pensar que um Deus adorado pela cristandade pudesse ter sido guiado por princípios judaicos, em suas ações e pretensões com o próximo. O Deus cristão não poderia ser um judeu. Os Pais da Igreja erigiram uma literatura repleta de alegorias interpretativas não apenas de oposição, mas de anulação da cultura judaica, e das heranças judaicas inerentes à formação do Cristianismo.

Lembremos que o cristianismo surge historicamente como uma seita judaica, propagada no interior de sinagogas da Judéia romana. Entre aqueles que viam Jesus como Messias, não havia qualquer intenção de serem abolidos práticas e costumes judaicos cotidianos. Em sua imensa maioria, os cristãos dos primeiros séculos na Judéia eram, assim como Jesus (Yeshua ben Yossef), judeus praticantes das leis mosaicas e devotos à Tora.

Tertuliano, João Crisóstomo, Jerônimo, Eusébio de Cesaréia, Agostinho de Hipona, Gregório Magno, Ambrósio de Milão, intelectuais e autoridades eclesiásticas dos séculos III, IV e V, aprofundaram a lógica de substituição histórica das alianças divinas. Aos judeus, lhes foi rompida a aliança com Deus, uma vez merecedores de um trágico destino diaspórico, por suas crueldades. Para Agostinho de Hipona, o Israel Carnal, representado pelo povo judeu, seria historicamente substituído por um Israel Espiritual, cristão, sem máculas ou posturas traiçoeiras em relação ao próximo, e a Deus.

É importante ressaltar que as leituras alegóricas sobre a Bíblia Hebraica e os Evangelhos não se restringiram a uma doutrina anti-judaica de caráter discursivo. Constata-se que, no âmago do pensamento intolerante de setores do episcopado mediterrâneo, o discurso anti-judaico amadureceu rumo a uma práxis anti-semita, pontualmente localizada quando, em nome da “salvação das almas”, previu-se a destruição dos judeus, de suas práticas, produções textuais, e instituições.

A literatura episcopal fundamentada na Patrística clássica esteve metodologicamente ancorada em interpretações alegóricas e concepções soteriológicas sobre o homem e sua relação com o trascendental. Representou esta literatura, em nosso entendimento, um rearranjo circunstancial entre as novas significações atribuídas às múltiplas realidades mediterrâneas, e o forte legado agostiniano especialmente referente às ilações sobre os judeus e o Judaísmo.

Lembremos que com Agostinho, os judeus já desempenhavam função quase determinante no jogo mitológico-existencial da cristandade, ao terem suas existências pré-condicionadas por questões como o deicídio, a culpabilidade perene, as inextinguíveis condições carnal, errante e diaspórica, e a aproximação com a identidade herética. Agostinho apresentava ainda a necessidade de opressão, perseguição ou conversão obrigatória dos elementos sociais desviantes, práticas interpretadas como provas de um amor divino incondicional e piedoso às criaturas historicamente condenadas.

Seguindo a lógica de teóricos como Raoul Girardet, Maria Luiza Tucci Carneiro sustenta que o mito encontra-se na base das retóricas intolerantes

como a representação deturpada de fatos ou personagens reais que, repetida constantemente, induz o indivíduo a elaborar uma interpretação falsa de um momento histórico ou de um grupo. O mito induz a acreditar numa realidade que não é verdadeira e, desta situação, se valem os teóricos (...) a que interpretam os fatos reais de forma distorcida de acordo com os interesses do grupo a que servem. Tais idéias, no entanto, para se transformarem em práxis, necessitam de ter a sua disposição meios adequados de circulação: é quando a doutrina se manifesta como discurso.

Afirmamos assim que o discurso episcopal exacerbou tais pragmatismos agostinianos, repensando a questão judaica com base na mescla entre velhas e novas dicotomias, ambivalências e rótulos. Tais concepções sobre o real (Cristo-AntiCristo; bem-mal; céu-inferno; pureza-pecado; mundo sublime -mundo vil, saúde-doença, etc.) tornariam imóveis os papéis sociais então distribuídos, principalmente em relação ao problemas das conversões obrigatórias e suas prováveis resistências.

Nesse sentido, nos deparamos com um conjunto denso e complexo de alegorias, metáforas e falsos conceitos, que reforçam a hipótese do uso da linguagem como duplo instrumento de opressão, atuando em nível real e simbólico. Esse discurso de poder tornava o outro impotente perante as imagens construídas, pérfido em suas “invenções”, perdendo quaisquer possibilidades de aceitação ou de existência social / espiritual.

Sucessivos desterros, conversões forçadas, confisco de bens, punições físicas e assassinatos em massa; Aos cristãos/Cristandade, representados pelas Igrejas e Monarquias Européias, a teologia patrística articulada dos séculos IV ao VII legou a responsabilidade de expandir a verdade universal, salvando a humanidade de um mal supostamente presente e sempre ameaçador.

Nas epístolas de Agostinho redigidas aos heréticos do Norte da África (Donatistas, Pagãos e Judeus), os poderes benignos da Igreja, aliados às forças das leis imperiais, preocupados com o destino da humanidade, poderiam fazer uso da perseguição, textualmente definida como “prova de amor”.

No anseio de concretização do chamado “cristianismo militante”, converter ou exilar os elementos propagadores do mal seriam algumas das soluções vislumbradas. “Os filhos pagando eternamente pelos crimes de seus pais”: com esta expressão de Agostinho, a Igreja medieval encontrava legitimidade suficiente para desestruturar a existência judaica no mundo mediterrâneo.

Jean Delumeau, em seus estudos sobre o fenômeno do medo no Ocidente medieval, analisa também algumas das principais fontes do ódio ou da intolerância ao elemento judaico. Ao enfocarmos especificamente o mundo mediterrâneo da Alta Idade Média, esse ódio, que para o autor, seria um desdobramento do medo perante o desconhecido, manifestou-se, historicamente, em importantes componentes comportamentais.

Percebe-se a hostilidade da coletividade cristã – ou parte dela – frente a uma minoria tida como empreendedora, e considerada, acima de tudo, inassimilável. Conforme já destacara Carlo Ginzburg em alguns de seus trabalhos, o hibridismo e a diferença inerentes ao que denominamos como ethos judaico ultrapassariam, em nosso entendimento, aos limiares toleráveis de convivência cultural em sociedade.

As hostilidades supracitadas poderiam ser expressas, a exemplo, nas atitudes tomadas pelas instâncias formais e doutrinárias de poder. O medo aqui se manifestaria pela projeção da imagem do mal absoluto em sociedade sobre a figura do judeu empreendedor, resistente, e disseminador, via proselitismo, de uma fé já historicamente condenada. Esse mal, como será estudado a seguir, só poderia ser de fato extirpado caso frontalmente combatido.

Na literatura episcopal de origem hispano-visigoda, por exemplo, os recursos da invenção, da projeção e da generalização são amplamente utilizados para definir a marginalidade judaica do converso. Inseridos nas categorias de “povo deicida”, de “perfídia” e “mal absoluto”, os judeus batizados peninsulares – De Discretione Iudaeorum - tornavam-se efetivamente, uma questão a ser resolvida.

Lugares da resistência à intolerância: o Talmud e a literatura rabínica

Segundo Marc-Alain Ouaknin, “la question centrale du judaïsme est celle delínterpretation et le Talmud est le lieu du conflit des interpretation". Para todos os discursos intolerantes, encontramos expressões que se contrapõem aos esquemas de dominação instituídos. Assim, em meio aos aparentes silêncios dos sujeitos alvos da intolerância, é imperativo ao historiador contemporâneo conceder lugar para os chamados “discursos da resistência”.

A intolerância ao elemento judaico pode ser explicada, em muitos casos, como a não compreensão e oposição às visões de mundo produzidas pelo Judaísmo Rabínico (IV ao XVI), em sua expressão literária mais conhecida e difundida pelas comunidades judaicas em todo o mundo: o Talmud.

A historiografia medievalista até hoje permaneceu silenciosa quanto às inflexões da cultura rabínico-talmúdica sobre o universo social do judeus e dos conversos de origem judaica. Chegam sequer a apontar o Talmud como possibilidade para o estudo do anti-semitimo, latente entre os séculos VI e VII, ou antes, como fundamento filosófico e exegético da resistência dos judeus batizados.

Para Jacob Neusner, o Talmud marca a inserção de uma historicidade ocidental ao Judaísmo mishnaico, mais restrito ao mundo oriental da Palestina, sendo peça indispensável na análise da História do próprio Ocidente Medieval.

De difícil tipificação literária, o Talmud reúne 25 mil páginas de pensamento rabínico divididas entre 63 volumes temáticos, produzidos nos séculos IV e V d.C, por academias ao norte da Judéia e Babilônia. O Talmud pode ser compreendido como conjunto hermenêutico (Guemará), dialógico-reflexivo (Haggadah) e normativo (Halachá) de discussões sobre o real, o trascendental e o homem, enquanto código de éticas e lições de condutas judaicas em sociedade.

Sua polêmica heteroglossia, oposta a uma visão estritamente teológica de mundo, abriu espaço para uma subversão de ordens estabelecidas. Com seu teor interpretativo, podemos considerar que o Talmud ordenou e dinamizou simbolicamente as existências judaicas no medievo e na modernidade.

Podemos inclusive associar tais espaços de subversão, abertos pela literatura rabínica, à condição judaica de pária social, conforme propôs Anita Novinsky em ensaio sobre a censura e as minorias:

Durante milênios os judeus foram párias, animados por um sentimento do indeterminado, do heterodoxo. Eles formam um grupo que em potencial tinha todas as condições para se opor a uma ordem preestabelecida. Hannah Arendt reconheceu no judeu pária essa capacidade para recusar o mundo. Privados de seus direitos políticos, muitos judeus conseguiram libertar-se, mas apenas individualmente, como homens. Excluídos de toda participação política imediata, realizam essa integração por meio da arte e de sua própria criatividade, como artistas ou intelectuais rebeldes. O que é fundamental nessa tradição clandestina do judeu, sempre um ‘excluído’, é a força de sua posição crítica.” (NOVINSKY, 2002, p. 32)

A polissemia e a heteroglossia, adjetivações adequadas ao entendimento dos significados culturais do Talmud, também foram discutidas, em profundidade filosófica, por Emmanuel Levinas. O autor, em diversas leituras e interpretações de tratados do Talmud da Babilônia, buscou transmitir aos seus leitores que, longe do consenso esperado de textos ditos “moralizantes” ou “edificantes”, o Talmud constitui-se como conflito de interpretações sobre o real humano e a incomensurabilidade do transcendental, do divino.

O poder simbólico e heterodoxo inscrito nos comentários talmúdicos evidencia um sentido de “contra-revelação” ao propósito da teologia cristã, em textos que apresentavam diversas escolas filosóficas de pensamento, representadas pelos Rabis, dialogando sobre problemas de ordem ontológica, espiritual ou exegética, sem que necessariamente se alcançasse um resultado normativo.

No Talmud, como em toda a literatura rabínica circundante (Midrashim), o ato de discutir, manifestar o intelecto, suplantavam integralmente a tendência ao autoritarismo ideológico ou teológico. Esta dinâmica talmúdica veio então reforçar a autoridade dos Rabinos na diáspora judaica. As discussões enunciavam sempre a manutenção do locus central de irradiação do imaginário rabínico – a sinagoga. Contra essa instituição e suas práticas congregacionais, versaram algumas das principais homilias do bispo de Antioquia João Crisóstomo que, em 387 d.C, relacionou a Sinagoga à condição pecaminosa de promiscuidade sexual, corrupção e lascívia, estigmas sempre recorrentes no imaginário anti-semita europeu:

Muitos, eu sei, respeitam os judeus e pensam que seu atual modo de vida é digno de louvor. É por isso que desejo por ao chão tal opinião mortal. Eu disse que a sinagoga não era melhor do que um teatro (...); Lupanar e teatro, a sinagoga é também antro de salteadores e covil de bestas. (...) Vivendo para o ventre, a boca sempre escancarada, os judeus não se conduzem melhor que os porcos e os bodes, na sua lúbrica grosseria e no excesso de sua glutoneria. Só sabem fazer uma coisa: empanturrar-se e embriagar-se. (...) Porém, sob inúmeras circunstâncias, os judeus dizem que eles, da mesma maneira, respeitam a Deus. Deus proiba-me de dizer isso, nenhum judeu adora a Deus ! Quem o afirmou? O filho de Deus o afirmou! Por ter dito: ‘Se vocês quisessem conhecer meu Pai, deveriam conhecer a mim. Mas vocês não conhecem nem a mim, nem a meu Pai.’ Poderia eu citar um testemunho mais verídico do que o Filho de Deus? (MIGNE,1857, V. 48 E 49)

Emmanuel Levinas encontrou diversas alusões ao ímpeto libertário judaico tão temido por eclesiásticos medievais como João Crisóstomo. O Talmud alerta que o poder rabínico, como quaisquer outras formas de poder (políticos ou não) criadas pelos homens, poderia ser questionado, enfrentado, ou mesmo negado pela própria comunidade.

Importante textos talmúdicos abordam, em parábolas, a questão das relações sociais de produção à luz de princípios éticos que deveriam ordenar uma espécie de “convivência conciliatória” entre trabalhadores e senhores, estando esses últimos obrigados a reconhecer os direitos e a insubmissão do outro à lógica do mesmo. Em audaciosas passagens, Rabinos aconselham suas comunidades a nutrirem ódio e cautela pelo poder em sua natureza, e não se aproximarem jamais das autoridades políticas, consideradas evasivas e indiferentes aos problemas reais da população. Nos tratados Avot, Shabat e Pessachim, encontramos ainda a obrigatoriedade de contestação às ordenações de governos que por ventura, obrigassem seus súditos a cometer atos ilícitos, criminosos.

Nesse sentido, o Talmud referenda simbolicamente a possibilidade de um descontentamento social sobre uma ordem política considerada maléfica. Abre-se a possibilidade, no judaísmo rabínico, da recusa dessa ordem, ou antes, a recusa do poder do homem sobre o homem. Para o Talmud, aí residiria a raiz de todo o mal. Caso caracterizadas como opressoras ou corruptas, as autoridades poderiam ser renegadas, contestadas, ou mesmo substituídas por outras mais benéficas para a comunidade. Para a lógica talmúdica, se um líder fosse autoritariamente imposto, sem considerar o consenso da coletividade, estaria fadado ao fracasso.

O historiador Yehuda Bauer, em artigo intitulado “Anti-Semitism as an European and World Problem” entende que a consciência crítica de liberdade religiosa e política defendida pelos judeus da diáspora com base na literatura rabínica foi alvo, por séculos, de reações de incompreensão e rechaço. Para Bauer, a cultura judaica medieval erigiu três pilares éticos de base democrática, incompatíveis com as lógicas de poderes teocráticos, fundamentalistas, ou totalitários. Seriam eles:1) todos os homens são livres; 2) todos os homens são iguais, e as mesmas leis devem servir a todos; 3) todos os homens têm direito de reivindicar poder e criticar o soberano.

Para a relação entre Talmud, revolução e liberdade, Levinas, na mesma ótica de Bauer, afirma que a literatura rabínica, entre parábolas e alegorias, mostra-se intransigente em relação ao ócio e à paralisia social, tanto para aqueles que não saberiam recusar uma ordem política, ou mesmo sequer “questionar o ordem do Rei”.

Nesse sentido, por diversas vezes na História, o Talmud, foi considerado como literatura anti-cristã e diabólica. Sua leitura foi proibida, seus leitores banidos, e suas edições queimadas em praça pública, por imperadores, papas, monarcas europeus (medievais e modernos) e governos totalitários contemporâneos.

Sobre os judeus e o Talmud afirma Napoleão Bonaparte:

Os judeus são um povo vilão, poltrão e cruel. São lagartas, gafanhotos que devastam os campos. (...) O mal provém principalmente dessa compilação indigesta chamada Talmud, onde se encontra, ao lado de suas verdadeiras tradições bíblicas, a moral mais corrompida, a partir do momento em que se trata de suas relações com os cristãos. (...) Não pretendo subtrair à maldição com que foi fulminada essa raça que parece ter sido a única a ser excetuada da redenção, mas gostaria de deixá-la sem condições para propagar o mal (...). o bem é feito lentamente, e uma massa de sangue viciado só melhora com o tempo. (...) Quando entre cada três casamentos, houver um entre judeu e francês, o sangue dos judeus deixará de ter um caráter particular (...). (POLIAKOV, 1974, p. 196)

Sobre a censura à produção intelectual judaica, mesmo que religiosa, a reflexão da historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro fornece alguns esclarecimentos:

a repressão às idéias e aos intelectuais integrou projetos políticos articulados em diferentes momentos da nossa história. (...) o intelectual ativo - aquele que escrevia e divulgava suas idéias ‘revolucionárias’ – sempre foi tratado pelas instituições vigilantes como um ‘herege’, um ‘homem maldito’, um ‘bandido’. Por ultrapassar os limites do permitido, foi repreendido, julgado e punido. Os livros apreendidos como ‘armas do crime’, transformaram-se em prova material da trama articulada contra o regime e que, segundo os homens do poder, poderiam desequilibrar a ordem imposta. (CARNEIRO, 2002, p. 20-21)

A título de conclusão parcial ao tema, entendemos que a violência, originária de sectarismos religiosos, seria o similar a um estado de ódio socialmente instituído e quase incontrolável. Para pensadores como o escritor e acadêmico argelino Mohammed Arkoun, quando a intolerância é substituída pelo ódio não haveria mais volta, exatamente porque os discursos passariam a adotar três critérios que, somados, seriam fatais para o diálogo entre os homens: violência, sagrado e verdade.

Esse tripé elaborado pelo sectarismo religioso, faz a intolerância assumir o poder de um mito, e como todo mito, adquire feições perenes e deixa as sociedades que a construíram marcadas para sempre. É um quadro desalentador para todos nós, porque corrobora a hipótese de ser o anti-semitismo, um fenômeno historicamente renitente. Fenômeno que parece adquirir sempre novas roupagens, parece supostamente justificar-se com “novas causas”, mas na realidade, reacende velhos estigmas profundamente arraigados ao imaginário social, sem perspectivas de extinção.


quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Morton Smith e os Carpocracianos...Mc. 14:51.52 " Certo jovem o seguia...mas ele largando o lençol fugiu nu.


EVANGELHO SECRETO DE MARCOS

O secretismo de Marcos foi sempre considerado uma das características marcantes do estilo do seu evangelho. As razões deste secretismo tiveram tanto a ver com a estratégia messiânica de Jesus, por razões que outros evangelhos sugerem, como também por características pessoais de João Marcos que só uma abordagem psicanalítica poderia entender inteiramente. O fato e que a sua qualidade de jovem rico e sempre virgem, levita, presumível sumo-sacerdote destituído por falta de idade, e discípulo amado de Jesus o terão obrigado a ser assim, tímido, reservado e adepto do secretismo iniciático.

A carta de Clemente de Alexandria a Teodora. Tradução a partir da de Morton Smith:

Das cartas do mais santo Clemente, o autor do Stromateis, para Teodoro. Fizeste bem em silenciar os ensinos inqualificáveis dos Carpocracianos, pois estes são as "estrelas cadentes" referidas na profecia, que vagueiam da estrada estreita dos mandamentos para um abismo ilimitado de pecados completamente carnais. Pois, orgulhando-se eles de conhecimento, como eles dizem, "das coisas profundas de Satanás" não sabem que eles estão a lançar-se em "um mundo inferior da escuridão" de falsidade, e, ostentando que eles são livres, eles se tornaram os escravos de desejos servis. Tais homens devem ser postos completamente de parte e de todos os modos. Pois, até mesmo se eles disserem algo verdadeiro, quem ama a verdade não deve, mesmo assim, concordar com eles. Pois nem todas as coisas verdadeiras são a Verdade, nem a verdade que somente parece verdadeira, de acordo com opiniões humanas, deve ser preferida à verdadeira Verdade, de acordo com a fé.

Agora das coisas que eles têm dito acerca do divinamente inspirado Evangelho de acordo com Marcos, algumas são completas falsificações, e outras, mesmo se contiverem alguns elementos verdadeiros, ainda assim não devem ser verdadeiramente consideradas. Porque as verdadeiras coisas que estão misturadas com invenções estão falsificadas, de forma que, enquanto vão sendo ditas, até mesmo o sal perde o seu sabor.

Marcos, então, durante a estadia de Pedro em Roma escreveu um relato das ações do Senhor, porém, não as declarando todas, nem tão pouco indicando as secretas, mas seleccionando o que ele pensou mais útil para aumentar a fé dos que estavam para ser instruídos. Porém, quando Pedro morreu mártir, Marcos veio para Alexandria, trazendo tanto as próprias notas quanto as de Pedro, das quais ele transferiu para o seu primeiro livro as coisas mais satisfatórias para tudo o que pudesse trazer progresso ao conhecimento. Assim ele compôs um Evangelho mais espiritual para o uso desses que estavam sendo instruídos. Não obstante, ele não divulgou ainda as coisas que não eram para ser proferidas, nem subscreveu os ensinamentos hierofânticos do Senhor, mas, às histórias já escritas ele somou ainda outras e, além disso, trouxe certas declarações das quais conheceria a interpretação que, como um mestre de mistérios, conduzia os ouvintes até ao santuário mais íntimo da verdade escondida por detrás de sete véus.

Assim, em suma, ele preparou estes assuntos, não de forma presunçosa nem descuidada, em minha opinião, e, depois de morto, ele deixou a sua composição à igreja de Alexandria onde é ainda mais cuidadosamente guardada, sendo lida apenas pelos que estão a ser iniciados nos grandes mistérios.

Mas como os demônios sujos estão sempre a inventar a destruição da raça humana, os Carpocratas, instruídos por eles e usando artes enganosas, seduziram um certo presbítero da igreja de Alexandria para que ele obtivesse uma cópia do Evangelho secreto que eles interpretaram de acordo com a sua doutrina blasfema e carnal, e, além disso, o poluíram, misturando com as palavras imaculadas e santas mentiras completamente vergonhosas. Desta mistura foi despejado o ensino dos Carpocracianos.

Então, como eu disse acima, uma pessoa nunca lhes deve dar crédito; nem, quando eles avançaram com as suas falsificações, nem se deverá conceder que o Evangelho secreto é de Marcos, mas antes se deverá negar isto até mesmo em juramento. Pois, "Nem todas as verdadeiras coisas serão ditas a todos os homens". Por isto a Sabedoria de Deus, desde Salomão, aconselha, "Responde ao louco com a linguagem da sua loucura", ensinando que a luz da verdade deverá ser escondida dos que são mentalmente cegos. Novamente está dito, "Dele que não terá que ser deitado fora" e, "Deixemos o tolo andar na escuridão". Mas nós somos "as crianças de luz", tendo sido iluminados pela "fonte dos dias" do espírito do Senhor "do alto" e "Onde o Espírito do Deus está", se diz, "há ali liberdade", porque "Todas as coisas são puras para o puro".

A ti, então, eu não hesitarei em responder às perguntas que tu formulaste, enquanto refutando as falsificações pelas mesmas palavras do Evangelho. Por exemplo, depois de, "Eles estavam na estrada que sobe para Jerusalém," e o que se segue, até " Ele ressuscitará depois que três dias," o Evangelho secreto traz o seguinte material, palavra por palavra:

(Marcos 10: 32 Eles estavam a caminho de Jerusalém, e Jesus ia adiante deles, e os discípulos estavam surpresos enquanto os que o seguiam estavam atemorizados. Novamente ele levou os Doze aparte e lhes contou o que lhe ia acontecer. 33 "Nós estamos subindo para Jerusalém," disse ele "e o Filho de Homem será entregue aos sumo-sacerdotes e professores da lei. Eles o condenarão à morte e o entregarão aos Gentios 34 que o escarnecerão e cuspirão nele, o açoitarão e o hão-de matar. Três dias depois ele ressuscitará".)

E eles foram para Betânia onde estava uma mulher cujo irmão tinha morrido. E, aproximando-se, ela se prostrou diante de Jesus e lhe disse: "Filho de David, tem clemência de mim". Mas os discípulos afastaram-na.

Irritando-se, Jesus foi com ela para o jardim onde estava o túmulo. E imediatamente um grande som saiu do túmulo, e Jesus, enquanto ia ao seu encontro, rodou a pedra de fora da entrada do túmulo. E entrando imediatamente onde o jovem estava, ele esticou uma mão e o levantou, enquanto lhe segurava a mão. Então, o homem olhou para ele e o amou e ele começou a chama-lo para junto de si, porque ele queria estar com ele. E saindo do túmulo, eles foram para a casa do jovem, porque ele era rico. E depois de seis dias, Jesus o instruiu. E pela tarde, o jovem foi ter com Ele. Ele tinha posto uma faixa de linho fino em volta do seu corpo nu, (que retirou?) e, por aquela noite, ele permaneceu com ele (de homem nu para homem nu). Pois Jesus lhe ensinou o mistério do reino de Deus. Depois que ele saiu de lá, ele voltou à região do Jordão.

Depois destas palavras vem o texto seguinte: "E, aproximaram-se dele Tiago e João” e toda esta secção. Mas "homem nu para homem nu," e outras coisas sobre que escreveste não se encontraram ali. 35 E aproximaram-se dele Tiago e João, filhos de Zebedeu, dizendo: Mestre, queremos que nos faças o que pedirmos. 36 E ele lhes disse: Que quereis que vos faça? 37 E eles lhe disseram: Concede-nos que, na tua glória, nos assentemos, um à tua direita, e outro à tua esquerda. 38 Mas Jesus lhes disse: Não sabeis o que pedis; podeis vós beber o cálice que eu bebo e ser baptizados com o baptismo com que eu sou baptizado? 39 E eles lhe disseram: Podemos. Jesus, porém, disse-lhes: Em verdade vós bebereis o cálice que eu beber e sereis baptizados com o baptismo com que eu sou baptizado, 40 mas o assentar-se à minha direita ou à minha esquerda não me pertence a mim concedê-lo, mas isso é para aqueles a quem está reservado. 41 E os dez, tendo ouvido isso, começaram a indignar-se contra Tiago e João. 42 Mas Jesus, chamando-os a si, disse-lhes: Sabeis que os que julgam ser príncipes das gentes delas se assenhoreiam, e os seus grandes usam de autoridade sobre elas; 43 mas entre vós não será assim; antes, qualquer que, entre vós, quiser ser grande será vosso serviçal. {ou criado} 44 E qualquer que, dentre vós, quiser ser o primeiro será servo {ou escravo} de todos. 45 Porque o Filho do Homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos. 46 Depois foram para Jericó.

E depois das palavras "De seguida, foram para Jericó" o evangelho secreto adianta apenas: E a irmã do jovem a quem Jesus amou estava lá, como também a mãe dele e Salomé. Mas Jesus não lhes deu as boas-vindas.

Mas, as muitas outras coisas sobre as quais escreveste ambos parecem ser e são falsificações. Assim, é esta a verdadeira explicação e a que mais concorda com a verdadeira filosofia...

[Aqui o texto para abruptamente a meio da página]

Claro que, nos tempos permissivos e libertários em que vivemos, não são as fantasia eróticas que podem exalar desta passagem o que mais pode por em causa as hierarquias das igrejas. A pedofilia persegue as Igrejas desde a sua fundação apenas na medida em que esta é apenas mais uma das heranças tão indesejadas quanto irrecusáveis da antiga tradição clássica senão mesmo um passo incontornável do amadurecimento da humanidade. Dito de outro modo teria sido impossível acender ao amor platônico do professor pelo discípulo, por projeção de transferência do amor familiar, sem ter incorrido na tentação dum amor físico entre idades diferentes construído à sombra paternalista da ausência da mulher, num contexto de paralelismo entre a fragilidade da idade e, a do eterno feminino, instituída como essencial!

A referida carta de Clemente de Alexandria poderá ser uma falsificação ainda mais fascinantes do que o "testamento de Constantino", mas a verdade é que, por se tratar do "Evangelho secreto de Marcos", a plausibilidade deste episódio torna-se de tal modo patente que só um falsário que estivesse, de forma explícita, a par da tese da identificação de Marcos com Lázaro poderia ter tido a ousadia de ter inventado todo este episódio tão estranho quanto misterioso.

Porém, uma mentira piedosa indemonstrável é tão fidedigna como qualquer um dos livros canônicos autenticados pela inspiração divina depois de sujeitos à censura prévia do martelo revisionista da comissão corretora de padres conciliares encarregados pelo imperador Constantino o Grande de apresentarem em Nicéia uma versão ortodoxa das escrituras cristãs retificada de toda a heterodoxia e sem mancha de gnosticismo herético.

De fato, Constantino que esperava utilizar o cristianismo para unir um império em decadência começava a ficar desanimado com o espetáculo de fragilidade doutrinária do cristianismo, à época dividida pela heresia ariana. A decadência política sustentada por uma vasta burocracia de rapina e defendida por um exército dividido por insucessos militares repetidos contra os godos e os partos, expressos na "tetrarquia” que retalhava o império em vários centros de poder, derivava duma longa recessão econômica larvar que decorria da profunda crise econômica dos latifúndios. Estes, até então sustentados por um regime de escravatura impiedoso, alimentados pela expansão inicial do império, começavam a dar sinais de improdutividade.

Precisamente à medida que abrandavam os sucessos militares nas fronteiras diminuía a fonte fresca de escravatura enérgica que até então tinha sido fundamentalmente a que resultava de prisioneiros de guerra. Entretanto generalizava-se a pax romana e melhoravam as condições de trabalho dos antigos escravos e se alterava, por natural humanização dos costumes, o estatuto dos escravos nascidos nos latifúndios.

A escravatura resultante do próprio crescimento reprodutivo da classe de escravos tendia a tornar-se envelhecida enquanto os filhos dos escravos aprendiam depressa as manhas da vida que lhe permitiam amaciar o jugo, alcançar a alforria migrando para as cidades e a corromperem os capatazes conseguindo trabalhar com menos afinco e com muito menos produtividade. No oriente a crise dos latifúndios daria origem ao inicio duma espécie de reforma agrária natural que começava pelo arrendamento de terras a servos livres dedicando-se o excedente de mão-de-obra ao artesanato e o comércio num sistema econômico relativamente equilibrado que iria fazer a fortuna, primeiro do império bizantino e depois do império árabe, onde a estes fatores se iria juntar uma certa estabilização da natalidade resultante do regime de poligamia por compra de esposa que, longe de aumentar a natalidade por família tendia a diminuir o número de filhos por mulher deixando muitos homens solteiros por falta de capacidade econômica.

No ocidente, a crise do latifúndio viria também a ser superada pelo recurso aos servos da gleba, mas sem o sucesso que este obteve a oriente na medida em que não foi complementado pelo crescimento das classes urbanas sendo uma das razões do feudalismo que se prolongou a acidente até ao surgimento das repúblicas italianas, verdadeiras cidades estados do começo do renascimento.

Em conclusão, a aparente unicidade canónica do cristianismo moderno é artificialidade pura resultante de Eusébio de Cesareia, o autor da história eclesiástica a quem Jacob Burckhardt chama "o primeiro historiador dos tempos antigos totalmente desonesto e injusto". Porém, esta imagem de marca da intolerância censória da ortodoxia e do catolicismo, servida mais tarde pelo tribunal do santo ofício e pela execrável inquisição, será por todo o sempre até aos tempos atuais o paradigma das polícias secretas de todos os totalitarismos e hegemonias políticas e ideológicas a que apenas o liberalismo, iniciado com a independência americana, iria por fim. No oriente islâmico o fanatismo e o fundamentalismo religioso surgirão também no rescaldo da crise econômica dos impérios islâmicos posteriores às descobertas marítimas dos povos ibéricos nos sec. XV e XVI.

A verdade é que o episódio da iniciação secreta de Lazaro / João Marcos (que deveria fazer parte do Evangelho original de Marcos porque dum mistério iniciático se tratava e, como tal só poderia fazer parte dum Evangelho secreto como parece ter sido o caso!) é menos explícito do que outras fontes gnósticas já conhecidas como é ocaso do Apocalipse de Jaime.

Porque como tu foste o primeiro a vestir-te também será o primeiro a despir-te e voltarás a ser como eras antes de te despires!

E ele me beijou na boca e me abraçou dizendo: -- Meu querido! Aqui te vou a revelar o que nem os céus sabiam nem os arcontes.

Aqui te vou revelar quilo que não conheceste, ou seja, aquele que se (projetou) noutro fora de mim. Não estou vivo? Visto ser um pai (não tenho) poder sobre todas as coisas? É aqui que te vou a revelar todas as coisas, meu querido! Conhece e compreende tudo para que saias tal como eu! É aqui que eu te revelarei o que está oculto. Pois, agora estende a mão e agora abraça-me! Imediatamente estendi as mãos e não o encontrei como eu o havia imaginado! Então eu o conheci e senti medo! E (logo) me alegrei com um enorme prazer! -- SEGUNDO APOCALIPSIS DE TIAGO, tradução do original de Jürgen Denker.

Assim, não é de estranhar a forma desastrada e inquisitória como as autoridades oficiais reagiram à descoberta deste manuscrito, mesmo depois de dois séculos de reincidência contumazes no fanatismo dogmático, na arrogância da infalibilidade papal, e na prepotência doutrinaria dum conservadorismo religioso contrário à própria mensagem essencial do cristianismo de amor à verdade, humildade espiritual, caridade e perdão. Tais atitudes intelectuais só reforçam as probabilidades de estarmos perante uma de entre outras provas de que os textos fundadores do cristianismo foram, enquanto isso foi técnica e epistemologicamente possível, sendo reformulados de modo a consegui manipular a história do cristianismo de acordo com os dogmas fundamentais das Igrejas. Para alguns pensadores de sublime ironia tais espetáculos retóricos degradantes só reforçam a beleza e magnitude da força da mensagem cristã essencial que, apesar de ter andado a ser desacreditada pelas hierarquias do poder clerical, tem conseguido resistir mantendo-se ainda hoje como um exemplo de radicalidade ética difícil de contornar, porque o que é nela perene não é letra, mas o espírito da "lei da procura da verdade da vida"!

Verdadeiramente, os inquisidores modernos mais não fazem do que manterem-se autênticos na sua fé cega no valor material dos mesmos princípios denegatórios das verdades incômodas, por sinal os mesmos referidos no texto do bispo Clemente de Alexandria.

Seguramente que esta filosofia de prudência institucional já existia antes dos cristãos justificar o secretismo dos mistérios gregos de que pouco ou nada sabemos, a não ser precisamente pelo que resultou das indiscrições dos primeiros apologetas cristãos.

O que verdadeiramente deixou estes saudosistas dos tempos da inquisição furiosos foi o serem confrontados com a exumação de cadáveres, que se supunham enterrados na cave das velharias medievais, da política da hierarquia religiosa que foi, pelo menos desde as primeiras cismas gnósticas, quase sempre maquiavélica e intelectualmente hipócrita em nome duma interpretação excessivamente liberal do princípio sensato de que nem toda a verdade seria para revelar a todos; para evitar o pecado de escandalizar as criancinhas, segundo o próprio Cristo (Mat 18, 6-12; Mar 10, 14-16); e os cristão mais fracos de espíritos, segundo S. Paulo, a propósito do consumo por cristãos de carnes imoladas aos ídolos (1 Cor, 8, 13). Enfim, a sensatez como pretexto para a insanidade mental das atitudes fanáticas sensoriais que revelam a intemperança cultural dos que usam o poder da razão apenas para aceder às mordomias decorrentes do exercício da autoridade doutrinária.

Por outro lado, os paradoxos da ressurreição iniciática teriam que acarretar algumas conseqüências quanto mais não fosse provocando equívocos semânticos e confusões a nível das crenças do senso-comum. Segundo o evangelho de Filipe, quem for ressuscitado pode alcançar morrer em paz e, libertar-se finalmente do Limbo onde pairam as "almas penadas", ou, segundo a mitologia oriental, do ciclo eterno e infernal das reencarnações.

Os que dizem que o Senhor morreu primeiro e (então) se levantou estão enganados, pois ele primeiro se levantou e (depois) morreu. Se alguém não alcança primeiro a ressurreição ele não morrerá. Assim como Deus vive, ele iria (..) - Evangelho de Filipe.

No entanto, a metafísica da ideologia gnóstica de Filipe deveria ser minoritária e contrária ao senso-comum, razão pela qual ela fazia parte de ritos secretos de iniciação. Dito de outro modo, a estranha metafísica de Filipe indicia que as crenças do senso-comum seriam precisamente aquelas que levariam a pensar que, como só se pode morrer uma vez, alguém que já foi ressuscitado não pode voltar a morrer tornando-se então num semideus ou num fantasmagórico morto vivo! Como Lázaro tinha sido ressuscitado há bem pouco tempo então os discípulos inferiam, pelo bom-senso das palavras de Jesus, habitualmente sibilinas, que este não morreria.

“Por isso vos disse noutro tempo: "Onde eu estiver, lá estarão também os meus dose discípulos", mas Maria Madalena e João o Virgem sobressairão sobre todos os meus discípulos e sobre todos os homens que receberem os mistérios do Inefável. E eles estarão a minha direita e à minha esquerda. E eu sou eles e eles serão eu! E eles serão como vós em todas as coisas excepto que vossos tronos sobressairão sobre os deles e o meu trono sobressairá sobre os vossos." Pistis Sophia, p193, cap. 96.

Evangelho De Bartolomeu: Terminada a oração, disse: - Sentemo-nos no chão e vem tu, Pedro, que és o chefe. Senta-te à minha direita e apoia com tua esquerda meu braço. Tu, André faz o mesmo do lado esquerdo. Tu, João, que és virgem, segura o meu peito. E tu, Bartolomeu, põe-te de joelhos atrás de mim e apoia as minhas costas para que, ao começar a falar, meus ossos não se desarticulem.

Notar que o Livro copta de Pitis Sofia, não tem nada do estilo helenista, metafísico e filosófico de Valentino (G.R.S. Mead) e tem todo o estilo dum texto tipicamente copta e alexandrino, uma mistura de cabala judia e hermetismo egípcio com todas as típicas especulações teológicas essênias. Por outro lado, para quem costuma encontrar nos textos coptas uma sistemática confusão dos nomes bíblicos encontra-se neste texto um tal clareza na identificação dos nomes dos discípulos regulares de Jesus que podemos inferir claramente neste texto que João, o Virgem, sempre colocado perto de Maria Madalena é perfeitamente distinto do outro João, tratado ao mesmo nível dos restantes dose apóstolos. Quer dizer que, se o Gnosticismo não tivesse sido eliminado pela "caça às bruxas" de Ireneu e seguintes, nunca se teria dado a confusão de identidade entre João o virgem, e João Boanerges.

O texto copta do Evangelho de Bartolomeu está cheio de anacronismos mas neles trespassa uma ingenuidade bastante para que seja impossível não aceitar neles um o fundo de verdade conservada por uma tênue ligação a uma tradição original e genuína. O seu estranho conteúdo reporta-nos para um evangelho de mistérios iniciáticos recomposto ao gosto iconográfico bizantino a que foram adicionados pastiches anacrônicos como o da referência à chefia de Pedro que há época não existia ainda.

No entanto o fundo verídico da cena reporta-nos para um realismo trágico dum Jesus ressurreto ainda combalido pelos rigores da paixão e da cruz. Por outro lado, o contraponto com a Pistis Sofia e o Evangelho de Evangelho de Bartolomeu permite-nos confirmar que este João Virgem era o "discípulo amado" que a tradição errônea e precipitadamente confundiu com João Zebedeu por não ter conseguido entender a verdade estranha de João Marcos poder ter a autoria de dois evangelhos canônicos tendo sido também co-autor do 4º evangelho.

A verdade é que o texto do "Evangelho secreto de Marcos" vem na continuação de outros indícios que apontavam já no mesmo sentido dum fenômeno da pederastia iniciática que segundo Bernad Sergent no seu livro "Homossexualité e iniciation chez lés peuples indo-européens" foi comum a todas as sociedades iniciáticas antigas e arcaicas.

Os ritos iniciáticos para os neófitos que queriam entrar no Reino de Deus correspondiam a uma forma de castração mística menos cruenta do que nos ritos de Cibel mas possivelmente mais eficaz por via da transferência psicanalítica e duma forma de homossexualidade platônica que fazia dos essênios seres angelicais vestidos de linho branco condenados a ter que adotar órfãos ou crianças abandonadas por terem renunciado ao casamento! E é então que a homossexualidade atravessa os bastidores da cena da última ceia travestida de crime nefando suficientemente assustador para os cristãos ao ponto de nem verem o óbvio: que o celibato católico deve ser encarado como uma forma de homossexualidade platônica herdada dos cultos de Cibel e do xamanismo arcaico! Mas a verdade é que o voto de castidade católico previsto nos evangelhos é uma manifestação explícita da sua relação com os sacerdotes eunucos dos cultos iniciáticos de Cibel.

Marcos 10: 10 E em casa tornaram os discípulos a interrogá-lo acerca disso mesmo. 11 E ele lhes disse: Qualquer que deixar a sua mulher e casar com outra adultera contra ela. 12 E, se a mulher deixar a seu marido e casar com outro, adultera. (Obviamente que, como nem todos podem receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido, Marcos foi um dos não pode receber o mistério dos eunucos que se castram a si mesmos" porque ainda não tinha sido iniciado e por isso Jesus terá evitado dizer isto de forma que Marcos ouvisse! Pelo contrário, Marcos ficou encantado por o reino de Deus ser recebido como uma criança que se toma nos braços porque ele era ainda uma criança, ou quase porque era um adolescente ainda não iniciado! 13 E traziam-lhe crianças para que lhes tocasse, mas os discípulos repreendiam aos que lhas traziam. 14 Jesus, porém, vendo isso, indignou-se e disse-lhes: Deixai vir a mim os pequeninos e não os impeçais, porque dos tais é o Reino de Deus. 15 Em verdade vos digo que qualquer que não receber o Reino de Deus como uma criança de maneira nenhuma entrará nele. 16 E, tomando-as nos seus braços e impondo-lhes as mãos, as abençoou. 17 E, pondo-se a caminho, correu para ele um homem, o qual se ajoelhou diante dele e lhe perguntou: Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna? Mateus, 19: 9 Eu vos digo, porém, que qualquer que repudiar sua mulher, não sendo por causa de prostituição, e casar com outra, comete adultério; e o que casar com a repudiada também comete adultério. 10 Disseram-lhe seus discípulos: Se assim é a condição do homem relativamente à mulher, não convém casar. 11 Ele, porém, lhes disse: Nem todos podem receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido. 12 Porque há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe; e há eunucos que foram castrados pelos homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos por causa do Reino dos céus. Quem pode receber isso, que o receba. 13 Trouxeram-lhe, então, algumas crianças, para que lhes impusesse as mãos e orasse; mas os discípulos os repreendiam. 14 Jesus, porém, disse: Deixai vir a mim os pequeninos e não os estorveis de, porque deles é o Reino dos céus. 15 E, tendo-lhes imposto as mãos, partiu dali. 16 E eis que, aproximando-se dele um jovem, disse-lhe: Bom Mestre, que bem farei, para conseguir a vida eterna?

Esta opinião de Jesus a respeito das causas para a existência de homens solteiros é apenas referido por Mateus. É referida dum modo tal que se suspeita que Cristo não faça parte dos eunucos sagrados por ser já casado com Maria Madalena.

A piedade cristã, posterior ao puritanismo estóico do baixo-império, pretende ver neta passagem uma fundamentação canônica para a consagração da virgindade e da castidade como virtude moral de referência e para a instituição do celibato católico como caso um particular desta. Em rigor, porém, Jesus apenas tentava explicar aos seus discípulos a razão de ser da tradição arcaica xamânica pela qual existiam homens santos, como os essênios, que não só se abstinham de relações com mulheres como chegavam mesmo a agir literalmente como eunucos ou quase mulheres, vestindo de branco e carregando das fontes bilhas de água à cabeças (Mar 14, 13).

Não terá sido por mero acaso que toda esta secreta revelação a respeito dos castrados sagrados, carregada de homossexualidade platônica, antecede a sagrada paixão à primeira vista entre Jesus e o "jovem rico" João Marcos que viria a ser, depois de rebaixado num rito de passagem iniciático individual ao papel dum Lázaro despojado da vida e de todos os bens terrenos antes de ser misticamente ressuscitado como "discípulo amado"!