terça-feira, 30 de novembro de 2010

Josh McDowell e "suas" “Evidências que Exigem um Veredito".

A apologética cristã se caracteriza pela posição ultra-fundamentalista na qual tenta defender e fundamentar suas idéias, interpretações e postulados religiosos. Orientadas pelo viés do atavismo patriarcalista do etnocentrismo hebreu e do exclusivismo religioso vem, desde a Antiguidade Tardia, tentando demonstrar, a todo o custo, a confiabilidade e superioridade de sua fé em relação às demais fés e de sua história em relação às demais histórias. Como qualquer grupo social, ao fazer proselitismo de sua crença tenta sabotar seus rivais.

Uma das formas que o cristianismo apologético inventou para mostrar sua superioridade é o uso do argumento de que a providência divina tem estado do lado dos cristãos – por causa dos diversos fatos que (supostamente) demonstram isso. A preservação de seus “documentos sagrados” e sua variedade em relação aos demais textos de todas as épocas constitui o principal argumento para provar que Deus está do lado dos cristãos (e de mais nenhuma outra religião) e que sua religião é “superior” (e que nenhuma outra religião é).

Tal prática de imposição ideológica foi sendo desenvolvida até que surgiu a necessidade de se persuadir às classes eruditas e embasadas na Ilustração e no pensamento racional douto. Nessa fase da apologia cristã, com o fim de contrapor o Iluminismo grego que renascia a partir do Renascimento europeu, a política de rechaçamento e perseguição foi substituída pela tentativa de provar a fé por meio da razão, como artifício retórico capaz de demonstrar e convencer as mentes intelectuais da credibilidade e ascendência da fé cristã. Para isso, porém, muitas vezes recorreram à apresentação argumentos falsos, falaciosos ou no mínimo errôneos, contribuindo assim para a disseminação da ignorância e de informações equivocadas para o público alvo.

O público alvo, por sua vez, mesmo depois de décadas, dificilmente são capazes de se desvencilharem e de tomarem conhecimento desses erros e, ao se converterem por causa dessas informações equivocadas, contribuem para a manutenção e continuidade da tradição do equivoco que chegou a se infiltrar, inclusive, no mundo acadêmico.

Chegando ao século XX, um exemplo do poder disseminador desse tipo de equivoco se encontra nas obras de Josh McDowell, um pregador cristão fundamentalista dos Estados Unidos, que nos anos 70 escreveu uma obra ultra-apologética chamada “Evidências que Exigem um Veredito” (1972, 1993). Nessa obra apresenta uma grande seleção de frases e informações, oriundas da pena de diversos estudiosos – especialmente arqueólogos e historiadores – que (supostamente) endossam a idéia de que as histórias transmitidas pelas narrativas neotestamentárias são incontestavelmente verdadeiras.

Diversas informações apresentadas nesse livro, entretanto, foram demonstradas serem falsas e errôneas, sendo que muitos dos autores utilizados foram simplesmente retirados de seu contexto e/ou distorcidos. Se ao autor apologista Josh McDowell não falta disposição e determinação ao selecionar materiais corroborativos à sua fé, por outro lado, carece dos atributos básicos inerentes a qualquer estudioso sério, como, por exemplo, o senso crítico.

Grande parte das vezes McDowell simplesmente arrola uma série de citações de estudiosos, sem parar para analisar nem a defasagem das informações apresentadas nem a veracidade de tais afirmações.

Um caso típico em que McDowell tenta demonstrar a veracidade de seu exclusivismo religioso é quando tenta provar a credibilidade da Bíblia ao colocar em colunas paralelas o número de manuscritos remanescentes dos livros do Novo Testamento e os manuscritos restantes dos escritos do período clássico e greco-romano. Enquanto existem quase 25 mil manuscritos do Novo Testamento, diversos escritos da Antiguidade nem chegam a ter mais que um punhado de manuscritos remanescentes – o que demonstra, de forma pedante, a dos manuscritos bíblicos (o que pressupõe – o que para os cristãos apologistas já é o bastante – uma ilusória superioridade qualitativa).

As obras de Tácito, um antigo historiador romano, foram vítimas desse “argumento”. A obra Anais, que descreve a decadência, na visão do autor, e as perversidades da tiraria romana na época da Pax Romana, é utilizada pelos cristãos apologistas para demonstrar que existe um número significativamente bastante baixo de testemunho textual que a evidencie.

Esse argumento de caráter predominantemente etnocentrista e pedante, parte do livro “O Novo Testamento merece confiança”, F. F. Bruce (1990, p. 23-24), citado por McDowell (1993, p. 52-53) sem qualquer análise aprofundada, em que se realiza diversas comparações entre o numero de manuscritos sobreviventes do Novo Testamento e o numero de antigos textos de história clássica e romana, querendo com isso jactar-se da superioridade de manuscritos da Bíblia cristã. Para isso, compara o Novo Testamento com a obra antiga Anais de Tácito – da qual nos restam apenas 2 manuscritos não-completos. Bruce faz a seguinte declaração:
“Talvez nos possamos avaliar melhor quão rico é o Novo Testamento em matéria de evidência manuscrita se compararmos o material textual subsistente com outras obras históricas da antiguidade. [...] dos dezesseis livros de seus “Anais” [de Tácito), restam 10 completo e 2 incompletos. O texto das porções existentes das duas grandes obras históricas de Tácito depende totalmente de dois manuscritos, um do século nono e outro do século onze”.

Para Mcdowell, essa é “uma evidência que exige um veredito” (um veredito, é claro, a favor da fé cristã e contra Tácito), pois “nenhum outro documento da história antiga chega perto dos números e da confirmação dos manuscritos do Novo Testamento” (p. 50). Ao ir folheando sua obra, fica clara o motivo de Mcdowell se apropriar dessa comparação: através dela poderá fazer analogia, pois, se a historiografia contemporânea dá crédito a obras como Anais de Tácito – que possuem um número tão irrisório de testemunhos manuscritos que datam de quase mil anos – por que não dá crédito à obra aos evangelhos, que em manuscrito e dada se mostra ser infinitamente superior? Esse parece ser um argumento convincente. Apenas parece. Nenhum desses argumentos é verdadeiro.

Existem pelo menos dois fatores que contribuem para a derrocada argumentativa dessa posição. O primeiro fator corresponde ao porque da obra de Tácito ter sido transmitida à posteridade através de um numero bastante insignificativo de manuscritos. O segundo fator diz respeito a questão da datação que, se realmente for comparada, não demonstrará grande diferença entra a obra taciteana e a obra bíblica.

Como se tem conhecimento, a igreja medieval realizou deu continuidade a um processo de triagem selecionando os documentos antigos úteis e salutares a fé cristã, e destruindo todos os demais documentos que, de alguma forma, fossem prejudiciais a sua fé. De fato, pode-se atribuir grande parte da insuficiência de manuscritos não-cristãos remanescentes à ação destrutiva dos cristãos antigos.

O filosofo francês renascentista Michel de Montaigne ( p. 51, Vol. II), já no século XVI d.C., comentava sobre o papel destruidor da igreja em relação as obras de Tácito, afirmando que o número de manuscritos dessa obra, caso tivessem sobrevivido, constituiria um número considerável:
“É certo que nos primeiros tempos, quando nossa religião principiou a ser admitida pelas leis, o zelo dos prosélitos incitou à destruição de livros pagãos e a excessos que acarretaram mais prejuízo do que os incêndios perpetrados pelos bárbaros. Tem-se em Cornélio Tácito um exemplo típico do que afirmo, pois embora o imperador, seu parente, houvesse, mediante decretos especiais, espalhado sua obra pelas bibliotecas do mundo inteiro, nem um só exemplar completo escapou à sanha dos que, por causa de cinco ou seis trechos contrários a nossas crenças, o destruíssem”.

O trecho que seria considerado o responsável pela perseguição eclesiástica anti-taciteana é Anais XV, 44, que, além de pressupor que os cristãos apostólicos (a quem os cristãos posteriores que destruíram os manuscritos taciteanos tinham o mais profundo apreço) “realizavam atrocidades”, rotula explicitamente o cristianismo de “perniciosa superstição” e “flagelo”. Além disso, Tácito compara o cristianismo a uma “coisa horrível e vergonhosa”, ao afirmar que a Roma afluem esse tipo de coisa e sustenta que os primeiros cristãos eram criminosos que deveriam ser condenados à morte por odiar o gênero humano: “os cristãos [eram] culpados e merecedores de maiores castigos [...]”. (TÁCITO, s/d, p. 248). É bem provável que Tácito tenha dirigido ainda mais insultos ao cristianismo nessa obra, pois boa parte da mesma não chegou a nós.

De acordo com o historiador Momigliano (2004, p. 174), diversos cristãos piedosos do final da Idade Medieval lembravam que Tácito havia sido atacado pelo grande cristão patrístico Tertuliano por causa dos insultos que havia cometido contra os cristãos apostólicos. Tertuliano lembrava-se com ódio a afirmação taciteana de que o cristianismo não passava de uma ”monstruosa superstição” (TERTULLIAN, 2006 [online]).

Já no período da Renascença a posição de Tertuliano e dos cristãos medievais, segundo Momigliano (2004, p. 178), ainda era comum entre diversos cristãos, em que muitos o chamavam de “um historiador pagão e inimigo do cristianismo” e diziam que “uma sílaba do Evangelho era preferível a toda obra de Tácito”. Desse modo, muitos foram os cristãos que “jogaram a água suja fora com o bebê”, pois deixaram que a imagem negativa que Tácito pintou dos cristãos em Anais XV, 44 contaminasse toda sua obra historiográfica.

Desse modo, podemos concluir que, se por um lado restam poucos testemunhos textuais da obra Anais de Tácito, por outro lado, esse fato só pode ser explicado porque a Igreja cuidou de destruir todos esses testemunhos.

Do mesmo modo, não há muito do que jactar-se sobre a superioridade quantitativa dos manuscritos do Novo Testamento, pois é certo que a Idade Medieval caracterizou-se como um período predominantemente controlado pela ideologia, cultura, política e religiosidade cristãs, de modo que isso contribuiu para a implementação do aumento no número de cópias do Novo Testamento em detrimento dos escritos pagãos. De acordo com Barth Ehrman (2000, p. 443), era inevitável, dado o contexto medieval, que obras como Tácito fosse pouco preservadas, e que cópias dos livros do Novo Testamento fossem abundantes:
“Naturalmente, deveríamos esperar que o Novo Testamento fosse copiado na Idade Média com mais freqüência do que Homero, Eurípides ou Tácito; os copistas treinados em todo o mundo ocidental na época foram escribas cristãos, freqüentemente monges, que, na sua maioria, estavam preparando cópias desses textos para fins religiosos. Ainda assim, o fato de que temos milhares de manuscritos do Novo Testamento que foram feitos durante a Idade Média, muitos deles de milhares de anos após Paulo e seus companheiros terem passado sobre a face da terra, não significa que podemos estar certos de que sabemos o que o texto original dizia. Pois, se temos muito poucas cópias antigas (na verdade, praticamente nenhuma), como podemos saber que o texto não foi alterado de forma significativa antes que começasse a ser reproduzido em quantidades tão grandes?”.

Desse modo, na mesma medida em que os cristãos destruíam a literatura pagã, produziam mais e mais cópias dos documentos cristãos considerados sagrados. Por isso, não é de se estranhar que 97,2% dos testemunhos textuais do Novo Testamento grego pertençam a Idade Medieval – época em que a cultura, sociedade e política eram dominadas pela Igreja, que reproduziu centenas de cópias do Novo Testamento para sua propaganda religiosa.

Ainda assim, apenas 2,8% de todos os manuscritos do Novo Testamento grego pertencem à Idade Antiga Tardia. 93,6% desses manuscritos foram escritos depois do século 9° d.C. - ou seja, mais de 800 anos após os relatos que narram. Ou seja, a parte absolutamente majoritária dos textos do Novo Testamento data de quase a mesma época que Bruce alegou datar os manuscritos remanescentes de Anais de Tácito. Apenas 0,03% de todos os manuscritos existentes do Novo Testamento pertencem ao século II d.C., e se constituem meros 2 papiros fragmentados – o que não é grande coisa.

Já os manuscritos do Novo Testamento latino, etiópico, eslovânico, armênio, siríaco e copta, que constituem quase 20 mil de todos os manuscritos existentes, são tardios e escritos após o século IV. D.C. São chamados de “testemunhas indiretas” (sendo que as testemunhas diretas seriam os manuscritos escritos em grego) e datam do ano 350 d.C. até o século IX. Algumas versões podem remontar ao ano 180 d.C., mas nesse caso são poucos os manuscritos. De acordo com Mainville (1999, p. 34) “as únicas versões [das testemunhas indiretas] de alguma utilidade para a crítica textual são as que foram traduzidas diretamente do texto grego, ou foram revistas com base no texto grego”. Somente as mais de 10 mil versões do Novo Testamento da Vulgata Latina pertencem ao século IV d.C. Já os manuscritos siríacos, que somam mais de 350 manuscritos, datam entre os séculos IV e V d.C. O mesmo pode ser dito em relação às versões copta, armênio, geórgico, entre outras, que tem a mesma idade. Já a versão etiópica, que conta com mais de 2 mil manuscritos, são datados desde o século XIII d.C., sendo que a maior parte de todas essas versões são oriundas do texto bizantino, considerado a pior família textual, em termos de pureza e confiabilidade, dos manuscritos do Novo Testamento.
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BIBLIOGRAFIA

ALAND, Kurt (ed.) [et al]. The New Testament Greek. Third Edition. Stuttgart-Germany: United Bible Societies, 1988.ALAND, Kurt; ALAND, Barbara. The Text of The New Testament: An Introduction to the Critical Editions and to the Theory and Practice of Modern Textual Criticism. 2nd. Revised Edition. Michigan: William B. Eerdmans Publishing Company / Grand Rapids, 1995.BRUCE, F. F. Merece confiança o Novo Testamento? 2.ed. São Paulo: Edições Vida Nova, 1990.EHRMAN, Bart D., The New Testament: an historical introduction to the Early Christian writings, 2000.MAINVILLE. Odete. A Bíblia à luz da história. São Paulo: Paulinas, 1999.MCDOWELL, Josh. Evidência que exige um veredito: evidências históricas da fé cristã. São Paulo: Candeias, 1993.MOMIGLIANO, Arnoldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. Trad. Maria Beatriz B. Florenzano. Bauru, SP: EDUSC, 2004.TÁCITO, C. Cornélio. Anais. Trad de Leopoldo Pereira. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.TERTULLIAN. Ad Nationes. Trad. Dr. Holmes. In: KIRBY, Peter. Early Christian writings. 2 Feb. 2006. Disponível em: <> Acesso: 20 ago. 2009.

Elaine Pagels e a marginalização do evangelhos gnósticos

Os evangelhos apócrifos - textos que foram proibidos pela Igreja e que desapareceram por mais de um milênio - trazem um Jesus diferente daquele que conhecemos.
"Quem não conheceu a si mesmo não conhece nada, mas quem se conheceu veio a conhecer simultaneamente a profundidade de todas as coisas."

Esta frase acima é atribuída a Jesus Cristo. Mas não adianta ir procurá-la na Bíblia. Ela não está em nenhum lugar dos Evangelhos de Lucas, Marcos, Mateus ou João, os únicos relatos da vida de Jesus que a Igreja considera autênticos. A citação faz parte de um outro evangelho – o de Tomé. Também não perca seu tempo procurando por esse livro no Novo Testamento. Não há por lá nenhum evangelho com o nome do mais cético dos apóstolos, aquele que queria "ver para crer".
Acontece que o texto existe. E é um documento antigo – segundo alguns pesquisadores, tão antigo quanto os que estão na Bíblia (veja quadro na página 51).

O Evangelho de Tomé, assim como outras dezenas – ou centenas – de textos semelhantes, foi escrito por alguns dos primeiros cristãos, entre os séculos 1 e 3 da nossa era. Ele foi cultuado por muito tempo. Até que, em 325, sob o comando do imperador romano Constantino, a Igreja se reuniu na cidade de Nicéia, na atual Turquia, e definiu que, entre os inúmeros relatos sobre a vinda de Cristo que existiam, só quatro eram "inspirados" pelo filho de Deus – os "evangelhos canônicos" ("evangelho" vem da palavra grega que significa "boa nova", usada para designar a notícia da chegada de Cristo, e "canônico" é aquele que entrou para o cânone, a lista dos textos escolhidos). Os outros eram "apócrifos" (de legitimidade duvidosa). Estes foram proibidos, seus seguidores passaram a ser considerados hereges e muitos foram excomungados, perseguidos, presos. A maioria dos apócrifos acabou destruída e os textos sumiram, alguns para sempre.

Mas nem todos. O Evangelho de Tomé, o de Filipe e o de Maria Madalena, por exemplo, escaparam por pouco da destruição – graças a um egípcio anônimo. Em algum momento do século 4, esse egípcio teve a boa idéia de esconder num jarro de barro cópias manuscritas na língua copta desses textos e de muitos outros ameaçados pela perseguição da Igreja. O jarro ficou 1 600 anos sob a areia do deserto. Acabou resgatado por um grupo de beduínos, em 1945, perto da cidade egípcia de Nag Hammadi. Só nos últimos anos os textos acabaram de ser traduzidos e chegaram ao conhecimento dos cristãos do mundo.

Assim, por acidente, alguns apócrifos sobreviveram ao tempo. E agora, 2 mil anos depois da morte de Cristo, eles estão fazendo um tremendo sucesso. Inspiram filmes milionários (como Matrix) e best sellers (como O Código Da Vinci). São adotados por seitas cristãs, geram religiões, dão origem a teorias conspiratórias e são cada vez mais lidos por fiéis do mundo, inclusive cristãos tradicionais, que não vêm contradição entre alguns desses textos e a religião que eles seguem. Só no Brasil há pelo menos 30 grupos cujas crenças são baseadas nos apócrifos. Como explicar essa súbita popularidade para textos que estiveram sumidos por mais de um milênio e meio?

Talvez a principal razão seja o fato de que os textos revelam mais sobre Jesus. Os quatro evangelhos canônicos contam uma história fascinante, mas deixam muitas brechas. Os cristãos do mundo têm vontade de saber mais sobre esse homem, ainda que seja através de textos que a Igreja não considera legítimos.

E vários dos apócrifos trazem passagens reveladoras para aqueles que tentam enxergar o homem por trás do Deus. "É um Jesus mais humano, em situações mais próximas da vida de homens e mulheres de hoje", diz o jornalista espanhol Juan Arias, do El País, autor de livros sobre a história do cristianismo. Arias, que cobriu o Vaticano por 14 anos, está terminando um livro em que resume as pesquisas históricas a respeito de Maria. Um dos temas que ele examina é a falta de referência em alguns apócrifos à virgindade da mãe de Jesus. "Que mulher se identifica com outra que foi mãe sem perder a virgindade?", pergunta.

Além disso, vários apócrifos trazem o retrato de um Jesus diferente do que conhecíamos. "As questões de gênero, as relações de poder e até mesmo a espiritualidade estão colocadas em termos mais ecumênicos e holísticos nos apócrifos", diz o frei franciscano Jacir de Freitas Farias, professor do Instituto São Tomás de Aquino, em Belo Horizonte. Frei Jacir promove retiros em que evangelhos apócrifos, meditação e ioga se misturam para proporcionar conforto espiritual aos participantes.

Veja por exemplo aquela citação lá atrás, a que abre a reportagem. O que está escrito ali é que nada é mais importante que a sabedoria, e que o autoconhecimento é o caminho para a sabedoria. Essa idéia – que não é muito diferente daquilo que prega o budismo – está completamente ausente dos evangelhos de Mateus, Marcos, João e Lucas. Qualquer bom cristão sabe que o Novo Testamento oferece um caminho de só duas pistas para a salvação. Primeiro: é preciso ter fé (ela remove montanhas). Segundo: suas ações têm que ser boas (ame o próximo como a si mesmo). Em nenhum lugar há referência a outra rota para o Paraíso. Nem Lucas, nem Marcos, nem Mateus, nem João mencionam a salvação pelo autoconhecimento, ou pela sabedoria.

Se o cristianismo tradicional ignorava a importância do autoconhecimento, a idéia não é nova para nós, ocidentais do século 21. Sigmund Freud, no século 19, trouxe para a ciência a idéia de que há algo para ser descoberto dentro de nós mesmos – no caso, o subconsciente – e que esse algo pode nos trazer conforto e felicidade. Talvez esteja aí – na herança freudiana – uma das explicações para o sucesso dos apócrifos nos tempos atuais.

Há outras. O Evangelho de Tomé e outros apócrifos falam ao coração de um contingente que não pára de crescer nos tempos atuais: os ávidos por espiritualidade, mas desconfiados da religião (é bom lembrar que a maior parte dos católicos brasileiros se diz "não praticante"). "O reino está dentro de vós e também em vosso exterior. Quando conseguirdes conhecer a vós mesmos, sereis conhecidos e compreendereis que sois os filhos do Pai Vivo. Mas, se não vos conhecerdes, vivereis na pobreza e sereis a pobreza", diz o texto de Tomé.

Muitos apócrifos pregam também códigos de conduta menos rígidos que os do cristianismo tradicional. Numa passagem do Evangelho de Maria Madalena, Cristo diz que "eu não deixei nenhuma ordem senão o que eu lhe ordenei, e eu não lhe dei nenhuma lei, como fez o legislador, para que não seja limitada por ela". Esse trecho parece contrariar a própria autoridade da Igreja. Em Tomé, também aparece um Jesus menos dado a imposições, que diz "não façais aquilo que detestais, pois todas as coisas são desveladas aos olhos do Céu". Bem diferente das aulas de catecismo, não?

Outra novidade é que vários apócrifos valorizam o papel da mulher. Os evangelhos de Filipe e de Maria Madalena afirmam que Madalena recebia revelações privilegiadas do Salvador. "O Senhor amava Maria mais do que todos os discípulos e a beijou na boca repetidas vezes", afirma o de Filipe. Para Karen King, historiadora eclesiástica da Universidade Harvard, Madalena estava tão autorizada a pregar a palavra de Jesus quanto os 12 apóstolos. "Os textos mostram que Maria Madalena entendeu os ensinamentos de Jesus melhor do que ninguém", afirmou, em entrevista à revista National Geographic.

Sem falar que muitos apócrifos deixam em segundo plano uma velha conhecida dos cristãos: a culpa. Você conhece a história dos livros canônicos: eu e você somos pecadores, e Cristo morreu na cruz para nos salvar. Nós pecamos, ele morreu – durma-se com isso na consciência. Já os evangelhos de Tomé, Filipe e Maria Madalena não contêm uma só linha sobre o julgamento e a condenação de Jesus. Ou seja, a Paixão de Cristo, que hoje consideramos central para a fé cristã, não tinha a menor importância para os seguidores desses textos. Nada de culpa, portanto. Ele traz apenas charadas que convocam seus leitores a reflexões espirituais.

Para resumir: os apócrifos revelam um Jesus mais democrático e menos sexista, mais tolerante e menos autoritário – características que combinam com nossos dias. Eles eliminam a culpa e abrem caminho para uma fé pessoal, algo que faz sucesso nestes tempos individualistas. Sem falar que estão cercados de uma charmosa aura de mistério. "Esta é uma sociedade que desconfia de qualquer instituição, então dizer que eles foram condenados pela Igreja vira um chamariz e tanto", diz o teólogo Pedro Vasconcellos, da PUC de São Paulo. Deu para entender por que eles estão tão na moda?

Mas, afinal, que textos são esses? Dá para dizer que eles são vestígios de cristianismos perdidos. Sim, é isso mesmo: o cristianismo, no começo, não era um só, eram vários. "Nos séculos 2 e 3, havia cristãos que acreditavam em um Deus. Outros insistiam que Ele era dois. Alguns diziam que havia 30. Outros, 365", escreve Bart Ehrman, professor de Estudos Religiosos na Universidade da Carolina do Norte, no livro Lost Christianities ("Cristianismos Perdidos", sem versão em português).

Os primeiros cristãos viviam em comunidades clandestinas, que se reuniam às escondidas nas periferias das cidades e que tinham pouco contato umas com as outras. Essas comunidades eram lideradas muitas vezes por pessoas que conheceram Cristo ou pelos próprios apóstolos. Como Cristo não deixou nada escrito, coube a essas primeiras lideranças do cristianismo construir a religião.

Não há como saber se o Evangelho de Mateus foi escrito pelo próprio Mateus. "Naquele tempo, como ainda hoje, não faltava quem se candidatasse a pregar em nome de um personagem tão importante", afirma o teólogo Paulo Nogueira, da Universidade Metodista de São Paulo. Mas é bastante provável que o texto tenha sido construído a partir dos ensinamentos do apóstolo recolhidos por seus seguidores. Da mesma forma, os evangelhos de João, Pedro, Maria Madalena, Tomé e Filipe devem ter sido os textos que guiavam as práticas dos grupos que se reuniram em torno dessas figuras importantes da religião nascente (ou que buscaram inspiração nelas). "Os evangelhos apócrifos, da mesma forma que os canônicos, não devem ser encarados como reproduções exatas das palavras de Jesus Cristo, mas como interpretações da mensagem dele feitas pelas primeiras comunidades cristãs", diz o teólogo Vasconcellos. É claro que essas interpretações nem sempre concordavam umas com as outras. E, portanto, é claro que, naquela aurora do cristianismo, produziram-se diversos textos – muitas vezes contraditórios entre si.

Entre os primeiros grupos cristãos havia, por exemplo, os ebionitas, uma das seitas mais antigas. Eles se consideravam judeus e achavam que Jesus era o Salvador apenas do povo hebreu. Os ebionitas mantinham os rituais judaicos, rezavam voltados para Jerusalém e acreditavam que Cristo tinha sido especial não por ser filho de Deus, mas por ter seguido à perfeição a lei judaica.

No outro extremo, estavam os marcionitas, para quem havia dois deuses. O primeiro deles seria um deus mau – o deus dos judeus, responsável por tudo de ruim no planeta. Jesus seria o segundo, um deus bom, que teria surgido para nos liberar da divindade maligna. Esse cristianismo, que hoje soa bizarro, foi popular no começo do século 2, antes de ser condenado como heresia em 139. Uma das razões para o sucesso é que a tese de dois deuses exclui a culpa cristã. Se um deus mau criou o mundo, é ele o responsável pelos sofrimentos sobre a terra.

Os gnósticos tinham crenças aparentadas às dos marcionistas. Também para eles o mundo foi criado por uma divindade imperfeita e não havia por que nos sentirmos culpados pelos males que existem. A diferença é que os gnósticos acreditavam que o Deus bom influiu na criação. Ele dotou cada um dos seres humanos de uma centelha divina – que nos dava a capacidade de despertar dessa imperfeição e conhecer a verdade. Se conseguirmos acumular conhecimento (gnosis, em grego), nos libertaremos desse mundo mau e estaremos salvos. Cristo, para os gnósticos, seria um enviado desse Deus verdadeiro, cujo objetivo seria nos ensinar a despertar. A escrita e a leitura cumpririam um papel importante nesse processo, e por isso eles deixaram muitos textos (boa parte dos apócrifos são gnósticos). Nota-se uma forte influência da filosofia grega nesse cristianismo.

Há uma boa pitada de gnosticismo naquela frase do Evangelho de Tomé que abre esta reportagem. Mas os tomasinos (seguidores de Tomé) eram uma seita à parte. Eles também acreditavam na salvação pelo conhecimento, mas iam além: pregavam que a busca é completamente individual. Os tomasinos rejeitavam a hierarquia – e, portanto, a Igreja. A salvação está dentro de cada um de nós e podemos atingi-la sem a ajuda de um padre.

E havia, claro, os seguidores de Paulo e os de Pedro, fortes especialmente em Roma, bem no centro do império. Esse grupo, no início, não era maior nem mais representativo que os outros. A proximidade com a burocracia estatal que administrava o Império Romano certamente exerceu influência sobre ele – não é à toa que o cristianismo romano era o mais organizado e hierarquizado de todos.

Cada uma dessas comunidades cristãs seguia um certo conjunto de textos – e rejeitava outros. Mas a maioria considerava legítimos os evangelhos de Marcos, Matias, Lucas e João, que provavelmente são os mais antigos e menos controversos. Em 312, o imperador romano Constantino se converteu ao cristianismo. E foi o cristianismo de Roma que ele escolheu. Constantino administrava um império que era quase "universal", e queria também uma "Igreja universal". Quando, 13 anos depois, sob as ordens do imperador, a Igreja se reuniu para decidir o que era o cristianismo, os bispos de Roma, mais organizados e com o apoio decisivo do imperador, sobressaíram nas discussões. "O credo de Nicéia acabaria por se tornar a doutrina oficial que todos os cristãos deveriam aceitar para participar da Santa Igreja, a Igreja Católica", escreve o teóloga Elaine Pagels, da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, no livro Além de Toda Crença: O Evangelho Desconhecido de Tomé.

Os textos que não davam importância à crucificação de Cristo acabaram proibidos. Afinal, a Igreja romana, que cresceu em meio a violentas perseguições, valorizava muito o martírio – associado ao martírio de Cristo. Os evangelhos dos tomesinos, que pregavam a busca individual pela salvação, também caíram fora. A hierarquizada Igreja de Roma obviamente não simpatizava com essas idéias libertárias. Entre os textos que foram proibidos, vários faziam parte das bibliotecas gnósticas. Para Eusébio de Cesária, que no século 4 escreveu o primeiro livro sobre a história do cristianismo, o gnosticismo estava sendo introduzido pelo demônio, "que odeia o que é Deus, que é inimigo da verdade, hostil à salvação do mundo, voltando todas suas forças contra a Igreja". Acredita-se que os manuscritos de Nag Hammadi sejam tesouros salvos da biblioteca gnóstica do Mosteiro de São Pacômio, que ficava lá perto.

Ninguém sabe ao certo quantos evangelhos foram suprimidos. O que se sabe é que só quatro livros foram considerados "corretos". Apenas neles "o ensinamento das linhas de Deus é proclamado. Não acrescentem nada a eles, não deixem nada se afastar deles", segundo um decreto de um bispo de Alexandria. Daí para a frente, haveria quatro evangelhos. E, pela primeira vez, um só cristianismo.

Voltemos então à pregação gnóstica, expressa em vários dos evangelhos apócrifos. O mundo é mau por natureza, mas cada um de nós traz dentro de si uma centelha e, se atingirmos o conhecimento, iremos despertar. Jesus veio à Terra para nos ensinar o caminho. Agora substitua nessa história o nome de Jesus pelo de Neo. E temos um dos maiores sucessos pop dos últimos anos, a trilogia Matrix.

Matrix fez tanto sucesso porque toca num tema com o qual é difícil não se identificar: a sensação de não pertencer a esse mundo, de se sentir estranho nele, e de que ele é banal demais para nossas altas aspirações espirituais. É claro que seria um absurdo dizer que o sujeito que saiu do cinema empolgado com a saga dos irmãos Wachowski tenha sido tocado pelo mesmo tipo de revelação que os cristãos envolvidos pelas pregações gnósticas no século 2 ou 3. Mas talvez não seja por coincidência que o roteiro, inspirado por textos gnósticos, tenha soado tão transcendental .

Os evangelhos apócrifos, assim como os canônicos, foram escritos por pessoas inquietas, numa época conturbada e difícil, em que as antigas respostas já não davam conta de acalmar os espíritos. É claro que os tempos, hoje, são muito diferentes. Mas, de novo, boa parte da humanidade está inquieta e insatisfeita com as respostas que existem. Tem muita gente em busca de alguma coisa que torne nossa existência mais transcendente, mais valiosa. E esses textos escritos por outros homens, numa busca parecida, podem nos dar uma dica de onde começar a procurar.

Um dos critérios para explicar por que só os evangelhos de Marcos, Lucas, Mateus e João entraram na Bíblia é a datação. Um consenso entre os especialistas situa os canônicos como tendo sido escritos entre 60 e 90. Já os apócrifos teriam sido produzidos a partir do século 2. Mas também sobre essa questão pairam dúvidas.

Está lá no Evangelho de João. Cristo disse: "Porque me viste, Tomé, creste; bem-aventurados os que não viram e creram". Alguns pesquisadores, como a americana Elaine Pagels, da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, acham que o autor do texto, quando o escreveu, estava respondendo ao Evangelho de Tomé. Se a tese dela está correta, o Evangelho de Tomé é mais antigo que o de João.

Segundo essa teoria, o Evangelho de João seria um esforço para negar que a salvação pudesse ser atingida pela busca pessoal do autoconhecimento, tese central de Tomé. O Evangelho de João coloca então Tomé no papel do cético exagerado que é repreendido por Cristo. E conclui apontando um caminho mais simples para a salvação: basta acreditar nela. A fé salva.

Evangelho - Evangelho de Pedro
Conteúdo - Provavelmente circulou no século 2, tendo sua autoria atribuída ao apóstolo Pedro. Conta uma versão diferente da ressurreição de Cristo: o Salvador teria sido conduzido ao céu por dois anjos
Por que foi proibido - Foi acusado de uma heresia chamada "docetismo", pela qual Jesus era somente espírito
Como foi descoberto - Arqueólogos franceses encontraram um fragmento do texto na tumba de um monge no Egito, em 1886

Evangelho - Evangelho de Filipe
Conteúdo - Traz histórias que não estão na Bíblia, como a de que Jesus mudava de aparência para conhecer aqueles a quem se revelava. Sugere seu relacionamento com Madalena. Circulou no século 3
Por que foi proibido - Por ser gnóstico e afirmar que só mulheres virgens entravam no Paraíso (o que inviabilizaria as famílias)
Como foi descoberto - Foi encontrado em 1945, em meio aos manuscritos enterrados num vaso em Nag Hammadi

Evangelho - Evangelho de Maria Madalena
Conteúdo - Num dos poucos fragmentos que restaram, Cristo ressuscitado instrui os discípulos a espalhar o gnosticismo e avisa que não deixou leis. Afirma que Jesus transmitiu segredos a Madalena
Por que foi proibido - O texto é escrito de acordo com o gnosticismo, que foi condenado como heresia
Como foi descoberto - Um pedaço foi descoberto em um mosteiro egípcio em 1896. Outra versão estava em Nag Hammadi

Evangelho - Evangelho de Tomé
Conteúdo - São 114 frases atribuídas a Jesus. Nelas, Ele afirma que a salvação vem do autoconhecimento e que a centelha divina está em cada um. Alguns pesquisadores dizem que o texto é do século 1
Por que foi proibido - Foi combatido pelos primeiros padres da Igreja por causa de seu contéudo gnóstico
Como foi descoberto - É um dos textos que estavam perdidos até a descoberta de Nag Hammadi, em 1945

"Jesus disse ao jovem o que devia fazer, e à noite este veio a ele com um vestido de linho sobre o corpo nu. E ficaram juntos aquela noite, pois Jesus ensinou-lhe o mistério do reino de Deus."
Esse trecho explosivo foi divulgado nos anos 70 por Morton Smith, pesquisador da Universidade da Califórnia.

Morton afirma que organizava a biblioteca do mosteiro de Mar Saba, próximo a Jerusalém, em 1958, quando encontrou a citação copiada na contracapa de um livro. O trecho teria vindo de um certo Evangelho Secreto de Marcos, escrito pelo mesmo autor do Evangelho de Marcos.

Especialistas confirmaram que o texto correspondia ao estilo do autor. Morton publicou dois livros polêmicos em que defendia a tese de que a conjunção carnal fazia parte da iniciação cristã. Seria uma grande descoberta, não fosse um detalhe: o único que viu o achado foi o próprio Morton. O livro sumiu do mosteiro. Portanto, uma dúvida insolúvel ronda o suposto evangelho homoerótico: seria verdadeiro ou uma fraude engendrada por um exímio conhecedor de textos antigos?
A trilogia Matrix não é o único sinal da influência dos evangelhos apócrifos sobre a cultura pop. Outro que se fartava na fonte era o autor de ficção científica Philip K. Dick. O escritor, cujos livros inspiraram filmes como o clássico-mor do sci-fi, Blade Runner, e também Minority Report (de Spielberg) e O Troco (de John Woo), era entusiasta de textos gnósticos, que abasteceram a "dualidade bem e mal" em sua obra. Outra história pop é a do relacionamento entre Maria Madalena e Jesus Cristo. O megabest seller O Código Da Vinci, do americano Dan Brown, pega carona nessa onda e sustenta uma trama mirabolante sobre os filhos de Jesus e Madalena, que será levado às telas em 2005, pelas mãos do diretor Ron Howard. Hollywoodianamente, a influência dos apócrifos pôde ser vista até mesmo em blockbusters descartáveis, caso do rocambolesco Stigmata. Nele, a atriz Patricia Arquette é acometida pelas chagas de Cristo. Num clima de suspense de segunda, o filme evoca os escritos de Tomé quando entra no assunto de que a Igreja seria dispensável para que o cristão se aproximasse de Deus. Detalhe bizarro: algumas cenas se passam no Brasil e os figurantes falam uma tosca mistura de português, espanhol e italiano.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Evangelistas sim, historiadores não!

1 - Os Evangelistas não era "historiadores". Eram "evangelistas", e isso já diz tudo sobre que tipo de trabalho escreveram:

"Os evangelhos não são nem narrativas históricas, nem biografias (mesmo dentro dos esquemas flexíveis que guiavam estes dois gêneros na Antiguidade). Eles são exatamente aquilo de que passaram a ser chamados mais tarde: Evangelhos, ou “boas novas”. Daí podem-se retirar duas advertências. O que é “bom” depende da interpretação ou opinião de um indivíduo ou de uma comunidade. E “novas” é mais plural do que se pensa" (Crossan, 1994, p. 30).

2 - Nem é preciso ser um historiador mentiroso para se escrever dados falsos e incompativeis com a realidade. Foucault, Derrida, Hyden White, Barthes, De Certeau, e até mesmo Ginzburg já demonstraram que quando se escreve uma narrativa histórica, não se está descrevendo o que se passou, mas aquilo que o autor pensa que ocorreu, segundo a forma de selecionar e organizar o conteúdo dentro de sua mente.

"Tudo o que está narrado nos Evangelhos encontramos interpretados pelos seguidores de Jesus, não por seus adversários, por isso, são interpretações favoráveis: é o Filho de Deus, o Messias. Em outras palavras, é impossível uma interpretação imparcial e neutra" (Arens, 2007, p. 88).

Isso não é "preconceito contra as fontes cristãs" (se fosse, não seria aplicada a qualquer narrativa histórica não-cristã) e nem "pressuposições" (pressuposições são boas, desde que não sejam falsas). É um fato que hoje permeia o mundo acadêmico de modo interdisciplinar mediante a disciplina na Análise do Discurso.

Entre os historiadores da antiguidade existia distinção entre “os eventos que ocorreram (res gestae), e nosso relato a respeito (historia rerum gestarum)”. Portanto, ainda que se queiram que os Evangelistas tenham sido "escritores confiáveis", a própria natureza da narrativa (evangélica ou não) impede os Evangelhos de serem documentos 100 por cento exatos. São frutos de uma compreensão construtiva que traduz de uma realidade captada.

3 - Os Evangelhos são obras de PROPAGANDA RELIGIOSA, e não relatos históricos.

A Primeira Busca Pelo Jesus Histórico (século XVII aos anos 20 do século XX), de cunho Iluminista, foi inaugurada por Hermann Reimarus (1694-1768) e continuada por David F. Strauss (1808-1874), Johann J. Griesbach (1745-1812), e Ernest Renan (1823-1892). Caracterizou-se pela tentativa de elaborar uma figura válida para Jesus utilizando a racionalidade.

No entanto, teve seu fim quando, no início do século XX, Albert Schweitzer (1875-1965) e, mais tarde, Rudolf Bultmann (1884-1976), argumentaram que um Jesus histórico era impossível, pois que os evangelhos são produtos da fé, e não relatos dos quais se possam retirar informações históricas.

"Os quatro evangelhos são realmente fontes difíceis; o fato de serem os primeiros escolhidos da rede não significa a garantia de que eles reproduzem as palavras e os atos históricos de Jesus. Impregnados da fé pascal da Igreja Primitiva, altamente seletivos e ordenados segundo diversos programas teológicos, os Evangelhos canônicos exigem uma seleção minuciosa para deles se retirar informações confiáveis à pesquisa. [...] Décadas de adaptação litúrgica, expansão homilética e atividade criativa por parte dos profetas cristãos deixaram sua influencia nas palavras de Jesus nos Quatro Evangelhos". (Meier, 1993, p. 145).

4 - Os Evangelhos não são os documentos mais "testificados na história".

Muito tem-se comparado o número de manuscritos existentes do Novo Testamento, com os das demais literaturas mundiais. Até o ano de 2005, encontraram mais de 5745 manuscritos do Novo Testamento.

No entanto, apenas 2,8% pertencem a Idade Antiga Tárdia. 97,2% são manuscritos medievais, 93,6% foram escritos depois do século 9° d.C. - ou seja, mais de 800 anos após os relatos que narram.

Apenas 0,03% de todos os manuscritos existentes do Novo Testamento pertencem ao século II d.C., e se constituem meros 2 papiros fragmentados.

Costuma-se comparar o Novo Testamento com a obra antiga Anais, de Tácito - a qual nos restam apenas 2 manuscritos não-completos. Fazem isso jactando-se, mostrando com orgulho que existe muito testemunho textual para o NT do que existe para as obras de Tácito. Mas esquecem-se do que Montaigne, no século XVI d.C., já dizia:

"É certo que nos primeiros tempos, quando nossa religião principiou a ser admitida pelas leis, o zelo dos prosélitos incitou à destruição de livros pagãos e a excessos que acarretaram mais prejuízo do que os incêndios perpetrados pelos bárbaros. Tem-se em Cornélio Tácido um exemplo típico do que afirmo, pois embora o imperador, seu parente, houvesse, mediante decretos especiais, espalhado sua obra pelas bibliotecas do mundo inteiro, nem um só exemplar completo escapou à sanha dos que, por causa de cinco ou seis trechos contrários a nossas crenças, o destruíssem". (Michel de Montaigne, p. 51, Vol. II).

Ou seja: se temos pouco testemunho textual da obra de Tácito, é porque a IGREJA cuidou de destruir todas!

Do mesmo modo, se temos muito testemunho textual do NT (97,2% esritos na Idade Madieval - época em que a cultura, sociedade e política era dominada pela Igreja), é porque a IGREJA reproduziu centenas de cópias do NT para sua propaganda religiosa.

5 - Os evangelistas inventam ditos e atos de Jesus inautêntivos, movidos por suas orientações teológicas e ideológicas.

Um pequeno exemplo disso pode ser observado quando nos deparamos com passagens no NT em que Jesus afirma que sua mensagem é para ser pregada exclusivamente para os judeus (cf. Mc 7.27; Mt 10:6), com observações deliberadamente depreciativas sobre os gentios, chamados de ‘cães’ ou ‘cachorrinhos’ e de ‘porcos’ (Mc 7:27; Mt 15:26; cf. Mt 7:6)”.

No entanto, Lucas, o "Evangelho dos gentios", ao dirigir-se a um público principalmente gentio, risca ou deixa de lado as passagens que em Marcos e/ou Mateus sublinhavam a orientação exclusivamente judaica da missão de Jesus e seus discípulos imediatos.

"Se Jesus tivesse deixado claro aos seus apóstolos que sua mensagem era destinada ao mundo todo, e não apenas aos judeus, seria impossível explicar por que, segundo os Atos dos Apóstolos, a igreja primitiva, e Paulo em particular, encontraram tantas dificuldades, quase insuperáveis, quanto à admissão de gentios na comunidade cristã. A única conclusão lógica possível é que, para legitimar a presença crescente de não judeus na igreja, falas fictícias foram inseridas nos Sinópticos, nas quais o próprio Jesus ordena a proclamação do evangelho além dos confins do mundo judeu" (Vermes, 2006, p. 188,189).

6 – Os evangelistas são tendenciosos, porque cuidam de subtrair tudo aquilo que os desagradam.

Exemplo disso é a figura de João Batista.

Marcos (1.4-11) relata, sem qualquer explicação teológica, o batismo de Jesus – sendo que o batismo era destinado a purificação dos “pecadores” – deixando implícito que Jesus era um pecador se submetendo a João Batista.

Mateus, sentindo-se constrangido ao ver seu “Senhor”, puro e imaculado, sendo batizado, cria um diálogo em que João Batista confessa ser indigno de batizar Jesus e só o batiza depois que o mesmo lhe ordena (Mt 3.13-17).

Já Lucas, afirma que João Batista foi preso e morto antes do batismo de Jesus e por isso deixa de mencionar quem foi que o batizou, sendo significativamente lacônico nessa passagem (Lc 3.19-22).

João, por sua vez, suprime por completo qualquer relato de Jesus sendo batizado (Jo 1.29-34), e acrescenta Jesus como um “batizador” concorrente de João Batista (Jo 3.22,26). Depois de ponderar, pensa que não é correto equiparar Jesus a João Batista pelo ato de batizar e afirma que Jesus “não batizava” (Jo 4.2).

De acordo com Meier (1993, p. 171): “é possivel que a Igreja de então, vendo-se “atrapalhada” com um acontecimento da vida de Jesus considerado cada vez mais embaraçoso, tivesse procurado atenuá-lo de várias formas, até que João Evangelista finalmente o suprimiu de seu Evangelho".

Segundo Crossan (1994, p. 268), a “tradição não parece aceitar muito bem a idéia de João batizar Jesus, pois isso faz com que João pareça superior e Jesus um pecador”.

“O Batista constituía uma pedra no caminho no inicio da história de Jesus segundo o cristianismo, uma pedra bastante conhecida para ser ignorada ou negada, uma pedra que cada um dos evangelistas tinha que contornar da melhor forma possível”. (Meier, 1996, p. 37).

Se os Evangelhos fazem isso com João Batista, o que podemos pensar sobre o que fizeram a respeito de Jesus?
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Fontes:
ALAND, Kurt (ed.) [et al]. The New Testament Greek. Third Edition. Stuttgart-Germany: United Bible Societies, 1988.
ARENS, Eduardo. A Bíblia sem mitos. Uma introdução crítica. São Paulo: Paulus, 2007.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Trad. de Maria de L. Menezes; rev. técnica [de] Arno Vogel. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
FUNARI, Pedro Paulo A. Documentos: Análise tradicional e hermenêutica contemporânea. In: ______________. Antiguidade clássica. A história e a cultura a partir dos documentos. 2.ed. Campinas,SP: Editora da UNICAMP, 2003.
GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica, prova. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
CHEVITARESE, André Leonardo. CORNELLI, Gabrielli; SELVATICI, Mônica (Org.) Jesus de Nazaré: Uma Outra História. São Paulo: AnnaBlume; FAPESP, 2006.
CROSSAN, John Dominic. O Jesus histórico: a vida de um camponês judeu mediterrâneo. Trad. André Cardoso. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
MEIER, John P. Um judeu marginal: Repensando o Jesus Histórico: as raízes do problema e da pessoa. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1993. Vol. I.
MEIER, John P. Um judeu marginal: Repensando o Jesus Histórico: Mentor. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. II, livro I.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Abril, 1974. (Coleção. Os Pensadores). Volume 2.
VERMES, Geza. As várias Faces de Jesus. Rio de Janeiro: Record, 2006.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Zeitgeist e o plágio mitológico de Jesus

Em junho de 2007 foi lançado um vídeo de 122 minutos chamado Zeitgeist e até novembro de 2007, 8 milhões de acessos haviam sido feitas. Esse filme foi ganhador do prêmio de melhor filme no festival de filmes Artivist na Califórnia em 2007 e 2008.1 Na primeira parte de Zeitgeist , que é dividido em três partes principais, é proposto que o Jesus histórico não passa de um plágio das mitologias de povos pagãos antigos. Os apóstolos utilizaram-se de histórias já conhecidas na época e criaram um personagem muito parecido, escrevendo assim quatro evangelhos a respeito deste “outro deus mitológico”.

Em seu site, a equipe do Zeitgeist, liderado principalmente por Peter Joseph e Acharya S., os produtores do filme, colocam o objetivo do movimento:
Pretendemos restaurar as necessidades fundamentais e a consciência ambiental da espécie revogando a maioria das idéias que temos de quem e o que realmente somos, juntamente com a ciência, a natureza e a tecnologia ( em vez de religião , política e dinheiro) são a chave para nosso crescimento pessoal, não só como seres humanos individuais, mas como civilização, estrutural e espiritualmente... Logo, a verdadeira mudança nascerá não só do ajuste de nossas decisões e compreensões pessoais, mas também da mudança das estruturas sociais que influenciam essas decisões e compreensões. Além disso, quando percebermos que são a ciência, a tecnologia e, portanto, a criatividade humana que trazem progresso para nossas vidas, seremos capazes de reconhecer nossas verdadeiras prioridades para crescimento pessoal e social e para o progresso. Posto isso, podemos ver que a Religião, a Política e o sistema de Trabalho baseado em Dinheiro/Competição são modos desatualizados de operação social, e que agora precisam ser abordados e transcendidos. Nossa meta é um sistema social que funciona sem dinheiro ou política, ao mesmo tempo em que permite que as superstições percam terreno à medida que a educação avança. Ninguém tem o direito de dizer ao outro em que acreditar, pois nenhum ser humano tem a compreensão completa de nenhum assunto.2

Este filme entre muitos outros materiais como livrosrevistas e sites da internet recentemente tem abordado a crítica como novidade entre o mundo acadêmico chamando a atenção de multidões e criando discípulos. Porém, como será verificado, a acusação é antiga e refutável.

Neste estudo abordarei brevemente o paralelismo encontrado entre o Jesus dos evangelhos e alguns deuses da mitologia, a história da teoria do plágio e a verificação das evidências. Faremos uma exposição sucinta de argumentos utilizados pelos críticos e somente alguns dos contra-argumentos encontrados. Por ocasião da falta de tempo analisaremos apenas as acusações principais contra a existência do Jesus histórico, a saber, nascimento virginal e ressurreição.

Paralelismo

Veremos a seguir então do que se trata esse intenso debate, apenas mencionaremos alguns dos deuses mitológicos seguidos de suas aparentes semelhanças com Jesus Cristo.

Horus, deus egípcio :

• Nasceu no dia 25 de dezembro de uma virgem
• Nascimento acompanhado de uma estrela no leste
• Adorado por três reis
• Era um mestre aos 12 anos
• Foi batizado com 30 anos
• Tinha 12 discípulos
• Fazia milagres
• Foi traído, crucificado e morto
• Depois de três dias ressuscitou
• Considerado filho de Deus
• Caminhou sobre as águas
• Foi transfigurado numa montanha

Attis, deus frígio :

• Considerado filho de Deus
• Nascido de uma virgem no dia 25 de dezembro
• Considerado um salvador que foi morto pela salvação da humanidade
• Seu “corpo” como pão era comido pelos adoradores
• Ele era tanto o divino Filho como o Pai
• Numa sexta-feira ele foi crucificado numa árvore
• Levantou-se depois de três dias como “Deus todo-poderoso”

Krishna, deus hindu :

• Nascido de uma virgem no dia 25 de dezembro
• Seu pai terreno era carpinteiro
• Seu nascimento foi assinalado por uma estrela ao leste
• Visitado por pastores que o presentearam
• Foi perseguido por um tirano que ordenou o assassínio de infantes
• Operava milagres e maravilhas
• Usava parábolas para ensinar as pessoas sobre caridade e amor
• Foi transfigurado diante dos discípulos
• Foi crucificado aos 30 anos
• Ressuscitou dos mortos e ascendeu aos céus
• Era a segunda pessoa da trindade
• Deverá retornar para o dia do juízo em um cavalo branco

Dionysus, deus grego:

• Nascido de uma virgem no dia 25 de dezembro
• Era um mestre viajante que operava milagres
• Andou em um burro durante uma procissão
• Transformava a água em vinho
• Era chamado “Rei dos Reis”e “Deus dos deuses”
• Considerado “filho de Deus”, “único filho”, “salvador”, “redimidor”, “ungido”, e o “Alfa e o ômega”
• Foi identificado como um cordeiro
• Pendurado num madeiro

Mitra, deus persa:

• Nascido de uma virgem no dia 25 de dezembro
• Era um mestre viajante
• Tinha 12 discípulos
• Prometia imortalidade aos seus seguidores
• Sacrificou-se pela paz mundial
• Realizava milagres
• Foi enterrado em uma tumba e ressuscitou 3 dias depois
• Instituiu uma ceia santa
• Foi considerado o Logos, redimidor, Messias e “o caminho, a verdade e a vida”

O detalhe primordial para a compreensão dessa teoria é que há evidências históricas de que todos esses deuses eram amplamente conhecidos pelo menos um século antes de Cristo. Diante dos paralelos encontramos acusações como as de Timothy Freke e Peter Gandy, dois dos maiores defensores da teoria do Jesus-Mito pagão:
Por que nós consideramos as histórias de salvadores como Osíris, Dionísio, Adônis, Attis, Mitra e outros deuses pagãos fábulas, porém ao encontrarmos essencialmente a mesma história contada em um contexto judeu, acreditamos ser a biografia de um carpinteiro de Belém?3

Quando percebemos tantas semelhanças entre a mitologia pagã e o Jesus do cristianismo parece difícil, à primeira vista, não chegar à conclusão que “Jesus foi um deus pagão...e o cristianismo foi produto herético do paganismo!”.4 Não somente é um mito, mas uma versão judaica de um mito pagão!

A idéia central é basicamente que o deus principal era Osiris-Dionísio e foi consistentemente assimilado por outras culturas locais, dando origem, portanto, ao deus Dionísio na Grécia, que depois formou Attis na Ásia Menor, Adônis na Síria, Bacco na Itália, Mitra na Pérsia e assim por diante. Suas formas eram muitas, mas essencialmente eles eram apenas diferentes versões do mesmo deus, Osiris-Dionísio.

Para verificar a plausibilidade dos argumentos veremos a seguir a história do surgimento e desenvolvimento da teoria, seguido de uma análise dos fatos.

História da teoria

Ao lermos os livros e artigos a respeito da teoria do “Jesus Mito” percebemos um tom de novidade e de descoberta. Porém, estudando a posição acadêmica deísta do século XVIII e XIX vemos que essa percepção implícita está longe de ser verdadeira. Os antecedentes dessa teoria podem retroceder até aos pensadores da Revolução Francesa, como Constatin-François Volney e Charles François Dupuis, na década de 1790. Em artigos publicados nessa década ambos discutiram os numerosos mitos antigos, incluindo a vida de Jesus, que segundo eles eram baseados no movimento do sol através do zodíaco.

Dupuis especialmente identificou rituais pré-Cristãos na Síria, Egito e Pérsia representando o nascimento de um deus por uma virgem. Os trabalhos de Volney e Dupuis rapidamente se espalharam e produziram diversas edições. Porém, sua influência até mesmo na França não passou da primeira metade do século XIX com o desenvolvimento do conhecimento a respeito da mitologia e com as informações corretas sobre o início do cristianismo e seu desenvolvimento. Dupuis destruiu a maior parte de seu material por causa da reação violenta que provocou. De acordo com ele “um grande erro é mais fácil de ser propagado do que uma grande verdade, por que é mais fácil crer do que racionalizar, e por que pessoas preferem as maravilhas dos romances à simplicidade da história”.5

O primeiro defensor acadêmico da teoria do Cristo na mitologia foi o historiador e teólogo do século XIX, Bruno Bauer. Thomas William Doane, em 1882, publicaria “Bible Myths and their Parallels in Other Religions” e Samuel Adrianus Naber, em 1886, escreveria “Verisimilia. Laceram conditionem Novi Testamenti exemplis illustrarunt et ab origine repetierunt”, analisando os mitos gregos “escondidos” na Bíblia. A raiz, porém, do paralelismo de Jesus com deuses pagãos encontra sua origem na escola “História das Religiões”, que se desenvolveu na segunda metade no século XIX. Mais ou menos na metade do século XX, esse ponto de vista havia sido largamente respondido e deixado de lado, até mesmo por acadêmicos que viam o cristianismo como simplesmente uma religião natural.

A teoria que havia uma ampla adoração da morte e ressurreição do deus da fertilidade Tammuz, na Mesopotamia, Adonis, na Síria, Attis, na Ásia Menor, e Osíris, no Egito foi proposto porque colecionou uma grande quantidade de paralelos na quarta parte de seu trabalho monumental The Golden Bough ( 1906, reimpresso em 1961).

Na década de 1930, três acadêmicos franceses, M. Goguel, C. Guignebert, e A. Loisy, interpretaram o cristianismo como uma religião sincretista formada sob a influência das religiões de mistério helenísticas.

Recentemente, Earl Doherty, Robert M. Price e George Albert Wells re-popularizaram a teoria. Também tem sido defendido com afinco por Timothy Freke e Peter Gandy que se popularizaram com a divulgação do livro “The Jesus Mysteries” e “Jesus and the Lost Goddess”. D. M. Murdock (pseudônimo Acharya S.) já publicou três livros em defesa da teoria do Cristo da mitologia. Ela argumenta que os evangelhos foram criados no II Século para competir com outras religiões populares da época.

Acreditamos que uma série de fatores contribuíram para o retorno desta teoria: o interesse pós-moderno em espiritualismo, a crescente falta de embasamento histórico e o acesso pronto à informação não-filtrada através da internet. Analisando a reação de épocas posteriores com respeito à teoria considerada neste trabalho, Edwin Yamauchi provavelmente tem razão em sua afirmação de que “esta visão tem sido adotada por muitos que pouco se dão conta de suas frágeis fundações”.6

A resposta

Finalmente, depois de analisarmos a acusação que sofre a religião Cristã e verificarmos como esta acusação começou e com quem, vamos agora para o exame da mesma e a confirmação de sua confiabilidade.

Por motivo da falta de espaço, iremos analisar detalhadamente apenas os dois aspectos mais importantes dos paralelismos: o nascimento virginal e a ressurreição dos mortos.

Nascimento Virginal

O centro de todo o desentendimento quanto aos paralelos do nascimento virginal dos deuses pagãos com os de Jesus começa já na sua definição. De acordo com o relato de Mateus e Lucas, a definição que encontramos do nascimento de Jesus é de Maria sendo virgem e Jesus sendo fecundado pela operação do Espírito Santo. Porém, não há qualquer relato entre as Religiões de Mistérios que relembre esta situação. A definição dos críticos de nascimento virginal é uma fecundação resultante de um casamento sagrado (entre um casal de deuses) ou fruto do ato sexual entre um deus disfarçado de ser humano e uma mulher mortal (hieros gamos).

Tecnicamente, o que está em questão é a perda ou a preservação da virgindade no processo da concepção. Maria simplesmente “achou-se grávida pelo Espírito Santo” (Mateus 1:18) antes de casar-se e antes de “conhecer” um homem. Portanto, aconteceu sem a interferência de homem ou qualquer forma de conjunção carnal. Se os autores bíblicos tinham qualquer referência anterior, essa seria a citação feita por Mateus de Isaías 7:14.

Em uma das histórias de Dionísio, Zeus foi a Perséfone em forma de serpente e a engravidou, portanto sua virgindade foi tecnicamente perdida. Na versão mais conhecida, Zeus se apaixonou por Semele, princesa da casa de Times. Zeus veio a ela disfarçado de homem mortal e logo Semele estava grávida. Hera, rainha de Zeus, inflamada de ciúmes, se disfarçou como uma mulher idosa e foi até a casa de Semele. Quando Semele revelou seu caso com Zeus, Hera sugeriu que a história de que Zeus era o rei dos deuses poderia ser uma mentira e que talvez ele fosse um mero mortal que inventou a história para que ela dormisse com ele. Quando Zeus foi visitá-la novamente, ela pediu por apenas uma coisa. Zeus jurou que daria a ela o que quisesse. “Apareça a mim como você aparece a Hera”. Relutantemente, mas verdadeiro à sua palavra, Zeus apareceu em toda sua glória, queimando Semele às cinzas. Hermes salvou o feto e levou até Zeus que o costurou a sua coxa e três meses depois deu a luz a Dionísio.7 A história claramente não é comparável ao relato bíblico e, além disso, só existem relatos pós-cristãos. Os deuses e deusas antigos eram típica e muito explicitamente sexuais e ativos, até por que, para o mundo antigo, grandeza era comumente associada com a geração física de um deus. Esse elemento está completamente ausente do relato da concepção virginal de Jesus.

No mito de Horus, o engano continua. De acordo com The Encyclopedia of Mythica , depois de Osíris (pai de Horus) ser assassinado e mutilado em catorze pedaços por seu irmão Set, a esposa de Osíris, a deusa Iris ,a reaveu e remontou o corpo, e em conexão pegou o papel da deusa da morte e dos direitos funerais. Isis engravidou-se pelo corpo de Osíris e deu a luz a Horus nos rios de Khemnis, no Delta do Nilo.8

O relato está muito distante da realidade bíblica, apesar de uma concepção necrofílica ser miraculosa. Mesmo na imagem encontrada em Luxor com Thoth anunciando a Isis que ela conceberia a Horus, a ordem é a concepção e depois o anúncio, enquanto que os evangelhos declaram o anúncio e depois a concepção.

Na pesquisa de Raymond Brown a respeito das narrativas a respeito do nascimento de Jesus ele avalia os exemplos de “nascimentos virginais” não-cristãos e sua conclusão é: Em suma, não há nenhum exemplo claro de concepção virginal no mundo ou nas religiões pagãs que plausivelmente poderia ter dado aos judeus cristãos do primeiro século a idéia da concepção virginal de Jesus.9

Ressurreição

Segundo Paulo, o maior fundamento da fé cristã é a crença na morte e ressurreição de Jesus (I Cor. 15:13, 14). Ainda no início do capítulo de 1 Coríntios 15, os exegetas do Novo Testamento encontram fortes evidências para defender a realidade do fato da ressurreição. E foi justamente nesta pedra fundamental que os críticos aproveitam para divulgar os paralelismos com personagens das religiões de mistério e das deidades que experimentaram morte e ressurreição.

A idéia do paralelo entre os deuses que morrem e ressuscitam e o conceito cristão da morte e ressurreição de Jesus foi popularizada pelo livro de James Frazer, The Golden Bough , primeiro publicado em 1906. Segundo ele e muitos outros críticos da modernidade, não há qualquer diferença entre a ressurreição de Jesus e daquelas deidades que eram conhecidas pela mitologia.

Não é senão a partir do III século A.D. que encontramos suficiente material a respeito das religiões de mistério que permitam uma relativa reconstrução de seu conteúdo. Muitos escritores utilizam-se deste material (depois de 200 A.D) para formular reconstruções das religiões de mistério dos séculos anteriores. Essa prática, porém, é extremamente anti-acadêmica e não pode permanecer sem desafios.10

Na realidade, segundo Pierre Lambrechts, os textos que referem-se à ressurreição são muito tardios, do segundo ao quarto século A.D.11 A aparente ressurreição de Adonis, por exemplo, não tem sequer uma evidência, nem nos textos antigos nem nas representações pictográficas. Quanto à ressurreição de Attis, não há qualquer sugestão que ele foi um deus ressurreto senão até depois de 150 A.D.12

Há ainda o famoso caso da ressurreição do deus Osíris. Nossa versão mais completa do mito de sua morte e ressurgimento é encontrada em Plutarco, que escreveu no segundo século A.D. De acordo com a versão mais comum do mito, Osíris foi assassinado por seu irmão que então o afundou em um caixão no rio Nilo. Ísis descobriu o corpo e o levou de volta ao Egito. Mas seu cunhado mais uma vez ganhou acesso ao corpo, dessa vez o desmembrando em catorze pedaços, os quais ele jogou longe. Depois de muita procura, Ísis recuperou cada pedaço do corpo. É nesse ponto que a linguagem utilizada para descrever o que se seguiu é crucial. Algumas vezes aqueles que contam a história se contentam em dizer que Osíris voltou à vida, mesmo que isso passe longe daquilo que o mito permite dizer. Alguns escritores ainda vão mais longe ao falar sobre a “ressurreição” de Osíris. Ísis restaura o corpo de Osíris e ele é colocado como um deus do mundo dos mortos. Roland de Vaux complementa dizendo:
O que significa Osíris ter “levantado para a vida”? Simplesmente que, graças à ministração de Ísis, ele pode levar uma vida além da tumba que é quase uma perfeita réplica da existência terrestre. Mas ele nunca mais voltará a habitar entre os viventes e reinará apenas sobre os mortos... Este deus revivido é, na realidade, um deus “múmia”.13

Em outras palavras, Osíris é uma deidade que morre, mas não um que ressuscita. Ele é sempre retratado em forma mumificada. Além disso, de acordo com Wilbur Smith, uma das maiores autoridades em religiões antigas, “não há nada nos textos que justifiquem a presunção que Osíris sabia que iria levantar dos mortos, e que se tornaria rei e juiz dos mortos, ou que os Egípcios acreditavam que Osíris morreu em seu favor e que retornou a vida para que eles pudessem levantar da morte também”.14

Vale à pena lembrar também que durante o estágio posterior da religião de mistérios, a deidade masculina do culto a Ísis não era mais Osíris, mas Serapis. Serapis é freqüentemente figurado como um deus do Sol, e fica muito claro que ele não era um deus morto e, conseqüentemente, não ressuscitou. Essa foi a versão em circulação a partir de 300 a.C. até os séculos do início do cristianismo. Portanto, não tinha absolutamente nada parecido com um deus-salvador que morre e ressuscita na era cristã.15 Portanto, como escreveram os autores do livro “Reinventing Jesus”, Komoszewski, Sawyer e Wallace , a “ressurreição” de Osíris está mais parecido com a história de Frankenstein do que a de Jesus.

Mudando de deidade, outro muito mencionado por sua suposta história de reaparição dos mortos é o de Cybele e Áttis. Cybele era uma figura muito adorada no mundo helenístico; o rito para ela antigamente incluía um frenesi nos adoradores homens que os levava a se castrarem.

Encontramos especialmente três mitos diferentes com respeito à vida de Áttis. De acordo com um dos mitos, Cybele amava um pastor de ovelhas chamado Áttis. Por Áttis ter sido infiel, ela o levou a loucura. Tomado de loucura, Áttis castrou-se e morreu. Isso encaminhou Cybele a um luto muito forte e introduziu a morte ao mundo natural. Mas então Cybele restaura Áttis à vida, um evento que também trouxe o mundo da natureza à vida. As pressuposições do intérprete tendem a determinar a linguagem usada para descrever o que se segue à morte de Áttis. Referem-se a ela descuidadamente como “ressurreição de Áttis.” Não há nada que se pareça uma ressurreição corpórea no mito, que sugira que Cybele só podia preservar o corpo morto de Áttis, ou seja, ele volta a vida de forma praticamente vegetativa, pois o mito menciona que os pêlos do seu corpo continuaram a crescer e que ele movimentava um de seus dedos. Em algumas versões do mito, Áttis volta à vida na forma de uma árvore. Nem nesse e nem nas outras três histórias, encontramos morte e ressurreição ou qualquer coisa semelhante ao que vemos nos evangelhos.
Foi somente em celebrações posteriores pelos romanos (depois de 300 A.D.) que algo remotamente semelhante ocorre. A árvore que simbolizava Áttis foi cortada e enterrada dentro de um santuário. Na outra noite, a “tumba” da árvore estava aberta e a “ressurreição de Áttis” foi celebrada. A linguagem, porém é ambígua e os detalhes sobre o culto são remotos; todo o material é muito tardio.

Nas comparações com Krishna, as respostas se tornam ainda mais fáceis de dar. Segundo especialistas em hinduísmo, Krishna foi morto por um caçador que acidentalmente atirou em seu calcanhar. Ele morreu e ascendeu. Não houve qualquer ressurreição e ninguém o viu ascender. Mesmo que o mito da ascensão de Krishna traga algum desconforto, ele pode ser rapidamente resolvido com as declarações de Benjamin Walker em seu livro “ The Hindu World: An Encyclopedia Survey of Hinduism ”: “não pode haver qualquer dúvida que os hindus pegaram emprestado os contos [do cristianismo], mas não o nome”.16 Por estes paralelos virem do Bhagavata Purana e o Harivamsa, Bryant acredita que o Bhagavata Purana seja “anterior ao sétimo século A.D. (apesar de alguns acadêmicos considerarem do século 11 A.D.)” e que o Harivamsa tenha sido composto entre o quarto e o sexto século.

O mesmo caso de datação tardia acontece com o mito de Mitra (a partir do primeiro século A.D.) e o caso de histórias completamente diversas à morte e ressurreição de Cristo acontece com Dionísio e Horus.

Apesar de ser chocante às mentes religiosas ocidentais, é senso comum dentro da história das religiões que imortalidade não é uma característica básica da divindade. Deuses morrem. Alguns deuses simplesmente desaparecem, alguns somente para retornar novamente depois e alguns para reaparecer freqüentemente. Todas as deidades que foram identificadas como fazendo parte da classe de deidades que morrem e ressuscitam podem ser colocados sob duas classes maiores: deuses que desaparecem e deuses que morrem. No primeiro caso, as deidades retornam, mas não haviam morrido, e no segundo caso, os deuses que morrem, mas não retornam. Nenhum desses paralelos, para a concepção judaica, ressuscitou dos mortos, e para alguns acadêmicos hoje paira a dúvida se literalmente existe algum deus que experimentou a morte e a ressurreição. Uma citação muito interessante explica a realidade da teoria:
Desde a década de 1930...um consenso tem se desenvolvido que os ‘deuses que morrem e ressuscitam' morreram mas não retornaram ou levantaram-se para viver novamente...Aqueles que pensam diferente são vistos como membros residuais de espécies quase extintas.17

Outras Diferenças substanciais

Analisamos brevemente as semelhanças e as diferenças dos deuses da morte-levantamento e das Religiões de Mistério com Jesus nos seus aspectos principais. A seguir colocaremos algumas outras diferenças marcantes que não poderiam passar despercebidos.

• Em todos os casos de deuses que morrem, eles morrem por compulsão e não por escolha, às vezes por orgulho ou desespero, mas nunca por amor sacrifical.18

• Não há qualquer evidência de religiões de mistério inseridos na Palestina das três primeiras décadas do primeiro século. Não haveria tempo suficiente para que os discípulos fossem influenciados pelos mistérios se eles estivessem dispostos a ser, que não era o caso. Quando a influência dos mistérios atingiu a Palestina, principalmente através do gnosticismo, a igreja primitiva não aceitou, mas renunciou vigorosamente os mitos pagãos. A falta de sincretismo dificulta a concepção.

• Os deuses que morrem e ressuscitam segundo os mitos, nunca morreram por outra pessoa (vicariamente), e nunca anunciaram morrer pelo pecado. A idéia de uma aliança substitutiva pelo homem é totalmente única ao cristianismo. Além disso, Jesus morreu uma vez por todos os pecados, enquanto os deuses pagãos eram freqüentemente deuses de vegetação que imitavam os ciclos anuais da natureza aparecendo e morrendo diversas vezes.

• Jesus morreu voluntariamente e sua morte foi uma vitória e não uma derrota, ambos os aspectos são contrários aos conceitos pagãos.19

• Similaridade não prova dependência. Movimentos sociais e religiosos freqüentemente compartilham formas de expressão ou práticas similares. Não é de se surpreender que encontrássemos paralelos em qualquer religião a respeito de vida após a morte, identificação com uma deidade, ritos de iniciação ou um código de conduta. Se uma religião deseja atrair conversos, precisa apelar para as necessidades e desejos universais dos seres humanos. Mas isso não indica dependência! Em qual cultura, por exemplo, que a imagem de lavar-se em água não significa purificação? O que importa, entretanto, não é a semelhança das palavras e práticas, mas os significados anexados a eles. A fim de provar um caso de dependência é necessário demonstrar uma semelhança na essência e não só na forma. Os escritores normalmente exageram similaridades formais, enquanto ignoram diferenças essenciais entre a história de Jesus e os variados mitos pagãos.

• Os pagãos nesse período não estavam confusos quanto à exclusividade da Igreja, e chamavam os cristãos de ‘ateus' por causa de sua indisponibilidade fundamental de ceder ou sincretizar. Como J. Machen explica, os cultos de mistério eram não-exclusivistas: “Um homem poderia ser iniciado nos mistérios de Ísis ou Mitras sem ter que abrir mão de suas crenças anteriores; mas se ele quisesse ser recebido na Igreja, de acordo com a pregação de Paulo, deveria abrir mão de todos os outros salvadores para o Senhor Jesus Cristo... Dentre o sincretismo predominante do mundo greco-romano, a religião de Paulo, assim como a religião de Israel, permanece absolutamente distinta”.20

• A cronologia está toda errada. As crenças básicas do cristianismo existiam no primeiro século, enquanto que o total desenvolvimento das religiões de mistério não aconteceu até o segundo século. Historicamente, é muito improvável que qualquer encontro teve lugar entre o cristianismo e as religiões de mistério pagãs até o terceiro século. Até hoje não há evidência arqueológica de religiões de mistério na Palestina do início do primeiro século.21 A história das influências pode ser dividida em três períodos: Primeiro período (1-200 A. D), as religiões de mistério eram restritas e não exerciam influências nas outras religiões. Se há qualquer influência, ela é na direção contrária: cristianismo influenciou os cultos. Segundo período (201-300 A. D), depois de o cristianismo ter se espalhado pelo mundo romano, as religiões de mistério se tornaram mais ecléticas, suavizando doutrinas severas e conscientemente oferecendo uma alternativa ao cristianismo (aparece o culto a Cybele oferecendo a eficácia do banho de sangue, que antes era de vinte anos, para um período que ia de vinte anos à eternidade), competição com o cristianismo. Terceiro período (301-500 A.D), Cristianismo passou a adotar a terminologia e ritos dos cultos de mistério (e.g., 25 de dezembro).22

• Como um judeu devoto, o apóstolo Paulo nunca teria considerado pegar emprestados seus ensinamentos de religiões pagãs (Atos 17:16; 19:24–41; Rom 1:18–23; 1 Cor. 10:14), assim como João (1 João 5:21). Não há a mínima evidência de crenças pagãs em seus escritos.

• Como uma religião monoteísta com um corpo de doutrinas coerente, o cristianismo dificilmente poderia ter pegado emprestado de um paganismo politeísta e doutrinariamente contraditório.

• Os críticos parecem ignorar completamente o pano-de-fundo hebraico do cristianismo. Quase nenhuma atenção é dada ao rico pano de fundo hebraico no Novo Testamento e o cristianismo primitivo. Termos como “mistério”, “ovelha sacrificada” e “ressurreição” em vez de vir dos mitos pagãos como os escritores sugerem, são baseados nas crenças judaicas encontradas no Antigo Testamento. Além disso, os manuscritos do mar Morto têm vertido muita luz em práticas judaicas que se escondem atrás do Novo Testamento como o batismo, comunhão e bispos.

• O cristianismo está baseado em eventos da história, não mitos. A morte dos deuses de mistério aparece em dramas místicos sem nenhuma conexão histórica.

• Se houve qualquer empréstimo, foi na outra direção. À medida que o cristianismo crescia em influência e se expandia, os sistemas pagãos, reconhecendo a ameaça, provavelmente pegariam alguns elementos do cristianismo. Por exemplo, o rito pagão do banho em sangue de touro (taurobolium) inicialmente tinha sua eficácia espiritual de vinte anos. Mas assim que a competição com o cristianismo começou, o culto a Cybele, aumentou sua eficácia de seu rito “de 20 anos a eternidade”23 quase equivalendo assim, à eternidade prometida aos cristãos.

• O conteúdo moral de amor e compaixão, bondade e ações de caridade eram completamente diferentes. A forma cristã de humildade, permitindo que o próximo bata nas duas faces e o próprio exemplo de Jesus utilizando Seu poder apenas para o bem diferencia seriamente daquilo que vemos na mitologia pagã.

Conclusão

Depois de revisar muitos artigos e livros a respeito da teoria do Cristo na mitologia pagã, tanto dos críticos quanto dos defensores, é difícil não se questionar como esta teoria pode ter se desenvolvido e se propagado da forma como foi e tem sido:
1- O conceito de nascimento virginal encontrado nos mitos pagãos em contraste com o relato bíblico diferem em muito.
2- Ressurreição de acordo com o conceito judaico e cristão não é percebido nos mitos pagãos, mas sim deuses que desaparecem mas não morrem e deuses que morrem mas não reaparecem.
3- A datação dos materiais que podemos usar para ter uma idéia de como eram esses deuses é bastante posterior ao início do cristianismo, não podendo, portanto, ter tido influências no seu desenvolvimento. Se houve influências, foi do cristianismo para o paganismo.
4- Todo o relato do nascimento, vida e morte de Jesus é completamente único ao cristianismo e contém uma originalidade não encontrada nos mitos pagãos.

A conclusão da completa falta de argumentos confiáveis e verossímeis é clara e óbvia e, nas palavras de Ronald Nash:
Esforços liberais de desacreditar a revelação singular cristã através dos argumentos da influência das religiões pagãs destroem-se rapidamente a partir da verificação completa das informações disponíveis. É claro que os argumentos liberais exibem academicismo incrivelmente ruim e com certeza, essa conclusão está sendo muito generosa.24

Fica claro que a melhor conclusão a ser feita é aquela do livro em que encontramos a verdadeira revelação da verdade e da fonte do mistério da vida, morte e ressurreição de Jesus: a Bíblia. Por que “ não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos”.25
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Referências:
1 Informação retirada do site http://www.zeitgeistmovie.com/, dia 11/05/2009 http://www.zeitgeist
2 http://www.thezeitgeistmovement.com/joomla/index.php?Itemid=50 , acessado dia 11/05/2009. (Grifo acrescentado)
3 Timothy Freke e Peter Gandy , The Jesus Mysteries, Three Rivers Press (Setembro, 2001). p. 9
4 Ibid.
5 Charles François Dupuis, The origin of all religious worship (1798). Kessinger Publishing, 2007, p. 293.
6 Edwin M. Yamauchi, Easter: Myth, Hallucination or History? Christianity Today, march, 1974, pt. 1.
7 Barry Powell, Classical Myth (3a. ed.). PrenticeHall. New Jersey, 2001, p. 250.
8 Mich F. Lindemans, Encyclopedia of Mythica . Artigo publicado dia 21 de maio, 1997 no website: http://www.pantheon.org/articles/i/isis.html. Acessado dia 23/08/09 .
9 Raymond E. Brown, The Birth of the Messiah . Anchor Bible, 1999, p. 523.
10 A summary critique the mythological Jesus mysteries a book review of “The Jesus Mysteries: Was the “Original Jesus” a Pagan God?” by Timothy Freke and Peter Gandy. Christian Research Journal, Vol. 26, No. 1, 2003.
11 P. Lambrechts, "La' Resurrection de Adonis," em Melanges Isadore Levy , 1955, p. 207-240 como citado em Edwin Yamauchi, "The Passover Plot or Easter Triumph?" em J. W. Montgomery, (ed), Christianity for the Tough-Minded . Minneapolis: Bethany, 1971.
12 Ibid
13 Roland de Vaux, The Bible and the Ancient Near East. Doubleday, 1971. p. 236
14 Wilbur M. Smith, Therefore Stand. New Canaan, CT: Keats, 1981, p. 583.
15 Ronald Nash, Was the New Testament Influenced by Pagan Religions? Christian Research Journal (Inverno, 1994), p. 8.
16 Benjamin Walker, The Hindu World: An Encyclopedic Survey of Hinduism , Vol. 1. New York: Praeger, 1983, p. 240-241.
17 Tryggve N. D. Mettinger, The Riddle of Resurrection: "Dying and Rising Gods" in the Ancient Near East . Stockholm, Sweden: Almquist & Wiksell International, 2001, p. 4, 7.
18 J. N. D. Anderson, Christianity and Comparative Religion. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1977, p. 38.
19 Ronald H. Nash, Christianity & the Hellenistic World . Grand Rapids, MI: Zondervan/Probe, 1984, p. 171-172.
20 J. Gresham Machen, The Origin of Paul's Religion . New York: Macmillan, 1925, p. 9.
21 J. Ed Komoszewski, M. James Sawyer, Daniel B. Wallace , Reinventing Jesus . Kregel Publications, 2006, p. 231.
22 Idem, p. 232-233.
23 Nash, Ronald H. Christianity & the Hellenistic World.1984. p. 192-199; citando Bruce Metzger sobre o culto de Cybele.
24 Ronald Nash, Was the New Testament Influenced by Pagan Religions? Christian Research Journal, Inverno 1994, p. 8.
25 Atos 4:12

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Não posso amar um pai que mata o filho para satisfazer sua justiça. Quem pode? Quem acredita?

Fora da beleza não há salvação
(por Rubem Alves)

Escrevo como poeta. Cummings disse que o mundo ilimitado de um poeta é ele mesmo. Narcisismo egocêntrico? Não. Invoco a Cecília Meireles para esclarecer. Dizia ela de sua avó: “Teu corpo era um espelho pensante do universo.“ Os poetas, diferentes dos cientistas que desejam conhecer o universo olhando diretamente para ele, só conhecem o universo como parte do seu corpo. Poesia é eucaristia. O poeta contempla a coisa e diz: “Isso é o meu corpo."

Poeta, não sei falar cientificamente sobre o cristianismo. Só posso falar sobre ele tal como ele foi se refletindo no espelho do meu corpo, através do tempo.

Infância.

Crianças não têm idéias religiosas. Nada sabem sobre entidades espirituais. Crianças são criaturas deste mundo. Elas o experimentam através dos sentidos, especialmente a visão. As crianças não têm idéias religiosas mas têm experiências místicas. Experiência mística não é ver seres de um outro mundo. É ver esse mundo iluminado pela beleza. Essas são experiências grandes demais para a linguagem. Dessas experiências brotam os sentimentos religiosos. Religião é a casca vazia da cigarra sobre o tronco da árvore. Sentimento religioso é a cigarra em vôo. Menino, eu voava com as cigarras.

As idéias religiosas não nascem das crianças.

Elas são colocadas no corpo das crianças pelos adultos. Minha mãe me ensinou a rezar. “Agora me deito para dormir. Guarda-me, ó Deus em teu amor. Se eu morrer sem acordar, recebe a minhalma, ó Senhor, Amém.“ Resumo mínimo de teologia cristã: há Deus, há morte, há uma alma que sobrevive à morte. Depois vieram outras lições: “Deus está te vendo, menino...“ Deus vira um Grande Olho que tudo vê e me vigia. Meu primeiro sentimento em relação a Deus: medo.

As crianças acreditam naquilo que os grandes falam.

E assim se inicia um processo educativo pelo qual os grandes vão escrevendo no corpo das crianças as palavras da religião. O corpo da criança deixa de ser corpo da criança: passa a ser o caderno onde os adultos escrevem suas palavras religiosas.

Muitas são as lições do catecismo. Deus é um espírito que sabe todas as coisas. Vê o que você está fazendo com as suas mãos, debaixo das cobertas, com a luz apagada. Deus é onipotente: pode fazer todas as coisas. Tendo poder absoluto, tudo o que acontece é porque ele quis. A criancinha defeituosa, a mãe que morre de parto, as câmaras de tortura, as guerras... As tragédias não acontecem. Deus as produz. Diante das tragédias ensina-se que se deve repetir: “É a vontade de Deus.“ É preciso fazer o que Deus manda pois, se não o fizer, ele me castigará. Se eu morrer sem me arrepender serei punido com o fogo do Inferno, eternamente. Essa vida do corpo, na terra, não tem valor. Vale de lágrimas onde os degredados filhos de Eva lamentam e choram, esperando o céu. O céu vem depois da morte. Deus mora no lugar que há depois que a vida acaba. O mundo é um campo de provas minado por prazeres onde o destino eterno da alma vai ser decidido. Para se amar a Deus e o seu céu é preciso odiar a vida. Quem ama as coisas boas da vida não está amando Deus. Negar o corpo: lacerações, abstenções, sacrifícios: essas são as dádivas que se deve oferecer a Deus. Deus fica feliz quando sofremos. De todos o prazeres os mais perigosos são os prazeres do sexo. Assim, é preciso fazer sexo sem prazer, sexo para procriar. Deus nunca foi visto por ninguém. Mas revelou a sua vontade a uma instituição: a Igreja, não importando se católica ou protestante. A ela, Igreja, foi confiada a guarda do livro escrito por inspiração divina, as Sagradas Escrituras, a “Grande enciclopédia dos saberes e das ordens divinas“. Sendo assim “fora da Igreja não há salvação“, porque fora da Igreja não há conhecimento de Deus.

Ludwig Wittgenstein fala sobre o poder enfeitiçante das palavras. Palavras enfeitiçantes: aquelas que nos possuem e nos impedem de pensar. Assim são as idéias religiosas: os corpos dos homens estão cobertos de palavras que, pelo medo, os dominam. “Possuídos“, não conseguem pensar pensamentos diferentes. Qualquer outra palavra pode significar o inferno. As inquisições, católica e protestante, jamais enviaram para a fogueira pessoas por seus pecados morais. Os pecados morais levam o pecador para mais perto da Igreja, pois ela tem o poder de perdoar. Queimados foram aqueles que tiveram pensamentos diferentes: Brunno, Huss, Serveto. Os crimes de pensamento afastam os homens da Igreja. Consequentemente, afastam os homens de Deus. Quem pensa pensamentos diferentes tem de ser eliminado ou pela fogueira ou pelo silêncio.

Durante muitos anos vivi enfeitiçado por essas palavras. Feitiços não se combatem com a razão. É sempre um beijo de amor que quebra o feitiço... Quem me beijou? Um Outro que mora em mim. Porque em mim mora não somente aquele que pensa mas aquele que sente. Barthes dizia: “Meu corpo não tem as mesmas idéias que eu“. Meu “eu“ pensava as palavras que haviam sido escritas no meu corpo. Mas o meu corpo pensava outras idéias. A verdade do meu corpo era outra. Ele amava demais a vida. Confesso: nunca me senti atraído pelas delícias do céu. E desconheço alguém que morra de amores por ele. Prova disso é que cuidam bem da saúde. Querem continuar por aqui. Conheço, entretanto, pessoas que vivem vidas torturadas por medo do inferno.

Lembro-me, com nítida precisão, do momento em que tive a percepção intelectual que libertou a minha razão para pensar. Eu estava no seminário. Repentinamente, com enorme espanto, percebi que todas aquelas palavras que outros haviam escrito no meu corpo não haviam caído do céu. Se não haviam caído do céu, elas não tinha o direito de estar onde estavam. Eram demônios invasores. Abriram-se-me os olhos e percebi que essa monumental arquitetura de palavras teológicas que se chama teologia cristã se constrói, toda, em torno da idéia do inferno. Eliminado o inferno, todos os parafusos lógicos se soltariam, e o grande edifício ruiria. A teologia cristã ortodoxa, católica e protestante – excetuada a dos místicos e hereges – é uma descrição dos complicados mecanismos inventados por Deus para salvar alguns do inferno, o mais extraordinário desses mecanismos sendo o ato de um Pai implacável que, incapaz de simplesmente perdoar gratuitamente (como todo pai humano que ama sabe fazer), mata o seu próprio Filho na cruz para satisfazer o equilíbrio de sua contabilidade cósmica. É claro que quem imaginou isso nunca foi pai. Na ordem do amor são sempre os pais que morrem para o que o filho viva.

Hoje, as idéias centrais da teologia cristã em que acreditei nada significam para mim: são cascas de cigarra, vazias. Não fazem sentido. Não as entendo. Não as amo. Não posso amar um pai que mata o filho para satisfazer sua justiça. Quem pode? Quem acredita?

Mas o curioso é que continuo ligado a essa tradição. Há algo no cristianismo que é parte do meu corpo. Sei que não são as idéias. Que ficou, então?

Foi numa sexta-feira da Paixão que compreendi. Uma rádio FM (Amparo) estava transmitindo, o dia inteiro, músicas da tradição religiosa cristã. E eu fiquei lá, assentado, só ouvindo. De repente, uma missa de Bach, e a beleza era tão grande que fiquei possuído e chorei de felicidade: “A beleza enche os olhos d\'água” (Adélia Prado). Percebi que aquela beleza era parte de mim. Não poderia jamais ser arrancada do meu corpo. Durante séculos os teólogos, seres cerebrais, haviam se dedicado a transformar a beleza em discurso racional. A beleza não lhes bastava. Queriam certezas, queriam a verdade. Mas os artistas, seres coração, sabem que a mais alta forma de verdade é a beleza. Agora, sem a menor vergonha, digo: “Sou cristão porque amo a beleza que mora nessa tradição. As idéias? Chiados de estática, ao fundo...“ Assim proclamo o único dogma da minha teologia cristã erótico-herética: “Fora da Beleza não há salvação...“
(Transparências da eternidade, Verus, 2002)