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quinta-feira, 23 de julho de 2015

A glossolalia bíblica é apenas uma linguagem humana?


Se eu falar as línguas dos homens e dos anjos, e não tiver caridade, tenho-me tornado como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine. [1 Coríntios 13.1]

A glossolalia bíblica é apenas uma linguagem humana? Exegeticamente essa é uma questão difícil, especialmente diante do texto de 1 Coríntios 13.1 onde Paulo fala de uma  “língua dos anjos”. Ou seja, no fenômeno das línguas haveria algum idioma além do humano? Algum idioma angélico ou celestial? Ao contrário do que muitos pensam não há consenso entre os intérpretes pentecostais sobre esse assunto, embora a tendência da maioria seja aceitar a existência de uma linguagem além da humana no fenômeno da glossolalia. Ou seja, a glossolalia não é apenas xenolalia. Outros, entretanto, interpretam o texto como uma figura de linguagem onde Paulo apenas indicara “a alta consideração dos coríntios para com as línguas”

O conceito de “línguas dos anjos” é biblicamente consistente? Por que essa é uma questão complexa? Vejamos alguns motivos: 1) É a uma única referência bíblica direta sobre o assunto. 2) Há diversas referências à “língua dos anjos” na literatura judaica antiga. 3) Entre os judeus daquela época havia um debate sobre qual seria a língua original do céu. Nesse embate um grupo afirmava o hebraico como a língua dos céus enquanto outros rabinos defendiam a ideia de uma “língua indecifrável e inacessível” ao homem.  3) A Igreja coríntia era composta por judeus e gentios. 4) Não é possível saber se a composição gentílica da igreja coríntia tinha acesso a essa tradição. 5) Também não é possível averiguar se a parte judaica da igreja teve acesso a algumas fontes tardias. 6) Gramaticalmente, a frase paulina é uma figura de linguagem chamada hipérbole, não há dúvidas quanto a isso, mas essa hipérbole seria sobre a anggelos glóssa em si, como oposição exagerada ao amor, ou sobre a possibilidade de Paulo em dominar todos os tipos de linguagem- o que também denotaria um exagero? A resposta a essa pergunta muda totalmente o sentido da interpretação.

Objeções gerais 

John MacArthur Jr. é o cessacionista predileto dos pentecostais. Não porque esse pastor batista- reformado-fundamentalista instigue questões complexas aos carismáticos, mas pelo contrário. Sobre essa questão, por exemplo, ele apresenta duas argumentações frágeis. No livro Strange Fire: The Danger of Offending the Holy Spirit with Counterfeit Worship, que deriva da conferência Strange Fire (Fogo Estranho), MacArthur indica que o assunto central do capítulo 13 não é o carisma, mas o amor, e por esse motivo a expressão “língua dos anjos” não pode ser tomada como uma prática de Paulo ou daquela igreja. Que argumento (!), hein? É óbvio que o assunto continua a ser sobre os dons espirituais. Paulo está apenas lembrando uma verdade inconveniente aos coríntios: O homem pode exercer os dons de maneira maravilhosa, mas caso não tenha amor isso não vale absolutamente nada. E mesmo que o assunto central não fosse os dons, mas o amor, isso em si não invalidaria a ideia que Paulo ou a igreja coríntia pudesse potencialmente praticar a “língua dos anjos”. 

MacArthur argumenta, também, que uma língua angelical fere o princípio de edificação de outros crentes, pois tornaria o uso do dom egoísta [3]. Com um argumento desses é até possível perguntar se MacArthur leu 1 Coríntios 14 com atenção devida. 1) Em primeiro lugar, a fala angelical, se aceita como literal, seria coparticipante com a xenolalia; e os princípios paulinos para a glossolalia angelical seriam os mesmos da xenolalia. 2) Em segundo lugar, é sempre possível que a língua seja interpretada e a comunidade seja edificada (1 Co 14.12, 13). 3) A língua pode, também, ser uma manifestação espiritual para edificação apenas do indivíduo (1 Co 14.4) e, nesse caso, deve ser usada de maneira moderada, ou seja, sem que a tonalidade da voz atrapalhe a adoração do outro e o culto da comunidade (1 Co 14.28) . E outra: não é porque Paulo combate o mal uso do dom que o dom não exista. Só se combate o mal uso daquilo que pode ser bem usado. 

O melhor argumento de MacArthur é: “Se alguém insiste em considerar literalmente a expressão ‘língua dos anjos’ é útil ter em conta que, cada vez que os anjos falavam na Bíblia, eles usaram a própria língua humana que era compreensível para aqueles que os escutavam”. Essa certamente é uma das melhores objeções, mas tem um problema lógico: os anjos falavam essas línguas porque estavam manifestando relevações ou falavam tais línguas porque essas eram os seus próprios idiomas? Ora, a revelação não é necessariamente a reprodução da comunicação celestial. E outra: se os anjos falam uma linguagem humana então esses só saberiam o hebraico e o aramaico? Entretanto, qualquer que seja a possibilidade aventada implicaria numa alta dose de especulação. Porém, ao diferenciar língua humana de angelical Paulo parece descartar qualquer ideia de que anjos tenham uma língua igual a humana. Ceslas Spicq argumenta que “a construção de 1 Coríntios 13.1 implica numa crença na angeloglosia” .

Outra objeção muito usada entre cessacionistas é que a língua cessará (1 Co 13.8) e se essa fosse uma linguagem angelical ou celestial não haveria a indicação de um fim. O teólogo D. A. Carson chama esse argumento de “pedante”, e eu concordo com ele, pois o que o apóstolo Paulo indica é o fim do carisma e não da linguagem. Ou por algum motivo o conhecimento pleno não existirá no céu?

A “língua dos anjos” no judaísmo antigo

O conceito de uma língua angelical não é trivial no judaísmo antigo, pelo contrário, está presente em abundância na literatura daquela religião, especialmente em um período próximo à igreja primitiva com a seita judaica de Qumran e em outras literaturas tais como o Testamento de Jó 48-50, o Livro de Enoque Etíope 40, o Apocalipse de Sofonias, a Ascensão de Isaías 7.15-37, o Apocalipse de Abraão, Gênesis Rabbah e do Livro Copta da Ressurreição de Jesus Cristo atribuído a Bartolomeu. O teólogo pentecostal John C. Poirier, especialista em judaísmo, escreveu um livro detalhado apenas sobre essa questão. Na obra The Tongues of Angels: The Concept of Angelic Languages in Classical Jewish ele mostra a abundância do debate entre judeus sobre a linguagem celestial e como esse embate se desenvolveu nos cinco primeiros séculos da Era Cristã. 

A mais significativa dessas referências é certamente o Testamento de Jó onde conta a história que as filhas de Jó falavam idiomas angelicais. A tradição rabínica também menciona o testemunho do rabino Yohanan ben Zakkai , um “homem piedoso que podia compreender a língua dos anjos”. Todavia, a tradição mais abundante sobre essa relação angelical com a liturgia estava no Qumran. Havia naquela comunidade uma verdadeira obsessão pelo assunto. 

Assim, ao que parece, havia na cultura judaica um entendimento sobre línguas celestiais. Por exemplo, o ideal cúltico no Qumran estava numa adoração que contava com a participação celestial na liturgia. “Em um documento do Qumran diferentes anjos aparentemente lideravam a adoração celestial por sábados sucessivos em diferentes idiomas”, como informa Craig Keener. Nos Cânticos do Sacrifício do Sábado “as ‘línguas de conhecimento’ são línguas dos anjos em louvor a Deus que [...] são comparadas com a linguagem humana descrita como ‘nossa língua no pó’”. Se for correto pensar em ‘língua’ aqui como idioma, então teríamos um raro testemunho de glossolalia angelical num texto palestino no primeiro século fora do Novo Testamento, conforme escreveu Jonas Machado. 

Craig Kenner, por outro lado, lembra que, excetuando a Qumran, as demais fontes são um tanto tardias para uma influência significativa:

Os exemplos mais claros de falar em línguas angelicais nas fontes judaicas iniciais são Apocalipse de Sofonias e, provavelmente, mais cedo e mais importante no Testemunho de Jó 48-51. [...] Mais problemáticas, em contraste com os textos de Qumran, essas fontes podem ser tardias para uma suficiente influência entre os cristãos. Possivelmente alguns cristãos acreditavam que eles oravam em línguas como expressões angelicais.

E como mostra Gordon D. Fee há evidências na carta indicando que coríntios se consideravam parte de uma espiritualidade angelical mais elevada, causando transtornos e orgulho:Os coríntios parecem que se consideravam já como os anjos, portanto, verdadeiramente "espirituais", não necessitando de atividade sexual no presente (7. 1-7), nem de um corpo no futuro (15. 1-58). Assim, falando dialetos angelicais pelo Espírito, havia provas suficientes para eles de sua participação na “nova espiritualidade”, por esse motivo, havia um entusiasmo singular por esse dom.

Outro ponto interessante para compreensão dessa linguagem angelical é a passagem de Apocalipse 14. 2,3 onde está escrito: “Ouvi um som do céu como o de muitas águas e de um forte trovão. Era como o de harpistas tocando suas harpas. Eles cantavam um cântico novo diante do trono, dos quatro seres viventes e dos anciãos. Ninguém podia aprender o cântico, a não ser os cento e quarenta e quatro mil que haviam sido comprados da terra”.  Esse cântico celestial é a expressão da “mais sublime adoração no céu”, assim sublinhando ainda mais a ideia de uma comunicação celestial além da humana e incompreensível em um primeiro momento. 

A questão hermenêutica

Qual é a natureza do texto de 1 Coríntios 13? E como isso afeta a interpretação? Como mostra Grant Osborne, esse texto paulino é um exemplo de literatura sapiencial no Novo Testamento. O amor é louvado pelo apóstolo como a sabedoria era louvada em Provérbios. E nesse tipo de abordagem textual é muito comum o uso de figuras de linguagem como a hipérbole. A hipérbole é uma forma de intensificação do discurso que “nos reconduz ao coração da existência”, ou seja, o exagero não é para expressar uma irrealidade, mas para chamar a atenção a própria realidade. 

A figura de linguagem é um recurso comparativo. Nesse exemplo, o apóstolo Paulo compara o indivíduo (ele mesmo) que possui a capacidade divina de falar em línguas humanas e angelicais com outro (ele próprio) indivíduo com a capacidade para amar.

1ª Hipótese
2ª Hipótese
O apóstolo como praticante de toda linguagem sobrenatural possível sem o amor.
O apóstolo como praticante do amor, independente do carisma manifestado ou não manifestado.
Indicativo de uma espiritualidade incompleta.
É indicativo de uma verdadeira espiritualidade

Mas qual é o exagero usado como figura de linguagem? Não, não é a língua angelical em si. O exagero é a assertiva de que alguém pode dominar toda a linguagem angelical e humana. Tal glossolalista seria considerado o máximo da espiritualidade entre os coríntios. Paulo, ao usar tal figura, expressa uma verdade central no texto: o homem pode ter a melhor manifestação de eloquência sobrenatural possível, mas se não tiver amor nada é. O apóstolo fala de uma possibilidade não vantajosa, porém possível. E ainda diz mais: o exercício da glossolalia sem o amor é semelhante ao barulho do culto pagão: “uma característica do culto pagão, em especial do culto a Dionísio e Cibele, era o choque e o retinir dos címbalos e o som bronco das trombetas”.

É como se eu dissesse a um jovem empregado: “Você pode falar inglês, espanhol e até mandarim, mas sem um bom networking você jamais crescerá nesta empresa”. O recurso do exagero está presente, pois dificilmente o interlocutor daquela conversa domina os três idiomas, mas isso não quer dizer que não exista a possibilidade de dominá-los. É provável que alguém seja agraciado com línguas humanas e angelicais na glossolalia? Não, eis aí o recurso do exagero para exemplicar de maneira chocante, todavia, isso não quer dizer que a potencialidade de falar ambas as línguas inexista. O apóstolo fala por hipótese, e a hipótese não é sinônimo de impossibilidade, mas o contrário. Hipótese é possibilidade, chance e opção. 

E o que determina essa interpretação? O contexto. Paulo estava lidando com conceitos equivocados sobre a verdadeira espiritualidade e uma valorização excessiva do dom de línguas. Ora, porque o apóstolo Paulo tomaria de assalto a expressão “língua dos anjos” se essa não fosse considerada pelos primeiros destinatários da carta como uma possibilidade? Ou seja, uma figura de linguagem pode expressar uma ideia proposicional? Ou ainda, uma figura de linguagem pode expressar teologia? Evidente que a resposta é positiva. “O intérprete da Escritura não deve ignorar as figuras de linguagem, supondo que a linguagem figurada, diferentemente da linguagem proposicional, carece de conteúdo teológico”, como escreveram Andreas J. Kösterberger e Richard D. Patterson. E  ainda: é necessário “interpretar literalmente as comparações, a não ser que haja fortes razões para interpretá-las figuradamente”. Ou como escreveu Roy Zuck: “A linguagem figurada não é antítese da interpretação literal; é sua componente”. Então dizer diante desse texto que: “ora, esse versículo é apenas uma figura de linguagem” e, assim, ignorar as implicações do mesmo, é um grande equívoco de interpretação. 

Conclusão

Há inúmeras referências na literatura judaica que atestam uma crença no primeiro século sobre “línguas angelicais”. Portanto, tomando esse contexto histórico não é inconsequente que um pentecostal tome esse texto para defender a ideia de uma glossolalia além da xenolalia. Além disso, a ideia que o texto seja uma hipérbole não justifica que a expressão usada pelo apóstolo Paulo seja mera fantasia retórica.