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quarta-feira, 10 de outubro de 2012

C. H. Dodd e a metodologia de Gerhard von Rad


O entendimento do conteúdo da Bíblia vem principalmente pela leitura do texto. Mas, existem várias maneiras de ler o texto e a questão é: qual é a melhor maneira de ler a Bíblia para chegar a um entendimento adequado do seu conteúdo? A tarefa se complica pela multiplicidade de metodologias, tanto críticas como não-críticas, para descobrir o significado do texto.

Nas últimas décadas, teóricos, críticos e biblicistas de todos os gêneros lidaram com esta questão produzindo várias conclusões. Em termos gerais, duas maneiras de entender o texto se destacam: ou como algo estático e inflexível ou como algo dinâmico e elástico. Considerar o texto como algo estático e inflexível é salientar os seus aspectos históricos. É ver e ler o texto como um objeto principalmente histórico que contém uma coletânea de literatura histórica que sempre tem as mesmas interpretações e aplicações apesar da época. Para aqueles que entendem a Bíblia como um objeto histórico, a melhor maneira de compreender o significado do texto é por meio de metodologias principalmente históricas e gramaticais. Do outro lado, ver o texto como algo dinâmico e elástico é dizer que o processo através do qual o texto foi produzido e transmitido foi dinâmico e que o texto esteve sujeito a releituras e reinterpretações ao longo da sua transmissão. As releituras e reinterpretações serviram para manter a vitalidade dos textos antigos para cada nova geração e para manter a esperança de que cada nova geração tivesse um encontro com o Deus Vivo por meio dessas escrituras.

A manutenção da vitalidade do texto em cada nova geração exige uma metodologia hermenêutica que leve em consideração a natureza dupla da Bíblia. A Bíblia é, ao mesmo tempo, um texto histórico e religioso. Assim, a metodologia tem que ser capaz de lidar com esses dois aspectos. Além da natureza dupla da Bíblia, o intérprete do texto tem que considerar as questões literárias do texto. Quando o texto é o Pentateuco, essa questão é de suma importância.

Não se pode subestimar a importância do Pentateuco para uma boa compreensão da Bíblia. O Pentateuco nos prepara para ler e entender o resto da história bíblica, tanto no Novo Testamento como no Antigo Testamento. Por isso, é necessário que esse material seja interpretado corretamente. Mas, na história da interpretação da Bíblia, não há nenhuma outra parte que tenha apresentado tantas dificuldades aos críticos e intérpretes. A tarefa é especialmente difícil por causa da variedade de material que se encontra no Pentateuco. A busca de uma hermenêutica adequada para esse material gerou várias metodologias nos últimos cem anos. Uma dessas metodologias é chamada a metodologia querigmática, da palavra grega kerygma.
A palavra keygma quer dizer “proclamação” e é normalmente associada com o estudo feito pelo crítico inglês C. H. Dodd da proclamação da igreja primitiva que se encontra no NT. Dodd usou a palavra kerygma para descrever o padrão de proclamação que ele descobriu nas cartas de Paulo e nos sermões registrados no livro de Atos. Aplicado ao Pentateuco, a metodologia querigmática é uma metodologia que procura descobrir a essência da mensagem, okerygma, dos cinco livros do Pentateuco como a chave para sua interpretação. O uso da palavra kerygma no Antigo Testamento foi popularizado principalmente pelo teólogo alemão Gerhard von Rad na sua teologia do Antigo Testamento. Neste artigo, pretendo examinar as contribuições de von Rad à questão da mensagem do Pentateuco e oferecer uma crítica construtiva da metodologia querigmática.

Antecedentes históricos

A metodologia querigmática desenvolvida por von Rad pode ser considerada parte da reação às teorias críticas predominantes nos séculos 18 e 19 dC. Em termos gerais, o estudo crítico do Antigo Testamento dos séculos 18 e 19 foi dominado pelas teorias chamadas “documentárias”. Uma destas teorias, popularizada por Karl Graf e Julius Wellhausen, explicou o Pentateuco como uma coletânea de documentos produzidos em épocas posteriores à época de Moisés. Mas no início do século 20 tornou-se claro que essa metodologia não resolveu todas as perguntas sobre a natureza da literatura do Pentateuco.

O primeiro desafio sério às teorias documentárias veio da arqueologia. As descobertas arqueológicas indicaram que a cultura do povo hebraico antigo refletiu o milieu cultural do oriente médio antigo. Isto significava que a origem da religião dos hebreus começou cedo e não tarde como muitos críticos do século 19 imaginavam. Para traçar adequadamente a história da religião de Israel, outra metodologia teria que ser encontrada.

Uma metodologia alternativa foi sugerida por Hermann Gunkel. Trabalhando a partir das idéias de Johann Herder, Gunkel propôs uma história de transmissão oral para as tradições históricas de Israel. As tradições foram recitadas de geração a geração para explicar a história do povo e “unir” cada nova geração com a geração anterior. Assim, as tradições históricas de Israel preservaram os elementos básicos da sua história e transmitiram esses elementos de uma maneira “viva” para cada nova geração.

O trabalho de Gunkel e outros abriu as portas para uma nova avaliação da natureza da literatura bíblica e, especificamente, o Pentateuco. Em vez de entender essa literatura somente como história antiga, o Pentateuco pode ser lido como as expressões vivas das tradições de Israel. A mensagem das tradições falou a cada nova geração e gerou um laço espiritual entre as gerações. Mas Gunkel limitou-se ao estudo do livro de Gênesis. Se o Pentateuco pudesse ser entendido como kerygma, a metodologia teria que ser ampliada para incluir toda a literatura do Pentateuco. Esse trabalho foi feito principalmente por Gerhard von Rad.
Literaturgeschichte sugerida por Gunkel forneceu uma base melhor para se entender a natureza da literatura bíblica e do Pentateuco. O Antigo Testamento foi visto como um registro vivo de Israel e a sua fé e essa fé teve um papel fundamental na composição da literatura do Pentateuco. Além disso, avanços feitos nas investigações históricas e arqueológicas esclareceram cada vez mais a história dos povos do oriente médio antigo. O resultado foi uma visão mais precisa do mundo do Antigo Testamento.

À luz desses desenvolvimentos os historiadores e teólogos do Antigo Testamento se encontraram num dilema. De um lado os resultados da crítica bíblica do século 19 produziram uma visão “científica” da história do Antigo Testamento. Do outro lado, essa visão da história de Israel não concordou em todos os pontos com a visão bíblica. As tentativas de resolver essa dificuldade formram o elemento mais importante no desenvolvimento da análise querigmática do Pentateuco.

No centro das tentativas de resolver o dilema estão as obras de Gerhard von Rad. Ele foi responsável pela demonstração de como os escritores do Pentateuco utilizaram as tradições históricas antigas de Israel de novas maneiras para produzir um kerygma, isto é, uma mensagem específica para uma época histórica específica. Essa mensagem é chamada a “intenção querigmática específica”. Três obras de von Rad serão examinadas para demonstrar a sua contribuição à análise querigmática do Pentateuco.

“A Questão da Crítica das Formas no Hexateuco”

Nesse ensaio von Rad propôs uma nova maneira de falar da formação do Hexateuco. De acordo com ele, o conteúdo do Hexateuco foi resumido em três “credos” históricos que preservaram os elementos básicos da história de Israel até então: (1) Dt 26:5b-9, (2) Dt 6:20-24, e (3) Js 24:2b-13. Esses credos faziam parte de uma forma literária específica que foi utilizada nos cultos de Israel como “recitações solenes”. Para Von Rad, estes credos foram essencialmente declarações de fé. Os credos resumiram os elementos básicos da fé de Israel: a chamada dos antepassados de Israel, a promessa da terra de Canaã, o Êxodo, a peregrinação no deserto, e a entrada na terra prometida. Atrás dos elementos desses credos estavam as várias tradições históricas de Israel que circularam originalmente no contexto religioso de Israel. Aos poucos essas tradições foram “cortadas” dos seus laços religiosos e faziam parte das tradições históricas gerais do povo de Israel. O trabalho de juntar e organizar essas várias tradições foi feito principalmente por um indivíduo desconhecido mas designado como o “javista.”

De acordo com von Rad, quando o javista começou a trabalhar, as tradições históricas que ele recebeu já tinham sido separadas do seu Sitz em Leben, isto é, as situações históricas que produziriam as tradições. Assim, as tradições já levaram sentidos diferentes dos seus propósitos originais. Essas tradições receberam um significado “espiritual” quando foram separadas das suas raízes históricas. Um vestígio do seu significado original permaneceu mas as tradições já foram modificadas para a nova situação histórica.

A contribuição do javista, de acordo com von Rad, não foi a criação das narrativas do Pentateuco, mas sim, a maneira pela qual ele organizou o material histórico que já existia. Ele organizou uma variedade de material de diversas fontes em uma forma coerente. Começando com as narrativas da conquista de Canaã, ele acrescentou as narrativas sobre Sinai, os patriarcas, e a criação. Von Rad não explicou como o javista recebeu esta informação mas só disse que foi o primeiro que usou as antigas tradições históricas de uma maneira diferente do seu propósito original.

Essa posição gerou o que von Rad chamou “o problema teológico do javista.” O problema surgiu quando as antigas histórias e tradições de Israel foram cortadas dos seus laços históricos originais e “depositadas” num outro contexto histórico. Von Rad questionou a capacidade do javista de fazer essa “transformação” de material e concluiu que o escritor J foi certamente um colecionador, e como tal tinha interesse na preservação dos propósitos religiosos antigos do seu material. Mas, não há dúvida de que o Jawista fala aos seus contemporâneos, interessado na fé real e viva, e não somente como um contador desligado de histórias.

Von Rad entendeu o trabalho do javista como alguém encarregado com a tarefa de restaurar a vitalidade das tradições históricas antigas que, até então, tinham sido preservadas principalmente pelos círculos sacerdotais. De acordo com von Rad, o javista aumentou o alcance do material cultual para incluir uma porção maior da sociedade hebraica. O javista tornou-se, também, o indivíduo principalmente responsável pela forma final do Pentateuco. Os demais redatores do Pentateuco, disse von Rad, seguiram o padrão estabelecido pelo javista que seguiu o padrão que ele descobriu nos credos históricos antigos.

Nesse ensaio, von Rad estabeleceu o padrão básico das suas investigações sobre o Pentateuco. Primeiro, ele identificou os credos históricos que serviram como a estrutura sobre a qual o Pentateuco foi construído. Segundo, von Rad reconheceu a ausência de algumas narrativas nesses credos, como, por exemplo, os eventos do Sinai. Essas narrativas foram acrescentadas mais tarde para completar o retrato histórico de Israel. Terceiro, ele disse que foi o javista quem recebeu e organizou as várias tradições na seqüência que se encontra no Pentateuco hoje. O propósito do javista foi restaurar a vitalidade dessas tradições históricas antigas e criar uma declaração de fé que servisse às necessidades do povo da sua época. Para o javista, essa reorganização das tradições de Israel se tornou seu kerygma.

Gênesis: O Comentário

As idéias que von Rad apresentou no ensaio “A Questão da Crítica das Formas no Hexateuco” foram ampliadas no seu comentário sobre o livro de Gênesis. Nesta obra von Rad juntou as suas idéias sobre a crítica literária e a crítica das formas para expor o conteúdo do texto bíblico. Sua metodologia enfatizou a unidade do Pentateuco e o papel do livro de Gênesis nesta unidade.

Mas esta metodologia levou von Rad a um caminho novo no que diz respeito ao texto bíblico. Ele foi além das metodologias críticas tradicionais que só tentaram analisar as fontes da literatura e suas formas originais. Ele começou a procurar a dimensão teológica da literatura bíblica. Von Rad disse: “Uma obra deste tipo . . . deve ser investigada cuidadosamente considerando o seu propósito e natureza teológica.”

Von Rad reconheceu que, apesar da origem das tradições históricas do material de Gênesis, todas as histórias levaram o “carimbo da fé”, isto é, todas as tradições transmitidas de geração a geração foram modificadas e reestruturadas para destacar os aspectos teológicos das tradições. Assim, o Sitz em Leben original das tradições se escureceu. Para von Rad a chave para a interpretação da literatura bíblica não se encontrou na situação original em que a literatura foi produzida mas na reflexão teológica que “reformou” as histórias antigas para uma nova geração de ouvintes e leitores.
Mas esta maneira de entender as narrativas de Gênesis apresentou problemas para intérpretes modernos no tocante à veracidade histórica das narrativas. À luz desta dificuldade, von Rad disse que foi mais importante entender como as narrativas individuais foram utilizadas do que tentar determinar o núcleo histórico por trás da narrativa. Assim, na questão da historicidade das narrativas de Gênesis, von Rad optou pela questão teológica em vez da questão histórica.

Von Rad não se interessou pela historicidade no sentido moderno. Assim, ele abandonou a idéia de que as narrativas de Gênesis apresentaram história no sentido moderno. A sua explicação foi que essas narrativas foram formadas e estruturadas pela fé ao longo da história de Israel. Então, em vez de investigar a história da literatura como os críticos do século 19 fizeram, von Rad achou melhor investigar o texto na sua forma atual, isto é, “devemos fazer a pergunta do significado que veio a ser associado às narrativas” e não da história que está por trás das narrativas. Em outras palavras, von Rad se interessou principalmente pelo significado teológico das narrativas e não pelos eventos históricos de que as narrativas falam. Von Rad disse que, se fosse obrigado a escolher entre a metodologia crítica ou teológica, escolheria a metodologia teológica. Somente esta metodologia seria capaz de descobrir a intenção querigmática do texto bíblico. Von Rad investigou esta intenção querigmática na sua Teologia do Antigo Testamento.

A Teologia do Antigo Testamento

Para von Rad a tarefa principal do teólogo do Antigo Testamento é descobrir a “intenção querigmática” dos documentos do AT. Ele disse: “O teólogo deve ocupar-se, antes de tudo, dos testemunhos imediatos sobre o que o próprio Israel pensava de Deus, começando por aprender colocar, melhor do que no passado, a questão da intenção querigmática de cada um dos documentos.” Esta intenção querigmática específica se encontrou, disse von Rad, nas declarações que Israel fez sobre Deus e seu relacionamento com seu povo e se expressou historicamente. Ele escreveu:
Observamos até, nesse particular, que a gama teológica das expressões religiosas de Israel é extremamente reduzida, em relação às dos outros povos, pois os testemunhos israelitas limitam-se a descrever a relação entre Javé, Israel e o mundo unicamente do ponto de vista de uma ação divina contínua através da história. A fé de Israel está inteiramente baseada numa teologia da história, tem consciência de que seus fundamentos são os fatos da história e da que os acontecimentos nos quais vê a mão de Javé é que a modelam e a transformam.

Von Rad entendeu a história de Israel como a história da salvação, isto é, o registro dos atos de Deus para beneficiar o seu povo. Ele entendeu esses “atos de Deus” como os atos que Israel reconheceu pela sua fé, por exemplo, a chamada dos patriarcas, o Êxodo, e a conquista de Canaã. De acordo com von Rad, estes “atos de Deus” não podiam ser reconstruídos pela investigação científica empregada pelos críticos literários porque esta metodologia foi incapaz de investigar adequadamente declarações de fé. Mas, esta posição criou um dilema para von Rad porque ele aceitou as conclusões da crítica bíblica. O dilema foi produzido pelos dois retratos da história de Israel, um retrato científico feito pelos críticos históricos e literários modernos e um retrato “querigmático” produzido pela fé de Israel. Para von Rad, o Pentateuco nos apresenta um retrato da história de Israel escrita pela fé e não pela metodologia histórica do século 19.

A posição de von Rad gerou uma segunda pergunta: Como “desdobrar” o significado querigmático do Antigo Testamento e, especificamente, do Pentateuco? Se a metodologia histórica não é adequada, qual é a metodologia mais apropriada? Para ele a melhor maneira de descobrir o significado das narrativas do Pentateuco foi tentar desdobrar as narrativas como Israel as preservou originalmente. De acordo com von Rad a metodologia que Israel usou para reconstruir a sua história foi “converter” as várias narrativas históricas num kerygma unificado. Essa “conversão” envolveu um processo de reflexão teológica contínua sobre o significado das narrativas para cada nova geração de israelitas. Essa reflexão foi dirigida para um alvo só: a manutenção da unidade do povo de Israel. Von Rad disse: “Cada geração reencontrava diante da tarefa sempre idêntica e sempre nova de se compreender como Israel. Num certo sentido, cada geração devia tornar-se Israel.” De acordo com von Rad os escritores do Pentateuco tinha esse alvo em mente quando “proclamaram” seu kerygma. Os escritores, todos escrevendo de um ponto específico na história de Israel, reconheceram a necessidade de cada geração de israelitas se sentir parte da historia das gerações anteriores.

No esquema de von Rad, a atualização das tradições de cada geração foi feito pelos escritores dos documentos. Toda geração apresentou demandas teológicas novas e todo escritor sentiu a necessidade de reformar as tradições anteriores para suprir as necessidades da sua geração sem mexer com os documentos dos seus predecessores. Assim, cada escritor colocou o seu documento ao lado do documento anterior, criando uma base de tradições históricas cada vez maior.

Uma Avaliação

O trabalho de von Rad representa uma mudança básica na maneira pela qual a análise do Pentateuco era feita anteriormente. Utilizando os resultados críticos dos séculos 19 e 20, ele entendeu as narrativas do Pentateuco como expressões “contextualizadas” da fé de Israel.

Mas, ainda existem questões que precisam ser levantadas sobre a validade do método querigmático como meio de ler e interpretar o Pentateuco.

A primeira é a questão da própria metodologia de von Rad. Ela é adequada para o material investigado? Segunda, existe a questão de historicidade. Como é que von Rad entendeu a questão da historicidade das narrativas do Pentateuco? Terceira, existe a questão do kerygma. Existe um kerygma no Pentateuco e, se existe, é possível isolar e descrever esse kerygma? Nesta última parte, todas essas perguntas serão examinadas uma por uma e uma avaliação da metodologia será feita.

A Questão da Metodologia

Quando C. H. Dodd propôs a identificação do kerygma da igreja primitiva, ele identificou frases que se repetem nos evangelhos, como “pregando o Reino de Deus” nos evangelhos e “pregando Cristo” nas cartas de Paulo. No livro de Atos as duas formas são usadas. Ele concluiu que a pregação da igreja primitiva envolveu a proclamação do Reino de Deus e de Jesus. Mas, para descobrir o conteúdo da pregação, foi necessário examinar os documentos do Novo Testamento com mais profundidade. Começando com as cartas de Paulo Dodd identificou “esboços” da pregação do apóstolo. Conforme Dodd, um exemplo se encontra em 1Co 15.3,4. Ele concluiu nesta base que o kerygma do apóstolo foi a proclamação dos fatos da morte e ressurreição de Cristo. Dodd admitiu que o kerygma que ele identificou nas cartas de Paulo era de natureza fragmentária mas ele “restaurou” o esboço à luz das passagens onde os fragmentos se encontram. De acordo com Dodd, esse esboço se tornou a base da mensagem do evangelho de Marcos.
Da mesma maneira, von Rad descobriu passagens no Antigo Testamento que, conforme ele, contêm o esboço do conteúdo do Pentateuco. Ele chamou estas passagens os “credos” históricos do Antigo Testamento. Esses “credos” serviram como um esboço do Pentateuco assim como o kerygma do Novo Testamento se tornou o esboço dos evangelhos. Mas, esses esboços são incompletos porque não fazem referências a algumas das narrativas chave do Pentateuco, como por exemplo, a aliança feita no deserto de Sinai. Para von Rad esse fato não apresentou um problema insuperável porque ele concluiu que o escritor responsável pela forma final do Pentateuco, o javista, acrescentou as demais narrativas ao Pentateuco. Von Rad tentou demonstrar como o próprio texto bíblico forneceu o critério da análise para o Pentateuco. Ele disse qual ponto de início podemos usar além da estrutura teológica enorme que Israel construiu no fundamento da sua confissão de Javé mais antiga? Primeiramente, então, nós temos que tentar esboçar as caraterísticas básicas de uma teologia do Hexateuco.

Podemos ver que, mesmo tentando explicar a formação e a mensagem do Pentateuco de maneira querigmática, von Rad ainda dependia dos resultados das hipóteses documentarias do século 19. Hoje, não existe mais o mesmo consenso sobre a natureza documentária do Pentateuco. Vários problemas ainda existem. Por exemplo, a própria existência dos chamados “documentos” é questionada. Muitos reconhecem a variedade de literatura que se encontra no Pentateuco e a dificuldade de reconstruir completamente a história da transmissão e preservação das tradições históricas dos hebreus. Então, insistir na primazia da teoria documentária sem admitir a possibilidade da existência de outras respostas melhores é perigoso e arrogante, especialmente quando a própria existência dos documentos é questionada. Até mesmo os críticos que aceitam tal reconstrução não concordam quanto à extensão dos documentos.

A Questão da Historicidade

A questão da historicidade das narrativas do Pentateuco é a seguinte: o significado da fé de Israel se encontra nos eventos históricos registrados no Pentateuco ou nas declarações dos escritores do texto sobre o significado dos eventos? Outra maneira de fazer a mesma pergunta é esta: o leitor do texto pode entender o significado de um evento sem uma interpretação fornecida pelo escritor do texto que relata o evento? Quando von Rad desenvolveu a sua metodologia teológica, ele reconheceu a necessidade de tratar da questão da história na formação do kerygma de Israel. Ele disse: “A imagem ‘querigmática’, mesmo quando está muito distante da imagem critico-histórica, baseia-se numa história concreta e não é nunca simplesmente inventada.” Mas, ao mesmo tempo ele reconheceu as divergências entre o retrato “científico” oferecido pelos críticos literários e históricos modernos e o retrato histórico bíblico.

A metodologia de von Rad, mesmo tentando afirmar a questão da historicidade dos eventos de que o texto dá testemunha, menospreza as tentativas legítimas de investigar a história bíblica por meio de arqueologia e outras disciplinas históricas legítimas porque ele achou que o significado “verdadeiro” do texto não pode ser encontrado em investigações históricas. A questão da historicidade é: onde se encontra o significado do texto bíblico e especialmente, o Pentateuco? A posição aceita neste artigo é que deve haver uma convergência entre as investigações históricas legítimas e o retrato teológico que se encontra no texto bíblico. O significado e a mensagem do Pentateuco não devem ser entendidos como proclamações sem um referencial histórico. As verdades sobre Deus e seu relacionamento com o seu povo devem ter um firme fundamento na história verdadeira e não somente num “desejo santo” por parte de um proclamador-esritor histórico. Tem que existir uma relação entre a verdade e a experiência que vá além de formulações existenciais.

A Questão do Kerygma

A tarefa de identificar o kerygma talvez seja o problema mais sério desta metodologia. Esta questão se divide em duas partes. Primeiro: existe no Pentateuco um kerygma? Segundo: se existe, como descobrir esse kerygma? A pressuposição de von Rad é que o kerygma existe e pode ser demonstrado. Na sua exposição teológica, von Rad explicou a sua metodologia querigmática como a maneira mais adequada para entender a Bíblia teologicamente. Ele identificou o que ele chamou “o centro de gravidade das ações divinas” que se destacam nas várias épocas históricas de Israel. No Hexateuco o “centro de gravidadel” mais claro são as alianças feitas por Javé. Dentro desse “centro” maior existe a promessa aos patriarcas que tem um conteúdo duplo: (1) a promessa da possessão da terra e (2) a promessa de posteridade inumerável. Para von Rad o item mais evidente nas alianças foi a promessa da terra. Mas, von Rad não chamou esses “centros de gravidade” o kerygma de Israel. Ele preferiu expor somente o conteúdo do texto de uma maneira querigmática.

Talvez a crítica mais importante seja a possibilidade de usar a palavrakerygma para descrever a natureza do conteúdo do Pentateuco. A palavra se encontra na LXX, principalmente na descrição da pregação dos profetas mas não se refere à função da literatura do Antigo Testamento. Até que ponto a literatura do Pentateuco deve ser considerada uma proclamação? Sem dúvida, o livro de Deuteronômio pode ser entendido como uma série de “sermões” proferidos por Moisés, mas, além desse livro e as passagens que são especificamente proclamações, o Pentateuco inteiro deve ser chamado de kerygma? Do ponto de vista do autor deste artigo, identificar o Pentateuco como kerygma é aplicar a palavra de maneira incorreta.

Conclusão

É impossível negar a contribuição de Gerhard Von Rad à história da Teologia do Antigo Testamento. As suas obras são leituras obrigatórias para todos que desejam entender bem esta disciplina. Em descreve o Pentateuco como kerygma ele trouxe nova vitalidade para o estudo do Antigo Testamento pelas comunidades que o usam e estimam.

A posição apresentada neste artigo é que será difícil identificar o Pentateuco como kerygma. Mas, dizer que o Pentateuco não é kerygmanão é dizer, ao mesmo tempo, que o conteúdo do Pentateuco não deve ser proclamado ou que a igreja não deve ouvi-lo como a palavra de Deus. Identificar o Pentateuco como kerygma é destacar a necessidade de ouvi-lo como a palavra de Deus. Chamar o Pentateuco de kerygma é chamar a atenção para a mensagem vital dos documentos antigos, não somente para Israel, mas, também, para a igreja. A igreja em nossos dias precisa ouvir claramente a Bíblia como a palavra de Deus e aceitar o compromisso que ela nos apresenta. Somente assim será capaz de cumprir a sua missão.