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sábado, 17 de setembro de 2011

John Dominic Crossan e Marcus Borg: O Messias e seus seguidores


O estudo histórico de Jesus de Nazaré e de seus primeiros seguidores apresenta já larga trajetória no âmbito mundial. Durante muitos séculos, Jesus e o Cristianismo foram objeto de reflexões teológicas, a partir de denominações confessionais cristãs. Com o período moderno, tanto o catolicismo como as igrejas reformadas debruçaram-se sobre tais temas, fundamentais para as querelas entre as diferentes correntes religiosas. Eram tempos de guerras de religião, com a Europa dilacerada por conflitos sangrentos. Com o avanço do Iluminismo, em suas diversas facetas, surgiram novas preocupações, menos afeitas às contendas religiosas. Iniciava-se a busca pela historicidade. Nessa longa caminhada, o positivismo, com sua ênfase na reconstrução do que realmente aconteceu, marcou um momento importante de inflexão. A intervenção de Deus, de forma direta, nos afazeres humanos foi descartada, em benefício das explicações que fizessem redundar em causas racionais e mundanas. O século XIX testemunhou, nesse afã, um florescimento crescente da literatura científica que buscava explicar os movimentos religiosos, em geral, e o cristianismo, em particular, à luz da objetividade.


Nem por isso Jesus e o cristianismo deixaram de ser objeto preferencial daqueles dedicados à religião. A História, como disciplina nascente, voltou-se para os grandes temas, relevantes para os estados nacionais e impérios nascentes, com sua ênfase na política, nas guerras e nos estados. Os influxos da Filosofia, da Sociologia e da Antropologia, nas primeiras décadas do século XX, viriam a criar novas perspectivas e interesses no campo propriamente historiográfico. Marc Bloch, com seus reis taumaturgos, mostrava que as representações culturais, também de caráter religioso, eram tanto ou mais relevantes do que as visões tradicionais, do ponto de vista da ciência histórica. Abertas as portas das mentalidades, as religiosidades adquiriam novos estatutos também no âmbito da historiografia. Multiplicaram-se os estudos sobre os sentimentos e representações religiosas não apenas das elites, como das pessoas comuns, em sua imensa diversidade e variedade.


O Jesus histórico e a historicidade do movimento em torno do Galileu tornaram-se objeto pleno iure da historiografia. Multiplicaram-se as vertentes interpretativas, caracterizadas tanto por sua diversidade, como não poderia deixar de ser, como por seu rigor metodológico. As ferramentas básicas da pesquisa historiográfica, a partir do estudo das fontes, foram desenvolvidas de forma acurada. A tradição literária foi esmiuçada, de modo a buscar nos textos oriundos da ortodoxia todo o seu universo de composição, datação, autoria e muito mais. As pesquisas arqueológicas foram, também, essenciais para redimensionar o estudo das fontes históricas. As investigações pela Arqueologia produziram uma pletora de novos documentos, na forma de sítios arqueológicos, edifícios, artefatos de uso quotidiano, mas também inscrições. A paleografia foi, neste âmbito, de relevância particular, pela diversidade de documentos que ajudaram a iluminar a vida à época de Jesus e de seus seguidores. O estudo do Jesus Histórico e do cristianismo dos primeiros tempos tornou-se um campo historiográfico consolidado.


No âmbito internacional, publicações recentes atestam essa vitalidade, como a produção recente de John Dominic Crossan traduzida e publicada no Brasil, como BORG, Marcus J.; CROSSAN, John Dominic. O Primeiro Natal, o que podemos aprender com o nascimento de Jesus. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008, Tradução de Vera Ribeiro. Primeiro, convém tratarmos da abordagem adotada pelos autores. Eles a definem com duas características ou aspectos: em termos históricos e parabólicos. A abordagem histórica das narrativas trata de situar as antigas simbologias em seu contexto do século I d.C.: são textos antigos em um contexto antigo. A historicidade está na imersão nas concepções de mundo que são outras, diferentes das nossas, filhas do Iluminismo e do Positivismo dos últimos dois séculos. Em seguida, e como resultado dessa busca pelas circunstâncias culturais e simbólicas antigas, a abordagem parabólica procura superar a dicotomia iluminista entre fato e fábula, acontecimentos e invenções. Parábolas, como os mitos, apresentam estruturas arquetípicas e representam não fatos, com sua irrelevância, mas mensagens perenes. A morte de uma pessoa é apenas a extinção de uma vida. O nascimento de um bebê não passa do início. O Natal e a Ressurreição, como metáforas do nascimento e do renascimento, revestem-se de relevância por sua significação não como fato irrepetível, mas como presença na reinterpretação constante do ciclo da vida.


A partir destas premissas teóricas, descortinam as especificidades de Mateus e Lucas. Este enfatiza, em seu relato, as mulheres, os marginalizados e o Espírito Santo. São Maria e Isabel, assim como, no decorrer da vida de Jesus, muitas que são mencionadas, algumas nomeadas, outras não. Dentre os marginalizados, estão os pastores já no nascimento e, depois, os pobres, os néscios, os aleijados, os coxos, os cegos. Por fim, o Espírito Santo, que caracteriza o relato da trajetória dos seguidores de Jesus após sua morte, nos Atos dos Apóstolos do mesmo Lucas. Já Mateus apresenta uma narrativa fundada na referência, sempre simbólica, às escrituras hebraicas, como na ênfase em cinco elementos, como no Sermão da Montanha, que retoma, por assim dizer, os cinco livros do Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio): concepção virginal de Maria, Belém como local de nascimento de Jesus, Sagrada Família parte do Egito, após o infanticídio de Herodes em Belém e sobre Nazaré.


Mateus e Lucas compartilham, segundo Borg e Crossan, da uma contraposição bem marcada entre o reino da violência do Império Romano e o Reino de Deus, fundado na justiça e na igualdade. Propõem que a simbologia da fé cristã e do Natal, em particular, seja uma contraposição ao poder imperial. Os epítetos teológicos do imperador são transpostos para Jesus: se o imperador é chamado de senhor, divino, filho de Deus, Deus, Deus de Deus, Redentor, Libertador, também Jesus, assim também com as expressões Salvador, Evangelho, Paz, todas usadas para se referirem ao governante romano. O nascimento divino de Augusto, reportado por Suetônio (Augusto, 94,4) não podia deixar de servir de parâmetro, ou de ponto de partida, em negativo, para o relato dos primeiros seguidores de Jesus. Eles não sabiam muito sobre o tema e nem se preocupavam com isso, pois consideravam sua vinda ao mundo como uma dádiva divina, oposta à opressão imperial romana, este o argumento central de Borg e Crossan. Outro grande elemento de inspiração parabólico está na leitura metafórica dos livros da Bíblia hebraica. Assim, Jesus aparece como novo Moisés em seqüências triádicas: separação, revelação, reunião; sonho/revelação, temor e interpretação.


O volume apresenta, de forma muito clara e didática, como a narrativa dos Evangelhos estava preocupada com dois aspectos: a crítica social e a luta pela justiça terra, por meio de uma apresentação metafórica desses objetivos. Consideram, portanto, o movimento dos primeiros seguidores de Jesus como parte de uma ampla e variada resistência ao domínio romano. Neste aspecto, os autores inserem-se entre as múltiplas tomadas de posição recentes, por parte da historiografia sobre o mundo romano, interessadas em estudar o mundo romano em sua diversidade e contradições. Em seguida, a leitura metafórica do relato bíblico está bem envolvida nas interpretações da História da Cultura como um campo de representações sociais. Em ambos os aspectos, portanto, os autores fazem parte de movimentos muito mais amplos e que alguns designam como pós-modernos e outros preferem chamar apenas crítica cultural. Haveria aqueles que se queixariam da pouca ênfase, nas abordagens de ambos os autores, na experiência religiosa, com seus aspectos variados, que vão dos contatos com o mundo espiritual – a apocalíptica, mas também outras sensações e interações metafísicas.


Outra obra importante merece ser mencionada: Marcus J. Borg e John Dominic Crossan, A Última Semana. Um relato detalhado dos dias finais de Jesus. Rio de Janeiro, Ediouro, 2010, tradução de Alves Calado. A Semana Santa é o ápice do calendário cristão, toda a fé está fundada nos dias finais de Jesus, que culminam no Domingo de Páscoa. Como disse Paulo de Tarso, se Jesus não ressuscitou, não há salvação cristã (I Cor. 15:14: “Se Cristo não ressuscitou, nossa proclamação e a fé de vocês foram em vão”). Os estudiosos do cristianismo inicial Borg e Crossan procuram, neste belo volume, explicar o caráter simbólico do relato da vida de Jesus e, em particular, dos seus últimos dias, como sumário de sua trajetória terrena. Não estão nem um pouco interessados em estabelecer, restabelecer, o que efetivamente aconteceu, buscar distinguir fato de ficção. Ao contrário, mostram, de maneira magistral, como apenas uma leitura alegórica, ou parabólica, como eles preferem designar, permite entender a lógica e profundidade do relato de Marcos sobre os dias finais de Jesus. Convém explicar o que eles entendem por parábola e como ela se diferencia da concepção moderna de verdade. Contrapõem a verdade positivista de algo que ocorreu e todos podem constatar de forma objetiva à subjetividade que está subjacente a uma narrativa verossímil, possível. A parábola do filho pródigo é, nesta perspectiva, prenhe de verdade, por conter uma lição: o filho gastador se afasta, gasta tudo e, quando volta para casa, é recebido pelo pai com júbilo.


Ninguém se pergunta se existiu um filho chamado tal, que tenha vivido em tal cidade, em tal época: o que importa é seu caráter universal. O mesmo é aplicado pelos autores a todos os relatos do Evangelho de Marcos e, em particular, no que se refere à sua entrada em Jerusalém, no Domingo de Ramos, até sua ressurreição no Domingo de Páscoa.


Seus argumentos são simples e claros. O relato de Marcos é grande parábola, não precisa ter nenhuma relação muito direta com os acontecimentos que uma câmera de gravação teria podido captar, se isso fosse possível àquela época. Interpretam toda a semana como uma contraposição de dois mundos, ou de duas concepções de mundo: a imperialista romana, baseada na força, e a messiânica hebraica, fundada no amor, na paz e na justiça na terra. A primeira representa a sociedade de classes, opressora, por oposição à visão camponesa da comunidade que tudo compartilha. Jesus entra montado num burrico, numa contra-parada, em relação à entrada de Pilatos e suas tropas, no Domingo de Ramos. Há dois reinos de deus em disputa: o de Roma, do imperador, aclamado como deus e filho de deus, fundado na paz resultante da violência e da dominação. E há outro reino de Deus, também nesta terra, com Jesus como Deus e filho de Deus, um caminho para a paz resultante do amor pelo próximo.


Em Marcos, nada busca descrever o que aconteceu. Tudo que se menciona tem um propósito simbólico. Assim, na terça-feira santa, Jesus, perguntado sobre o primeiro dos mandamentos, responde que “amarás o teu próximo como a ti mesmo” está junto com o amor a Deus, na frente de todos. Borg e Crossan não dizem que Jesus disse isso na terça: pouco importa. Ressoa o ensinamento de Jesus, de toda sua vida, tal como entendida por volta de 70 d.C., quando da redação do Evangelho de Marcos. E acrescentam: “amar o próximo significa recusar-se a aceitar as divisões entre respeitados e marginalizados, justos e pecadores, ricos e pobres, amigos e inimigos, judeus e gentios”.


A Páscoa, nesta leitura simbólica, representa que Jesus vive: não está entre os mortos, e sim entre os vivos. Jesus é o Senhor deste mundo e, portanto, os senhores deste mundo não o são. A Páscoa mostra que os sistemas de dominação deste mundo, como o romano e o americano, nos dias de hoje, não são obras de Deus e não persistirão. Nem todos os leitores compartilharão dessa perspectiva geral do volume, que interpreta as narrativas do Evangelho de Marcos e a vida de Jesus como entendida por seus seguidores iniciais como uma contestação da dominação de classe. No entanto, há um aspecto muito importante, bem explorado pelos autores: as diferenças de concepção do mundo dos antigos, sempre atentos à magia do mundo e alheios à noção moderna de fatos empíricos e de verdades objetivas que não dependam do observador. Os antigos, tanto gregos, romanos com hebreus, consideravam o mundo embebido em espiritualidade. O Salvador do mundo, com poderes divinos, podia ser o imperador ou Jesus, mas ambas as concepções eram religiosas e simbólicas. Por isso mesmo, a ressurreição de Jesus era tão crível quanto a ascensão do imperador morto ao mundo dos deuses. Por outro lado, a mensagem dos autores vai contra a leitura literal da Bíblia por fundamentalistas, uma leitura positivista, como eles afirmam, que busca apenas comprovar que tudo ocorreu como descrito, a despeito das contradições e divergências nos próprios textos antigos.


No Brasil, o estudo da Antiguidade tardou para desenvolver-se de forma profissional. A Universidade brasileira é tardia. Enquanto a América hispânica teve suas universidades em período colonial inicial, a universidade brasileira data do século XX e apenas começou a generalizar-se depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Os cursos de História surgiram aos poucos, com ênfase na História do Brasil, ainda que a História Antiga tenha constado dos currículos desde o início. A pesquisa só viria a consolidar-se aos poucos, com os cursos de mestrado e doutoramento, a partir da década de 1970. A História Antiga iniciou-se pela garra de aficionados que se interessavam pelo tema, mas que não tiveram, em grande parte, a oportunidade de conhecer a documentação antiga no original. A partir da década de 1980, o estudo histórico da Antiguidade torna-se mais profissional, com a crescente capacitação dos estudiosos, tanto no conhecimento dos idiomas antigos, como das outras fontes, em particular arqueológicas. O contato com a ciência internacional e a inserção na pesquisa mundial torna-se mais corrente, em especial a partir da década de 1990.


Nesta perspectiva, entende-se a trajetória dos estudos sobre a historicidade do cristianismo, no âmbito historiográfico brasileiro. Amadureceram as condições para o florescimento de pesquisas originais e isto por alguns motivos muito particulares. Por um lado, desde o período militar (1964-1985) as denominações cristãs passaram a ter uma influência crucial nos movimentos sociais. Multiplicaram-se as comunidades eclesiais de base, assim como as associações religiosas cristãs independentes. A alfabetização crescente dos segmentos populares, assim como as religiosidade emergentes, levaram à maior difusão não apenas da Bíblia, como de variada literatura espiritual. Com o restabelecimento das liberdades e do estado de direito, tudo isso levou à consolidação de um ambiente caracterizado pela diversidade religiosa, embora sempre em sua imensa maioria no espectro do cristianismo.


Estas mudanças formam o pano de fundo para o aumento exponencial de interesse, em seus diversos aspectos, por Jesus, os apóstolos e o cristianismo em geral. Surgiram produções brasileiras, tanto televisivas, como cinematográficas, voltadas para a vida de Jesus e seus seguidores, assim como programas radiofônicos, livros, revistas, CDs, DVDs, e muito mais. Marchas por Jesus, jogadores de futebol com camisetas cristãs, rezas em estádios, como nunca antes o cristianismo tornou-se tema não apenas de fé ou tradição, como de busca espiritual e de conhecimento. Tudo isto pode parecer distante da seara acadêmica, mas não convém esquecer que a ciência se faz a partir das ruas, das inquietações e dos movimentos sociais. Uma história da ciência que ultrapasse a História das Idéias, de cunho internalista, reconhece que o cerne das interpretações e compreensões científicas surge como resultante dos embates sociais. Costuma-se chamar a esta perspectiva de externalista, pois coloca a ênfase nas transformações científicas na sociedade, não no interior da ciência mesma, como se as idéias tivessem uma vida própria.


Assim, entende-se que a historiografia brasileira tenha se voltado, cada vez mais, para a religiosidade, de períodos mais recentes e mais distantes. A área de História Antiga, ao consolidar-se como campo de investigação especializado, não escapou a essa tendência. O reconhecimento da diversidade como valor, tanto no mundo como no Brasil, contribuiu, também, para que o estudo da religiosidade antiga ganhasse reconhecimento. O tempo das escolas monolíticas, das ortodoxias interpretativas e dos temas canônicos passara. Com isso, floresceram as pesquisas historiográficas sobre identidades, sentimentos, emoções, representações. O cristianismo antigo encontrou, neste ambiente, condições particularmente favoráveis. O interesse dos estudiosos pôde ser direcionado para a pesquisa acadêmica, ao corrente da literatura internacional, equipada com o comando do instrumental acadêmico, a partir do domínio da documentação escrita, material e iconográfica e das questões teóricas e metodológicas. Multiplicaram-se os centros de pesquisa historiográfica dedicados a estudos da temática cristã antiga.


quinta-feira, 28 de julho de 2011

O Bispo John Selby Spong e as narrativas tardias da ressurreição de Cristo

Em seu último livro, “Por que o Cristianismo deve mudar ou morrer: um bispo fala com os crentes no exílio”, o Bispo Spong estabeleceu um programa claro para o futuro da teologia anglicana e da teologia cristã. Ele acredita que o Cristianismo morrerá, a não ser que sejam feitas mudanças radicais que redundem numa nova Reforma.

Se nós devemos reformular uma visão da futura teologia anglicana, como acredito que devemos, cabe a nós faze-lo, em diálogo com o Bispo Spong. O seu desafio merece ser levado a sério e não considerá-lo como disparates violentos de um bispo herege. As questões e os debates que ele coloca são inevitáveis, mas suas respostas são problemáticas para nós que temos feito esforços para combinar, numa síntese aceitável, o tratamento crítico destemido do Novo Testamento com uma adesão fiel à sua mensagem como ela é formulada no quérigma apostólico e resumida nos credos (em outras palavras, uma ortodoxia crítica).

A necessidade dessa abordagem dual foi impressa em mim pelas minhas sucessivas experiências nos estudos do Novo Testamento em Cambridge e em Tubinga, na Alemanha. Em Cambridge aprendi métodos críticos, em Tubinga mergulhei na Igreja da Alemanha e na sua resistência teologicamente fundamentada aos desafios do Socialismo Nacional, um desafio que pode ser enfrentado por uma adesão fiel à palavra de Deus testemunhada nas Santas Escrituras. Em lealdade a essa dupla inspiração que entro aqui no exame da chamada para a mudança feita pelo Bispo Spong.

Teísmo

O Bispo Spong argumenta que, se o Cristianismo deseja ter o futuro, devemos abandonar o que ele denomina de “teísmo”. Por essa afirmação ele não quer dizer que todos nós devamos ser “ateus”, mas devemos abandonar uma espécie particular de teísmo, a visão de Deus como “uma divindade personalista”, localizada num lugar externo, “lá em cima”. Tal Deus foi pensado como Deus que intervém no processo cósmico e na história humana. É o argumento do Bispo Spong de que a visão do mundo sucessiva e cumulativamente moldada por Copérnico, Galileu, Newton, Darwin, Freud e Einstein não podem possivelmente acomodar a visão tradicional da divindade. Em lugar do “teísmo” assim entendido, o Bispo Spong propõe que o substitua com a idéia tillichiana de Deus como “fundamento do Ser”.

Todavia, aqui se recomenda certo cuidado. A visão do mundo como um sistema fechado de causa e efeito não é quase tão seguro hoje como tem sido desde o Iluminismo. Há uma crescente abertura para a possibilidade de dimensões da realidade não suscetíveis à observação científica. Marcus Borg chama a atenção para isso, quando ele diz que “a visão do mundo que rejeita ou ignora o mundo do Espírito é não só relativa, mas está em processo de ser rejeitada. Não há nenhuma razão intelectual para supor que essa segunda ordem da realidade seja irreal e há muitas evidências experimentais para sugerir a realidade do Espírito.” Borg não está falando de um outro mundo lá em cima, mas de uma dimensão ou profundidade da realidade observável, que transcende à observação científica e que é perceptível somente a uma visão espiritual.

Muito do que o Bispo Spong trata como teísmo tradicional é denominado de “mitologia” por Rudolph Bultmann. Isso é verdade, por exemplo, com o conceito “Deus lá em cima” e “Deus que desce lá de cima”. Tal linguagem mitológica deve ser, certamente, “demitologizada”. Por essa operação, Bultmann quis dizer que essa linguagem não deve ser interpretada literalmente nem ser eliminada, mas antes interpretada existencialmente. Embora questionemos a adequação da interpretação existencial de Bultmann da mitologia bíblica, concordaríamos inteiramente que quando a Bíblia diz Deus está “lá em cima” e “está descendo”, não faríamos nem uma interpretação literal nem sua eliminação, porque essa linguagem estaria dizendo alguma coisa de muita importância sobre Deus. Ela está atentando uma experiência de Deus como uma realidade que transcende o nível ordinário da realidade. Os textos bíblicos tais como esses dão testemunho disso: “Assim diz o Alto e Sublime que vive para sempre, e cujo nome é santo: Habito num lugar alto e santo, mas habito também com o contrito e humilde de espírito, para dar novo ânimo ao espírito humilde...” (Is 57.15). A passagem fala no mundo do Espírito como a dimensão do ser de Deus. Ela se refere a uma outra dimensão da realidade não acessível à observação científica. Não fala na localização de Deus, mas da qualidade do ser de Deus.


A Bíblia fala por meio da linguagem mitológica sobre o “Deus que desce”, especialmente em um ponto crucial na história de Israel, o Êxodo: “De fato tenho visto a opressão sobre o meu povo no Egito, tenho escutado o seu clamor, por causa dos seus feitores, e sei quanto eles estão sofrendo. Por isso desci para livra-los das mãos dos egípcios e tira-los daqui para uma terra boa e vasta, onde manam leite e mel” (Ex 3.7-8).

Noutra vez, no retorno do Exílio: “Ah! Se rompesses os céus e descesses!” (64.1); no evento de Cristo: “Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima de todos os céus” (Ef 4.10), ou “Aquele que vem do Alto está acima de todos” (Jo 3.31).

A linguagem da “descida” é indispensável para a visão bíblica de Deus. Esta linguagem não deve ser tomada literalmente, mas ela fala da condescendência divina, o que Lutero denominou de Herablassung, a permissão divina de se humilhar. Nesses eventos cruciais da história da salvação, Deus se envolveu graciosamente com o sofrimento do seu povo. Rejeitando isso, rejeita-se o que a Bíblia quer dizer quando ela declara que, em última instância, Deus é amor. Certamente, o Bispo Spong não deseja negar isso.

Quanto à linguagem tillichiana de Deus como o fundamento do Ser, tal conceito é bom até certo ponto. Mas é precisamente a divindade transcendente – o Deus que está “acima de todos os céus”, o qual “desce” no êxodo e se revela no evento de Cristo – que é o fundamento de nosso Ser. É uma questão de isto e aquilo mantido em tensão paradoxal, e não de Deus só lá em cima ou Deus ou só Deus nas profundezas de nosso ser. Em síntese, o teísmo não deve ser abandonado, se devemos ser fiéis à mensagem bíblica, mas deve ser expandido para incluir tanto o “hiper-panteismo” e o “panteísmo” (Deus acima de todas as coisas e em todas as coisas).

Denominamos este Deus de Deus pessoal, não porque Deus é uma pessoa como nós, mas porque o Deus bíblico volta-se para as pessoas em sua Palavra. Por essa palavra, Deus nos chama numa relação de “eu e tu” com Deus. O conceito da Palavra de Deus, tão central através da Bíblia, nos proíbe negar a imagística da pessoa atribuída a Deus como o Bispo Spong negaria.

Porém pode esta alegação de que Deus interferiu na história do seu povo, Israel, ser sustentada, diante de uma visão do mundo como um sistema fechado de causa e efeito? Alguns argumentam hoje em dia que a concepção moderna do mundo foi modificada pela descoberta de um fator de indeterminação no processo cósmico e alguns apologistas cristãos não se têm mostrado vagarosos em explorar essa revisão. Entretanto, essa indeterminação parece estar confinada ao nível das partículas subatômicas e devemos fazer uso disso com cautela antes de aplicar a possibilidade de indeterminação aos eventos históricos. Seria mais proveitoso ao teólogo apelar a dois níveis de realidade já mencionados. Em nível de observação histórica-crítica, todos os eventos históricos são, em princípio, explicáveis em termos de causa e efeito. Isto é verdade mesmo a respeito dos eventos bíblicos centrais. Porém esses eventos podem ser vistos de uma perspectiva diferente, num nível diferente. Os grandes eventos bíblicos são acompanhados de declarações proféticas. Moisés afirma ser o Êxodo uma intervenção de Deus; o deutero-Isaias afirma que o retorno é um ato de Deus e os apóstolos dão testemunho de Jesus Cristo como ato redentor de Deus. Em cada caso, a Palavra é proclamada e recebida em fé ou rejeitada em desconfiança. É a Palavra e a fé que possibilitam à teologia cristã falar dos atos de Deus, da intervenção divina na história, nos eventos que, ao nível ordinário, são entendidos em termos de causa e efeito.

Pecado humano e a Lei

Está correto o Bispo Spong ao rejeitar como um todo o conceito da condição humana pecaminosa, que a teologia tradicional tem denominado de “pecado original”? É verdade como argumenta o bispo, que a nossa visão da conduta humana é muito diferente do que a de cinqüenta anos atrás, para não dizer nada sobre o Novo Testamento? Entendemos muito mais sobre a conduta humana desde Marx, Freud e Jung, entretanto os seres humanos ainda exploram e matam uns aos outros.

Essas considerações trazem questões sobre a Lei. Naturalmente, a estória de Moisés, que sobe à montanha para receber o Decálogo nas tábuas de pedra é um mito, como o bispo reconhece corretamente. Como todos os grandes mitos bíblicos, este expressa uma verdade importante. Os seres humanos têm, geralmente, alguma espécie do senso do certo e errado. Eles sentem, no geral, estar debaixo do que Kant denominou de “imperativo categórico”. Esse senso do certo e errado foi moldado pela experiência de Deus por parte de Israel. Eles reconheciam ser responsáveis a Yahweh e que tinham de prestar contas de sua conduta. Eles compreenderam que o senso deles sobre o certo e o errado não era sua imaginação. Naturalmente, suas formulações dos Mandamentos foram culturalmente condicionadas, como o bispo bem ressalta. Isso foi verdade com respeito ao mandamento que ordena a observação do sábado. Também, é verdade que a proibição do adultério tinha muito mais a ver com o direito da propriedade do que com a moralidade sexual. Porém devemos interpretar os Dez Mandamentos (ou, pelo menos, a segunda tábua) nos termos da radicalização que Jesus fez deles no Sermão do Monte, e nos termos do mandamento duplo do amor. Mesmo o quarto (ou terceiro) mandamento não é inteiramente irrelevante: o sábado encontra sua realização escatológica na vinda do Reino de Deus e celebramos a vinda do Reino e nela participamos na observância semanal do Dia do Senhor. Por conseguinte, para os cristãos o domingo não é o sábado, mas sua realização escatológica.

Há uma outra razão para insistir na origem divina do imperativo moral: o pecado é visto como pecado só à luz da exigência divina. Paulo percebeu isso quando se referiu à lei como convocação para o arrependimento (Rm 7.7-25). Só se for a transgressão de um imperativo divino será exposta como pecado, isto é, rebelião contra Deus e perversão de nossa relação com Deus. Até que isso aconteça, não será percebida a necessidade da libertação que vem de Deus. É em resposta a essa situação que o ato redentor em Jesus Cristo aconteceu. Para isso voltemos a nossa atenção.

Evento de Cristo

Podemos concordar com o Bispo Spong que partes da estória de Jesus nos evangelhos não devem ser tomadas literalmente. Isto é verdadeiro, especialmente, com respeito às narrativas da infância e às narrativas da ressurreição.

Tenho argumentado alhures que as estórias de nascimento em Mateus e Lucas são essencialmente expressões narrativas de Cristologia e que a crença cristã significa a aceitação da cristologia que elas expressam. O bispo está no caminho certo quando ele as trata como “midrash”, embora midrash – que, no geral, é entendido como interpretação expandida de um texto do Antigo Testamento – provavelmente não seja um termo técnico correto nesta conexão. Talvez as estórias do nascimento contenham um pouco mais de história factual do que o bispo está pronto a admitir. Certos pontos de concordância entre Mateus e Lucas esclarecem que alguma coisa das tradições factuais entesouradas nas estórias são de origem pré-evangelho e podem, de fato, ser históricas. Tais itens incluem os nomes de Maria e José, a alegação de que José é de origem davídica e a datação do nascimento de Jesus pelo fim do período do reinado de Herodes e, talvez, o curioso timing da concepção e a localização do nascimento em Belém. Ao ler essas estórias, devemos, todavia, ouvir a proclamação que elas entesouram – que Jesus Cristo é a intervenção de Deus, cumprimento da esperança da restauração de Israel.

O Bispo John Spong tem alergia em alto grau para com a “teologia do sangue”, isto é, a interpretação da morte de Jesus como sacrifício. (É irônico que esteja enfastiado com este tópico, considerando que este século pode ser o mais sanguinolento da história humana!) Podemos concordar com ele que a linguagem do sacrifício que ocorre no culto não tem sentido na cultura contemporânea. Entretanto os seguintes pontos devem ser considerados:

1. O sacrifício no culto se supre de apenas uma de várias imagens com que o Novo Testamento apresenta o sentido da morte de Cristo. Para Paulo, essa imagem tem apenas um papel menor e nas citações das tradicionais fórmulas de hinos outras importantes imagens são tomadas das relações pessoais e internacionais (reconciliação), tribunal (justificação) e campo de batalha (vitória sobre os poderes cósmicos do mal).

2. A Cruz é central para a mensagem cristã, o coração do ato de Deus em Jesus Cristo. Os teólogos não devem abandoná-la como incompreensível, mas devem descobrir uma imagística adequada para a sua compreensão contemporânea.

3. “Sangue” no pensamento hebraico significa, não simplesmente uma realidade física, mas a própria vida, especialmente, a vida entregue à morte.

4. A idéia do amor doador, derramado até a morte, não é certamente estranha para a nossa cultura ou para qualquer outra cultura. Podemos apreciar o sentido paulino quando ele se refere a Cristo, que “me amou e deu a si mesmo por mim” (Gl 2.20).

Estórias (narrativas) da Páscoa

A proclamação da Páscoa resumida em 1Coríntios 15.3-8 é, geralmente, reconhecida pelos estudiosos como sendo pré-paulina e, provavelmente, seja uma tradição muito antiga. As pessoas constantes da lista nessa formulação tiveram experiências visionárias que podem ser suscetíveis à explicação psicológica, num certo nível. Entretanto, no nível da proclamação e da fé, o Novo Testamento afirma que elas são encontros de revelação. Por meio dessas revelações os receptores vieram a crer que Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos e o exaltou ao modo transcendente de ser Deus. As narrativas de aparição no fim dos evangelhos são, no entanto, tardias. Em analogia com as estórias de nascimento, elas são expressões narrativas da mensagem da Páscoa entesouradas na tradição mais antiga. Elas põem ao público o caráter revelador das aparições e suas implicações: a inauguração da quérigma, a fundação da Igreja e sua missão e a origem do batismo cristão e alguns aspectos da eucaristia.

Muito mais está em debate a estória do túmulo vazio. Muitos estudiosos concordariam com o Bispo Spong e, na esteira de R.Bultmann, a abandonam como uma “lenda tardia”. Eles podem estar certos. Todavia tenho dito alhures que há um núcleo histórico da estória, a partir do qual a “lenda posterior” se desenvolveu. Este é o fato de que Maria Madalena, talvez, com outras mulheres, descobriram o túmulo, no qual Jesus foi sepultado, inexplicavelmente vazio. Como todos os outros fatos históricos é suscetível de explicações naturais e um certo número dessas possibilidades é mencionado ou sugerido nos evangelhos. Por exemplo, Marcos se esforça em ressaltar que as mulheres anotaram o local do túmulo na tarde da Sexta-feira, portanto, elas foram ao túmulo errado na manhã da Páscoa. Mateus fala no rumor de que os discípulos roubaram o corpo. João sugere que alguma outra pessoa (um jardineiro, por exemplo) removeu o corpo. Não há dúvida que há outras explicações naturais possíveis, mas as narrativas dos sinóticos oferecem expedientes literários de um anjo que faz a interpretação. Aqui aparece a comunidade da fé propiciando uma categoria de interpretação da revelação a um fato histórico. Um outro argumento mencionado, freqüentemente, contra a historicidade do túmulo vazio é sua ausência no quérigma pré-paulino de 1 Coríntios 15.3-8, e no debate subseqüente de Paulo nesse capítulo. Entretanto, é não só defensável que a seqüência “foi sepultado – foi ressuscitado” implica na inversão do sepultamento, porém, mais importante é o argumento subseqüente de Paulo de que a ressurreição dos fiéis implica numa ressurreição do corpo. A ressurreição de Jesus e a ressurreição geral dos fiéis envolvem a transformação do corpo. Naturalmente, isso não significa – como se insiste freqüentemente hoje em dia – a ressuscitação do cadáver, mas a transformação do físico. A tradição do túmulo vazio é um lembrete de que o cristão deve abraçar a glorificação da matérias do cosmos.

Ascensão

A ascensão é contada apenas duas vezes no Novo Testamento e só nos escritos de Lucas 24.50-51 (texto mais longo) e Atos 1.6-11. A segunda versão é claramente o que o Bispo Spong chamaria de midrash baseada numa estória semelhante acerca de Elias em 2 Reis 2.1-12. Ela coloca na forma de estória uma crença que foi, geralmente, mantida na Igreja primitiva, isto é, que – sendo ressuscitado dentre os mortos – é agora exaltado ao modo transcendente do ser de Deus. O bispo, na minha opinião, está muito certo em insistir que a estória não deve ser tomada literalmente. Porém não deve ser eliminada a verdade que ela enuncia. A “ascensão” é uma linguagem mitológica para a verdade-fé essencial de que Jesus é Senhor, removido das restrições do espaço e tempo e constantemente acessível e presente na Palavra e sacramento.

Parusia

Do mesmo modo, a parusia não deve ser considera como evento literal, no qual Cristo desce com seus anjos sobre nuvens do céu no fim da história. É uma expressão simbólica do que Teilhard de Chardin denominou de “ponto ômega”, o alvo da história humana e do processo cósmico. Mais uma vez, o Bispo Spong é correto em insistir que esse evento não pode ser tomado literalmente. Entretanto, mais uma vez, deve ser interpretado e não eliminado.

Jesus como pessoa de Espírito


O bispo tomou de Marcus Borg a descrição de Jesus de Nazaré como “pessoa do Espírito”. Esta idéia tem sua atração, certamente. Jesus pode ser apresentado inteligivelmente ao mundo contemporâneo como uma figura de uma classe de gente que teve uma experiência fora do comum daquelas dimensões elevadas da realidade, do sagrado, do mundo do Espírito. Porém essa compreensão não consegue captar o que é único sobre Jesus. É como a descrição dele como mestre e profeta, o que é verdade.

É interessante que, em apoio a essa visão sobre Jesus como pessoa do Espírito, Marcus Borg cita a versão de Lucas do discurso inaugural de Jesus na sinagoga de Nazaré, (Lc 4.18-19), no qual Jesus menciona Isaías 61. Tão impressionado, por ser tão oportuna essa citação para a situação, Borg está tentado a aceitar a sua autenticidade, a despeito de ser uma expansão de Marcos 6.1 por parte de Lucas e, portanto, provavelmente seja mais redacional, (isto é, aditamento editorial). Seja como for, há outras passagens para apoiar a noção de que Jesus é a figura plena de Espírito, por exemplo, Marcos 3.28-29; Lucas 7.22, que ressoam Isaias 61. Há passagens cuja autenticidade está menos aberta à dúvida do que a versão de Lucas do sermão em Nazaré. Por conseguinte, podemos concordar que Jesus entendeu a si mesmo como estando habilitado para a sua missão pelo Espírito e neste contexto, há algo mais preciso: o poder escatológico de Deus que vem de um modo único sobre seu único agente escatológico. Aqui, na interpretação que Jesus faz de si mesmo, encontramos a gênese pré-Pascal da cristologia pós-pascal, pós-ressurreição.

Conclusão

A teologia anglicana tem sempre se esforçado em ser fiel ao quérigma e ao credo, e aberta aos novos conhecimentos. Alcançar tal síntese é uma tarefa árdua e um constante desafio. É sempre mais fácil aderir rigidamente ao sentido literal da Bíblia e rejeitar qualquer novo conhecimento. É igualmente mais fácil se capitular sem reserva ao pensamento contemporâneo e comprometer a verdade do evangelho. Porém, desde a publicação de Lux Mundi, o anglicanismo tem demonstrado a preferência por “isto e aquilo”, ao invés de “ou isto ou aquilo” – tanto a fidelidade para com a revelação quanto para com a abertura para novas descobertas da verdade. Continuar nesse caminho será o desafio para a teologia anglicana no terceiro milênio.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

John Dominic Crossan, Marcus Borg e as Pretensões do Jesus Seminar x William Lane Craig e a Defesa da Fé Cristã

O SEMINÁRIO JESUS X WILLIAM L. CRAIG

Embora não compartilhe da corrente apologética do Dr. William Lane Craig, não posso ser injusto e deixar de atribuir-lhe o destaque que tem, merecidamente, recebido por seu vigo em defender o Cristianismo Histórico. Sua abordagem Clássica, que emprega a Teologia Natural (Five Views on Apologetics, p. 15), tem sido influente nos estudantes da disciplina no Brasil. Isto não quer dizer que não existam falhas seríssimas nesta corrente (ver. Plantinga, Alvin. A objeção Reformada à Teologia Natural. In: Grandes Temas da Tradição Reformada, pp. 50 - 60). Apesar disso, considero o Dr. Craig uma das maiores autoridades em Defesa da Fé Cristã, em especial por seu poderoso raciocínio lógico.

O Dr. Craig já tem mais de 40 debates públicos e tem sido considerado imbatível por muitos ateístas. Bendigo a Deus pela vida do Dr. Craig.

Abaixo um artigo do Dr. Craig acerca do Seminar Jesus, um projeto que tenta reconstruir (os Evangelhos já fizeram isso!) o Jesus Histórico. O Dr. Craig dá uma verdadeira exposição sobre as pressuposições deste projeto. O artigo é longo, mas recomendo firmemente a sua leitura.

Redescobrindo o Jesus histórico: Pressuposições e pretensões do Jesus Seminar

Nesta primeira parte de um artigo em duas parttes, as pressuposições e pretensões do Jesus Seminar [Seminário Jesus]† são expostas e avaliadas. Nota-se que as principais pressuposições (i) do naturalismo científico, (ii) da primazia dos evangelhos apócrifos e (iii) da necessidade de um Jesus politicamente correto são injustificadas e resultam em um retrato distorcido do Jesus histórico. Embora o Jesus Seminar faça pretensão de falar em nome da erudição na busca pelo Jesus histórico, mostra-se que, de fato, é um pequeno grupo de críticos em busca de cumprir uma pauta cultural.

Em 1985, um proeminente estudioso do Novo Testamento chamado Robert Funk fundou um grupo de pesquisa no Sul da Califórnia ao qual ele deu o nome de Jesus Seminar [Seminário Jesus]. O propósito ostensivo do Seminar era descobrir a pessoa histórica de Jesus de Nazaré usando os melhores métodos da crítica bíblica científica. Na visão de Funk, o Jesus histórico tem sido sobreposto por lenda, mito e metafísica cristãos e, assim, certamente não se parece com a figura de Cristo apresentada nos Evangelhos e adorada pela Igreja hoje. O alvo do Seminar é arrancar essas camadas e recuperar o Jesus autêntico, aquele que realmente viveu e ensinou.

Fazendo isso, Funk espera atear uma revolução que trará fim ao que ele considera uma era de ignorância. Ele bombardeia a organização religiosa estabelecida por “não permitir que a inteligência da alta erudição infiltre-se em pastores e sacerdotes até chegar a uma massa faminta”1. Ele vê o Jesus Seminar como um meio de denunciar aos leigos a respeito da figura mitológica que lhes ensinam a adorar e de trazê-los face a face com o verdadeiro Jesus da história.

O grau com que os Evangelhos têm supostamente distorcido o Jesus histórico é evidente na edição dos Evangelhos publicada pelo Jesus Seminar. Chamada The Five Gospels [Os Cinco Evangelhos], por incluir o chamado Evangelho de Tomé, ao lado de Mateus, Marcos, Lucas e João, essa versão imprime em vermelho somente aquelas palavras que os membros do Seminar determinam como sendo autênticas, realmente faladas por Jesus. Como resultado, menos de 20% dos ditos atribuídos a Jesus são impressos em vermelho.

O Jesus real e histórico parece ter sido uma espécie de crítico social itinerante, o equivalente judeu a um filósofo cínico grego. Ele nunca reivindicou ser o Filho de Deus, nem perdoar pecados, nem inaugurar uma nova aliança entre Deus e o homem. Sua crucificação foi um acidente na história; seu cadáver foi provavelmente lançado em uma sepultura suja e rasa, na qual apodreceu ou foi comido por cães selvagens.

A essa altura, se essas conclusões estão corretas, nós que hoje somos cristãos somos vítimas de um delírio em massa. Continuar a adorar Jesus atualmente, à luz dessas conclusões, seria ou idolatria ou mitologia – idolatria caso se adore a figura meramente humana que realmente viveu; mitologia caso se adore a ficção da imaginação da Igreja. Ora, não sei quanto a você, mas eu não quero ser nem um idólatra, nem um mitólatra. Portanto, é de máxima importância avaliar se as afirmações do Jesus Seminar são verdadeiras.

Hoje, portanto, quero falar sobre as pressuposições e pretensões do Jesus Seminar.

Pressuposições do Jesus Seminar

Primeiramente, falemos de pressuposições. O que é uma pressuposição? Uma pressuposição é uma suposição que se faz antes de se observarem as evidências. Pressuposições são cruciais porque determinam como se interpretam as evidências. Deixe- me dar-lhe um exemplo. Você ouviu falar sobre o homem que pensava estar morto? Esse sujeito acreditava firmemente que estava morto, mesmo sendo um ser humano vivo, funcionando normalmente. Bem, a esposa dele persuadiu-o para visitar um psiquiatra, que em vão tentou convencê-lo de que, de fato, estava vivo. Finalmente, o psiquiatra teve um plano. Ele mostrou ao homem relatórios médicos e evidências científicas de que mortos não sangram. Após minuciosamente convencer o homem de que mortos não sangram, o psiquiatra pegou um alfinete e fez um furinho no dedo do homem. Quando o homem viu a gota de sangue respingar em seu dedo, seus olhos se esbugalharam. “Ah!”, ele gritou, “Mortos sangram, sim, afinal!”.

A crença desse homem de que estava morto foi uma pressuposição que determinou como ele interpretou as evidências. Ele se apegava tão fortemente àquela pressuposição que ela distorceu como ele observava os fatos. Ora, da mesma maneira, o Jesus Seminar tem certas pressuposições que determinam como olham para as evidências. Felizmente, o Jesus Seminar deixou abundantemente claras algumas de suas pressuposições.

Naturalismo

A pressuposição número um do Seminar é o antissobrenaturalismo ou, mais simplificadamente, o naturalismo. Naturalismo é a visão segundo a qual todo evento no mundo tem uma causa natural. Não há eventos com causas sobrenaturais. Em outras palavras, milagres não podem acontecer.

Ora, essa pressuposição constitui absoluto divisor de águas para o estudo dos Evangelhos. Caso se pressuponha o naturalismo, então coisas como a encarnação, o nascimento virginal, os milagres de Jesus e Sua ressurreição são jogados pela janela antes mesmo que se sente à mesa para se observarem as evidências. Como eventos sobrenaturais, não podem ser históricos. Mas caso a pessoa esteja ao menos aberta ao sobrenaturalismo, então esses eventos não podem ser excluídos de antemão. Deve-se estar aberto para observar honestamente as evidências de que eles ocorreram. De fato, caso não se pressuponha o naturalismo, então os Evangelhos vêm à tona parecendo fontes históricas muito boas sobre a vida de Jesus.

R. T. France, estudioso neotestamentário britânico, escreveu:

No nível de seu caráter literário e histórico, temos boa razão para tratar seriamente os Evangelhos como fonte de informação sobre a vida e o ensino de Jesus... Realmente, vários historiadores antigos se considerariam sortudos por terem quatro relatos responsáveis [como os Evangelhos], escritos dentro de uma ou duas gerações a partir dos eventos, e preservados em tal riqueza de evidências de manuscritos primitivos. Além desse ponto, a decisão de aceitar o registro que oferecem é provavelmente influenciada mais pela abertura a uma visão de mundo sobrenaturalista do que estritamente por considerações históricas.2

Em outras palavras, o ceticismo quanto aos Evangelhos não se baseia na história, mas na pressuposição do naturalismo. A Introdução a The Five Gospels [Os Cinco Evangelhos] declara:

A controvérsia religiosa contemporânea volta-se para a questão de se a visão de mundo refletida na Bíblia pode ser levada adiante nesta era científica e sustentada como um artigo de fé ... o Cristo do credo e do dogma ... não pode mais comandar a aprovação daqueles que têm visto os céus através do telescópio de Galileu.3

Mas por que, poderíamos perguntar, é impossível, em uma era científica, acreditar em um Cristo sobrenatural? Afinal, diversos bons cientistas são cristãos e a física contemporânea mostra-se bastante aberta à possibilidade de realidades que estão fora do domínio da física. Que justificação existe para o antissobrenaturalismo?

Nesse ponto, as coisas ficam realmente interessantes. De acordo com o Jesus Seminar, o Jesus histórico por definição deve ser uma figura não-sobrenatural. É aí que apelam para D. F. Strauss, o crítico bíblico alemão do século XIX. O livro de Strauss The Life of Jesus, Critically Examined [A vida de Jesus, criticamente examinada] baseou-se abertamente na filosofia do naturalismo. Segundo Strauss, Deus não age diretamente no mundo; Ele age apenas indiretamente, através de causas naturais. No que diz respeito à ressurreição, Strauss declara que o ressuscitar de Jesus por Deus “é irreconciliável com idéias ilustradas da relação de Deus com o mundo”4.

Observe atentamente, então, o que o Jesus Seminar diz sobre Strauss:

Strauss distinguiu nos Evangelhos o que ele chamou o “mítico” (por ele definido como qualquer coisa lendária ou sobrenatural) do histórico ... A escolha que Strauss admitiu em sua avaliação aos Evangelhos foi entre o Jesus sobrenatural – o Cristo da fé – e o Jesus histórico.5

Qualquer coisa sobrenatural é, por definição, anistórica. Nenhum argumento é dado; somente se define dessa maneira. Assim, temos um divórcio radical entre o Cristo da fé, ou o Jesus sobrenatural, e o Jesus real e histórico. Ora, o Jesus Seminar dá um visível endosso à distinção de Strauss: eles vêem que a distinção entre o Jesus histórico e o Cristo da fé é “o primeiro pilar da sabedoria acadêmica”6.

Mas, a essa altura, toda a busca pelo Jesus histórico se torna uma charada. Caso se inicie pressupondo o naturalismo, então, é claro, termina-se com um Jesus puramente natural! Esse Jesus reconstruído e naturalista não se baseia em evidências, mas na definição. O incrível é que o Jesus Seminar não faz qualquer tentativa para defender tal naturalismo; apenas o pressupõe. Mas essa pressuposição é completamente injustificada. Desde que a existência de Deus seja mesmo possível, então temos de estar abertos à possibilidade de que Ele tem agido miraculosamente no Universo. Somente se existe uma prova a favor do ateísmo pode-se justificar o pensamento de que milagres são impossíveis.

Isso levanta exatamente a questão de se os parceiros do Jesus Seminar sequer acreditam que Deus realmente existe. Em um debate com John Dominic Crossan, o co- presidente do Jesus Seminar, eu levantei exatamente essa questão. Veja atentamente como ele responde:

Craig: Essa distinção que você faz entre declarações de fé e declarações de fatos me perturba. Eu gostaria de saber o seguinte: o que você acha da declaração de que “Deus existe”? É uma declaração de fé ou de um fato?

Crossan: É uma declaração de fé para todos os que a fazem.

Craig: Quer dizer que, de acordo com sua visão, então, falando factualmente, não é verdade que Deus existe.

Crossan: Essa não seria uma maneira muito agradável de expressar isso. Deixe-me expressar-me dessa maneira a você. O que eu estou dizendo aqui é para tentar levar a fé seriamente. Entendam que o dr. Craig quer equacionar fé e fato. Há pessoas neste mundo que não acreditam que Deus existe. Eu entendo isso. Eu chego a pensar que eles estão errados, mas isso não se torna nem mais um pouco um ato de fé. Eles estão tendo um ato de fé em algo mais...

Craig: Mas se a existência de Deus é uma declaração de fé, e não uma declaração de um fato, isso quer dizer que a existência de Deus é simplesmente uma concepção interpretativa que uma mente em particular – um crente – coloca no Universo. Mas no Universo não existe um ser como Deus. Isto é, isso é simplesmente uma interpretação que um crente coloca dentro do Universo. Parece-me que, em um nível da realidade, independentemente da consciência humana, sua cosmovisão é realmente ateísta e que a religião é simplesmente uma estrutura interpretativa que indivíduos em particular colocam no mundo, mas nenhuma dessas é factual e objetivamente verdadeira...

Crossan: Não, eu diria que o que você está tentando fazer é imaginar o mundo sem nós. Ora, infelizmente, não posso fazer isso. Se você fosse me pedir (o que acabou de fazer) para considerar a partir da fé como Deus seria se nenhum ser humano existisse, seria como me perguntar: “Será que eu ficaria incomodado se não tivesse sido concebido?”. Eu realmente não sei como responder a essa questão.

Craig: É claro que você sabe!

Crossan: Espere um minuto! Nós só conhecemos Deus do modo como Deus revelou-nos Deus; isso é tudo que poderíamos saber em qualquer religião.

Craig: Durante a era jurássica, quando não existiam seres humanos, Deus existia?

Crossan: Pergunta insignificante.

Craig: Claramente, essa pergunta não é insignificante. É uma pergunta factual. Existia um Ser que era o Criador e Sustentador do Universo durante aquele período de tempo em que nenhum ser humano existia? Parece-me que, pela sua visão, seria dito um “Não”.

Crossan: Bem, eu provavelmente prefiriria dizer “Não”, porque o que você está fazendo é tentar se colocar na posição de Deus e perguntar: “Como é Deus à parte da revelação? Como é Deus à parte da fé?” Não sei se você pode fazer isso. Você pode fazer isso, suponho, mas não sei se teria realmente algum sentido.7

Parece muito óbvio que o dr. Crossan nem mesmo afirmaria que realmente há um Deus que existe fora da imaginação humana. Bem, se Deus é apenas uma projeção da consciência humana, se realmente não há ninguém “lá fora”, além daqui, então é claro que é impossível que Deus tenha agido sobrenaturalmente no mundo, como os Evangelhos afirmam. Então, a primeira pressuposição do Jesus Seminar, uma pressuposição à qual não fazem qualquer tentativa para justificar, é naturalismo ou talvez até ateísmo. Rejeite essa pressuposição e toda a construção entra em colapso.

Primazia dos Evangelhos Apócrifos

Ora, se o Jesus histórico não é o Jesus dos Evangelhos, o Jesus sobrenatural, então como estudiosos céticos entendem quem o Jesus histórico realmente era? Bem, isso leva à segunda pressuposição que gostaria de discutir, a saber, críticos céticos pressupõem que nossas fontes mais primárias para a vida de Jesus não são os Evangelhos, mas em vez disso escritos fora do Novo Testamento, especificamente os chamados evangelhos apócrifos. Esses são evangelhos forjados sob os nomes dos apóstolos, como o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Pedro, o Evangelho de Filipe, e assim por diante. Diz-se que esses escritos extrabíblicos são a chave para se reconstruir corretamente o Jesus histórico.

O professor Luke Johnson, distinto estudioso de Novo Testamento na Universidade Emory, aponta que toda a recente enxurrada de livros reivindicando revelar o Jesus verdadeiro seguem o mesmo padrão previsível:

1. O livro começa fazendo alardes das credenciais acadêmicas do autor e sua pesquisa prodigiosa.
2. O autor afirma oferecer uma nova, e talvez até mesmo reprimida, interpretação de quem Jesus realmente era.
3. Diz-se que a verdade acerca de Jesus é descoberta por meio de fontes fora da Bíblia, as quais nos capacitam a ler os Evangelhos de uma nova maneira que está em desacordo com o sentido literal, ao pé da letra.
4. Essa nova interpretação é provocante e até erótica, dizendo, por exemplo, que Jesus casou- se com Maria Madalena ou era o líder de uma seita alucinógena ou um filósofo cínico andarilho.
5. Implica-se que as crenças cristãs tradicionais são, portanto, solapadas e precisam ser revisadas.8

Se você ouvir falar de livros com esse padrão familiar, sua antena crítica deve automaticamente se levantar. Você está prestes a ser ludibriado. Pois o fato é que não há fonte fora da Bíblia que ponha em questão o retrato de Jesus pintado nos Evangelhos.

Deixe-me tomar apenas alguns exemplos do que são fontes favoritas do Jesus Seminar. Primeiramente, o chamado Evangelho de Tomé. O Jesus Seminar considera-o uma fonte tão importante que o inclui ao lado de Mateus, Marcos, Lucas e João em sua edição de The Five Gospels [Os Cinco Evangelhos].

Ora, o que é o Evangelho de Tomé? É um escrito que foi descoberto no Egito logo após a Segunda Guerra Mundial. Era parte de uma coleção de documentos gnósticos. O Gnosticismo foi uma antiga filosofia do Oriente Próximo a qual sustentava que o mundo físico é mau e a esfera espiritual é boa. A salvação vem através do conhecimento secreto da esfera espiritual, o qual libera de seu encarceramento no mundo físico a alma. O chamado Evangelho de Tomé é anuviado com a filosofia gnóstica. Era, sem dúvida, parte da literatura da seita gnóstica, muito semelhante a seitas da Nova Era em nossos dias. Fragmentos, em grego, do Evangelho de Tomé que remontam a 200 d.C. foram encontrados, e a maioria dos estudiosos dataria o original como tendo sido escrito na última metade do século II d.C. Uma evidência desse fato é que o Evangelho de Tomé usa vocabulário proveniente de traduções e harmonias dos Quatro Evangelhos feitas no século II.

Assim, a vasta maioria de estudiosos, atualmente, considera o Evangelho de Tomé como uma fonte derivada do século II d.C. e que reflete a visão do Gnosticismo cristão.
Inacreditavelmente, contudo, os parceiros do Jesus Seminar consideram o Evangelho de Tomé como uma fonte primária primitiva concernente a Jesus e a utiliza para revisar o retrato de Jesus encontrado nos Evangelhos. Ora, que razões eles têm para datar o evangelho de Tomé como tão primitivo? Incrivelmente, toda a abordagem deles a essa questão é um raciocínio em círculo. Ele funciona assim:

1. O Evangelho de Tomé é uma fonte primária primitiva.“Como você sabe?”
2. Porque nenhum dito apocalíptico é encontrado no Evangelho de Tomé.“Por que isso é evidência para uma data primitiva?”
3. Isso é evidência para uma data primitiva porque Jesus não estava envolvido na Apocalíptica.“Como você sabe que Ele não estava envolvido nisso?”
4. Porque o Evangelho de Tomé prova que Ele não estava.“Por que acreditar no que o Evangelho de Tomé diz?”
5. O Evangelho de Tomé é uma fonte primária primitiva.

Desse modo, Howard Clark Kee, da Universidade de Boston, declara esse procedimento como “um triunfo do raciocínio circular”9. O estudioso neotestamentário britânico Thomas Wright diz que isso é como o Ursinho Puff seguindo seu próprio rastro na neve, ao redor de uma moita, e cada vez que vê mais rastros toma-os como evidência de que sua presa é até mais numerosa e mais real do que o que ele pensou antes!10 Não é de admirar que os parceiros do Jesus Seminar não têm sido capazes de convencer, por meio de argumentos como esse, muitos dos seus colegas!

Um segundo exemplo é o chamado Evangelho de Pedro. Embora esse escrito tenha sido condenado como espúrio, pelos primitivos Pais da Igreja, o texto real nos era desconhecido até que uma cópia foi descoberta num túmulo egípcio em 1886. Semelhantemente ao Evangelho de Tomé, traz as marcas da influência gnóstica e usa unicamente vocabulário do século II, de modo que os estudiosos unanimemente o consideram como um escrito do século II.

Apesar disso, John Dominic Crossan, o copresidente do Jesus Seminar, baseia toda sua reconstrução da morte e sepultamento de Jesus em sua afirmação de que o Evangelho de Pedro realmente contém a mais antiga fonte primária sobre Jesus e que os Quatro Evangelhos são todos baseados nela. Portanto, diz ele, os Evangelhos não têm valor histórico porque não têm qualquer fonte de informação sobre a morte de Jesus a não ser o relato do Evangelho de Pedro. Mesmo que o próprio Evangelho de Pedro descreva a ressurreição de Jesus, o naturalismo de Crossan o previne de acreditar nesse evento. Mas, com os Evangelhos bíblicos fora de seu caminho, Crossan pode afirmar que o Evangelho de Pedro é apenas lendário e que não há testemunho confirmatório à ressurreição de Jesus.

Um dos aspectos mais estranhos do raciocínio de Crossan é que ele parece ter se esquecido completamente do Apóstolo Paulo. Mesmo se Crossan estivesse correto quanto ao Evangelho de Pedro ser primário, o testemunho deste ainda seria independentemente confirmado pelos escritos de Paulo, que se refere ao sepultamento de Jesus e até lista as testemunhas das aparições da ressurreição de Jesus. Assim, mesmo se o relato da ressurreição no Evangelho de Pedro fosse fundamental para os Quatro Evangelhos, não há razão histórica para negar a ressurreição.

Porém, de fato, a teoria de Crossan a respeito da primazia do relato do Evangelho de Pedro é virtualmente rejeitada universalmente pelos estudiosos de Novo Testamento. O proeminente estudioso canadense Ben Meyer chamou os argumentos de Crossan de “excêntricos e implausíveis”11. Até mesmo Helmut Koester, da Universidade Harvard, rejeita o raciocínio de Crossan como sendo “seriamente defeituoso”12. Não existe qualquer sinal de dependência literária dos Quatro Evangelhos com relação à narrativa do Evangelho de Pedro. A conclusão óbvia é que o Evangelho de Pedro é baseado nos Quatro Evangelhos, e não o contrário. Thomas Wright resume isso tudo declarando que a hipótese de Crossan “ainda não foi aceita por qualquer outro estudioso sério” e a data e origem sugeridas por Crossan “são puramente imaginárias”13.

O que eu disse sobre o Evangelho de Tomé e o Evangelho de Pedro poderia ser dito sobre todos os outros evangelhos apócrifos, também. De acordo com John Meier, proeminente crítico neotestamentário norte-americano, a idéia de que os evangelhos apócrifos fornecem-nos novas informações acerca de Jesus é “em grande medida fantasia”14. O fato é que esses escritos são tardios, escritos secundários moldados pela teologia do século II e pela posterior. Nas palavras do Professor Johnson, isso significa que, a despeito de toda publicidade, “os escritos do Novo Testamento permanecem como nossas melhores testemunhas históricas” para a vida de Jesus15.

Religião Politicamente Correta

A terceira pressuposição do Jesus Seminar é que a religião em geral e Jesus em particular devem ser politicamente corretos. Em nossos dias de relativismo e pluralismo religiosos, é politicamente incorreto reivindicar que uma religião é absolutamente verdadeira. Todas as religiões têm de ser, igualmente, caminhos válidos até Deus. Mas caso se insista em ser politicamente correto, então de alguma maneira deve-se tirar Jesus do caminho. Pois suas afirmações radicais e pessoais de ser o singular Filho de Deus, a revelação absoluta de Deus Pai, o único mediador entre Deus e o homem, são francamente embaraçosas e ofensivas para a mentalidade politicamente correta. O Jesus dos Evangelhos não é politicamente correto!

O desejo de ter uma religião politicamente correta e, em particular, um Jesus politicamente correto, distorce o julgamento histórico do Jesus Seminar. Eles desconsideram como sendo anistórico qualquer aspecto de Jesus que acham ser politicamente incorreto. Julgamentos históricos estão, pois, sendo feitos, não com base nas evidências, mas com base na polidez política.

Em lugar algum esse procedimento é mais evidente do que na obra de Marcus Borg, um dos membros mais célebres do Seminar. Como adolescente, Borg perdeu sua fé em Deus, em Cristo e na Bíblia. Mas alguns anos após formar-se no seminário, ele teve um número de experiências místicas que lhe deram um novo conceito sobre Deus. Ele diz: “Percebi que Deus não se refere a um ser sobrenatural ‘lá fora’ [...] Antes, Deus se refere ao sagrado no centro da existência, o santo mistério que está ao redor e dentro de nós”16. Ora, se essas palavras são entoadas da maneira certa, podem soar muito significativas e profundas. Mas são raquíticas em seu entendimento de Deus. O que Borg quer dizer quando afirma que “Deus é mais do que tudo e, apesar disso, tudo está em Deus”17?

De qualquer forma, Borg então reinterpreta Jesus à luz de suas próprias experiências místicas. Se imaginamos Jesus dessa maneira, diz Borg, isso “solapa uma crença cristã amplamente difundida segundo a qual Jesus é singular, o que é comumente ligado à noção de que o Cristianismo é exclusivamente verdadeiro e que ‘Jesus é o único caminho’”18. Nesse ponto, parece muito óbvio que o desejo de Borg por ter uma religião politicamente correta determina sua reconstrução do Jesus histórico. Como aponta Douglas Geivett, a rejeição de Borg da figura tradicional de Jesus tem “menos a ver com pesquisa histórica sobre Jesus e mais a ver com as próprias crenças de Borg sobre Deus”19.

O resultado de se permitir que a polidez política dite o que é e não é histórico é que se acaba criando um anacronismo: um Jesus politicamente correto, de fins do século XX, é apenas um reflexo de si mesmo [e não de Jesus]. Assim, o Jesus de Borg mostra ser um liberal social, dirigido por uma “política de compaixão”, a fim de defender os direitos das mulheres e dos pobres contra uma situação social opressiva. O caráter compassivo de Jesus, diz Borg, também implica a defesa dos direitos dos gays e a provisão de saúde universal imediatamente! É difícil discordar do veredicto de Howard Kee: os parceiros do Jesus Seminar sucumbiram à tentação de criar Jesus à sua própria imagem20. Eles olharam para o longo poço da história e viram seus próprios rostos refletidos no fundo dele21.

Em suma, as conclusões do Jesus Seminar se baseiam não tanto em evidências, quanto nas pressuposições do naturalismo, na primazia dos evangelhos apócrifos e na religião politicamente correta. Não há justificação para qualquer dessas pressuposições. Rejeite-as, e todo o Jesus reconstruído deles colapsa em ruína.

Pretensões do Jesus Seminar

Bem, a essa altura, você pode estar se perguntando como, nesse mundo, a erudição do Novo Testamento poderia ser baseada em fundações tão frágeis como essas. De fato, não o é. Isso me leva para o meu segundo ponto principal: as pretensões do Jesus Seminar.

O Jesus Seminar se retrata para a mídia como a voz representativa da erudição do Novo Testamento hoje, passando por cima das cabeças dos clérigos a fim de contar a leigos sem desconfiança, que têm sido ludibriados pela Igreja, como Jesus realmente era. Apenas uma evidência dessa pretensão é que eles nomearam a tradução deles dos Evangelhos “A Versão do Acadêmico” [The Scholar’s Version] – como se as equipes de linguistas e especialistas que produziram traduções tais quais a RSV [Revised Standard Version], a NEB [New English Bible] ou a NIV [New International Version]‡ não fossem de acadêmicos! Eles são muito preocupados em retratar-se como historiadores desinteressados, e não teólogos. Essa é a visão da mídia sobre o Jesus Seminar – um grande grupo de historiadores, acadêmicos representativos, falando a verdade sem tendências. Essas são as pretensões. Qual é a realidade?

Bem, a realidade vem a ser muito diferente. A reivindicação deles de terem 200 acadêmicos no Seminar é grosseiramente inflacionada: essa cifra inclui qualquer um que, de alguma maneira, esteve envolvido nas atividades do Seminar, como estar numa lista de correpondências. O número real de participantes regulares é somente de aproximadamente 40. E quanto às credenciais acadêmicas dos membros? Dos 74 listados na sua publicação The Five Gospels, somente 14 seriam figuras importantes no campo dos estudos de Novo Testamento. Mais da metade é de basicamente desconhecidos, que publicaram somente dois ou três artigos. Dezoito dos membros não publicaram absolutamente nada sobre estudos do Novo Testamento! A maioria tem posições acadêmicas relativamente inexpressivas – por exemplo, ensinar na faculdade de uma comunidade. De acordo com Johnson, “Os números, sozinhos, sugerem que qualquer reivindicação de representar ‘erudição’ ou a ‘academia’ é ridícula”22.

Realmente, é a reivindicação do Seminar de representar o consenso da erudição que tem deveras cutucado os estudiosos de Novo Testamento. E eu quero enfatizar que não estou falando sobre as reações de conversadores ou evangélicos: estou falando sobre a ampla gama de estudiosos de Novo Testamento. Por exemplo, Howard Kee denuncia o Jesus Seminar como “uma desgraça acadêmica”, e diz que as conclusões deles são “prejudiciais” e “periféricas”, não “um desenvolvimento substancial no estudo acadêmico responsável sobre o Jesus histórico”23.

De acordo com Johnson, a verdadeira pauta do Jesus Seminar não é acadêmica, mas social. Ele declara:

A pauta do Seminar não é erudição desinteressada, mas uma missão social contra a maneira como a igreja é dominada pela teologia evangélica – isto é, uma teologia enfocada na verdade literal dos Evangelhos. É importante notar, desde o princípio, que Robert Funk não concebe o Seminar como dando uma contribuição à erudição, mas como cumprindo uma missão cultural. Os inimigos declarados do Seminar não são simplesmente fundamentalistas ou a Convenção Batista do Sul [Southern Baptist Convention], mas todos aqueles que contribuem para qualquer entendimento tradicional de Jesus como Senhor Ressurreto e Filho de Deus.24

É essa pauta sociocultural que determina, de antemão, as conclusões do Jesus Seminar. Longe de representar o consenso da erudição de Novo Testamento, o Seminar na verdade representa as visões de uma minoria radical da periferia da ala esquerda da erudição bíblica. Não é de admirar que Jacob Neusner, um dos mais proeminentes teólogos judeus de nossos dias, tenha dito que o Jesus Seminar é ou a maior farsa acadêmica desde o Homem de Piltdown ou, senão, representa a falência dos estudos neotestamentários!25

Conclusão

Felizmente, a corrente principal da erudição neotestamentária tem se movido para uma direção muito diferente da periferia da ala esquerda representada pelo Jesus Seminar. Passados são os dias em que Jesus era tratado como uma figura da mitologia grega e romana. Passados são os dias em que Seus milagres eram desconsiderados como sendo contos de fada baseados em histórias de heróis mitológicos. Passados são os dias em que seu túmulo vazio e as aparições da ressurreição eram depreciados como sendo lendas ou alucinações. Atualmente, concorda-se amplamente que os Evangelhos são fontes históricas de valor com relação à vida de Jesus e que o contexto adequado para se compreenderem os Evangelhos não é a mitologia, mas o Judaísmo Palestino. Concorda-se amplamente que o Jesus histórico colocou-se e falou como estando no lugar do próprio Deus, proclamou o advento do Reino de Deus, e realizou ministério de operação de milagres e exorcismos, como sinais do Reino. Acho tremendamente gratificante ver que o movimento da erudição neotestamentária como um todo está em direção a confirmar com o entendimento tradicional de Jesus conforme retratado nos Evangelhos. Em particular, minha própria pesquisa concernente à ressurreição de Jesus me convenceu mais do que nunca que isso foi um evento histórico, verificável pelas evidências. O cristão pode estar confiante de que os fundamentos históricos de sua fé permanecem seguros. Você pode apostar sua vida nisso.

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Notas finais
1 Robert Funk, "The Issue of Jesus", Forum 1 (1985): 8.
2 R. T. France, "The Gospels as Historical Sources for Jesus, the Founder of Christianity", Truth 1 (1985): 86.
3 R. W. Funk, R. W. Hoover, and the Jesus Seminar, "Introduction" a The Five Gospels (Nova Iorque: Macmillan, 1993), p. 2.
4 David Friedrich Strauß, The Life of Jesus, Critically Examined, trad. George Eliot, ed. com Introdução por Peter C. Hodgson, Lives of Jesus Series (Londres: SCM Press, 1973), p. 736.
5 Funk, et. al., "Introduction", p. 3.
6 Ibid., pp. 2–3.
7 William Lane Craig e John Dominic Crossan, Will the Real Jesus Please Stand Up?, ed. Paul Copan, com Respostas de Ben Witherington III, Craig Blomberg, Marcus Borg e Robert Miller (Grand Rapids, Mich: Baker Bookhouse, 1998).
8 Luke Timothy Johnson, The Real Jesus (São Francisco: Harper San Francisco, 1996), p. 31.
9 Howard Clark Kee, "A Century of Quests of the Culturally Compatible Jesus", Theology Today 52 (1995): 22.
10 N. T. Wright, "Taking the Text with Her Pleasure", Theology 96 (1993): 307.
11 Ben Meyer, nota crítica a The Historical Jesus, de John Dominic Crossan, Catholic Biblical Quarterly 55 (1993): 575.
12 Helmut Koester, Ancient Christian Gospels (Londres: SCM, 1990), p. 220.
13 N. T. Wright, Jesus and the Victory of God (Minneapolis: Fortress Press, 1996), p. 49.
14 John P. Meier, A Marginal Jew, vol. 2: Mentor, Message and Miracles, Anchor Bible Reference Library (Nova Iorque: Doubleday, 1994), p. 5.
15 Johnson, Real Jesus, p. 89.
16 Marcus Borg, Meeting Jesus Again for the First Time (São Francisco: Harper San Francisco, 1994), p. 14.
17 Ibid.
18 Ibid., p. 37.
19 R. Douglas Geivett, "Is Jesus the Only Way?" in Jesus under Fire, ed. J. P. Moreland e M. J. Wilkins (Grand Rapids, Mich.: Zondervan, 1995), p. 187.
20 Kee, "Century of Quests", p. 26.
21 Uma memorável caracterização, feita por George Tyrell, sobre a escola da Antiga Busca pelo Jesus Histórico, Christianity at the Crossroads (Londres: Longman, Green, & Co., 1909), p. 44.
22 Johnson, Real Jesus, pp. 4–5.
23 Howard Clark Kee, Editorial: "Controversial Jesus Seminar", Los Angeles Times, 12 March 1991, p. B6; idem, "Century of Quests," p. 28.
24 Johnson, Real Jesus, p. 6.
25 Jacob Neusner, citado por Richard N. Ostling, "Jesus Christ, Plain and Simple", Time (January 10, 1994), p. 39.
† A importância deste artigo para o cenário brasileiro não pode ser diminuída. Embora o Jesus Seminar não seja alardeado na mídia deste país – diferentemente do que ocorre nos E.U.A. –, é inegável a influência do pensamento de seus membros em diversas revistas, jornais e documentários televisivos aqui difundidos. Não bastando tal injustificada tendência popular à posição do Seminar, vêem-se seus ensinos repercutindo em ambientes acadêmicos. Este tradutor pôde ouvir, dos lábios de diretor de certo seminário pentecostal (pós- graduado em uma prestigiada instituição teológica de orientação liberal), declaração segundo a qual John Dominic Crossan – um dos decanos do Seminar – seria a autoridade contemporânea em assuntos concernentes ao Jesus histórico. Enquanto isso, importantes estudiosos que reconhecem a confiabilidade dos Evangelhos em questões históricas – como N. T. Wright, Gary Habermas, Craig Blomberg ou mesmo William Lane Craig, autor do presente artigo – são esquecidos ou sequer conhecidos. Mal se publicam suas obras em língua portuguesa; por sua vez, os textos de alguns notáveis membros do Seminar são facilmente encontrados, no vernáculo, nas livrarias nacionais. A esperança desta tradução é pôr a lume a perspectiva crítica aos (aparentemente revolucionários) críticos da visão evangélica de Cristo, propondo ao contexto brasileiro uma alternativa conservadora academicamente respeitável e razoável quanto à “busca do Jesus histórico”. (Nota do Tradutor)
‡ Em Língua Portuguesa, seria possível pensar na NVI (Nova Versão Internacional), na Bíblia de Jerusalém e nas diversas edições baseadas na tradução de João Ferreira de Almeida. (N. do T.)
© William Lane Craig