segunda-feira, 24 de maio de 2010

Hillel, Shammai, Gamaliel

Nos primórdios da era cristã havia duas escolas principais de interpretação legal, fundadas respectivamente por Shammai e Hillel. À escola de Shammai tradicionalmente é atribuída uma interpretação mais rígida do que à escola de Hillel – não apenas na aplicação das leis individuais, mas também na postura, em relação à lei como um todo. Os discípulos de Shammai consideravam a quebra da lei (por ação ou omissão) uma quebra da lei como tal, enquanto os discípulos de Hillel ensinavam que o julgamento divino estava relacionado à preponderância do bem ou do mal, na vida inteira da pessoa.

Uma das afirmações mais bem conhecidas de Hillel é sua resposta a um homem que lhe pediu para resumir toda a lei no menor número possível de palavras. Hillel disse: “Aquilo que para você é detestável, não o faça aos outros, isso é toda a lei, todo o resto é comentário”. Essa citação da regra de ouro negativa como resumo da lei podia ser interpretada de maneiras que muitos fariseus teriam considerado perigosas. Mesmo se não foi essa a intenção de Hillel, pode ter encorajado alguém a argumentar, ao defrontar-se com um mandamento específico da lei, que este era obrigatório apenas até o ponto de evitar o sofrimento do próximo ou promovia o seu bem. Isso, segundo a opinião prevalente entre os rabinos, introduzia um critério subjetivo ilícito; era muito melhor que as pessoas, ao serem confrontadas com um mandamento da lei, obedecessem a ela simplesmente porque era um mandamento do Santo: não há porque perguntar por quê.

Que tipo de fariseu era Paulo? A pergunta não é fácil de responder. De acordo com Atos 22.3, ele foi instruído na escola de Gamaliel, e a tradição posterior faz de Gamaliel o sucessor de Hillel e líder da sua escola, e às vezes até seu filho ou neto. Mas as tradições mais antigas que refletem algumas recordações diretas do homem e seu ensino não estabelecem nenhum vínculo entre ele e a escola de Hillel. Em vez disso, falam de pessoas que pertenciam à escola de Gamaliel, como se ele tivesse fundado a sua própria.

Há certa dificuldade em distinguir as tradições sobre esse Gamaliel daquelas sobre um professor posterior com o mesmo nome (Gamaliel II, c. 100 d.C.), mas as tradições que pressupõe que o templo ainda estava de pé, certamente se referem ao Gamaliel anterior. Dizia-se que, “quando Rabban Gamaliel mais velho morreu, a glória da Tora cessou, e pureza e separação morreram” – o que quase equivale a dizer que ele foi o último dos verdadeiros fariseus, já que “separação” (heb. p’rîsût) vem da mesma raiz de “fariseus” e pode até ser traduzido por “farisaísmo”. Ente as regulamentações que lhe são atribuídas, está uma que liberaliza a lei do novo casamento após o divórcio.

Tanto nas tradições rabínicas como no Novo Testamento Gamaliel aparece como membro do Sinédrio. Lucas relata que, no estágio inicial da igreja em Jerusalém, os apóstolos foram acusados perante esse tribunal de desobedecer a sua orientação anterior de não ensinar publicamente no nome de Jesus. Quando alguns membros do tribunal queriam tomar medidas extremas contra eles, “um fariseu, chamado Gamaliel, mestre da lei, acatado por todo o povo” (At 5.34), lembrou seus colegas de outros movimentos no passado recente que pareciam ser perigosos por um tempo curto, mas logo entraram em colapso. E ele acrescentou (v. 38s):
"Agora, vos digo: dai de mão a estes homens, deixai-os; porque, se este conselho ou esta obra vem de homens, perecerá; mas, se é de Deus, não podereis destruí-los, para que não sejais, porventura, achados lutando contra Deus".

Isso certamente é doutrina típica dos fariseus. As pessoas podem desobedecer a Deus, mas sua vontade triunfará mesmo assim. A vontade do ser humano não é cerceada, mas o que ele quer é superado por Deus, quando realiza os seus propósitos. Nas palavras de um rabino posterior, o fabricante de sandálias Yohanan, “todo ajuntamento em prol do céu será confirmado, mas o que não é em prol do céu no fim não será confirmado”. Que Gamaliel seguiu a linha atribuída a ele por Lucas é o que devíamos esperar.

No entanto, se essa era a linha de Gamaliel, certamente não era a de Paulo. Na maioria das questões, por exemplo, na esperança da ressurreição e nos métodos de exegese bíblica, Paulo provavelmente foi um aluno apto e um seguidor fiel do seu professor. Até se chegou a pensar que um aluno de Gamaliel do qual não se diz o nome, mas que apresentou “descaramento em questões de estudo” e tentou refutar seu professor, era ninguém menos que Paulo. Se esse é o caso (o que é bastante incerto), então a tradição reflete a desaprovação com o posterior abandono do caminho rabínico por Paulo; não preserva uma recordação da conduta de Paulo, enquanto esteve aos pés de Gamaliel. Em um aspecto, porém, Paulo desviou-se do exemplo do seu mestre: ele repudiou o a idéia de que uma política de contemporização era a mais adequada em relação aos discípulos de Jesus. Em sua cabeça, esse novo movimento constituía uma ameaça mais mortal a tudo o que ele aprendera a valorizar do que Gamaliel parecia capaz de entender. Além disso, o temperamento de Paulo parece ter sido bem diferente do de Gamaliel: em contraste com a paciência e tolerância de estadista de Gamaliel, Paulo era caracterizado, em suas próprias palavras, por uma superabundância de zelo – que, realmente, ele nunca perdeu de todo.

Como o objeto do seu zelo eram as tradições dos ancestrais – a antiga lei de Israel e sua interpretação como era ensinada na escola de Gamaliel – não devemos ficar surpresos de saber que ele estava insatisfeito com a idéia dos seguidores de Hillel de que um mera preponderância do bem sobre o mal, na vida de alguém, era suficiente para lhe conseguir um veredito favorável, no dia do julgamento. Nesse ponto, pelo menos, ele parece ter se inclinado mais para a posição dos seguidores de Shammai de que a lei tinha de ser obedecida em sua totalidade. Que essa era a postura de Paulo está implícito mais tarde, quando ele diz aos seus convertidos na Galácia, que estavam sendo pressionados a adotar certas exigências legais do judaísmo, que eles não podiam pensar que, se escolhessem essa maneira de ser aceitos por Deus, podiam escolher os que quisessem entre os mandamentos divinos: “Testifico a todo homem que se deixa circuncidar, que está obrigado a guardar toda a lei” (Gl 5.3). Essa atitude em relação à lei determinou a atitude hostil de Paulo em relação aos seguidores de Jesus e seu ensino.

22 comentários:

Unknown disse...

Olá Humberto, tudo bem?
Humberto, onde você conseguiu as referências bibliográficas para escrever este artigo? Estou precisando de umas referências para usar em meu TCC. Se puder me enviar algumas?
Obrigado e tenha um ótimo dia

em busca do jesus histórico disse...

Diego meu amigo, agradecido por visitar o blog Em Busca do Jesus histórico. Minha dúvida é sobre o mote do seu TCC. É um trabalho específico sobre as 3 escolas rabínicas (Hillel, Shammai, Gamaliel)da Palestina ano I, ou é mais abrangente, sobre o Sinédrio e as classes dirigentes da Judeia. Mas de qualquer forma segue algumas bibliografias que devem ajudar:
1 - A Sombra do Templo
2 - A Classe dirigente da Judeia

Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia: volume 2 / volume 3 / volume 6
(está enciclopédia está disponibilizada em meu blog. Obra completa do volume 1 ao 6).
Caso queira mais uma "força" amplie ou restrinja o seu foco de pesquisa e me passe dados mais específicos, para que possa te ajudar, pois tenho muito material.
Minha Biblioteca dispõe de mais de 3.000 títulos.
Obrigado pela visita.

Unknown disse...

Parabéns pelo blog,foi muito útil pra mim com certeza farei outras visitas, Deus te abençoe!

em busca do jesus histórico disse...

Obrigado Wagner e sinta-se sempre a vontade para sugerir, opinar, criticar. Um abraço!

MARIA CRISTINA CATALDI CILENTO disse...

Parabéns...gostei do seu blog. Espero visita-lo com regularidade visto que também gosto de pesquisar a relação entre os cabalistas e suas escolas, com o cristianismo.
Paz
Cris

em busca do jesus histórico disse...

Grato Cristina. Esteja sempre a vontade para sugerir, criticar, opinar. Este é um tema que tem vários estudos para serem postados, contudo aguarda uma lista de espera.Breve!

Unknown disse...

Excelente página, parabéns! É desse tipo de conteúdo que o povo de Deus precisa encontrar na Internet.

Unknown disse...

seu blogger amigo é o melhor para fazer pesquisas

em busca do jesus histórico disse...

Obrigado meu amigo. Fique sabendo que o Em Busca do Jesus Histórico é um suporte para todos os que buscam conhecimento. Sinta-se a vontade para sugerir qualquer tipo de assunto relacionado com nossas pesquisas: filosofia, teologia, ciências da religião, religião comparadas,...
Abraço!

Unknown disse...

Parabéns pelo conteúdo postado nesse blog,
tem me ajudado muito. Obrigada!

em busca do jesus histórico disse...

Querido amigo, eu que agradeço a sua preferência!

Unknown disse...

Muito útil e esclarecedor..
Obg por compartilhar tal conhecimento.
Parabéns pela dedicação.

em busca do jesus histórico disse...

Querido leitor e amigo, obrigado pelo blogger em busca do jesus histórico ter levado conhecimento para a sua vida acadêmica e cotidiana. Abraço!

KEILA disse...

Oi Humberto! Muito esclarecedor seu artigo. Poderias me indicar um livro que conte sobre a vida de Jesus? Quero aprofundar meus conhecimentos, ou seja, conhecer a trajetória da vida dele. Obrigada

em busca do jesus histórico disse...

Olá! É muito bom saber que o Em Busca do Jesus Histórico tem despertado interesse sobre a vida de Jesus que vai além das narrativas encontradas nas fontes canônicas. Sim, posso lhe indicar muitos livros que podem examinar o Jesus Histórico para além das Escrituras. Posso sugerir todos os livros desses autores: John Dominic Crossan, Bart D. Ehrman, Albert Schweitzer, Raymond E. Brown, Gerd Theissen, David Flusser, Geza Vermes, John P. Meier. Todos estes autores trabalham sob o escrutínio da pesquisa histórica. Vou indicar também um autor brasileiro chamado André Leonardo Chevitaresse, meu amigo e pesquisador: Cristianismos. Questões e Debates Metodológicos - outro livro do André Chevitarese: Jesus de Nazaré - outro livro do André Chevitarese: A Descoberta do Jesus Histórico. E posso sugerir que você acompanhe pela Rede Vida de Televisão; Youtube, ou mesmo no meu blogger, o programa Páginas Difíceis da Bíblia. Eu semanalmente disponibilizo os programas que vão ao ar todos os Domingos. Espero ter ajudado. Tenha um bom dia e uma excelente semana.

em busca do jesus histórico disse...

Olá meu caro Neto! No primeiro momento irei responder a sua pergunta sobre Cristãos Judaizantes. Ok! Cristãos judaizantes foi um termo freqüentemente empregado para designar uma classe de cristãos primitivos, dos quais os traços aparecem nas epístolas do NT, e ainda mais distintamente no século seguinte. Acredita-se que eles tenham sido convertidos do judaísmo, porém ainda se agarravam às instituições mosaicas, particularmente à circuncisão. Eles parecem ter sido de duas classes, alguns considerando a lei cerimonial como vinculante apenas para os cristãos descendentes dos judeus, enquanto outros a consideravam obrigatória também para os pagãos. Diz-se que a primeira sede dos cristãos judaizantes foi Antioquia. O conselho realizado em Jerusalém decidiu que os pagãos não deveriam estar sujeitos à circuncisão. Os mais zelosos cristãos judaizantes, abandonaram a Palestina e tentaram converter os pagãos a seus pontos de vista, mas com pouco sucesso. Eles eram provavelmente os "falsos apóstolos",tantas vezes mencionados por Paulo.

Agora meu caro Neto vamos deliberar um pouco sobre sua visão sobre "O Jesus Histórico e sua Pesquisa". Algumas afirmações que você faz estão realmente de acordo com a pesquisa acadêmica sobre o Jesus Histórico:...tentar humanizar o senhor Jesus..."
Neto, a pesquisa do Jesus histórico é tão complexa que vários acadêmicos por diversas vezes anunciaram o seu fracasso e impossibilidade. O que percebo em suas palavras é o fato de ao tentar separar o histórico do teológico isso, na sua impressão, causa um grande problema para questões de fé.
Agora deixe-me lhe dizer algo importante! A Teologia verdadeira é uma disciplina acadêmica que tem por obrigação dialogar com outras áreas do conhecimento: arqueologia, filologia, filosofia, ciências da religião, antropologia, hermenêutica, exegese, religiões comparadas, etc. Não é nada fácil. Talvez, dentro da área de Humanas a cadeira de Filosofia seja mais prestigiada e menos atacada e demonizada. Não posso concordar quando você afirma que:... certas pessoas fazerem teologia, é porque não tem inteligência para outro curso?"
Pode ser que existam casos de oportunismo, vaidade, ateísmo, mas os grandes teólogos que admiro são homens que dedicaram mais de meio século debruçados sobre manuscritos, literaturas, e outras fontes, para nos oferecer uma pesquisa séria.
Agora, é bem verdade que nenhum teólogo é imparcial, ou melhor ainda, nenhum profissional seja de qual área for é imparcial, todos tendem a se deslocar para o pêndulo mais agradável. Alguns teólogos conservadores, liberais, existencialistas, agnósticos, céticos. Você vai encontrar de tudo no meio acadêmico da Teologia.
E um desses motivos dessa variedade de opiniões sobre "o Jesus Histórico" é o fato de estarmos lidando com um fato que deixou uma lacuna de 2.000. E alguns desses acontecimentos narrados na Bíblia, infelizmente, não estão mais em condições de terem um veredicto exato. A chave de interpretação da maioria dos textos da Bíblia está perdida no passado.
Esse é o serviço que nos é oferecido através da Crítica Textual da bíblia, aproximar os fatos, as narrativas, os eventos, para se poder extrair alguma "possibilidade" de que estamos diante de acontecimentos que podem ter um grau maior ou menor de confirmação histórica.
Infelizmente, para os acadêmicos, "o Jesus Histórico" está muito enraizado com a Teologia.
Quanto aos textos apócrifos, você tem razão quando fala de seus "absurdos", mas tenha em mente que os apócrifos foram escritos para suprir e responder uma demanda imensa sobre uma religião que ainda era "marginal".
Um abraço e obrigado pelas suas considerações. Continue sempre participando com suas opiniões, pois elas são o que dão motivo para o "Em Busca do Jesus Histórico".

Unknown disse...

Preciso de uma referencia biblica. De shamai.

Unknown disse...

Preciso de uma referencia biblica. De shamai.

em busca do jesus histórico disse...

A Sombra do Templo, de Oskar Skarsaune.

Adeilton Pereira dos Santos Adeiltonpereiradossan disse...

Muito bom,sem mas comentários.

Anônimo disse...

Quando leio algo assim, vejo que tenho que aprender muito ainda!
Muito bom!
Deus te abençoe meu irmão!

em busca do jesus histórico disse...

Olá Amigo! Em verdade todos nós aprendemos.Fique a vontade para sugerir algum tema específico, criticar, opinar. Sua participação é o que motiva esse blog!
Abraço Fraterno.