terça-feira, 20 de julho de 2010

Jesus, o taumaturgo de Israel

Quais são os mistérios que ecoam na trajetória do homem que mudou a história da humanidade. Na busca pela humanidade de Jesus, e pelo debate de mistérios que intrigam grande parte da humanidade há séculos,a revista ISTOÉ fez 14 perguntas sobre a vida de Cristo a especialistas, autores consagrados e lideranças religiosas.

Confira abaixo a íntegra da matéria:

A descoberta dos restos da casa de uma família que viveu no tempo e na região de Jesus de Nazaré animou arqueólogos e entusiastas bíblicos no último dia 21. Ainda que ela não tenha vínculos diretos com o Messias, essa descoberta joga luz sobre um Jesus que vai além da figura mítica que morreu na cruz, como contam os evangelhos do Novo Testamento. Ela alimenta quem vive para especular o lado humano do Filho de Deus, que a Igreja nunca deixou se sobrepor ao divino. Mas o interesse por detalhes históricos de alguém como Cristo é compreensível.

Afinal, foi esse judeu da Galileia quem plantou a semente da religião mais influente do mundo. E, para quem lê os evangelhos como relatos biográficos, um erro de princípio, segundo os especialistas, as lacunas parecem implorar por especulações. O Novo Testamento não traz, por exemplo, nenhum registro sobre a vida e as andanças de Cristo entre os 15 e 30 anos de idade. “Porque esses anos não são importantes”, explica Pedro Vasconcelos Lima, teólogo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Para a igreja, tudo de relevante sobre a missão de Cristo na terra está na “Bíblia”. Mas é o suficiente? A clareira histórica aberta por esses 15 anos perdidos é uma das brechas mais exploradas por estudiosos, uns mais honestos que outros, para especular sobre a vida e Jesus. Mas ela não é a única. Outras foram encontradas nas entrelinhas dos 27 livros, 260 capítulos e 7.957 versículos do Novo Testamento. Mais algumas foram pesquisadas, com base em descobrimentos arqueológicos que variam de objetos do tempo de Jesus a textos de grupos religiosos do cristianismo primitivo, no longínquo século I d.C. E, por mais que a Igreja prefira não tratar de alguns detalhes das faces divina e humana de Cristo, os mais de um bilhão de fiéis não param de fazer perguntas.

“É na humanidade de Jesus que melhor podemos compreender a dimensão de sua divindade”, reconhece Frei Betto, religioso dominicano autor do recém-lançado “Um Homem Chamado Jesus”. Na busca pela humanidade de Jesus, e pelo debate de mistérios que intrigam grande parte da humanidade há séculos, ISTOÉ fez 14 perguntas sobre a vida de Cristo a especialistas, autores consagrados e lideranças religiosas. Em que época foram escritos os Evangelhos e quem os escreveu? Jesus teve irmãos? Maria foi virgem durante toda sua vida? Jesus estudou? Qual profissão seguiu? Como era fisicamente? Esteve na Índia? Deixou alguma coisa escrita? Teve um relacionamento amoroso com Maria Madalena? Teve filhos? Por mais simples ou absurdas que algumas dessas questões possam parecer, elas merecem uma discussão. “Algumas realmente atormentam a vida dos fiéis”, reconhece o padre mariólogo Vicente André de Oliveira, membro da Academia Marial de Tietê, no interior de São Paulo. As respostas apontam caminhos, mas não têm a aspiração de ser definitivas. O estudo científico da vida do Messias ajuda na construção do que se convencionou chamar de Jesus histórico. Em esforço que surgiu no final do século XVIII e ganhou ritmo com importantes e raras descobertas arqueológicas no século XX (leia quadro na página 76), um Jesus que vai além dos relatos bíblicos começou a ganhar forma.

Ele surgiu do debate acadêmico do que podia e não podia ser considerado fonte para o entendimento da vida que o Nazareno levou na Terra. E, como a fé cristã, evolui e ganha novos contornos diariamente. Para o fiel bem resolvido, não há disputa entre o Jesus histórico e o bíblico, ou divino. “Cristo trouxe uma mensagem poderosa de amor e perdão que é inatingível”, afirma Fernando Altemeyer, professor de teologia e ciências da religião da PUC-SP. Para quem crê, é esse o legado do homem de Nazaré. Mas toda informação que contribuir para montar o quebra-cabeça dessa que é a mais repetida e famosa história da humanidade será bem-vinda.

Jesus nasceu em Belém ou Nazaré?

Embora os evangelhos de Mateus e Lucas afirmem que Jesus tenha nascido em Belém, é muito provável que isso tenha ocorrido em Nazaré. “Todos os grandes especialistas bíblicos são unânimes em admitir que Jesus nasceu em Nazaré”, afirma Frei Betto, religioso dominicano autor do recém-lançado “Um Homem Chamado Jesus”. Ao que tudo indica, Lucas e Mateus teriam escolhido Belém como cidade natal de Jesus para que suas versões da vida de Cristo se alinhassem a uma profecia do Antigo Testamento, segundo a qual o Messias nasceria na Cidade do Rei Judeu, ou seja, a Cidade de Davi, que é Belém. Quanto à afirmação de que Jesus teria nascido em uma manjedoura rodeado de animais, Sylvia Browne, americana autora do best seller “A Vida Mística de Jesus”, é taxativa: “Tanto José quanto Maria provinham de famílias judias nobres e prósperas, de sorte que Jesus nasceu em uma estalagem e não em um estábulo, rodeado de animais”, diz. “José, de família real, não podia ser pobre – era um artesão especializado.” A afirmação de Sylvia é contestada por Fernando Altemeyer, professor de teologia e ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Afirmar que a ascendência nobre de José garantiria o bem-estar da família não faz sentido”, argumenta. Ele lembra que Davi é do ano 1000 a.C. e em um milênio sua fortuna certamente teria se dispersado. “Fora que a ascendência entre os judeus vem de mãe, não de pai”, explica. Para o teólogo, são muitas as fontes independentes que tratam da pobreza da família de José e é quase certo que Jesus tenha nascido em um curral e morado em um gruta com o pai e a mãe, que não eram miseráveis, mas tinham pouca terra e viviam como boa parte dos judeus pobres das áreas rurais.

Quando Jesus nasceu?

Uma coisa é certa: ele não nasceu no dia 25 de dezembro. E a razão é simples. Esta data coincide com o solstício de inverno do Hemisfério Norte, quando uma série de festas pagãs, muito anteriores ao nascimento de Cristo, já aconteciam em homenagem a divindades ligadas ao Sol e a outros astros. Ao que tudo indica, o dia foi adotado pelos católicos primitivos na esperança de cristianizar uma festa pagã. Faz sentido. Jesus também significa “Sol da Justiça”, o que faz dele um belo candidato a substituto de uma efeméride como o solstício de inverno. Se Jesus não nasceu em 25 de dezembro, a Igreja Católica também não sabe qual o dia nem o ano exatos. Os registros abrem um leque relativamente grande de possibilidades. É certo, porém, que o nascimento aconteceu antes da morte do rei Herodes, em 4 a.C., já que foi ele quem pediu o recenseamento que teria obrigado a viagem de Maria e José a Belém. Quanto ao mês e o dia, só há especulações. Para o padre mariólogo Vicente André de Oliveira, da Academia Marial de Tietê, no interior de São Paulo, Jesus teria nascido entre os meses de setembro e janeiro, quando, segundo ele, eram tradicionalmente feitos os censos em Belém. Já as pesquisas do astrônomo australiano Dave Reneke mostram que a estrela que teria guiado os Reis Magos apareceu em junho – crença compartilhada por parte da comunidade católica. Wagner Figueiredo, colunista do site Mistérios Antigos e autor de “Trilogia dos Guardiões – O Êxodo”, por sua vez, coloca as fichas no oitavo mês do ano, que, segundo ele, seria o período oficial de recenseamento dos romanos.

Quem e quantos foram os Reis Magos?

Se realmente existiram, os Reis Magos não eram reis e provavelmente não seguiram estrela nenhuma. O único registro dessas figuras nos evangelhos canônicos, ou oficiais, está em Mateus, que fala dos magos do Oriente e de uma estrela seguida por eles. Mas a menção não diz quantos eram os visitantes nem se eram, de fato, reis. “Como esses magos trouxeram três presentes, supõe-se que eram três reis”, explica o cônego Celso Pedro da Silva, professor de teologia e reitor do Centro Universitário Assunção (Unifai), em São Paulo. A versão atual da história se formou junto com o forjar de diversas tradições católicas durante o primeiro milênio da Era Cristã. Convencionou-se chamar os visitantes de Melchior, rei da Pérsia, Gaspar, rei da Índia, e Baltazar, rei da Arábia. Também ficou estabelecido que eles teriam trazido incenso, ouro e mirra como presentes ao recém-nascido. Para Wagner Figueiredo, colunista do site Mistérios Antigos e autor de “Trilogia dos Guardiões – O Êxodo”, os três seriam, ainda, astrólogos ou astrônomos, já que usaram uma estrela para guiá-los até Belém. “Mas não sabemos se a estrela de Belém era mesmo uma estrela”, diz Figueiredo.

“Ela pode ter sido um cometa, uma supernova ou o alinhamento celeste de planetas”, explica. Em consulta ao histórico astronômico de então, Figueiredo descartou a possibilidade de a estrela ser um cometa. Segundo ele, o único fenômeno astronômico desse tipo visível da Terra em anos próximos ao nascimento de Jesus foi a passagem do cometa Halley. Mas o Halley riscou o céu em 12 a.C., no mínimo cinco anos antes do nascimento de Jesus, o que o elimina como candidato a estrela de Belém. Um registro do que hoje chamamos de supernova por astrônomos chineses na constelação de Capricórnio no ano 5 aC. é o candidato mais forte. “A supernova, que é a explosão de uma estrela, cria um forte ponto luminoso no céu”, especula Figueiredo. Ele lembra, ainda, da impressão de movimento que esses fenômenos deixam, o que as alinha com a descrição que se tem da estrela de Belém. A terceira e última possibilidade de explicação astrológica trata do alinhamento de planetas entre os anos 7 a.C. e 6 a.C. Na primeira tese, Júpiter e Saturno se alinharam criando um ponto luminoso que caminhou pelo espaço entre maio e dezembro daquele ano. Já na segunda, Júpiter, Saturno e Marte se aproximaram na constelação de Peixes, formando um único e poderoso ponto luminoso no céu.

Jesus teve irmãos? Maria se manteve virgem?

Muito da discussão em torno dessa pergunta se deve à ambiguidade do termo grego adelphos, que para alguns significa irmão, enquanto para outros significa companheiro, amigo. Nos evangelhos de Mateus e Marcos e na carta de Paulo aos Gálatas, a palavra surge e, para quem é partidário da primeira interpretação, confirma a existência de irmãos e irmãs de Jesus. Segundo Rodrigo Pereira da Silva, professor de teologia do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp-EC), se os irmãos existiram, eles seriam seis – quatro homens e duas mulheres –, identificados no Evangelho de Marcos. Silva lembra também que no evangelho apócrifo de José fala-se que o pai de Jesus era viúvo quando se casou com Maria e que teria filhos do primeiro casamento. O teólogo ressalva, porém, que duas situações narradas pelos evangelhos canônicos, tidos como fonte mais confiável, depõem contra essa interpretação. “Esses supostos irmãos dão ordens a Jesus”, argumenta. “Isso jamais aconteceria se eles fossem, de fato, irmãos, porque Jesus foi o primogênito. E o mais velho, na Galileia de então, tinha autoridade sobre a família”, diz.

Soma-se a isso o fato de Jesus ter confiado sua mãe ao apóstolo João no momento da crucificação, segundo está descrito no Evangelho de João, e não a um de seus supostos irmãos. Sabe-se também, a partir dos textos bíblicos, que, além de Maria, mãe de Jesus, nenhum parente direto do Messias estava ao pé da cruz quando ele foi morto. O rechaço da igreja à possibilidade da existência de irmãos de Jesus se explica. Se a teoria fosse verdadeira, iria contra um dos dogmas marianos segundo o qual a mãe de Jesus teria dado à luz virgem e assim permanecido até a assunção de seu corpo aos céus. Por isso o apego ao problema de tradução da palavra adelphos e aos sinais que estão na “Bíblia” da ausência de irmãos (segundo interpretação oficial). Para o padre mariólogo Ademir Bernardelli, da Academia Marial de Aparecida, no interior de São Paulo, a existência ou não de irmãos é mais simbólica do que prática. “A virgindade de Maria é uma tradição que foi criada com o tempo”, diz Bernardelli. “A pergunta pela virgindade no parto ou depois do parto nunca foi um assunto discutido entre a hierarquia católica primitiva, só surgiu depois”, afirma.

Especulação ou não, a tese de que Jesus teria irmãos ganhou força com um precioso achado arqueológico em 2002. Chamado de ossuário de Tiago, o artefato é uma urna de pedra-sabão com as inscrições “Tiago, filho de José, irmão de Jesus”. Embora a Igreja conteste as inscrições, feitas em aramaico, o objeto atraiu a atenção tanto de sensacionalistas quanto de estudiosos. A urna é, sem dúvida, legítima e data do tempo de Cristo. Já a autenticidade das inscrições, mais especificamente a parte que diz “irmão de Jesus”, ainda está sendo avaliada pela comunidade arqueológica internacional. Se comprovada, esse seria o primeiro e único objeto vinculado diretamente a Jesus já descoberto.

Jesus estudou? Qual profissão seguiu?

Para Wagner Figueiredo, colunista do site Mistérios Antigos e autor de “Trilogia dos Guardiões – O Êxodo”, Jesus teve formação intelectual mais rica do que se supõe a partir dos evangelhos. “Era comum, na Antiguidade, que os mais ricos custeassem os estudos dos prodígios apresentados ao conselho do templo”, diz. Cristo era uma dessas crianças brilhantes e certamente não passou despercebido no templo, onde chegou a protagonizar uma cena curiosa, aos 12 anos, quando colocou os sábios para ouvi-lo. Mas mesmo que tenha tido uma formação, Jesus continuou como um homem de hábitos e mentalidade rurais. “Podemos chamá-lo de um caipira antenado, que tinha sensibilidade suficiente tanto para dialogar com o povo quanto com a elite intelectual de sua época”, resume Paulo Augusto Nogueira, professor de teologia da Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo.

Segundo o americano H. Wayne House, autor do livro “O Jesus que Nunca Existiu”, o Messias provavelmente sabia ler em hebraico e aramaico e escrever em pelo menos um desses idiomas. Suspeita-se, também, que falava um pouco de grego, a língua comercial da época.

Quanto à profissão que seguiu, há controvérsias. E as dúvidas surgem por causa de uma palavra ambígua, usada nos registros mais antigos dos evangelhos. Neles, José é apresentado como “tekton”, uma espécie de artesão que faria as vezes de um mestre de obras. Ele teria, portanto, as habilidades de um carpinteiro, mas não apenas. Jesus e José seriam uma espécie de faz-tudo. Faziam a fundação de uma casa, erguiam paredes como pedreiros e construíam portas como carpinteiros. É sabido também que tinham ovelhas e uma pequena plantação. Portanto, teriam algumas noções de pastoreio e agricultura.

Como era Jesus fisicamente?

A imagem de Cristo que se consagrou foi a de um tipo bem europeu: alto, branco, de olhos azuis, cabelos longos ondulados e barba. Mas são grandes as chances de que essa representação esteja errada. “É praticamente certo que ele não foi um homem alto, a julgar pelos objetos, como camas e portas, deixados por seus contemporâneos”, revela a socióloga e biblista Ana Flora Anderson. O fato é que não há registros fieis da aparência do filho de Maria. Essa ausência de documentos se explica. Para os especialistas, até o ano 30 d.C. pouquíssimas pessoas sabiam quem era Jesus. “Mas ele é Deus encarnado. Então teve um corpo, uma aparência física”, afirma padre Benedito Ferraro, professor de teologia na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC), no interior de São Paulo. E se por um lado a existência carnal de Jesus impôs limites físicos a um Deus todo-poderoso, ela deu asas à imaginação e à especulação dos fieis já no século II e III d.C. sobre a aparência desse Deus em carne e osso.

A julgar pelos registros históricos que contam um pouco da vida na região em que Jesus nasceu e foi criado, o Messias deve ter sido um homem baixo, de pele morena e cabelos escuros e encaracolados (à esq., uma reconstituição feita pelo médico especialista em reconstrução facial inglês Richard Neave, da Universidade de Manchester). Por ser um trabalhador braçal, tinha uma estrutura física bem desenvolvida. “Como palestino, deveria ter as características daquele povo”, lembra frei Betto, dominicano autor do recém-lançado “Um Homem Chamado Jesus”. Esse é o máximo a que chega a especulação baseada em estudos. “Não saberemos nem precisamos saber da real aparência de Jesus – ela não importa”, afirma o cônego Celso Pedro da Silva, professor de teologia e reitor do Centro Universitário Assunção (Unifai).

Jesus foi à Índia?

Teria Cristo pregado às margens do rio Ganges? Quem garante de pés juntos que ele esteve na Índia, cita duas possibilidades cronológicas. A primeira, durante os chamados anos perdidos, dos 12 ou 14 anos de idade aos 28 ou 30 anos. A segunda, depois da ressurreição. Ambas as afirmações são extremamente controversas e têm tanto apaixonados defensores quanto vigorosos detratores. O teológo americano H. Wayne House, do Dallas Theological Seminary no Texas, Estados Unidos, não acredita na visita de Jesus à Índia, mas reconhece que são muitas as fontes que narram uma suposta passagem do Messias, não só pela Índia, mas também pela região das Cordilheiras do Himalaia. Um texto hindu do século I d.C. menciona a suposta visita de Cristo ao rei Shalivahan, empossado mandatário da cidade de Paithan, no Estado de Maharashtra, em 78 d.C.

Sylvia Browne, americana autora do best seller “A Vida Mística de Jesus”, é fervorosa defensora da visita de Jesus à Índia. “Há dezenas de textos de eruditos orientais que confirmam a estada de Jesus na Índia e em regiões vizinhas na época”, conta ela em seu livro. Segundo Sylvia, Jesus recebeu diferentes nomes nas culturas pelas quais circulou, entre eles “Issa”, “Isa”, “Yuz Asaf”, “Budasaf”, “Yuz Asaph”, “San Issa” e “Yesu”.

Para a maioria dos cristãos, essas afirmações são absurdas. “Esses nomes são muito comuns na Índia, não permitem concluir que se referem ao Jesus que reconhecemos como Cristo”, sentencia Rodrigo Pereira da Silva, professor de teologia do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp-EC). Silva explica que uma série de documentos reunidos em livro do alemão Holger Kersten chamado “Jesus Viveu na Índia”, de 1986, incendiaram uma discussão vazia sobre o assunto. “Isso é uma picaretagem”, afirma o teólogo Pedro Vasconcelos Lima, presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (Abib). Para ele, explorar esse tipo de ideia é caminhar no limite ético da especulação. “Era uma época de efervescência religiosa”, lembra o teólogo Fernando Altemeyer, colega de Lima na PUC-SP. “Um sem-número de sujeitos com o nome Issa ou Yesu pode ter aparecido na Índia e se anunciado profeta ou liderança de Israel”, lembra. Há também o argumento das dificuldades e custos de uma viagem como essa no século I d.C. Jesus, muito provavelmente, não teria como arcar com as despesas de uma empreitada desse tipo.

Jesus foi tentado pelo demônio no deserto?

Que Jesus foi tentado no deserto, não há dúvida. O episódio é relatado por três evangelistas, Mateus, Marcos e Lucas, e citado pelo quarto, João. O que se questiona é a natureza do demônio que se apresenta a ele. Seria ele o demônio feito homem ou apenas uma síntese simbólica das tentações às quais todos os seres humanos estão sujeitos? Para o padre Vicente André de Oliveira, mariólogo da Academia Marial de Tietê, no interior de São Paulo, a tentação do demônio é simbólica. “O deserto e o demônio são maneiras de ilustrar o encontro de Jesus com suas limitações como homem”, diz Oliveira. Simbólico ou não, o encontro aconteceu. E para o teólogo Pedro Vasconcelos Lima, presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (Abib), segundo os textos oficiais, o demônio se materializa diante de Jesus. Nesse sentido, ele tinha uma aparência física, apesar de ela não estar descrita. Pelos relatos de Mateus e Lucas, sabe-se apenas da conversa entre o Filho de Deus e Satanás. “Eram tentações que tinham como objetivo tirar Jesus de seu caminho”, lembra o mariólogo. A saber: a tentação do poder, da vaidade e do exibicionismo.

Jesus já gozava de fama quando foi levado pelo Espírito Santo para passar 40 dias e 40 noites no deserto. Se quisesse um cargo público na burocracia romana, por exemplo, era praticamente certo que o conseguiria e, com ele, viriam fartos benefícios. Mas isso seria se entregar às tentações. Ele resistiu e saiu recompensado, na visão dos cristãos.

Jesus era um judeu taumaturgo?

Judeus taumaturgos eram figuras muito comuns no tempo de Jesus: homens que circulavam pela Galileia fazendo milagres como uma espécie de mágico. Mas, para a maioria dos especialistas, não há possibilidade de Cristo ter sido um deles, apesar de suas andanças e milagres. A afirmação vem de muitas fontes. “Jesus pedia segredo dos milagres que fazia, não cobrava por eles e evitou fazer curas diante de quem tinha meios de recompensá-lo”, explica Rodrigo Pereira da Silva, professor de teologia do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp-EC). Segundo ele, os taumaturgos jamais agiriam dessa maneira. “Eles eram profissionais da cura. Jesus, não.” Outra diferença importante entre Jesus e os taumaturgos era que o Messias apresentava Deus de maneira acessível aos fiéis. Diferentemente dos taumaturgos, que valorizavam uma espécie de canal exclusivo que teriam com o divino para operar seus milagres, Jesus tentava ensinar as pessoas a cultivar o contato com Deus. E, assim, receber suas graças sem intermediários.

Mas a fama de Jesus como um judeu taumaturgo existiu e, em alguns lugares, ainda existe. Quem afirma é Giordano Cimadon, coordenador da Associação Gnóstica de Curitiba e membro de um dos braços brasileiros do gnosticismo, grupo religioso que condiciona a salvação ao conhecimento. Ele conta que, no início da Idade Média, provavelmente no século VII, alguns escritos chamados “Toledoth Yeshu”, que significa algo como o “Livro da Vida de Jesus”, circularam tentando expor Cristo como mais um entre os muitos judeus taumaturgos da Galileia. “A obra, que mostra Jesus como um falso Messias, circulou também como tradição oral”, conta Cimadon. Depois, ela foi redigida em aramaico e traduzida para ídiche, ladino e latim. A versão mais famosa foi compilada pelo alemão Johann Wagenseil e impressa na segunda metade do século XVII. O texto cria polêmica até hoje por divulgar uma versão deturpada supostamente por grupos de judeus da vida de Jesus. Argumenta-se que ela foi usada para legitimar o antissemitismo entre os séculos XIII e XX.

Qual a relação de Jesus com seus apóstolos?

Há quem argumente que a escolha que Jesus fez dos discípulos tenha sido um desastre. Não houve um sequer, por exemplo, que o acompanhasse durante a crucificação. Mas a Igreja Católica garante que ele confiava nos apóstolos que escolheu, inclusive nos que o traíram. Para o cônego Celso Pedro da Silva, professor de teologia e reitor do Centro Universitário Assunção (Unifai), em São Paulo, Cristo tinha plena consciência de que lidava com homens e que os homens têm suas limitações. “É a beleza da obra de Jesus”, diz. Cristo tratava todos com igualdade, mas com Pedro, João e Tiago tinha mais intimidade. Mesmo sabendo que Pedro, por exemplo, negaria conhecê-lo em três ocasiões no dia de sua morte. Da mesma maneira, Jesus escolheu Judas, que também o traiu. Sobre ele, há farta literatura. Em evangelho atribuído a Judas, o apóstolo não aparece como traidor, mas como engrenagem fundamental do projeto de Deus , pois sem ele Jesus não seria crucificado e não se martirizaria para salvar os homens.

Com que idade Jesus morreu?

Provavelmente não morreu com os consagrados 33 anos. Essa marca foi estabelecida pela tradição durante os primeiros séculos do cristianismo primitivo – ou seja, não há nada que a comprove. Para o espanhol Ramón Teja Cuso, professor de história antiga da Universidade da Cantábria, Jesus não poderia ter morrido com 33 anos. Se ele nasceu entre os anos 6 a.C. e 5 a.C. e Pôncio Pilatos, algoz de Jesus, ocupou o cargo de prefeito da Judeia entre 29 d.C. e 37 d.C., o Messias morreu com, no mínimo, 34 anos e no máximo 43 anos.

Já o professor de filologia grega da Universidade Complutense de Madri, Antonio Piñero, usa a astronomia para fazer suas estimativas. Segundo ele, analisando o calendário de luas cheias no dia da Páscoa judaica, e existem registros desse fenômeno na data da crucificação, há apenas duas possibilidades de morte de Jesus dentro da janela estabelecida pelo professor Teja: 7 de abril de 30 d.C. e 3 de abril de 33 d.C. Nesse sentido, Jesus teria morrido com 36 anos ou 39 anos. Ainda assim, essas são apenas conjecturas. Elas dependem de variáveis que não podem ser verificadas, como, por exemplo, o relato de que havia uma lua cheia na ocasião da morte de Jesus ou que seu ministério teria durado três anos. O ano certo, portanto, dificilmente será conhecido, mas sabe-se, com uma margem mínima de dúvida, que foi entre os anos 29 d.C. e 37 d.C.

O dia da semana é consenso. De acordo com a “Bíblia de Jerusalém”, a tradução mais fiel dos originais das Sagradas Escrituras, Jesus morreu em uma sexta-feira, dia 14 de Nisã, que equivale, no calendário judaico, a 30 dias entre os meses de abril e março. A crença de que essa é a data correta é quase unânime entre os especialistas ouvidos por ISTOÉ.

Jesus manteve um relacionamento amoroso com Maria Madalena?

Como a questão que envolve as possíveis viagens de Jesus ao Vale do Rio Ganges, essa é uma pergunta que gera discussões acaloradas. Um dos grupos que defendem a relação de amor carnal entre Jesus e Maria Madalena com mais fervor é o dos gnósticos. Como Sylvia Browne, americana autora do best seller “A Vida Mística de Jesus”. Para ela, Jesus conheceu Maria Madalena ainda na infância e se casou com ela no que ficou conhecido, nos evangelhos, como o episódio das Bodas de Caná. Nessa ocasião, Jesus transformou água em vinho, que era parte fundamental da cerimônia do matrimônio. “Maria, mãe de Jesus, não ignorava que, pelos costumes judaicos, o noivo era responsável pela distribuição do vinho”, diz Sylvia. “Então quem fabricou o vinho oferecido aos convidados em Caná? Jesus. Era ele o noivo”, afirma em seu livro.

Outro indicador de que Jesus e Maria Madalena teriam uma relação amorosa estaria registrado no evangelho apócrifo de Filipe. Nele estaria escrito que Jesus beijava Maria Madalena na boca – afirmação constestada por uma corrente de tradutores. Ela, por sua vez, o compreendia melhor do que qualquer discípulo. A certa altura, os apóstolos chegam a demonstrar ciúme.

A americana Sylvia vai mais longe. Ela sustenta que Jesus teve filhos com Maria Madalena. As crianças teriam nascido depois da suposta morte de Cristo, que, segundo ela, foi forjada com a ajuda de Pôncio Pilatos e José de Arimateia. Ambos teriam tirado Jesus e Maria Madalena da Galileia num barco que passou pela Turquia e Caxemira, até aportar na França. Durante a estada na Turquia, a primeira filha do casal Jesus e Maria Madalena, chamada Sara, teria nascido. Outra menina e dois meninos teriam sido gerados já na França.

A Igreja Católica rechaça qualquer possibilidade de relação de amor carnal e, portanto, de filhos entre os dois. “Jesus deixou sim descendentes, espiritualmente, bilhões deles espalhados por todo o planeta”, afirma o padre mariólogo Vicente André de Oliveira, da Academia Marial de Tietê, no interior de São Paulo. A instituição religiosa reconhece, porém, que Maria Madalena era de fato muito próxima de Jesus. “Para os homens daquela época, ver Jesus confiar segredos a uma mulher era uma afronta”, lembra o cônego Celso Pedro da Silva, professor de teologia e reitor do Centro Universitário Assunção (Unifai). “Mas da simples confiança concluir que havia uma relação matrimonial é deduzir demais.”

O professor de teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Rodrigo Pereira da Silva lembra que quando o livro “O Código da Vinci”, de Dan Brown, foi lançado, em 2003, um sem-número de supostos especialistas surgiu para confirmar o que o próprio autor havia classificado de ficção. Uma das afirmações seria de que Leonardo Da Vinci retratou Maria Madalena, e não o apóstolo João, ao lado de Cristo na “Santa Ceia”. “Criei um curso com a Coordenadoria-Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão (Cogeae) da PUC-SP só para esclarecer a confusão criada pela obra”, lembra. Batizada de “O Código da Vinci e o Cristianismo dos Primeiros Séculos: Polêmicas”, a disciplina foi um sucesso. Ainda assim, muitas das afirmações do livro, que vendeu cerca de 80 milhões de cópias e foi traduzido para mais de 40 idiomas, permaneceram como aparentes verdades para muitos. “Mas não são”, sentencia Silva.

Jesus deixou algo escrito?

“É mais fácil encontrar os vestígios de um palácio do que de uma choupana”, diz o teólogo Pedro Vasconcelos Lima, presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (Abib). Com essa afirmação, Lima resume o argumento que explica a inexistência não só de qualquer documento escrito por Jesus, mas de objetos que tenham ligação direta com ele. É que, no início do século I d.C., Cristo não tinha nenhuma importância. E, historicamente, os documentos mais antigos só registram os feitos de estadistas e donos de grandes fortunas – como sabemos, ele não foi nenhum dos dois. O único registro que se tem de Jesus escrevendo está nos evangelhos. Eles relatam o episódio da adúltera que seria apedrejada até a morte – supostamente Maria Madalena –, mas que foi salva pelo Messias. Cristo teria escrito algo na areia para afastar quem queria matar a mulher. “Não sabemos o que foi, mas podem ter sido os nomes de quem havia se encontrado com ela, talvez alguém importante ou até alguns dos que queriam apedrejá-la”, explica o cônego Celso Pedro da Silva. Fora isso, porém, não há absolutamente nada escrito por Jesus que tenha sido encontrado – ou para ser achado, suspeita-se. Na melhor das hipóteses, pode haver anotações de um ou outro fiel feitas durante uma das pregações de Cristo. Mas, até hoje, esses registros permanecem perdidos.

Quem escreveu os evangelhos? E quando?

A própria Igreja Católica reconhece que não há como saber se os evangelhos foram, de fato, escritos por Mateus, Marcos, Lucas e João. Nos textos não há menção aos autores. Sylvia Browne, americana autora do best seller “A Vida Mística de Jesus”, usa essas supostas brechas nas escrituras para tecer suas teorias. Ela lembra que a “Bíblia” como a conhecemos só tomou forma a partir do Concílio de Niceia, em 325 d.C., e que nesses três séculos a Igreja manipulou transcrições e traduções dos evangelhos para que eles divulgassem uma mensagem alinhada ao projeto de expansão da instituição. Sylvia sustenta ainda que os evangelhos de Mateus, Lucas e Marcos foram escritos pela mesma pessoa e que apenas o de João teve um autor exclusivo. Supostas contradições, omissões e coincidências seriam sinais da manipulação.

A teoria da coautoria começou a tomar forma no início do século XVIII, com os trabalhos do teólogo protestante alemão Heinrich Julius Holtzmann e do filólogo Karl Lachmann. Chamada de “Questão Sinótica”, ela tem apoio de importantes estudiosos da atualidade, como o inglês Marc Goodacre, responsável pelo núcleo de estudos do Novo Testamento na Universidade Duke, na Inglaterra, e John Dominic Crossan, teólogo e fundador do controverso Jesus Seminar. Em 1968, um outro pesquisador inglês, A.M. Honoré, chegou a fazer um levantamento mostrando que 89% do que está em Marcos se encontra em Mateus, enquanto 72% de Marcos está em Lucas.

“Isso é uma besteira”, argumenta o teólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Fernando Altemeyer. Para ele, não há contradição nos evangelhos e as omissões e coincidências são justificáveis. “Os evangelhos não foram escritos como biografias de Jesus”, reforça o teólogo Pedro Vasconcelos Lima, presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (Abib). “Eles contam as partes da vida do Messias que têm importância”, conclui. Os relatos da vida de Cristo que não entraram para o Novo Testamento circulam com o título de evangelhos apócrifos. Entre os séculos XIX e XX houve uma explosão nas descobertas desse tipo de documento. Hoje já são mais de 15 os relatos extraoficiais. A Igreja não os reconhece, embora utilize parte dos que datam dos séculos I d.C. e II d.C. para reconstruir o dia a dia de Jesus, que viveu como mais um dos milhares de judeus remediados da Galileia.

Os evangelhos também não foram escritos logo depois que os fatos aconteceram. Eles datam dos anos 70 d.C. e 90 d.C. e foram redigidos, provavelmente, em aramaico e hebraico. Chegaram até nós por meio de cópias, pois os originais foram perdidos. Não se tem registro de como isso aconteceu, mas não seria difícil danificar um manuscrito em papiro no tempo de Jesus. As cópias foram descobertas em fragmentos e reconstruídas por pesquisadores alemães no início do século XIX. A mais antiga, em papiro grego, data do século II d.C. e foi reconstruída no século XIX pela equipe Nestle & Alland, de Stuttgart, na Alemanha.

O que diz a arqueologia

A ciência das escavações é a única chave para preencher a colcha de retalhos que é a história de Jesus Cristo na Terra. Só a arqueologia é capaz de preencher as imensas lacunas que compõem a trajetória de Jesus na Terra. Ao se debruçar sobre os costumes e a cultura do tempo do Messias, através de buscas por monumentos, documentos e objetos que compunham aquela época, os pesquisadores da área se movimentam para saciar as centenas de indagações acerca do judeu que mudou a história da humanidade. Praticamente não há esperanças de se achar algo diretamente ligado a Jesus Cristo ou à sua família. Mas há expectativa de se encontrar objetos relacionados a contemporâneos, da mesma classe social, que moravam na Galileia. Nesse quesito, o século XX foi recheado de conquistas. Novas técnicas e o renovado interesse por provar, ou desmentir, o que foi escrito pelos evangelistas alimentaram as buscas pelo que sobrou do tempo de Jesus. E as descobertas foram importantes. Entre papiros e pergaminhos, jarros, urnas, pedras e ruínas comprovou-se parte do que disseram Mateus, Marcos Lucas e João.

Mas, quando o assunto é arqueologia, todo cuidado é pouco. Nem tudo é o que parece. Por isso, o processo de verificação da autenticidade dos objetos é lento e rigoroso. Que o digam os estudiosos do que ainda vem sendo considerado o último grande achado do tempo de Cristo: uma urna que conteria os ossos de Tiago, irmão do Messias. Revelada em 2002, ela já foi reconhecida como objeto do tempo de Cristo, mas as inscrições em aramaico que a identificam como sendo de Tiago ainda estão sob avaliação da comunidade arqueológica internacional. “Pude ver o ossuário em primeira mão, quando estive em Israel no começo de 2009”, conta Rodrigo Pereira da Silva, teólogo, filósofo e doutor em teologia bíblica com pós-doutorado em arqueologia na Andrews University, nos Estados Unidos. “Mas ainda há muito o que ser feito para validar as inscrições.”

Professor de teologia do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp-EC), Silva também é arqueólogo e já participou de escavações em Israel, na Jordânia, no Sudão e na Espanha. Ele conta que, no caso da urna de Tiago, se comprovada a autenticidade de seus escritos em aramaico, esse será o primeiro artefato arqueológico com vínculos diretos com Jesus. No dia 21 de dezembro, um outro achado empolgou os arqueólogos. Foram encontrados os restos de uma casa humilde de Nazaré que datam do século I d.C. Com dois quartos, um pátio e uma cisterna, ela ajuda a resconstruir a vida de judeus do tempo de Cristo. “As informações vêm sempre fragmentadas”, explica Pedro Vasconcelos Lima, professor de teologia e presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (Abib). “Não podemos esquecer que esses fragmentos não foram criados para responder às nossas perguntas e, por isso, precisam de um cuidadoso trabalho de contextualização.”

Enquanto a contextualização segue a todo vapor, nos departamentos acadêmicos das melhores universidades do planeta, o trabalho de campo tem encontrado mais obstáculos do que de costume. Como se o calor, a areia e as outras tantas dificuldades usuais da arqueologia já não fossem suficientes, questões políticas das regiões escavadas têm influenciado pesadamente as áreas disponíveis para exploração. “Vemos muitas descobertas se esgotarem nelas mesmas”, explica Rafael Rodrigues da Silva, professor do Departamento de Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e teólogo do Centro de Estudos Bíblicos (Cebi). “O sujeito faz a descoberta, quer escavar o entorno, buscar outros sinais e não pode”, afirma. É que boa parte da terra onde estão enterrados muitos desses objetos está em áreas de constante disputa, como é o caso de porções territoriais de Israel. “Se o século XX foi bom para a arqueologia, dos anos 90 para cá temos visto uma calmaria nos achados – mesmo com essa história do ossuário de Tiago”, afirma o professor Silva. Sem achados, sem história.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Oferendas, benzeduras e vudus alguns dos hábitos das civilizações antigas que chegaram até nós.

Antigas Tradições Mágicas dos Dias Modernos
Oferendas, benzeduras e vudus estes são apenas alguns dos hábitos adquiridos de civilizações antigas que chegaram até nós. Mas qual a sua origem e verdadeiro propósito? Conheça nesta entrevista exclusiva com Maria Regina Cândido, da UFRJ, uma das maiores especialistas sobre o assunto.

A magia romana tem antecedentes em outras civilizações como a etrusca?

Por meio de documentação textual e das escavações arqueológicas podemos afirmar que as práticas mágicas visando o benefício da coletividade, como fertilidade do solo, dos animais e das mulheres, circularam por todo o mundo antigo; era prática comum. Entretanto, o hábito mágico de remover sepulturas com o intuito de atender interesses individuais devido à incompetência em gerir negócios, inveja pelo sucesso do adversário ou a cobiça; o local mais remoto a ser identificado é somente entre os atenienses do V século a.C. A partir deles que esse hábito se difunde para os romanos. Os etruscos são especialistas na arte da adivinhação e dos presságios.

O quanto das antigas crenças chegou até a Idade Média?

A partir do Império Romano, vários manuais foram escritos e passados adiante pelos aprendizes de feiticeiro. O imperador Otavio Augusto determinou a queima de vários manuais que ensinavam os procedimentos mágicos, mas outros sobreviveram e chegaram até a Idade Média onde foram guardados em segredo. Já as lâminas de chumbo deixaram de ser usadas no século VI depois de Cristo e só foram descobertas pelos pesquisadores durante escavações arqueológicas no cemitério do Kerameikos em Atenas no século XIX.

Qual o objeto mágico mais usado?

Dependendo da intenção do solicitante da magia, pode ser lâmina de chumbo, vísceras de animais como salamandras, ervas e raízes diversas, vinho, azeite, cera, recipientes para queimar algo que pertença ao inimigo. O ritual era realizado sempre à noite, de preferência na lua cheia, em lugares sagrados como fendas de santuários, cemitérios, leito de rios e poços de água, locais de acesso a um mundo subterrâneo.
Pode nos contar algum ritual mágico completo que tenha um significado histórico?

Foi somente no III século que o poeta Teócrito nos apresentou o ritual mágico para trazer de volta a paixão e a pessoa amada através da destruição da rival. Antes, tínhamos somente algumas poucas informações de Platão.

Não podemos esquecer que as práticas mágicas assim como os rituais de mistérios, eram ações às quais se guardava o silêncio, o segredo e não pretendo quebrar essa tradição, portanto, não vou falar mais...

"Foram encontradas aproximadamente duas mil lâminas de chumbo, sendo que somente 600 foram catalogadas"
O que os historiadores podem aprender com o estudo das práticas mágicas antigas?

Os pesquisadores de magia e religião aprendem, por meio dos documentos e dos vestígios arqueológicos, que o mundo é, foi e será sempre composto pela diversidade de crenças e práticas mágico-religiosas muito singulares e interessantes. É de fundamental importância estudá-las pelo viés científico, visando entender as motivações, seus ritos, cultos e comportamentos dos antigos e comparar com as práticas encontradas nos dias atuais.
Há algum culto antigo que tenha se metamorfoseado quando do advento do cristianismo e que esteja em uso ainda hoje?

Tanto os cultos quanto os ritos, por exemplo, o uso do incenso e do lume nos templos, estão presentes nas missas do catolicismo. Entrar na residência com o pé direito e sempre se benzer com a mão direita, enfim, passaríamos um bom tempo enumerando os usos do passado na atualidade. Alguns procedimentos considerados mágicos tornaram-se saber científico na modernidade, tais como o efeito de folhas das famílias das mentas ser muito útil para os problemas menstruais, as dores de varizes serem amenizadas com fricção de folhas de hera, a cebola selvagem e o alho triturados com óleo e vinho serem eficazes para conter sangramentos e secreção vaginal, uma planta como a belladona poder ser usada como calmante, mas em porções concentradas, tornava-se abortiva, e as ervas da família do opium serem eficazes como analgésicos ideais para as mulheres em trabalho de parto.
Sabe-se que a prática dos bonecos vudu tem raízes mais antigas. Havia equivalentes na antiguidade?

Achei interessante esta pergunta, pois existe o preconceito de colocarem as práticas mágicas identificadas como vudu como sendo oriundas dos negros africanos. Tal fato me permite alertar aos pesquisadores que no período de Péricles já existia a magia de amaldiçoar os inimigos por meio de bonequinhos de chumbo, argila ou cera, enterrando-os em sepulturas. Percebe-se um certo constrangimento dos europeus ao tratar o tema magia, pois estas bonequinhas, assim como as lâminas de chumbo, estão mantidas na área de reserva técnica, fora das vistas dos visitantes dos museus europeus. Foram encontradas aproximadamente duas mil lâminas de chumbo, sendo que somente 600 foram catalogadas (nós temos no NEA/UERJ a imagem e inscrições de aproximadamente 230 delas em processo de tradução e catalogação).

Algumas foram encontradas junto com essas figuras humanas espetadas com estiletes tipo prego, localizadas em determinadas sepulturas do cemitério de Kerameikos. Não sabemos como os atenienses as chamavam, como algumas eram de chumbo, os pesquisadores por convenção as denominam de katadesmos. Nos papiros mágicos estão descritos procedimentos na confecção das bonecas vudu, a saber: pegar chumbo ou cera e confeccionar a figura humana, cujos órgãos genitais devem ser bem demarcados, as mãos devem ser atadas às costas e os pés presos.

Em seguida, devem ser selecionadas treze pequenas estacas de ferro tipo prego, recitando enquanto perfura o boneco: "Eu estou perfurando este prego no cérebro de Fulano, enterro dois nos seus ouvidos, dois nos seus olhos e um na boca... Dois em seu peito... Um em sua mão... Dois eu enterro na genitália (pênis ou vagina) e dois nos seus pés. Eu enterro estes pregos em cada uma das parte de Fulano para não se interessar por ninguém, mas somente por mim, só pense em mim". Como podemos observar, essa é uma magia amorosa denominada de philtros katademos, pelo fato de ser acompanhada por uma lâmina de chumbo com os dizeres acima e cuidadosamente colocada na sepultura de um indíviduo morto antes do tempo.

Qual o ritual mágico mais curioso de que se tem notícia?

O ritual de preparação do feiticeiro que realiza a magia com o auxílio da deusa Circe, Hécate e Medeia. O feiticeiro se banhava visando a purificação do seu corpo, ficava três dias em total abstinência sexual e alimentar, colocava roupas limpas, e no terceiro dia, antes do nascer do Sol, saía em busca de determinadas ervas e raízes mágicas que só podiam ser arrancadas da terra usando os três dedos da mão direita e, durante a colheita, entoava alguns cânticos para a divindade Hécate. Em geral esta prática mágica tinha por fim atender ao solicitante que desejava reaver um amor perdido para outra pessoa. As ervas e raízes são usadas em banhos de imersão de forma a tornar o solicitante irresistível aos olhos do ser amado. O mais interessante é que ao final do ritual, o solicitante levava para casa uma poção mágica e/ou unguento. A poção deveria ser colocada aos poucos na bebida ou comida do ser amado, se colocasse em altas doses, causava a morte. O unguento aromático deveria ser colocado nas parte íntimas, fato que causava, depois de algum tempo, a impotência masculina.

"E sse tipo de magia não está ao alcance da população de poucos recursos, somente os indivíduos muito ricos tinham condições financeiras para pagar o feiticeiro e solicitar a sua realização"
As antigas placas de maldição romanas, placas de cera com inscrições vistas em seriados como Roma, da HBO, eram mesmo usadas?

Sim. Usadas entre os romanos, gregos, iberos e britânico na antiguidade. Achei muito interessante o episódio veiculado pela série Roma. A prática exibida denomina-se magia dos defixiones ou katadesmoi, que consiste em selecionar uma lâmina de chumbo e inscrever o nome do inimigo ou adversário na sua superfície. O solicitante escreve a maldição que deseja para o seu inimigo: se for contra um artesão de sucesso, o solicitante pede a Hermes que retenha a sua mão, raciocínio de forma que ele não consiga administrar o seu negócio de sucesso. Aristóteles, na obra Retórica, chama essa ação de inveja.

Caso o inimigo seja alguém que vai levá-lo ao tribunal, o usuário da magia deve escrever o nome do acusador e suas testemunhas e pedir que eles não consigam chegar ao tribunal. Existe também as imprecações contra as atividades esportivas, em que o adversário coloca o nome do oponente na lâmina e pede às potências do mundo subterrâneo que seu inimigo não tenha forças para derrotá-lo. O período mais remoto dessa prática foi detectado entre os atenienses no V século a.C., e a tragédia Medeia de Eurípides seria uma forma de denúncia sobre a magia dos defixiones em Atenas. Somente com Platão, na obra As Leis, que vamos descobrir o nome dessa prática mágica, e com Teócrito, na poesia Idílio a Samatha, que conhecemos o seu procedimento.

Esse tipo de magia não está ao alcance da população de poucos recursos, somente os indivíduos muito ricos tinham condições financeiras para pagar o feiticeiro e solicitar a sua realização. O alto preço se deve ao fato de ser proibido remover os túmulos de pessoas mortas. O ato consiste em crime previsto pela legislação dos atenienses e dos romanos. As lâminas de chumbo foram encontradas no cemitério do Kerameikos em Atenas, em santuários de deuses como Deméter. Perséfone, Hermes e também em poços d'água na região da Ágora, de Atenas. As sepulturas selecionadas para o ritual eram aquelas de pessoas que morreram antes do tempo: suicidas, vítimas de assassinato, crianças e mulheres que morreram de partos.
Como era a figura do mago nas antigas civilizações? Corresponde ao que conhecemos ou era algo mais elaborado?

A documentação nos aponta que os magos e feiticeiros eram pessoas comuns que, por alguma razão, como ascendência familiar, foram iniciados nas práticas da magia. O saber mágico consistia em conhecer a noite de lua certa para entrar em contato, por meio das palavras, cânticos e entonação, com as potências sobrenaturais: deuses, mortos e forças da natureza. A documentação do V século nos aponta para as mulheres feiticeiras denominadas de pharmakides como Circe, Calipso, Medeia e Hécate. Nos discursos, como oradores áticos século IV a.C. temos Andocides, Demóstenes e outros identificando como pharmakides, a sacerdotisa Ninos, a hetaira Frinea de Thespis e Theoris de Lenmos como praticantes da magia que trazia prejuízo para a coletividade ao disponibilizar os seus saberes mágicos a quem tivesse recursos para pagá-las por um alto preço.

Como podemos observar, a documentação nos aponta para as mulheres estrangeiras como as especialistas nas práticas mágicas; as razões são diversas, tais como a proximidade com o preparo de ervas como alimento, o conhecimento de chá abortivo, de unguento que servia como estímulo sexual masculino e as poções mágicas visando despertar o amor eterno no ser amado. Entretanto, havia magos denominados de pharmakeus que exerciam as práticas mágicas proibidas às mulheres como o psychagogos, cujo ritual consistia em entrar em contato com os seres divinos como o realizado pelo filósofo Empendocles de Agracas e o ritual de nekromancia, atividade de evocação dos mortos. O ritual consistia em trazer de volta a alma desses mortos à superfície a fim de atender a solicitação que podia ser uma informação ou um pedido do feiticeiro.


quarta-feira, 14 de julho de 2010

A familiaridade de Jesus com as ciências da magia. Parte III

Continuando, além da passagem em Sanhedin 43a, Professor Geza Vermes cita algumas outras que provavelmente aludem aos ensinos de Jesus, indiretamente, bem como em curas efetuadas em seu nome por um díscipulo Jacó (Tiago) de Kfar Secaniah:

"Uma máxima do Rabi Abbahu de Cesaréia, contemporâneo do século III de Orígenes, refere-se quase com certeza a Jesus: - Se um homem lhe diz "Eu sou Deus, ele esta mentindo. Eu sou o filho do Homem [um ser humanõ] , no final ele vai lamentar [pois como todo ser humano, vai morrer] . Eu vou subir aos céus, terá, mas não vai cumprir (yTaan 65 b). A segunda citação de Jesus aparece no Talmude Babilônico (b Abodah zara 16b-17a) atribuídas a rabis ou Taanaim da passagem do primeiro ao segundo século. O famoso R. Eliezer ben Hircano recorda que um cristão judeu, chamado Jacó de Kfar Seranaya, interpretou "Não trarás a casa de (...) teu Deus o salário de uma prostituta, no sentido de que tal dinheiro só seria adequado à construção de uma latrina para o Sumo-Sacerdote. Quando Eliezer confessou que era incapaz de compreender a explicação Jacó apresentou-lhe uma exegese atribuida a Jesus que aparentemente vinculou Miquéias 1:7 (já que elas [ todas as suas estátuas] foram ajuntadas com o salário da prostituição, tornar-se-ão de novo salário de prostituição", a Deuterônomio 23:19 para chegar a explicação: "De um lugar de corrupção elas vieram, e ao lugar de corrupção elas retornarão". Eliezer ficou impressionado com o talento interpretativo de Jesus, e, por causa disso, foi acusado de heresia e excomungado pelos outros rabis." [1]

Jacó de Quefar Secania (ou Quefar Sama) foi um carismático curandeiro judeu-cristão citado diversas vezes na literatura rabínica. As personalidades os quais ligado sugere que esse Jacó atuou na virada do século I para o século II DC. Jacó prometia realizar curas em nome de Jesus de Nazaré e transmitia seus ensinamentos. Uma história o liga ao Rabino Eleazar Ben Dama e seu tio Ismael ben Elisha. Jacó, em nome de Jesus, quis curar Eleazar, que tinha sido picado por uma cobra venenosa. O Rabi Ismael vetou a oferta. Eleazar, desejando ser curado, tentou argumentar com seu tio, mas morreu antes de conseguir faze-lo [2]

Além dessas prováveis referências a Jesus, existem algumas outras, mais incertas, citadas pelo Professor Craig Evans, Acadia University (Canadá) [3]:

"Rabi Meir costumava ensinar 'Qual o significado (do verso), "Aquele que for pendurado no madeiro é maldito de Deus" (Dt 21:23)? Havia dois irmaos gêmeos que eram parecidos. Um reinava sobre o mundo todo e outro se tornou um ladrão. Após um tempo, o que era bandido foi pego e então crucificado em um madeiro. Todos que passavam e viam, diziam "parece que o Rei foi crucificado" (bTalmude, Sinédrio 9:7).

Evans acredita, contra a opinião do célebre talmudista Morris Goldstein, que o texto acima possivelmente alude a Jesus, a cena da crucificação e o "Titulus Crucis" ("Jesus Nazareno Rei dos Judeus"). Evans cita Marcos 14:48 ("Disse-lhes Jesus: Saístes com espadas e varapaus para me prender, como a um salteador?), o termo utilizado para ladrão ou salteador nesta passagem do Talmude teria uma conotação de agitação politica e revolucionária ou rebeldia, semelhante a encontrada na descrição de Flavio Josefo "A Judéia estava infestada de salteadores ... qualquer um podia se proclamar Rei" (Antiquidades 17:285). Essa passagem, juntamente a referência de Jesus como próximo ao governo (ou realeza) em Sinédrio 43a, sugere Evans, seriam uma resposta sarcástica a alegada descendência davídica de Jesus [4]

Prof. Mahlon H Smith [5], da Universidade Rutgers (New Jersey State University), apresenta uma possível alusão a Jesus, encontrada no Talmude Babilônico, Tratado Sinédrio, 106 b. Aqui um minim (ou herege, termo frequentemente usado para designar os cristãos) pergunta ao Rabi Hanina Bar Hama (220-260 DC) qual era a idade de Balaão quando ele foi morto. Hanina diz que os registros não mencionavam essa informação, mas que, no entanto, ele achava que ele teria morrido com 33 ou 34 anos de idade pois "homens de sangue e de traição não viverão metade dos seus dias" (Salmos 55:23). O Minin responde que Hanina devia estar certo, pois no relato sobre Balaão estava escrito que "Balaão, o coxo, tinha 33 anos de idade quando foi morto por Finéias, o ladrão" (bTalmude, Sinédrio, 106b). O Professor Smith observa que Balaão, o falso profeta citado no livro de Números que levou Israel a pecar, seria um codinome utilizado por alguns rabis para se referir a Jesus (em virtude da censura exercida pela Igreja). Da mesma forma 33 anos, seria a idade de Jesus, somando os 30 anos que ele tinha quando iniciou seu ministério (Lc 3:23), com as três páscoas mencionadas no evangelho de João. Ainda segundo Smith, Finéias, o Ladrão, seria também o codinome para Pôncio Pilatos, porque ele se apropriou dos fundos do Templo, incidente mencionado por Josefo (Antiguidades 18:60-62).

Um pouco mais hesitante que Mahlon D Smith, Travis Herford acredita que o codinome Balaão se aplicava a Jesus. Evans é cético quando a essa identificação, assim como Bruce Chilton, Morris Goldstein e Joseph Klausner. Chilton observa que dificilmente os rabinos dariam um nome tão respeitável a alguém como Pôncio Pilatos [6] Entretanto, poderíamos objetar que independente da identificação com Pilatos, o Talmude já usa o termo Finéias, o Ladrão, que é no mínimo estranho se o objetivo era se referir ao venerável sacerdote Finéias, neto de Arão.

Por fim, Jonh.P. Meier cita Klausner, e o julgamento deste quanto as tradições encontradas no Talmude:

Klausner (Jesus of Nazareth, 46) faz o seguinte resumo das afirmações confiáveis na tradição rabínica (1) Yeshu de Nazaré praticava a feitiçaria, istoé, fazia milagres e desencaminhava Israel; (2) Ele zombou das palavras dos sábios (istoé, dos mestres reverenciados de Israel). (3) Interpretava as escrituras da mesma forma que os fariseus (4) Tinha cinco discípulos (5) Dizia que não viera para tirar nada da Lei ou acrescentar algo (6) Foi enforcado (ou seja, crucificado) como falso mestre. Como é facil de ver temos aqui apenas uma imagem invertida e polêmica de várias afirmações dos quatro evangelhos [7]

Assim, o Talmude conteria tradições que compartilhariam a perspectivas básicas das atividades de Jesus, milagres, crítica a religião tradicional, o compartilhamento das crenças básicas dos fariseus, como anjos e ressureição dos mortos, seu relacionamento com Lei, ter discípulos e sua morte violenta. Geza Vermes [8] observa que, provavelmente, os rabinos reinterpretaram antigas tradições populares de Jesus como homem sábio e realizador de milagres, correntes na Palestina, atribuindo esses feitos a prática de feitiçaria. Assim, a imagem popular de Jesus retratada nos evangelhos e reavaliada sob um prisma negativo.

"Quando essas duas acusações são examinadas, elas se tornam uma representação pejorativa do retrato Josefano de Jesus. Pois desencaminhador/falso profeta e "feitiçeiro" são equivalentes deturpados de "homem sábio" e "milagreiro" [8]

O ponto levantado por Vermes, da reinterpretação de antigas tradições sobre Jesus é relevante, principalmente quando comparamos a parte reputada autêntica do polêmico "Testimonium Flavianum", escrita por Flavio Josefo no século I. Josefo diz que Jesus fazia feitos paradoxais ou incríveis, sendo a palavra paradoxa ambigua, isto pode significar tanto maravilhoso quanto controverso. O Talmude (e Celso) diz que Yeshu praticava feitiçaria (o que torna implícito que praticava feitos "controversos", explicados pela suposta prática de magia). Josefo diz que Jesus "era mestre de homens que recebem a verdade com prazer. Ele atraiu muitos judeus e muitos gentios". Os rabis dizem que Yeshu era uma ameaça, pois "levou Israel a pecar" e "o fez apóstata", dando a entender uma popularidade razoável , aliciando e desencaminhando um grande número de díscipulos. Dizem também que um processo foi iniciado, e um arauto saiu a covocar as testemunhas de defesa. Josefo afirma que "os principais homens entre nós o denunciaram". Por fim, no Talmude Jesus é executado e "levantado" (no madeiro), talvez por ordem de "Fineias, o Ladrão" (codinome para Pôncio Pilatos), enquanto Josefo diz que Pilatos o crucificou. É ainda possível que haja uma recordação dos motivos que levaram a execução (algo que Josefo não declara abertamente), de que Jesus foi acusado de ser um insurgente que ameaçava a ordem estabelecida, "O Rei dos Judeus".

Graham Stanton também compatilha da percepção de Geza Vermes ao observar que as acusações imputadas a Jesus nessa passagem do Talmude - que ele praticou feitiçaria e levou Israel a pecar - também são encontradas em Dialogo com Trifo, de Justino, já mencionado.Para Stanton essa tradição rabínica é de dificil interpretação, e mais complicado ainda é data-la com segurança. No entanto, acrescenta que não fora a grande correspondência com a acusação que circulava em circulos judaicos, na metade do século II, de que "Jesus era um mágico e enganador do povo" (Dialogo com Trifo 69:7), seria tentador descartar essa passagem do Talmude como resultado de polêmicas do terceiro século, ou mesmo posteriores, entre judeus e cristãos.Entranto, a terminologia semi-técnica encontrada no grego de Dialogo com Trifo é muito próxima do hebreu das tradições rabínicas. Assim, conclui Stanton, essas tradições teriam raízes profundas.[9]

Em resumo, quais são as informações que podemos obter do Talmude (se é que alguma informação pode ser obtida)?

Além de Johannes Maier, Edgard Leite é bastante cético em relação ao Talmude, "que não parece conter referências claras ao Jesus histórico" [10]

Por outro lado, Professor R. T. France, de Oxford, conclui que, pelo menos a partir do início do segundo século, Jesus era conhecido e abominado como alguém que realizava feitos incríveis e que tinha conquistado tão grande número de seguidores que foi devidamente executado como "aquele que levou Israel a pecar". Embora depreciativo, pelo menos é, de uma maneira distorcida, evidência para o impacto razoável dos milagres de Jesus e de seus ensinos. A conclusão de que isto é inteiramente dependente da pregação cristã, e que "judeus do segundo século adotaram de forma acrítica o pressuposto de que ele realmente existiu " é certamente resultado do ceticismo dogmático. Tal polêmica, frequentemente utilizando "fatos" completamente distintos do que os cristãos acreditavam, muito dificilmente teria surgido em menos de um século em torno de uma figura inexistente." [11]

Também Geza Vermes, observa que histórias como a de Jacó de Kfar Secaniah "indicam que um judeu cristão palestino no final do século I DC estava se dedicando, como os apóstolos e seus seguidores imediatos nos Atos dos Apostolos, a curar e pregar em nome de Jesus. Ainda, os textos rabínicos mostram que o mundo oficial rejeitava essas práticas, mas que judeus e até mesmo rabinos não necessariamente se opunham a elas na sociedade judaica palestina do fim do século I" [12]

Da mesma forma, Max Wilcox, Professor da Universidade de North Wales, avalia que o Talmude e outros escritos da literatura rabínica embora mencionem Jesus de forma muito esporádica, e devam ser utilizados pelo historiador de forma muito cautelosa e criteriosa, acabam por endossar as afirmações evangélicas de que Jesus curava e operava milagres, ainda que atribuindo esses feitos a feitiçaria. Além disso, preservam uma memória de que ele era um mestre, tinha discipulos, e de que pelo menos no início do período rabínico nem todos os rabinos tinham se convencido totalmente de que ele era um herege e enganador. [13]

Assim, em vista do exposto, podemos dizer que passagens sobre Jesus no Talmude devem ser avaliadas com cautela, reconhecendo que mais provavelmente trazem um "eco" de informações e tradições antigas, frequentemente de forma âmbigua, não devendo ser tomadas ao "pé-da-letra". Analisando em conjunto com o Dialogo com Trifo (69:7), e Celso, podemos dizer que o Talmude reforça a percepção de alguns fatos da vida de Jesus, encontrados nessas e em outras fontes, sua execução violenta em conflito com as autoridades, sua fama de realizador de milagres e feitos extraordinários (atribuidos por alguns rabinos a atos de feitiçaria), de que ele conseguiu alcançar um grupo razoavel de discipulos ("pois levou Israel a pecar e fez apóstata"), ainda que, por vezes, apareçam alguns sinais de que a hostilidade não é completa, de que, como já disse Geza Vermes, judeus e até mesmo rabinos não necessariamente se opunham a elas na sociedade judaica palestina do fim do século I .

Desta Forma, em vista das observações de Klausner, Vermes e Wilcox, acima, concluimos que as tradições populares sobre Jesus na Palestina, (provavelmente) teriam sido conservadas pelos rabinos por várias gerações, e não eram necessariamente hostis. Com o tempo, a medida que os caminhos de cristãos e judeus foram se afastando, essa memória foi sendo reinterpretada de forma cada vez mais polêmica e hostil.
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Referências bibliograficas:

[1] Geza Vermes, O Autêntico Evangelho de Jesus , fl.19, nota 33[2] Geza Vermes, Quem é quem na época de Jesus, fls. 152-153[3] Craig Evans; Jesus in Non Christians Sources in Bruce Chilton & Craig Evans; Studying the Historical Jesus, fl. 447[4]Craig Evans; Jesus in Non Christians Sources in Bruce Chilton & Craig Evans; Studying the Historical Jesus, fl. 449[5] Mahlon H. Smith, Into His Own, Jesus and Christians in non Christians sources, 191http://virtualreligion.net/iho/jesus.html, acessado em 23.12.2009[6] Craig Evans; Jesus in Non Christians Sources in Bruce Chilton & Craig Evans; Studying the Historical Jesus, fl. 449, nota 16[7] John P. Meier, Um Judeu Marginal, Vol. I fl. 115, nota 62[8] Geza Vermes, Jesus in His Jewish Context fl. 98[9] Graham Stanton, Gospel Thuth?New Light on Jesus and the Gospels, fl. 157[10] Edgard Leite, Yeshu Ha Notzri e sua viagem ao Egito: Uma Parábola Talmudica in Chevitarese, Corneli & Selvatici; Jesus de Nazaré, Uma outra História, fl. 291.[11] R T France The Evidence for Jesus, fl. 39[12] Geza Vermes, Quem é quem na época de Jesus, fls. 154[13] Edwin Yamaguchi, Jesus Outside the New Testament: What is the Evidence, in Wilkins & Moreland; Jesus Under Fire, fls. 214)

A familiaridade de Jesus com as ciências da magia. Parte II

Continuamos nossa analise da imagem popular de Jesus com base nas fontes polêmicas judaicas e apologéticas cristãs da antiguidade. Na parte 1, avaliamos fontes do sec. II, Celso (que afirma estar repetindo informações que circulavam em fontes judaicas), e os escritos de Justino e Tertuliano (que buscavam rebater percepções negativas que também existentes entre os judeus). Verificamos que sua origem, seus feitos extraordinários, e sua morte violenta foram atribuidos a uma união ilícita de seus pais, de seu aprendizado de magia, e da impossibilidade das reinvidicações messianicas.

Concluimos, seguindo a tese do Prof. Geza Vermes, que essa é uma reinterpretação polêmica de uma visão popular anterior - atestada em Josefo, de que Jesus de Nazaré era percebido entre os judeus do sec .I como um mestre sábio, hasside e realizador de feitos extraordinários - e se torna cada vez mais incisiva como reação as reinvidicações cristãs da origem dávidica de Jesus, de seus milagres como prova de sua messianidade, e de sua morte (e ressureição) como cumprimento das escrituras.

Analisaremos agora o Talmude, que considero uma das fontes mais difíceis no que se refere ao Jesus Histórico, em virtude de ser tardia, e das eventuais alusões serem objeto de intensa polêmica entre os estudiosos, primeiro no que diz respeito a se realmente uma dada passagem faz uma menção a Jesus de Nazaré, segundo se traz uma tradição histórica antiga, com um núcleo que remonte ao 1° século DC, ou é apenas uma reação dos rabinos do sec. V ou VI, ou até mesmo de meados da Idade Média, a pregação do evangelho pelos cristãos.

Introdução

Professor Edgard Leite, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, descreve o desenvolvimento e formação do Talmude:

Os fariseus se consideravam detentores de uma tradição espacífica, a assim chamada Mishnah, literalmente "Ensinamento". Tratava-se de um conjunto complexo de disposições legais e filosóficas, conhecida também como a Torah oral. Aceitava-se que se constituia em material complementar à Torah escrita e instrumental para sua correta compreensão. Tal tradição não tinha uma aceitação ampla no período anterior ao levante. Para os fariseus, no entanto, era a espinha dorsal de uma particular visão de mundo. A sua origem, do ponto de vista mítico, era entendida como associada à revelação a Moisés, tendo sido transmitida por ele a Josué, depois aos anciãos, aos profetas, aos homens da Grande Assembléia (zoferim, os escribas), e finalmente aos líderes dos fariseus. A tradição atribui as academias dos mestres Hilel e Shamai o início do processo de organização deste vasto material , ainda em períodos anteriores ao primeiro levante. Após a guerra, depois de 73, vários sábios estiveram envolvidos no processo de consolidação da Mishnah (...) os sábios que contribuiram para essa versão final da Mishnah, cerca de 150, passaram a ser tradicionalmente conhecidos como tannaim, isto é, os professores. (...)A partir do século III, a discussão sobre os conteúdos da Mishnah foi conduzida pelos amoraim, os expositores. Foram eles que começaram a elaborar o Talmude, ou Gemara, isto é o comentário, no caso sobre a Mishnah. (...) Um texto mais ou menos consolidado foi fixado por Ashi, diretor de Sura por 52 anos, em torno de 427, e consolidado por Rabina, em torno de 499. Aos capítulos da Mishnah , assim, foram acrescentados os comentários dos amoraim. Estes constituem a Gemara, de fato atas de reuniões ou coletâneas de opiniões, que envolvem não apenas afirmações amoraitas, mas tanaíticas e de fontes diversas. Não se trata, portanto, de um livro de história. O seu objetivo é a exegese da Torah, a reflexão sobre os infinitos sentidos da revelação do Sinai, a discussão ampla sobre a natureza da condição humana segundo a perspectiva judaica [1]

Desta forma, o Talmude não é propriamente um livro de história, e as alusões (ou supostas alusões a Jesus), são, em sua maioria, indiretas ou ambiguas.Em alguns casos a (suposta) alusão é feita em forma de parabola ou lenda, referindo-se a tradições correntes sobre Jesus ou dos cristãos.

Um motivos adicional para que as alusões fossem veladas, e que como as passagens atribuem imputações de nascimento ilegitimo e pratica de feitiçaria a Jesus, o Talmude esteve sujeito a desconfiança e vigilância da Igreja e autoridades cristãs durante a Idade Média. Em 1264, a Igreja ordenou a exclusão dessas passagens, consideradas ofensivas, e, eventualmente, o Talmude foi incluido no Index Librorum Prohibitorum em 1554, pelo papa Paulo IV.
Avaliação da Fonte. É mesmo Jesus?

Desta forma, o que se discute é se determinada passagem realmente se refere a Jesus, e se há e qual seria o núcleo histórico daquela afirmação. Alguns estudiosos entendem que o valor histórico das referências do Talmude é nulo, ou quase nulo. Enquanto outros acreditam que podem obter valiosas informações com base nas tradições dos rabis, independentes ou complementares aos evangelhos.

No lado "cético", temos como principal referência o Professor Johann Maier:

"Johann Maier representa uma posição radical ao sustentar que não apenas a Mishná, como também ambos os Talmudes, não contém qualquer menção direta e autêntica a Jesus de Nazaré (...) Sua conclusão é que mesmo os textos originais dos dois Talmudes nunca falaram de Jesus: tais referências seriam, todas, interpolações posteriores, inseridas na idade média" [2]
"Ele [Maier] antes afirma que o nome de Jesus foi inserido no processo secular de formação do Talmud apenas secundariamente em contextos existentes, a saber, como reação a provocações cristãs" [3]

Já entre aqueles que acreditam que o Talmude apresenta algumas (poucas) tradições historicamente independentes sobre Jesus, provenientes do periodo tanaitico, temos como "campeão" e representante o Professor Joseph Klausner (1874-1958), da Universidade Hebraica

Klausner (Jesus of Nazareth, 23) menciona vários baraitas do tempo do Rabi Eliezer Ben Hircano e do Rabi Ismael (final do século I e início do século II d.C). Baraitas são doutrinas rabínicas antigas que não foram incluidas no Mishná, porém foram preservadas nos documentos posteriores (Tosefta, dois Talmudes). [4]

Em contraposição a isso, outros autores, como por exemplo, J. Klausner, acreditam poder encontrar pelo menos algumas tradições antigas e historicamente confiáveis no Talmud [5].

Entre essas posições "extremas", existem várias opiniões intermediárias que parecem acomodar a maior parte dos críticos, e que, nesse primeiro momento, buscaremos seguir.

Jesus e sua execução no Talmude

Thiessen e Merz [6] apontam Sanhedrin 43a, abaixo, como representante de muitos textos possíveis, por se referir a execução de Jesus e seus (cinco?!) díscipulos e a uma tradição que provavelmente procede do periodo tanaítico.

Isso com certeza foi dito: Na véspera da páscoa Yeshu [de Nazaré] foi pendurado (ou enforcado); Pelos quarenta dias que antecederam sua execução, um arauto saiu e anunciou: ‘Ele será apedrejado porque praticou feitiçaria e induziu Israel à apostasia: "Jesus de Nazaré será apedrejado porque praticou feitiçaria e induziu Israel a pecar". Qualquer um que saiba algo em seu favor deixo-o vir adiante e o defenda. Porém, uma vez que nada foi alegado em seu favor, ele foi pendurado a véspera da páscoa.Rabi Ulla pergunta: “Você supõe que ele era alguém de quem alguma defesa pudesse serfeita?“Ele não era um instigador, a respeito de quem as Escrituras dizem: ‘tu não o pouparás, nem o ocultarás’?” Com Yeshu (Jesus), contudo, foi diferente porque ele tinha conexões com o governo (ou a realeza).Os rabinos ensinaram: Yeshu tinha cinco díscipulos: Mathai, Naqai, Neçer, Buni e Thoda. Quando apresentaram Mathai, este lhes disse: deve Mathai ser executado: pois foi dito: quando [Mathai] virei eu e aparecerei diante do rosto de Deus!? [ Sl. 42,3]. Eles lhes responderam: pois bem, Mathai deve ser executado, pois foi dito: quando [Mathai] ele morrerá e seu nome perecerá? [Sl. 41,6] (semelhantes jogos de palavras seguem-se também para os outros quatro díscipulos de Jesus) [7]

Segundo o Professor Edgard Leite [8], apenas 1 dos quatro manuscritos mais antigos (todos da Idade Média) do Talmud, trazem a expressão Ha Nozri, (Nazareno ou de Nazaré). Nos outros manuscritos é simplesmente Yeshu. Leite lista como possíveis explicações a auto censura da maioria dos copistas, ou de que algum deles teve acesso a alguma tradição especial, ou então pela simples decisão de acentuar uma identificação/justaposição. Uma vez que uma identificação ainda mais explícita de Yeshu com Jesus de Nazaré seria altamente problemática para copistas judeus em um ambiente majoritariamente cristão, é bem possivel que a omissão do termo "de Nazaré" nos outros manuscritos esteja relacionado ao receio de possíveis reações da Igreja. O Prof. David Flusser, acredita que Yeshu seria a pronuncia galiléia do nome Yeshua [9].

Tanto Maier como Klausner aceitam que na passagem, na forma como está hoje, Yeshu se refere a Jesus de Nazaré. No entanto, Thiessen e Merz [10], esclarecem que a posição de Maier é a de que o nome de Jesus foi incluido secundariamente no relato da execução de algum mago ou aliciador, que fora casualmente morto na véspera da páscoa. Desta forma, observa Thiessen, se Maier estiver certo, "fica impossibilitada qualquer conclusão histórica".

Thiessen e Merz comentam as informações trazidas pelo Baraita :

"Uma vez que se trata de explicar um processo legal rabínico, os acusadores e executores da punição são, exclusivamente autoridades judaicas, o que com certeza não é historicamente exato.

De modo correspondente, Jesus deve ser apedrejado e depois o cadaver deve ser suspenso. O "deixar suspenso na véspera da Páscoa" é fortemente destacado em relação ao apedrejamento, talvez para ajustar a narrativa ao conhecido fato de Jesus foi crucificado (pelos romanos). (...)

Jesus praticou feitiçaria, uma acusação que estava circulando desde muito cedo, uma vez que já aparece na pericope de Belzebu (Mc. 3.22). Ela naturalmente interpreta os milagres de Jesus como feitiçaria e magia satânica quando não se via neles a ação de Deus. Mas é muito improvável que esta acusação esteja relacionada a execução de Jesus".

"Jesus desencaminhou Israel e o tornou apóstata. Esta acusação absolutamente não reproduz a postura dos acusadores de Jesus.; Aqui um processo histórico posterior é retroprojetado na vida de Jesus. Somente retrospectivamente - depois que os cristãos se separam do judaísmo como grupo religiosos, aboliram a observância da Lei (principalmente, a circunsição, o sábado, e as regras alimentares) e cultuavam Jesus como Kyrios e Deus - os judeus poderiam apresentar Jesus como alguém que desencaminhou Israel, levando-o a idolatria" [11]

A forte ênfase sobre o "deixar suspenso no madeiro", apontada por Thiessen e Merz parece também ser uma forma de enfatizar o destino vergonhoso de Yeshu-Jesus, pois esta escrito em Deuteronômio: "Se um homem tiver cometido um pecado digno de morte, e for morto, e o tiveres pendurado num madeiro, o seu cadáver não permanecerá toda a noite no madeiro, mas certamente o enterrarás no mesmo dia; porquanto aquele que é pendurado é maldito de Deus. Assim não contaminarás a tua terra, que o Senhor teu Deus te dá em herança.(Deuteronômio 21:22-23)". A idéia dos cristãos, de um Messias Crucificado (logo, pendurado no madeiro) foi considerada absurda por seus contemporâneos. Em o Dialogo com Trifo, Justino alude as profecias de Daniel 7:9-27, e Trifo prontamente responde "Estas mesmas escrituras, meu caro, nos ordenam esperar aquele que, como Filho do Homem, receberá do Ancião de Dias o Reino Eterno. Mas este que vocês chamam de Cristo não teve honra ou glória, tanto assim que a maldição contida na Lei de Deus caiu sobre ele, porque foi crucificado [11].
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CONTINUA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS[1]Edgard Leite, Yeshu Ha Notzri e sua viagem ao Egito: Uma Parábola Talmudica in Chevitarese, Corneli & Selvatici; Jesus de Nazaré, Uma outra História. fl. 280-281[2] John P. Meier, Um Judeu Marginal, Vol. I, fl. 101[3] Gerd Thiessen e Annete Merz, O Jesus Histórico, Um Manual, fl. 94[4 John P. Meier, Um Judeu Marginal, Vol. I, fl. 112, nota 47.[5] Gerd Thiessen e Annete Merz, O Jesus Histórico, Um Manual, fl. 95[6] Talmude Babilônico, Tratado Sinédrio (bSahedrin) 43a[7] Edgard Leite, Yeshu Ha Notzri e sua viagem ao Egito: Uma Parábola Talmudica in Chevitarese, Corneli & Selvatici; Jesus de Nazaré, Uma outra História, fl. 286.[8] David Flusser, Jesus, fl.16[9] Gerd Thiessen e Annete Merz, O Jesus Histórico, Um Manual, fl. 95, nota 38[10] Gerd Thiessen e Annete Merz, O Jesus Histórico, Um Manual, fl. 95-96[11] Justino Martir, Dialogo com Trifo, Capítulo 32

A familiaridade de Jesus com as ciências da magia. Parte I

Este estudo, ou melhor, esta série de estudos, tem como objetivo desenvolver uma questão que sempre me intrigou. Gerd Thiessen e Annete Merz, em seu monumental "O Jesus Histórico, Um Manual", fazem a seguinte observação:

"Segundo G. Vermes, a descrição de Jesus como "homem sábio" e "realizador de feitos maravilhosos (milagrosos) (...) espelha a imagem de Jesus que circulava na Palestina como uma tradição popular.O fariseu Josefo recebeu-a sem uma apreciação, enquanto os rabinos interpretam a mesma tradição como testemunho sobre um mago e enaganador" [1].

Thiessen se refere aqui, em especial, ao importante trabalho do Prof. Geza Vermes, de Oxford, em em seu artigo "The Jesus Notice of Josephus Re-Examined" (1987).

Fatos e Versões: A proposta do Prof. Vermes abre uma "avenida", uma verdadeira auto-pista para os estudos do cristianismo primitivo.

Teriamos alguns fatos: O povo comum, contemporâneo de Jesus, tinha dele uma memória e lembrança como alguém capaz de realizar sinais e prodígios, feitos tidos como milagrosos e espetaculares. Um mestre cujos ensinos atrairam multidões. Sua atuação, porém, gerava controvérsia, que logo se transformou em conflito com as autoridades judaicas e romanas, levando a crucificação.

Para estes fatos teríamos uma interpretação dada por aqueles que, dentre o povo, seguiam a Jesus de Nazaré (os cristãos). O sinais e prodígios realizados por Jesus e seus ensinos provam que ele é "profeta poderoso em Palavras e Atos, diante de Deus e de todo o povo" (Lc. 24:24; Atos 2:22), que estas e outras coisas, bem como sua morte, aparentemente desonrosa, aconteceram para que se cumprisse a escritura (At. 2:23). "Ele nos apareceu vivo, pois Deus o ressuscitou dos mortos, em cumprimento da Escritura" (At. 2:24-32), testemunhavam os apóstolos. Tais fatos, interpretados a luz da escritura comprovariam uma reinvidicação ambiciosa: Jesus é o Cristo, em cumprimento das escrituras.

Outros, porém davam aos referidos fatos, interpretação diversa. Jesus foi preso e crucificado pelos próprios opressores do povo de Deus, a qual, supostamente, o Cristo deveria derrotar. Portanto, seu fracasso em impor seu reino e sua morte desonrosa, reservada a salteadores e agitafores, provariam que ele não podia ser quem dizia ser. Era então um falso profeta, magico e charlatão, e maldito, pois foi pendurado no madeiro. A medida que o cristianismo como movimento se tornou uma religião em separada, predominantemente gentia, essa visão se torna mais comum. Embora, possivelmente, alguns contemporâneos de Jesus pensassem assim, a predominância de tal visão seria resultado de uma reinterpretação tardia e deturpada da memória popular, que se intensifica com o passar do tempo, a medida que cristãos e judeus se distanciam.
No entanto, na visão de Geza Vermes, muitos dos contemporâneos de Jesus, provavelmente a maioria, interpretavam os fatos de uma maneira menos categórica. Acreditavam que Jesus tinha sido um homem santo, um hasside galileu, assim como Onias e Hanina Ben Dosa. Um sábio, realizador de feitos extraordinários, com muitos seguidores (como, parece, escreveu Josefo). Contudo, não o tinham como Messias. Outros ainda tinham dificuldade de distinguir Jesus de outros líderes carismáticos como Teudas ou Judas Galileu e pensavam que, se fosse de Deus, o legado de Jesus perduraria, ao contrário do que acontecera com Teudas ou Judas. O parecer atribuido a Gamaliel (Atos 5:33-42) pode ter sido uma opinião bem comum.

A hipótese é atrente, mas deve ser testada com as fontes disponíveis. Nossa análise será das fontes do II século e o Talmude.

Polêmica do II Século: O Professor Maurice Goguel (1880-1955), da Sorbonne (Universidade de Paris) observou certa vez que desde seus primórdios o cristianismo foi objeto de oposição tanto gentia quanto judaica, em Jerusalém, Judéia e todo o mundo romano. Por meio de Luciano, Celso, das várias apologias do século II (Justino, Taciano, Aristides) e pelo Dialogo entre Justino e o judeu Trifo, diz Goguel, podemos ter uma visão bem detalhada dos críticos do cristianismo no Segundo Século. Da mesma forma que há uma tradição apologética existe um outra polêmica, a qual a primeira tentava refutar [2]

Os mais importantes exemplos entre a polêmica a respeito de Jesus de Nazaré, no século II, são encontrados na obra do autor pagão Celso, e nos escritos dos apologistas Justino Martir e Tertuliano.

Sobre Celso, John Dominic Crossan escreve:

Em algum momento entre 177 e 180 E.C, com o Imperador Marco Aurélio já perseguindo os cristãos, o filósofo pagão Celso escreveu sua doutrina verdadeira, um ataque intelectual a religião dos cristãos [3]

A obra de Celso não sobreviveu. Mas várias partes de a Doutrina Verdadeira são conservadas na resposta de Origenes, "Contra Celso", escrita por volta de 230 a 240 DC. O mais interessante é que Celso afirma que sua fonte de detalhes supostamente biograficos de Jesus seriam relatos que circulavam entre os judeus. O que é relevante pois suas afirmações podem ser comparado com as apologias de São Justino Martir (140-160 DC), notadamente seu livro "Dialogo com Trifo" (150 DC), e com os escritos de Tertuliano de Cartago, por volta do ano 200, que também buscaram responder acusações feitas a Jesus por seus conterrâneos.

Entre as informações que Celso, Justino e Tertuliano apresentam estão:

1) Jesus é acusado de ter nascido de uma união ilegítima, da noiva de um carpinteiro e um soldado romano (Celso).

2) Os feitos extraordinários atribuidos a Jesus seriam resultado de seu conhecimento de magia (Celso, Justino e Tertuliano).

3) Os cristãos seguiam a Jesus, auto-proclamado Filho de Deus, por conta de seus feitos incríveis (Justino, Tertuliano e especificamente em Celso, resultado de seu aprendizado de magia no Egito), mas ele seria na verdade um aliciador e mago.

4) Se Jesus era o Messias e o Filho de Deus, não poderia ter sido crucificado, morte vergonhosa reservada aos mais baixos criminosos (Justino e Celso).

I) Origens e Acusação de Ilegitimidade:

"[Jesus] nasceu em uma certa vila judia, filho de uma pobre mulher do campo, que ganhava sua subsistência como fiandeira, e que foi expulsa de casa por seu marido, que exercia o ofício de carpinteiro, porque foi acusada de adultério; após ter sido abandonada por seu marido, e vagando por algum tempo, ela desgraçadamente deu a luz a Jesus, seu filho ilegitimo. Porque [Jesus] era pobre, empregou-se como operário no Egito e lá testou habilidades em certos poderes mágicos dos quais os egípcios se vangloriam, ele voltou cheio de presunção por causa desses poderes e por conta deles, deu a si mesmo o título de Filho de Deus."Durante a sua gravidez foi expulsa de casa de casa pelo carpinteiro a qual estava prometida, como sendo culpada de adultério, e deu a luz a uma filho de um soldado chamado Pantera[4]

No que se refere a questão de Ben Pandera e a suposta ilegitimidade de Jesus, Geza Vermes observa:

"Curiosamente, o nome Pantera/Pandera encontra confirmação no período, como nome de soldados romanos, e provas epígraficas, datando do ano 9, falam de um certo Tiberius Julius Abdes Pantera, um arqueiro sidoniano de uma legião estacionada na distante Germânia (...) A possibilidade de Pantera ser o Pai de Jesus foi retomada por James Tabor, em The Jesus Dynasty" [5]

Vermes acredita que a associação a Pandera surgiu de uma corruptela do grego "partenos" ou virgem, seria uma reação portanto as narrativas do evangelho de Mateus. J.P Meier, Notre Dame University, concorda, e aponta as dificuldades com essa tese:

"Como Celso relata o que um judeu lhe havia contado um pouco antes de 178, é de presumir que essa história já vinha circulando entre alguns judeus helenistas na Diaspora, em meados do século II. Com muita probabilidade, ela não data de época anterior, pois Justino, o Martir, trava um debate bastante detalhado co m Trifo, o judeu, sobre a concepção virginal, sem que este último seja apresentado como tendo respondido a acusação de ilegitimidade. Contudo, o fato da história ser primeiro atestada entre os judeus da diaspora, e não na Palestina, e só em meados do século II, evoca a apossibilidade de ela ser uma polêmica parodia judaica do relato cristão de concepção virginal, especialmente como apresentada no Evangelho de Mateus. (...) A origem da paródia na Diaspora e não na Palestina , torna improvável que tenhamos nessa passagem um fragmento de informação histórica preservado intacto "secretamente" pelos judeus ao longo de um século e meio [6].

O Novo Testamento registra pelo menos uma insinuaçãodos adversários de Jesus, de que ele teria sido concebido em uma relação ilícita, em João 8:40-41. Então a acusação aberta de ilegitimidade pode remontar aos contemporâneos de Jesus, o mesmo, no entanto, é duvidoso em relação a Pantera. Professor André Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro , apresenta outra motivos para uma dependência entre a tradição de Pantera relatada pela fonte de Celso e o evangelho de Mateus [7], além das trazidas por Vermes e Meier:

i) uma ênfase na concepção virginal;
ii) uma possivel insinuação à consternação de José, quando ele descobre que Maria está gravida, e seu plano para divorciar-se dela (Mateus 1:18-20),
iii) a fuga para o Egito (Mateus 2:13-15)
iv) a referência a José como carpinteiro, que só ocorre no Novo Testamento em Mateus 13:55

b) Feitos milagrosos e magia:

A respeito do extenso debate entre Justino Martir e Trifo (140-150 DC), já referido por Meier, o Prof. Graham Stanton, de Cambridge [8], observa que o primeiro afirma que as curas milagrosas de Jesus foram o cumprimento das profecias messiânicas de Isaias 35:1-7. Os milagres de Jesus seriam então um reconhecimento de sua condição de Messias, entretanto, muitos que os viram chegaram a conclusão oposta:

"Eles atribuiram [os milagres] a utilização de poderes mágicos, porque eles se atreveram a dizer que Jesus era um mágico e enganador do povo" [9].
Ainda segundo Stanton, do contexto, não há dúvida que o termo "enganador" esta sendo usado em comparação com Deuterônomio 13:5, com enfase no falso profeta que leva o povo de Deus a pecar.

Acusação semelhante é registrada e respondida por volta de 200 DC - uma geração após Celso e duas de Justino e Trifo - por Tertuliano, em seu livro Apologeticum:

"Assim, então, sob a força de sua rejeição convenceram a si próprios desse seu baixo procedimento: que Cristo não foi mais do que um homem, seguindo-se, como conseqüência necessária, que tivessem Cristo na conta de mágico, devido aos poderes que demonstrou"[10].

A acusação de Celso de que os judeus diziam que Jesus era na verdade um mágico e enganador do povo, foi também registrada e respondida, 30 anos antes, por Justino, em Diálogo com Trifo, e cerca de 20 anos depois na apologia de Tertuliano. Da mesma forma, é encontrada em passagens do Talmude, que será discutida em seguida, de um certo Yeshu que foi pendurado no madeiro (crucificado) na vespera da Páscoa, por praticar mágica e desencaminhar Israel.
A respeito, Geza Vermes observa:

"A familiaridade de Jesus com as ciências da magia, a representação negativa de sua atividade como realizador de milagres são atribuidos a seu contato com feiticeiros egípcios. O Celso de Origenes faz essas acusações no fim do século II." [11]

Orígenes (...) cita Celso, o crítico pagão de Jesus no século II, dizendo que ele afirmou que Jesus fazia seus "paradoxa" por mágica (Contra Celsum 1:6.17-18). A mesma acusação é levantada contra ele por detratores judeus posteriores (BSahedrin 43b) [12]

Nessa linha, Stanton afirma [13] que a acusação encontrada em Trifo (Jesus era um mágico enganador do povo) é uma tradição com raízes profundas. Durante seu ministério, diz Stanton, foi acusado de ser um mágico possuido pelo demônio. É provavel, ainda que não totalmente certo, que tenha acusado também de ser um falso profeta possuído pelo demônio. As alegações dos oponentes contemporâneos de Jesus confirmam que ele foi visto pior muitos como uma ameaça a ordem social e religiosa. A afirmar que agia e falava com base de um relacionamento especial com Deus foram corretamente percebidas como radicais. Para alguns eram tão radicais que tiveram que ser atacadas com base de uma explicação alternativa de sua fonte: Jesus era um mágico possuido pelo demônio e falso profeta. Avaliação semelhante pode ser feita em relação aos ataques respondidos por Tertuliano.

Na mesma linha, Celso centra seu linha de ataque na comparação entre os feitos de Jesus com os "realizados pelos mágicos egípcios que no meio das praças e feiras, por alguns trocados, demonstram conhecimento nas mais venerandas artes, expulsam demônios, curam enfermidades, e invocam a almas de heróis", e pergunta, "Visto, então, que essas pessoas podem realizar tais feitos, teremos que concluir que são "filhos de Deus" ou que procedem de homens iníquos sob a influência de espiritos malignos?[14]".
Em outras palavras, Celso esta ridicularizando os cristãos, dizendo, em outras palavras, : "vcs falam que esses milagres cumprem as profecias e demostram que Jesus é o Messias; Mas no Egito, os mágicos fazem feitos semelhantes, sem que possam ser chamados Filhos de Deus; Então, Jesus também deve ter sido um mágico possuido pelo demônio" É inevitavel a lembrança das acusações dos escribas no evangelho,
"Ele está possesso de Belzebu; e: É pelo príncipe dos demônios que expulsa os demônios" (Mc 3:22).

Morte:

Celso também ridiculariza a crença dos cristãos em um homem que foi crucificado como criminoso:

"Se, após inventar defesas que são absurdas, e pelas quais vocês são ridiculamente enganados, ainda que imaginando que vocês realmente fizeram uma boa defesa, porque vocês não consideram aqueles outros individuos que também foram condenados, e sofreram uma morte miserável, como maiores e mais divinos mensageiros dos céus (que Jesus) ?""e da mesma forma outros de seus companheiros seria capaz de afirmar, até mesmo de um assaltante e assassino cujo o castigo tenha sido aplicado, que tal não era um bandido, mas um deus, porque previu para seus companheiros de roubo que ele seria punido, como realmente foi" [15] .

No Dialogo entre Justino e Trifo, também encontramos uma amostra de como a idéia de um Cristo Crucificado soava escandalosa para seus contêmporâneos. Justino alude as profecias de Daniel 7:9-27, e Trifo prontamente responde:

"Estas mesmas escrituras, meu caro, nos ordenam esperar aquele que, como Filho do Homem, receberá do Ancião de Dias o Reino Eterno. Mas este que vocês chamam de Cristo não teve honra ou glória, tanto assim que a maldição contida na Lei de Deus caiu sobre ele, porque foi crucificado " [16]

É um eco perfeito, ainda que mais polido, as críticas de Celso. Jesus não pode ser o Messias, pois Messias não são crucificados como bandidos e salteadores comuns.

Conclusão:

É interessante que Celso, ou as fontes judaicas utilizadas por ele, ao invés de negar os milagres de Jesus, opta, primeiro, por desacreditar a fonte de seus poderes, atribuindo a magia e o conluio com forças demoniacas, e em seguida, sua significância, ao dizer que qualquer mágico de esquina poderia realiza-los. É sugestivo também o fato de que as acusações levantadas pelo filósofo judeu anônimo citado por Celso, apresentarem certa similaridade com as encontradas em Dialogo com Trifo, das críticas registradas em Tertuliano, e o Talmude.

Da mesma forma, Josefo fala de Jesus como "realizador de feitos incríveis/controversos". Isso tudo indica que Jesus tinha fama de "milagreiro" (ou feiticeiro) em circulos judaicos. Essa crença é atestada também em circulos pagãos. Ao responder Celso, Orígenes cita Flegon de Trales, cujos escritos datam entre 120-150 DC "Flegon, no décimo terceiro ou décimo quarto livro, se não me engano, de suas cronicas, não apenas atribui a Cristo o conhecimento de eventos futuros, ainda que confundindo alguns coisas referentes a Pedro como se refererissem a Jesus, também afirma que o resultado correspondia as suas previsões [17]". Tudo isso atesta que em meados do século II, Jesus era conhecido como alguém com poderes premonitórios e miraculosos.

E como observa o [18] Professor Robert Van Voorst, Western Theological Seminary, além das acusações de nascimento ilegítimo e prática de feitiçaria, Celso lança um violento ataque sobre vários outros aspectos da vida terrena de Jesus - ancestralidade, concepção, nascimento, infância, ministério, morte, ressureição e influência posterior. Van Voorst escreve

"De acordo com Celso, os pais de Jesus eram de uma aldeia judia (Contra Celso 1.28), e sua mãe era uma pobre mulher que obtinha seu sustento como fiandeira (1.28). Ele realizou seus milagres através de feitiçaria (1.28; 2.32; 2.49; 8.41). Sua aparência física era de um homem feio e pequeno (6.75). Para seu descrédito, Jesus manteve todos os costumes judaicos, inclusive o sacrifício no Templo (2.6). Ele reuniu apenas dez seguidores e ensinou a eles seus piores hábitos, como mendigar e furtar (1.62; 2.44). Seus discipulos, que contavam só "dez marinheiros e coletores de impostos" foram os únicos a qual ele convenceu de sua divindade, mas agora seus seguidores convertem multidões (2.46). Os relatos de sua ressureição vieram de uma mulher histérica, e a crença na ressureição foi o resultado da mágica de Jesus, os desejos de seus seguidores, ou alucinação coletiva, tudo com o propósito de impressionar outros e aumentar as chances de outros tornaram-se mendigos (2.55).” [18]

A críticas acimas são tardias, escrita 100 a 150 anos depois da morte de Jesus. Contudo, Celso é a única fonte não-cristã até então que escreve especificamente sobre o movimento de Jesus. Josefo, Tácito, Plínio, Suetônio, Luciano, Mara, fazem menções incidentais em relação a Jesus. E Justino e Tertuliano se esforçam para defender o cristianismo de acusações semelhantes, que circulavam entre alguns círculos judaícos hostis ao cristianismo.

Tácito e Suetônio estavam interessados nos reinados de Claúdio e Nero; Josefo no governo de Pilatos e na destituição do Sumo-Sacerdote Ananias, nas duas menções que faz a Jesus; Luciano escrevia sobre o Filósofo Proteus, e Mara instruia seu filho nas virtudes da sabedoria apesar do ataque dos poderosos, citando Jesus como exemplo. Mas Celso critica sistemática e detalhadamente os cristãos. Apresenta argumentos filosóficos, aponta supostas inconsistências nas narrativas evangélicas, faz comparações com outros cultos e seitas existentes à época, apresenta alguma familiaridade com os vários grupos cristãos existentes. No que se refere a vida de Jesus, apresenta "fatos" não existentes em qualquer escrito cristão, e derivados de tradições que circulavam entre os judeus em meados, talvez no início do II século. Tais tradições são atestadas também, no mesmo período, pelas defesas de Justino e Tertuliano.

É razoavel inferir que critícos como Celso utilizaram o que havia de melhor à época para atacar o cristianismo. O mesmo pode ser dito dos oponentes de Tertuliano e Justino, que se esforçam por rebater críticas incisivas contra seu Mestre. O que indica fortemente mesmo os mais ferrenhos inimigos do cristianismo, não tinham motivo para questionar a historicidade de Jesus, seus ensinamentos como centrais no cristianismo, e que ele realizou pelos menos alguns feitos considerados milagrosos.
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Referências:[1] Gerd Thiessen & Annete Merz (1996), "O Jesus Histórico, Um Manual, fl 94[2] Maurice Goguel, Jesus the Nazarene, Myth or History? fls. 69-71[3] John Dominic Crossan, Jesus, uma biografia revolucionária, fl. 43[4] Origenes, Contra Celso Livro 1, Capítulos 28 e 32[5] Geza Vermes, Natividade, fl. 178, nota 16[6] John P. Meier, Um Judeu Marginal, Vol. I, fls. 223-224[7] André Chevitarese, Menino Jesus e a Ilegitimidade Física do Fiho de Deus. O Uso do Modelo Iconográfico de Tipo Universal (Mãe/Filho) pelos cristãos, In Chevitarese, Corneli & Selvatici, Jesus de Nazaré, Uma Outra História, fl. 51[8] Graham Stanton, Gospel Thuth?New Light on Jesus and the Gospels, fl. 156[9] Justino, Dialogo com Trifo, Capítulo 69, verso 5[10] Tertuliano, Apologetica 21:17[11] Geza Vermes, Natividade, fl. 134[12] Geza Vermes, As Varias Faces de Jesus, fl. 306, nota[13] Graham Stanton, Gospel Thuth?New Light on Jesus and the Gospels, fl. 163[14] Orígenes, Contra Celso, Livro 1, Capitulo 68[15] Orígenes, Contra Celso, Livro 2, Capítulo 44[16] Justino Martir, Dialogo com Trifo, Capítulo 32[17] Orígenes, Contra Celso, Livro 2, Capítulo 14[18] Robert Van Voorst, Jesus Outside of New Testament, fl. 66