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quarta-feira, 14 de julho de 2010

A familiaridade de Jesus com as ciências da magia. Parte II

Continuamos nossa analise da imagem popular de Jesus com base nas fontes polêmicas judaicas e apologéticas cristãs da antiguidade. Na parte 1, avaliamos fontes do sec. II, Celso (que afirma estar repetindo informações que circulavam em fontes judaicas), e os escritos de Justino e Tertuliano (que buscavam rebater percepções negativas que também existentes entre os judeus). Verificamos que sua origem, seus feitos extraordinários, e sua morte violenta foram atribuidos a uma união ilícita de seus pais, de seu aprendizado de magia, e da impossibilidade das reinvidicações messianicas.

Concluimos, seguindo a tese do Prof. Geza Vermes, que essa é uma reinterpretação polêmica de uma visão popular anterior - atestada em Josefo, de que Jesus de Nazaré era percebido entre os judeus do sec .I como um mestre sábio, hasside e realizador de feitos extraordinários - e se torna cada vez mais incisiva como reação as reinvidicações cristãs da origem dávidica de Jesus, de seus milagres como prova de sua messianidade, e de sua morte (e ressureição) como cumprimento das escrituras.

Analisaremos agora o Talmude, que considero uma das fontes mais difíceis no que se refere ao Jesus Histórico, em virtude de ser tardia, e das eventuais alusões serem objeto de intensa polêmica entre os estudiosos, primeiro no que diz respeito a se realmente uma dada passagem faz uma menção a Jesus de Nazaré, segundo se traz uma tradição histórica antiga, com um núcleo que remonte ao 1° século DC, ou é apenas uma reação dos rabinos do sec. V ou VI, ou até mesmo de meados da Idade Média, a pregação do evangelho pelos cristãos.

Introdução

Professor Edgard Leite, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, descreve o desenvolvimento e formação do Talmude:

Os fariseus se consideravam detentores de uma tradição espacífica, a assim chamada Mishnah, literalmente "Ensinamento". Tratava-se de um conjunto complexo de disposições legais e filosóficas, conhecida também como a Torah oral. Aceitava-se que se constituia em material complementar à Torah escrita e instrumental para sua correta compreensão. Tal tradição não tinha uma aceitação ampla no período anterior ao levante. Para os fariseus, no entanto, era a espinha dorsal de uma particular visão de mundo. A sua origem, do ponto de vista mítico, era entendida como associada à revelação a Moisés, tendo sido transmitida por ele a Josué, depois aos anciãos, aos profetas, aos homens da Grande Assembléia (zoferim, os escribas), e finalmente aos líderes dos fariseus. A tradição atribui as academias dos mestres Hilel e Shamai o início do processo de organização deste vasto material , ainda em períodos anteriores ao primeiro levante. Após a guerra, depois de 73, vários sábios estiveram envolvidos no processo de consolidação da Mishnah (...) os sábios que contribuiram para essa versão final da Mishnah, cerca de 150, passaram a ser tradicionalmente conhecidos como tannaim, isto é, os professores. (...)A partir do século III, a discussão sobre os conteúdos da Mishnah foi conduzida pelos amoraim, os expositores. Foram eles que começaram a elaborar o Talmude, ou Gemara, isto é o comentário, no caso sobre a Mishnah. (...) Um texto mais ou menos consolidado foi fixado por Ashi, diretor de Sura por 52 anos, em torno de 427, e consolidado por Rabina, em torno de 499. Aos capítulos da Mishnah , assim, foram acrescentados os comentários dos amoraim. Estes constituem a Gemara, de fato atas de reuniões ou coletâneas de opiniões, que envolvem não apenas afirmações amoraitas, mas tanaíticas e de fontes diversas. Não se trata, portanto, de um livro de história. O seu objetivo é a exegese da Torah, a reflexão sobre os infinitos sentidos da revelação do Sinai, a discussão ampla sobre a natureza da condição humana segundo a perspectiva judaica [1]

Desta forma, o Talmude não é propriamente um livro de história, e as alusões (ou supostas alusões a Jesus), são, em sua maioria, indiretas ou ambiguas.Em alguns casos a (suposta) alusão é feita em forma de parabola ou lenda, referindo-se a tradições correntes sobre Jesus ou dos cristãos.

Um motivos adicional para que as alusões fossem veladas, e que como as passagens atribuem imputações de nascimento ilegitimo e pratica de feitiçaria a Jesus, o Talmude esteve sujeito a desconfiança e vigilância da Igreja e autoridades cristãs durante a Idade Média. Em 1264, a Igreja ordenou a exclusão dessas passagens, consideradas ofensivas, e, eventualmente, o Talmude foi incluido no Index Librorum Prohibitorum em 1554, pelo papa Paulo IV.
Avaliação da Fonte. É mesmo Jesus?

Desta forma, o que se discute é se determinada passagem realmente se refere a Jesus, e se há e qual seria o núcleo histórico daquela afirmação. Alguns estudiosos entendem que o valor histórico das referências do Talmude é nulo, ou quase nulo. Enquanto outros acreditam que podem obter valiosas informações com base nas tradições dos rabis, independentes ou complementares aos evangelhos.

No lado "cético", temos como principal referência o Professor Johann Maier:

"Johann Maier representa uma posição radical ao sustentar que não apenas a Mishná, como também ambos os Talmudes, não contém qualquer menção direta e autêntica a Jesus de Nazaré (...) Sua conclusão é que mesmo os textos originais dos dois Talmudes nunca falaram de Jesus: tais referências seriam, todas, interpolações posteriores, inseridas na idade média" [2]
"Ele [Maier] antes afirma que o nome de Jesus foi inserido no processo secular de formação do Talmud apenas secundariamente em contextos existentes, a saber, como reação a provocações cristãs" [3]

Já entre aqueles que acreditam que o Talmude apresenta algumas (poucas) tradições historicamente independentes sobre Jesus, provenientes do periodo tanaitico, temos como "campeão" e representante o Professor Joseph Klausner (1874-1958), da Universidade Hebraica

Klausner (Jesus of Nazareth, 23) menciona vários baraitas do tempo do Rabi Eliezer Ben Hircano e do Rabi Ismael (final do século I e início do século II d.C). Baraitas são doutrinas rabínicas antigas que não foram incluidas no Mishná, porém foram preservadas nos documentos posteriores (Tosefta, dois Talmudes). [4]

Em contraposição a isso, outros autores, como por exemplo, J. Klausner, acreditam poder encontrar pelo menos algumas tradições antigas e historicamente confiáveis no Talmud [5].

Entre essas posições "extremas", existem várias opiniões intermediárias que parecem acomodar a maior parte dos críticos, e que, nesse primeiro momento, buscaremos seguir.

Jesus e sua execução no Talmude

Thiessen e Merz [6] apontam Sanhedrin 43a, abaixo, como representante de muitos textos possíveis, por se referir a execução de Jesus e seus (cinco?!) díscipulos e a uma tradição que provavelmente procede do periodo tanaítico.

Isso com certeza foi dito: Na véspera da páscoa Yeshu [de Nazaré] foi pendurado (ou enforcado); Pelos quarenta dias que antecederam sua execução, um arauto saiu e anunciou: ‘Ele será apedrejado porque praticou feitiçaria e induziu Israel à apostasia: "Jesus de Nazaré será apedrejado porque praticou feitiçaria e induziu Israel a pecar". Qualquer um que saiba algo em seu favor deixo-o vir adiante e o defenda. Porém, uma vez que nada foi alegado em seu favor, ele foi pendurado a véspera da páscoa.Rabi Ulla pergunta: “Você supõe que ele era alguém de quem alguma defesa pudesse serfeita?“Ele não era um instigador, a respeito de quem as Escrituras dizem: ‘tu não o pouparás, nem o ocultarás’?” Com Yeshu (Jesus), contudo, foi diferente porque ele tinha conexões com o governo (ou a realeza).Os rabinos ensinaram: Yeshu tinha cinco díscipulos: Mathai, Naqai, Neçer, Buni e Thoda. Quando apresentaram Mathai, este lhes disse: deve Mathai ser executado: pois foi dito: quando [Mathai] virei eu e aparecerei diante do rosto de Deus!? [ Sl. 42,3]. Eles lhes responderam: pois bem, Mathai deve ser executado, pois foi dito: quando [Mathai] ele morrerá e seu nome perecerá? [Sl. 41,6] (semelhantes jogos de palavras seguem-se também para os outros quatro díscipulos de Jesus) [7]

Segundo o Professor Edgard Leite [8], apenas 1 dos quatro manuscritos mais antigos (todos da Idade Média) do Talmud, trazem a expressão Ha Nozri, (Nazareno ou de Nazaré). Nos outros manuscritos é simplesmente Yeshu. Leite lista como possíveis explicações a auto censura da maioria dos copistas, ou de que algum deles teve acesso a alguma tradição especial, ou então pela simples decisão de acentuar uma identificação/justaposição. Uma vez que uma identificação ainda mais explícita de Yeshu com Jesus de Nazaré seria altamente problemática para copistas judeus em um ambiente majoritariamente cristão, é bem possivel que a omissão do termo "de Nazaré" nos outros manuscritos esteja relacionado ao receio de possíveis reações da Igreja. O Prof. David Flusser, acredita que Yeshu seria a pronuncia galiléia do nome Yeshua [9].

Tanto Maier como Klausner aceitam que na passagem, na forma como está hoje, Yeshu se refere a Jesus de Nazaré. No entanto, Thiessen e Merz [10], esclarecem que a posição de Maier é a de que o nome de Jesus foi incluido secundariamente no relato da execução de algum mago ou aliciador, que fora casualmente morto na véspera da páscoa. Desta forma, observa Thiessen, se Maier estiver certo, "fica impossibilitada qualquer conclusão histórica".

Thiessen e Merz comentam as informações trazidas pelo Baraita :

"Uma vez que se trata de explicar um processo legal rabínico, os acusadores e executores da punição são, exclusivamente autoridades judaicas, o que com certeza não é historicamente exato.

De modo correspondente, Jesus deve ser apedrejado e depois o cadaver deve ser suspenso. O "deixar suspenso na véspera da Páscoa" é fortemente destacado em relação ao apedrejamento, talvez para ajustar a narrativa ao conhecido fato de Jesus foi crucificado (pelos romanos). (...)

Jesus praticou feitiçaria, uma acusação que estava circulando desde muito cedo, uma vez que já aparece na pericope de Belzebu (Mc. 3.22). Ela naturalmente interpreta os milagres de Jesus como feitiçaria e magia satânica quando não se via neles a ação de Deus. Mas é muito improvável que esta acusação esteja relacionada a execução de Jesus".

"Jesus desencaminhou Israel e o tornou apóstata. Esta acusação absolutamente não reproduz a postura dos acusadores de Jesus.; Aqui um processo histórico posterior é retroprojetado na vida de Jesus. Somente retrospectivamente - depois que os cristãos se separam do judaísmo como grupo religiosos, aboliram a observância da Lei (principalmente, a circunsição, o sábado, e as regras alimentares) e cultuavam Jesus como Kyrios e Deus - os judeus poderiam apresentar Jesus como alguém que desencaminhou Israel, levando-o a idolatria" [11]

A forte ênfase sobre o "deixar suspenso no madeiro", apontada por Thiessen e Merz parece também ser uma forma de enfatizar o destino vergonhoso de Yeshu-Jesus, pois esta escrito em Deuteronômio: "Se um homem tiver cometido um pecado digno de morte, e for morto, e o tiveres pendurado num madeiro, o seu cadáver não permanecerá toda a noite no madeiro, mas certamente o enterrarás no mesmo dia; porquanto aquele que é pendurado é maldito de Deus. Assim não contaminarás a tua terra, que o Senhor teu Deus te dá em herança.(Deuteronômio 21:22-23)". A idéia dos cristãos, de um Messias Crucificado (logo, pendurado no madeiro) foi considerada absurda por seus contemporâneos. Em o Dialogo com Trifo, Justino alude as profecias de Daniel 7:9-27, e Trifo prontamente responde "Estas mesmas escrituras, meu caro, nos ordenam esperar aquele que, como Filho do Homem, receberá do Ancião de Dias o Reino Eterno. Mas este que vocês chamam de Cristo não teve honra ou glória, tanto assim que a maldição contida na Lei de Deus caiu sobre ele, porque foi crucificado [11].
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CONTINUA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS[1]Edgard Leite, Yeshu Ha Notzri e sua viagem ao Egito: Uma Parábola Talmudica in Chevitarese, Corneli & Selvatici; Jesus de Nazaré, Uma outra História. fl. 280-281[2] John P. Meier, Um Judeu Marginal, Vol. I, fl. 101[3] Gerd Thiessen e Annete Merz, O Jesus Histórico, Um Manual, fl. 94[4 John P. Meier, Um Judeu Marginal, Vol. I, fl. 112, nota 47.[5] Gerd Thiessen e Annete Merz, O Jesus Histórico, Um Manual, fl. 95[6] Talmude Babilônico, Tratado Sinédrio (bSahedrin) 43a[7] Edgard Leite, Yeshu Ha Notzri e sua viagem ao Egito: Uma Parábola Talmudica in Chevitarese, Corneli & Selvatici; Jesus de Nazaré, Uma outra História, fl. 286.[8] David Flusser, Jesus, fl.16[9] Gerd Thiessen e Annete Merz, O Jesus Histórico, Um Manual, fl. 95, nota 38[10] Gerd Thiessen e Annete Merz, O Jesus Histórico, Um Manual, fl. 95-96[11] Justino Martir, Dialogo com Trifo, Capítulo 32