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terça-feira, 6 de março de 2012

Os Empobrecidos, segundo o livro de Jó


Milton Schwantes é um mestre. Sempre ensinou com gosto. Com isso, ajudou muita gente a ter gosto pelo estudo, em especial pelo estudo da Bíblia. Ele abriu os olhos de muita gente para a beleza, a profundidade e a radicalidade da palavra de Deus. Com isso foi sinalizando caminhos, nos quais ele mesmo trilhava como alguém que busca, que experimenta, que percebe, mas também retrocede para poder recomeçar. O seu trabalho com os textos nunca foi pela via dogmática, das certezas absolutas, das coisas prontas. Era um aproximar-se deste Sagrado travestido em palavras, com temor e tremor, mas em alegria e firmeza. Por estes caminhos muita gente continuou a caminhar, por vezes reforçando o caminho, tantas vezes descobrindo novos atalhos ou desvios ou até descortinando caminhos novos. Eu me sinto parte destes caminhantes na leitura da Bíblia.
O trabalho bíblico, exegético e teológico do mestre Milton tem muitas facetas. Há um colorido de perspectivas. Uma, porém, sempre foi a perspectiva dominante: ler o texto bíblico desde a perspectiva do pobre, do empobrecido, do humilde – homens e mulheres e também crianças – com um direito inalienável à vida. A sua tese de doutorado foi programática neste sentido: O direito dos pobres. Este trabalho descortinou uma perspectiva que, na maioria das vezes, não é levada à sério neste campo da pesquisa acadêmica: o lugar social da gente empobrecida nos tempos bíblicos e os seus direitos próprios. Neste trabalho, Milton destacou especialmente o lugar e o direito dos pobres no contexto da literatura legal e profética do Antigo Testamento. Nesta obra paradigmática, ele mesmo indica que, por motivos de tempo e espaço, não prescrutaria o tema no contexto da literatura sapiencial e no saltério. O presente texto se inscreve como uma continuação desta lacuna, embora o próprio autor tenha trabalhado isso em textos posteriores. Constitui, pois, alegria e honra poder homenagear o mestre com o presente texto sobre o direito dos pobres em Jó e sobre a trajetória de um empobrecido que se tornou sujeito e até o final se manteve sujeito frente ao sistema.
I. Problemática e arquitetura da obra
O livro de Jó é um texto intrigante dentro do colorido do cânon bíblico. É sabido que com este livro se expressa dentro do desenvolvimento da literatura bíblica a chamada ‘crise da sabedoria’. Esta ‘crise’ consiste basicamente no fato de que o sistema de retribuição como mecanismo regulador da ordem social, pressuposto nos textos sapienciais mais antigos, como expressos em Pv 10-29, não funcionava mais. A ‘crise’ brota da experiência, do cotidiano, da vida. No nível existencial, o justo não mais recebe a sua devida recompensa, enquanto que ímpios prosperam. Aquilo que pelo sistema deveria ser um direito do justo se torna a causa da queixa e do protesto do personagem Jó. Com o protesto, o próprio sistema é colocado em xeque.
O livro de Jó é uma obra aberta; a partir de seus textos as mais diferentes questões podem ser discutidas. Fundamentalmente, porém, destacam-se dois temas na trama do livro. Na descendente e ascendente trajetória do personagem Jó discute-se o caso de Jó, isto é, levanta-se a pergunta pelo destino existencial e pela solução da pobreza e do sofrimento de pessoas que como Jó caíram em desgraça social, tornando-se pobres. Por outro lado, o livro discute o problema de Jó, isto é, a questão teórica e teológica acerca do sofrimento inocente e da ação de Deus no mundo face à questão. Nessa discussão da teodicéia, trata-se de perscrutar o silêncio de Deus e o adequado falar de Deus a partir do sofrimento inocente. O livro trata, pois, de existência e de doutrina.
Sabidamente, a discussão da crise da sabedoria também se expressa em outras partes literárias da Bíblia hebraica, como no livro de Eclesiastes ou Coélet, em alguns salmos (Sl 49; 73), bem como nas obras dêutero-canônicas de Sirácida e Sabedoria. O livro de Jó não constitui uma ruptura completa com o pensamento sapiencial clássico. Ele evidencia descontinuidades e continuidades. Reflete a transição e as adequações necessárias no pensamento sapiencial e teológico no antigo Israel a partir das novas demandas e das necessárias adequações no modo de pensar.
O surgimento do livro de Jó como obra, muito provavelmente, deve ser situado no período persa, portanto na época do pós-exílio. É neste contexto que o acúmulo de experiências de sofrimento e de empobrecimento, causadas pelos vários exílios, deportações e derrotas do povo de Israel, do norte e do sul, puderam ser melhor discutidas, não por último à luz e em diálogo com textos da chamada ‘teodicéia babilônica’. O autor do livro costuma ser alocado entre círculos aristocráticos do período do pós-exílio, embora se deva distinguir mais concretamente entre esses grupos da elite judaíta, assumindo que, provavelmente, o autor do livro de Jó faça parte de um círculo de justos piedosos materialmente bem situados, mas que decaíram socialmente no contexto de profundas e mui rápidas transformações sociais no período.
A arquitetura do livro evidencia uma trama literária complexa, mas muito bem construída. Pode-se falar de uma polifonia, na medida em que o livro é constituído de várias camadas e vários níveis de significação, com várias vozes teológicas, que se delimitam, corrigem e complementam, procurando, assim, fazer juz ao problema central.Estilisticamente costuma-se diferenciar duas partes importantes do livro: as partes em prosa, dominante nas partes inicial (cap. 1-2) e final (42,7-17) e as partes em poesia, dominantes na parte central (cap. 3-41). Alguns denominam estas partes de moldura prosaica de “porta de entrada” e “porta de saída”. Dentro desta polifonia é possível isolar várias vozes e analisá-las dentro de sua intencionalidade e limitação imaginária próprias. Assim temos, por exemplo, as vozes de Jó (na parte inicial, nos diálogos da parte central e na resposta final), a voz da mulher de Jó (2,9), a voz dos amigos (4-27), a voz de Eliú (32-37) e a voz de Deus na teofania (38-41). Cada uma dessas vozes, com sutilidades teológicas próprias poderia se analisada separadamente e com bons resultados. Pode-se ainda perceber as ‘costuras’ literárias na imbricação das partes, o que também expressa uma intencionalidade própria. O importante, contudo, é perceber a trama da obra como um todo, para dentro da qual confluíram diversas camadas, tradições e releituras constituindo justamente uma obra polifônica.
No intento de perceber esta trama da obra, convém ter sempre em mente a discussão de um duplo problema: o caso de Jó e o problema de Jó. O personagem Jó interliga as duas questões. Ao longo da trajetória existencial deste personagem literário discutem-se as várias possibilidades teológicas de explicar o sofrimento e ação de Deus , bem como a própria possibilidade de transformação de quem, como Jó, através da rebeldia, se coloca em busca de conhecimento mais profundo, que ultrapassa os limites da tradição e bebe na fonte da experiência com o próprio Sagrado. Na trama, o personagem Jó passa por dois movimentos fundamentais: da riqueza para a condição periférica de pobre e da pobreza para o bem-estar físico, material e social. Na condição periférica, isto é, “sentado em cinzas” (2,8; cf. 42,6), Jó realiza o intenso processo de discussão com os amigos, o que, após uma terceira opinião, e encontro com Deus, culmina num discernimento mais profundo, que parece ser um dos objetivos do livro de Jó.
Com o intuito da discussão da teoria ou doutrina da retribuição mecânica, que pressupõe uma relação bipolar entre duas grandezas (ser humano X ser humano ou ser humano X Deus), o autor da obra situa Jó em condição social e econômica quase lendária: o cabra é podre de rico (1,3)! Jó é também um tipo multicultural, pois sendo da terra de Uz representa um personagem de fora de Israel (1,1). Com a quádrupla caracterização inicial como “íntegro e reto, temente a Deus e que se desviava do mal” (1,1), Jó está na linha de um tipo ideal do justo proposto na profecia (Mq 6,8), e também pressuposto como o protótipo da nova humanidade na figura de Noé (Gn 6,9). Jó é mantido e mantém-se como sujeito nesta caracterização até o final da obra. Na parte inicial ressalta-se a constante preocupação de Jó e fazer o que social e culticamente é correto. É um tipo preocupado em agir corretamente perante as pessoas, e especialmente diante de Deus.
Na moldura inicial já há uma problematização da doutrina, isto é do problema de Jó, através da inserção do personagem Satã (1,6), que ainda não é o diabo crescido e amadurecido do dualismo teológico no século I, mas representa uma grandeza criada (por Deus), que age com relativa autonomia, mas que está fora de Deus e fora do ser humano. Satã é o tentador, o sacaneador por excelência, que toca num problema fundamental da doutrina teológica da época: quem vive na abastança pode louvar Deus de boca cheia, mas será que a mesma confiança inabalável se manterá na penúria da pobreza? Esta é a aposta! O prognóstico ‘satânico’ é pelo não; e Deus espera para ver. As sacanagens de Satã reduzem o lendário rico Jó a um sujeito pobre, que passa a viver na condição de marginalidade social. Jó tornou-se um empobrecido, mas em seus diálogos ainda mantém o jeito patriarcal de pensar. Com isso talvez o personagem corporifique setores da classe social abastada do antigo Israel que, sob os impulsos das transformações sociais, passaram e passam por processos de empobrecimento. Aqui se pode pensar nos tradicionais proprietários livres de Israel, muitos dos quais, durante o século VIII aC passaram por um processo de empobrecimento, tão arduamente defendidos por profetas como Amós, Isaías e Miquéias, e que estão na iminência de perder ou que já perderam sua terra e com isso sua liberdade jurídica e cúltica. Deve tratar-se da classe dos cidadãos livres, talvez do ‘povo da terra’, sustentadores da reforma de Josias e da legislação deuteronômica.
As investidas deste Satã contra Jó apontam para a complexização da relação da pessoa com Deus. Na trama da obra, para os ouvintes e leitores estava já claro que há uma outra força atuante no mundo, além de Deus e do ser humano, capaz de provocar desgraças e sofrimento através do seu agir. Para Jó, contudo, isso permanece oculto, sendo desvendado somente no final da obra, nos discursos de Deus para Jó e com a apresentação das figuras de Leviatã e Beemot. Os três personagens mítico-teológicos indicam para um incipiente dualismo na cultura teológica de Israel no período do pós-exílio, acolhendo parcialmente imports teológicos da Pérsia e rompendo, assim, parcialmente com o monismo teológico, que atribuía tanto o bem quanto o mal a Deus. Toda a criação permanece sendo obra e espaço de cuidado de Deus, mas a criação se tornou um complexo espaço-planetário. Dentro desta trama literária, se dá o processo de discernimento de Jó.
II. Sentado em cinzas e sem a luz da bênção
Na condição de pobreza e marginalidade, isto é, “sentado em cinzas” (2,8), o personagem Jó começa seu itinerário de discussões em busca de uma explicação para sua desgraça. As falas de Jó na parte poética do livro, isto é, a partir do cap. 3 são uma coletânea de acusações contra Deus e de defesas diante dos três amigos, os quais procuram enquadrar o sofrimento de Jó nos limites da teologia retributiva tradicional. No resfolegar de sua angústia, Jó chega a amaldiçoar o dia do seu nascimento (3,3-8). Sua crítica principal é a de que a criação estaria nas mãos de um gerente incompetente. Na sua visão, o mundo saiu dos eixos. Essa crítica é renovada ao longo dos diálogos com os amigos, especialmente no cap. 9, sendo também ratificada no monólogo de defesa nos cap. 29-31. “A terra está na mão de um perverso; os rostos dos juízes dela ele cobre; se não é ele [= Deus], quem será?”. Pessoas pobres e sofredoras se sentem como se estivessem em trabalhos forçados. Jó responsabiliza o próprio Deus por tais acontecimentos. O critério para o seu julgamento e para suas duras críticas a Deus é o próprio destino existencial. Na pena e na trama do autor, a desgraça pessoal de um rico empobrecido se torna a âncora para a crítica a Deus e ao sistema dominante da época.
Nas três rodadas de discussão dos cap. 4-27, os três amigos Elifaz, Bildade e Zofar articulam várias vezes seus pontos de vistas. Eles defendem Deus; são porta-vozes da tradicional teodicéia. Segundo eles, Deus é justo em seu agir no mundo, pois “ele frustra as maquinações dos astutos, para que as suas mãos não possam realizar seus projetos;
Ele apanha os sábios na sua própria astúcia; e o conselho dos que trama se precipita (...) Deus salva da espada que lhes sai da boca, salva o necessitado da mão do poderoso.
Assim há esperança para o pobre, e a iniqüidade tapa a sua boca” (5,13-16).
Estes amigos, como representantes da teologia oficial, tem toda uma fineza na argumentação teológica. Podem até estar existencialmente preocupados em consolar o amigo em sofrimento, mas o fazem nos limites da sua teologia, sem a experiência do sofrimento.
Tanto os amigos quanto este Jó dos diálogos (3-27) e da defesa final (29-31) necessitam rever suas posições. Por mais críticas que Jó expresse em suas falas, a busca de seus direitos ainda se inscreve nos parâmetros da retribuição mecânica. Nesse jeito de pensar, quem é justo, isto é, quem se comporta conforme as normas da legalidade da justiça comunitária, tem o direito de receber a sua devida recompensa. Este Jó empobrecido ainda pensa nos moldes de uma ética patriarcal como é recomendada nos vários códigos de leis da Torá, especialmente no Código Deuteronômico (Dt 12-26). No seu discurso de defesa nos cap. 29-31, Jó faz eco a várias leis deuteronômicas, algo similar também se dá no cap. 24. Desta forma, Jó personifica toda uma classe social dos proprietários livres (e em parte ainda ricos) em Israel, que constituiu o grupo de suporte para a legislação de base na Torá, no final do período da monarquia. Essa gente deve ter desenvolvido uma espiritualidade ou uma filosofia de vida em conformidade com a própria Torá.
A caracterização de Jó com o sinal ‘justo’ deriva provavelmente da justiça ou da legalidade na prática dos preceitos das leis deuteronômicas. Isso se torna especialmente evidente no seu playdoier nos cap. 29-31. Logo no início do cap. 29 encontra-se a referência à dimensão da circularidade da bênção, tão característica do código deuteronômico. Jó se sente como alguém que outrora, nos bons tempos, vivia sob a bênção de YHWH e, agraciado com terra e liberdade, deveria estender adiante o manto da graça aos empobrecidos, até para manter a circularidade da bênção recebida. Nesta condição de pater famílias, isto é, sujeito jurídico das leis, ele estendia a bênção recebida aos grupos de pobres e empobrecidos no antigo Israel. As três categorias das personae miserae são citadas neste contexto: “porque eu livrava os pobres (‘anî = oprimidos) que clamavam e também o órfão que não tinha quem o socorresse” (29,12); “eu fazia rejubilar-se o coração da viúva” (29,13); “eu me fazia de olhos para o cego e de pés para o coxo” (29,15); “dos necessitados (‘ebyonim) era pai” (29.16). Essa justiça de Jó deriva da Torá, e as leis sociais da tradição hebraica, por sua vez, derivam da pregação e da defesa dos pobres na profecia do século VIII aC.
Jó é assim um típico “tu” da lei deuteronômica. No âmbito das relações micro-físicas do poder familiar-clânico, ele deve fazer valer a lei tornada oficial. É o pater famílias, que, nesta condição, gozando do estatuto de cidadão livre e proprietário de terra, pode cultivar uma ética patriarcal. Essa ética patriarcal tem o seu lugar próprio em boa medida circunscrito ao âmbito do exercício do poder na unidade familiar de produção e reprodução. Mas é uma ética que tem suas limitações. Ela não serve para descrever o comportamento dos israelitas que há muito estão em condição de pobreza, ou aqueles e aquelas que nunca tiveram ou puderam ter expectativa de uma vida melhor, estando em condição de servos temporários, estrangeiros, dependentes da ordem e da estrutura patriarcal reinante. A ética de Jó revela um tipo de justificação legal. Perante os preceitos da Torá, Jó é um justo, mas, no exercício desta ética, esquece-se a perspectiva dos que sempre foram pobres. Neste sentido, o Jó que observa o direito dos pobres, reivindicado e compromissado nas leis da Torá, e que quase ‘farisaicamente’ vangloria-se perante Deus da observância dos direitos dos pobres, ainda necessita de revisão na sua perspectiva.
Com a demonstração de sua eticidade legal, Jó desafia Deus para um diálogo face a face. Juridicamente, trata-se de um desafio para um pleito em espaço público: “quem me dará que se me escute? Tomara que Shaday me responda. E um libelo escreva o homem do meu processo” (31,35). Na sua disputa com Deus, Jó se articula nos espaços e formas do direito clânico no portão da cidade. Ainda após haver desafiado Deus para a disputa jurídica, Jó reforça sua inocência e legalidade, agregando o argumento de sua postura ecologicamente correta no cultivo da terra: “se a minha terra clamar contra mim, se os seus sulcos juntamente chorarem...” (31,37). Colateralmente transparece aqui um lampejo de consciência ecológica na lide com os bens da criação.
Antes, porém, de Deus responder, o poeta compositor do livro de Jó introduz uma nova voz na polifonia. Trata-se do discurso de Eliú nos cap. 32-37. Em geral, estes trechos são considerados uma interpolação dentro da obra, talvez a mais antigas das inserções. Este amigo com nome tipicamente hebraico não é mencionado nem no prólogo nem no epílogo e também as falas de Deus para os amigos em 42,7-9 não fazem referência a ele. Mesmo se tratando de um elemento textual inserido no conjunto, provocando um efeito retardante da resposta de Deus a Jó, o discurso de Eliú apresenta mais uma opinião no conjunto das explicações possíveis sobre a relação de Deus com o sofrimento de um justo. Sua fala parece a de um jovem, que por respeito só tardiamente se intromete na discussão. Mas ele fala como alguém convencido de uma (nova) verdade. Aparentemente, o desejo de Eliú não é consolar Jó, mas “ensinar e julgar”: “ninguém de vós conseguiu refutar a Jó e responder aos seus argumentos” (32,12). O que ele pretende não é “esquadrinhar tanto de onde e por que vem o sofrimento, mas o para quê, sua finalidade dentro da providência divina”. Segundo sua opinião, deve haver na vida sempre uma abertura para a dimensão inescrutável dos desígnios de Deus. Deus tem seu senhorio garantido na criação; isso é textualmente reforçado especialmente através do poema “o soberano das estações” (36,26-37,24). Na opinião de Eliú, o sofrimento pode ter uma função pedagógica. Sofrer faz parte da pedagogia divina! Esta é a contribuição mais duradoura destas palavras e talvez uma das posições de maior recepção na vida pastoral das igrejas. Com todo o cuidado teológico, as falas Eliú servem para evitar qualquer tipo de protesto dos pobres e injustiçados; a posição mais adequada deveria ser buscar compreender a vontade de Deus no sofrimento. Neste tipo de teologia, os pobres não chegam a ter seus direitos respeitados e garantidos.
Com essa resposta interpolativa, o problema de Jó recebeu uma luz teológica a mais, mas o caso de Jó, que representa o sofrimento de real de pessoas supostamente boas e justas, em nada foi alterado. Na pena do redator, deve haver um discernimento mais profundo e isso deveria dar-se através de uma fala direta de Deus. Assim, após o desafio para um processo jurídico, o redator usa do artifício literário de uma teofania para a busca deste sentido mais profundo da vida dos pobres sofrentes e dos seus direitos. Em termos fenomenológicos, trata-se da busca de uma nova experiência com o Sagrado.
III. De dentro da tempestade: a complexa criação e o lugar do humano (pobre)
Finalmente, o próprio YHWH responde para Jó. Com isso, a obra alcança um pretendido ponto alto. É preciso estar lembrado que a queixa principal de Jó era que o seu direito enquanto justo não estava sendo devidamente observado por Deus. Por isso, suas rebeldes queixas e protestos se dirigem ao próprio Deus, acusando-o de ser um gerente incompetente do cosmos. A situação e o destino particular tornam-se, pois, o critério para o julgamento da ordem da criação.
YHWH responde de dentro da tempestade. Já o lugar assignado para estas falas é sintomático. Com a roupagem de uma teofania, os conteúdos aqui expressos se colocam na linha e ao lado de manifestações de YHWH para Moisés no Horebe (Ex 3), no Monte Sinai (Ex 19), a revelação para Elias (1Rs 19). Característico em todas elas é que aquilo que é dito traz novidade para o viver e o compreender da ação de Deus no mundo. A manifestação do Sagrado é fonte de novidade!
Na pesquisa, as respostas de YHWH para Jó foram entendidas de modo muito diverso. Há opiniões no sentido de que aqui YHWH falaria do céu como um faraó. Outros dizem que as respostas são escassas e vazias e que o seu conteúdo é inadequado, pois não respondem aos anseios existenciais do Jó empobrecido e sofredor. Discute-se se o mais importante é o fato de Deus responder ou o conteúdo de suas respostas. O grande exegeta alemão Gerhard Von Rad foi bastante categórico na apreciação da questão, dizendo: “todos os intérpretes entendem a fala de Deus chocante, na medida em que ela passa ao largo do anseio específico de Jó e YHWH de modo algum se manifesta no sentido de possibilitar uma clara interpretação de si mesmo”. Essas respostas, pois, constituem um nó interpretativo.
Quem ajudou a desatar este nó foi o exegeta católico suíço Othmar Keel, numa obra de 1978, em que ele buscou entender as falas de YHWH sob o pano de fundo da iconografia do antigo Oriente e do antigo Egito. Segundo ele, nesta teofania, após uma censura inicial em relação a Jó sobre quem, sem entendimento (hebr. da´at ) estaria obscurecendo o seu plano na gerência do mundo, Deus se expressa na forma de dois poemas, nos quais é mostrada toda a criação em seus traços cosmológicos. Cada poema é secundado por um interlúdio responsivo da parte de Jó.
No primeiro poema, “YHWH, o senhor da criação” (38,4-38), apresenta-se a Jó uma série de questionamentos relacionados a diversos âmbitos dos cosmos e dos quais Jó não poderia ter conhecimento com base em sua experiência e seu horizonte de vida: 38,4-7 – fundação e fundamento da terra; 38,8-11 – domesticação e cuidado do mar; 38,12-15 – origem e cuidado do amanhecer e da luz; 38,16-21 – ironia e sarcasmo em relação ao interrogante humano; 38,22-30 – neve, granizo, chuva e orvalho são atribuições divinas; 38,31-38 – constelações, céu e clima. O Deus que se revela aqui a Jó, ou que é representado nestas falas, descreve-se ou é descrito como um Deus criador com tarefas cotidianas que de longe suplantam as preocupações humanas num esquema de retribuição. No todo, percebe-se que Deus se apresenta (e é apresentado) como uma divindade criadora e mantenedora, isto é, que reúne em si as dimensões de criador e aquele que mantém uma relação de cuidado para com estes âmbitos da natureza ou criação, cuja complexidade escapa à imediata percepção humana e sua adequada avaliação.
No segundo poema, “YHWH, o senhor dos animais (não domesticados” (38,39-39,30), são apresentadas idiossincrasias de um conjunto de dez animais: 38,39-41 – a presa das leoas e dos corvos; 39,1-4 – o parto das camurças e das corças; 39,5-12 – a liberdade do asno selvagem e a inservidão do touro selvagem; 39,13-25 – a despreocupação da avestruz e a coragem do cavalo; 39,26-30 – a percepção do falcão e a distância do urubu. Keel mostrou muito bem que a inter-relação destes dez animais consiste em que cada um a seu modo representa um espaço, que se caracteriza pela sua não-funcionalidade em relação às necessidades humanas. Estes animais e espaços testemunham uma “espécie de contra-mundo ao mundo humano”. Em cada uma das particularidades dos animais apresentados, há elementos não-antropocêntricos.
Após este longo discurso de YHWH, e justamente no seu final (40,1-2), a divindade desafia Jó a uma resposta. Este, por sua vez, responde de modo breve (40, 3-5), afirmando que ele, na verdade, é de uma categoria “leve demais”. Na linguagem da luta de boxe, Jó seria o “peso pena” em confronto com o “peso pesado” Deus.
A segunda parte da resposta de Deus a Jó é constituída de três seções distintas, porém interligadas: 40,6-14: censura interrogante de Jó; 40,15-24: Beemot; 40,25-41,34: Leviatã.
O trecho de Jó 40, 6-14 parece ser aquela parte da longa resposta de Javé que mais se aproxima das preocupações existenciais de Jó no âmbito de suas discussões com os amigos no esquema de uma teologia retributiva que trabalha com uma relação de causa e de efeito. Olhando-se o todo da resposta de Deus, poder-se-ia dizer que este trecho constitui uma espécie de centro do todo. Afinal, aparece emoldurado por dois discursos maiores. Mas, mesmo neste trecho, a resposta divina não opera na lógica da simples retribuição. Jó é dasafiado pelo criador a ser um valente como ele próprio, capaz de “travejar com voz semelhante” (ao criador) (40,9) e ornar-se com “glória e majestade” como o próprio Deus (40,10). Travestido para este papel, Jó é desafiado a fazer o difícil discernimento entre o justo e o ímpio e, uma vez discernidos ou identificados os ímpios, Jó é desafiado a humilhá-los, a esmagá-los e a enterrá-los na prisão (v.12-13). Após tal trabalho hercúleo e divino, cessaria por si mesmo o problema central que aflige a Jó e os israelitas justos e sofredores que perguntam pelo seu quinhão de bênção. Havendo feito tal trabalho, o próprio Deus louvaria o humano Jó, pois teria este realizado uma tarefa que mesmo ao criador parece complexa. É inevitável perceber as pitadas de ironia e de sarcasmo colocadas nas palavras de YHWH!
Em Jó 40,15-24, descreve-se a figura de Beemot. O nome é uma simples transliteração do substantivo plural feminino de behemâ, que pode ter o significado de “conjunto indiferenciado de animais”. Desde o século XVI, este termo é entendido como um animal identificado como o hipopótamo. Na Antiguidade, sobretudo no Egito, este animal era tido como um monstro mitológico, que representa não somente o espaço distante dos humanos, mas o mundo inimigo e adversário como tal. Assim, Beemot representa o monstro do caos, que disputa a soberania da criação com o próprio Deus criador. Este monstro mitológico-real deveria ser caçado ritualmente pelo rei para, assim, assegurar a ordem e a manutenção do cosmo. Mais tarde, a ameaça imaginada e vivenciada no fortíssimo hipopótomo não mais é vencida pelo rei, mas pelo deus Horus. Pressupondo o teor mitológico importado do Egito ou talvez até do saber comum em
Israel, nas formulações teofânicas do texto, agora é o próprio Javé quem assume a função de caçador e domador de Beemot. Isso acrescenta mais uma pitada de ironia e sarcasmo em relação ao personagem Jó. Como alguém, que nem de longe teria forças para agarrar esse bicho de frente ou atravessar-lhe o focinho com um gancho (40,24), poderia pretender questionar YHWH? Outro dado é que o texto transfere um elemento divino típico do deus egípcio Horus para o Deus hebraico YHWH, tratando-se, pois, de um exemplo a mais de sincretismo na história da fé monoteísta no contexto do antigo Oriente próximo.
Há um detalhe no texto que deve ser ressaltado. É a afirmação inicial em 40,15, na boca de YHWH: “Vê o Beemot, que eu criei contigo”. A expressão hebraica ‘im com o sufixo da segunda pessoa masculina singular deve ser entendida no sentido de “com” (= contigo) e não “como”, conforme traduz a Bíblia de Jerusalém. Na fala de Deus, o próprio monstro mitológico-real Beemot-hipopótamo é uma criatura de YHWH, que por mais adversa que seja à soberania do criador, faz parte da complexidade da criação divina. YHWH, além de suas tantas outras atribuições, deve também se ocupar com monstros como estes que complicam enormemente qualquer pretensão de harmonia na criação. Assim, pois, em termos teológicos, esse trecho afirma o monumental poder de YHWH e simultaneamente a dimensão não-antropocêntrica desta tarefa do criador.
O trecho dedicado a Leviatã (Jó 40,25-41-34) é mais longo. Isso provavelmente já indica um acúmulo de tradições. Também Leviatã era concebido como sendo um monstro mitológico, representado no mundo zoológico pelo crocodilo. O termo hebraico livyatan significa algo como uma grandeza que se move e se vira. Em Is 27,1, Leviatã é apresentado como “serpente escorregadia” (Bíblia de Jerusalém). No Sl 104,26, o mar ou ambiente aquático é apresentado como o habitat de Leviatã. A isso se junta uma tradição que o concebe como o “dragão do caos”. A própria Septuaginta, neste ponto, traduz o termo hebraico por drakon, conectando provavelmente tradições distintas e distantes. Leviatã, descrito como um crocodilo monumental e monstruoso, também indica essa dimensão não-antropocêntrica da criação. Ele inclusive é afirmado como a “obra-prima” do criador YHWH (40,19). Tal monstro representa espaços de profunda hostilidade a uma vida tranqüila dos seres humanos, não estando, assim, de modo algum em função deles. Pelo contrário, Leviatã sempre representará espaço e poder de ameaça (Jó 40,27-28). Mesmo assim, o texto afirma que YHWH pode “brincar” com ele ou fisgá-lo sem dificuldades (40,29), o que Jó ou seus semelhantes jamais poderiam fazer. Novamente há transferência de atributos divinos do mundo egípcio para YHWH. Este monstro terrível, para o qual não há igual na terra e que foi feito para não ter medo (41,25), é parte integrante da criação de YHWH. Novamente se evidencia a dimensão do poder de Javé e simultaneamente a dimensão da complexidade e conflitividade desta criação.
Estes discursos de YHWH para Jó não respondem diretamente aos anseios deste por seu quinhão de recompensa dentro do esquema retributivo tradicional. Pelo contrário, os conteúdos destas falas, devidamente entendidos, são para Jó [e ouvintes] um convite para abertura a um “outro horizonte novo muito mais amplo que sua atual estreiteza” dentro do esquema retributivo. No caminho do discernimento mais profundo, o redator da obra leva o personagem Jó, no encontro [literário] com o Sagrado, YHWH, a perceber uma amplidão maior da criação divina. YHWH é aquele que, vencendo as forças caóticas, cuida para que a criação não se torne um caos. Essa visão de Deus é dinâmica. Deus, a cada dia, de forma nova, cuida de toda a criação.
Para o problema de Jó, isto é, para a questão da teodicéia, agrega-se agora mais uma perspectiva teológica, a de um Deus, cujo ‘bom governo’ “vela pela vida de todos os povos da terra e pelo direito de cada criatura a existir em toda a sua variedade e complexidade”. Há, assim, a afirmação de uma perspectiva não antropocêntrica da criação.
Mas o que significa isso para os direitos do Jó empobrecido?
IV. Pobre-sujeito
No caso de Jó, essa visão não-antropocêntrica do agir de Deus provoca um deslocamento a mais: além de fazer o caminho da descida social da riqueza para a pobreza, Jó deve agora se reconhecer como um elemento dentro de uma criação mais complexa, que não está unicamente direcionada ou funcionalizada para suas necessidades humanas.
Nesta nova concepção, o esquema retributivo, que está sistemicamente orientado, não pode mais funcionar. A relação direta com a divindade não é mais possível, pois em toda relação pode haver perturbações externas a Deus e ao indivíduo. Estas perturbações externas estão simbolizadas na figuras míticas de Beemot e Leviatã, que, embora em última instância estejam sujeitas a Deus, representam “as forças caóticas fora de Deus e do ser humano”, constituindo um dualismo incipiente na teologia israelita da época persa.
Dentro desta nova concepção da complexidade do mundo criado há que se definir o lugar de Jó como pessoa empobrecida. É bem verdade, como já afirmou Crüsemann, que nas respostas de Deus a Jó se dá um distanciamento de Deus em relação às causas sociais e humanas. Deus e seu agir parecem ser algo imperscrutável.
No início da segunda resposta a Jó (40,5-14), em tom irônico, YHWH desafia Jó a ser sujeito de ações promotoras do suposto e esperado equilíbrio nas relações sociais entre ricos e pobres, opressores e oprimidos, justos e ímpios. Jó é desafiado a agir historicamente como Deus e assumir os atributos divinos. A metáfora do braço de Deus (40,9) é uma indicação sutil para a ação de Deus no êxodo. Também o trovejar da voz de Deus remete para a teofania do Sinai (Ex 19 - e também do Horebe – Ex 3), indicando um sentido libertador. Jó deveria agir como YHWH.
Esse desafio para ser sujeito de transformações históricas continua na passagem 40,10-14. Novamente há ironia e ceticismo nas formulações. Jó é desafiado a rebaixar as coisas altas, abater todo soberbo, humilhar todo ímpio e encerrar todos eles no pó da terra. Agindo assim historicamente, os problemas sociais deixariam de ter sua razão e um sujeito como Jó poderia ser reconhecido em atributos divinos. A ironia das formulações não significa que isso seja impossível, mas evidencia a dificuldade do empreendimento por mãos humanas. Parece-me ser assim que, através desta atribuição cética a Jó somo sujeito de transformações sociais, expressa-se perigos e temores inerentes a movimentos sociais como o messianismo e a posterior apocalíptica. Dentro do novo quadro não retributivo da complexa criação, Jó tem limitadas suas possibilidades de ser sujeito.
O livro de Jó, contudo, acrescenta ou atribui a Jó um novo direito: o direito de ser sujeito questionador frente ao sistema social e teológico estabelecido. Esse direito é conferido a Jó desde o momento em que em 3,1 abre a boca para maldizer o dia de seu nascimento e iniciar uma jornada de busca por discernimento mais profundo do sentido da vida e de Deus e, especialmente, questionando e acusando YHWH de ser o promotor ou o legitimador do sofrimento inocente no mundo. O autor do livro deixa Jó exercer esse direito ao longo de toda a parte poética da obra, chegando às raias da blasfêmia contra o próprio Deus.
Esse direito de sujeito frente ao sistema não é revogado nem mesmo após o encontro de YHWH com Jó (cap. 38-41). Face às inúmeras perguntas de Deus a Jó, este reconhece plenamente o poderio e a superioridade de YHWH no manejo da criação, dizendo, por exemplo: “bem sei que tudo podes” (42,2). Jó até se coloca como aprendiz e capaz de aprender coisas novas (42,4). O encontro com o Sagrado trouxe nova luz ao conhecimento e à experiência. Do ouvir-dizer, Jó chega à visão de Deus. Isso não significa uma completa relativização ou mesmo superação da tradição teológica de Israel, mas dá início a uma nova perspectiva. Esta somente é possível por meio de um intenso diálogo com as tradições herdadas, e ainda presentes, no imaginário do povo na época.
Deve haver um cuidado especial na interpretação do último versículo da resposta final de Jó a YHWH. Usualmente, traduz-se aqui algo no sentido de expressar um arrependimento de Jó e algum tipo de ritual de humilhação perante o Sagrado. A tradução de Almeida é sintomática neste sentido: “me abomino e me arrependo”. Muitas outras traduções vão no mesmo sentido de dar a entender que aqui o pobre Jó tem a sua subjetividade relativizada. As interpretações nos comentários sobre o livro de Jó acentuam isso de modo bastante nítido e forte. Há autores que falam de “sujeição formal” e de retração de conteúdo. Georg Fohrer afirma que Jó “não somente silencia (40,4s), mas revoga e se arrepende de tudo o que dissera anteriormente” e que a postura adequada de uma pessoa crente é “o silêncio humilde e de entrega perante Deus”. Um outro comentador diz que Jó capitula por completo, incondicionalmente e só lhe resta arrepender-se de sua rebeldia, martirizando-se em pó e cinza. Mais outro ainda acrescenta que na autonomia de Jó perante Deus resplandeceria a hybris do pecado original (Gn 3).
Essas afirmações na tradição interpretativa desfazem por completo o ser-sujeito de Jó. Retiram-lhe, na verdade, um direito que o poeta autor do livro atribui a seu personagem principal. Deve-se, pois, observar melhor o campo semântico e o significado dos dois verbos. O verbo nhm na forma Nifal não expressa tanto um sentimento interno de arrependimento, mas, com base em Gn 6,6 e Jn 3,9s, pode ser entendido no sentido de “um distanciamento de um agir e de uma concepção e uma tendência rumo a uma nova postura e um novo agir”. Trata-se, pois, de um passo no processo cognitivo. Algo similar pode ser afirmado como relação ao verbo ma’as. Com base em usos do verbo no próprio livro de Jó (5,17; 7,16; 8,20; 9,21; 10,3; 19,18; 31,13, 34,33, 36,5) e também no Sl 118,22 e Is 7,15, pode-se entender o verbo no sentido de rejeitar uma concepção anterior acerca de Deus e de si mesmo. Isso significa que Jó não é levado a arrepender-se no sentido de revogar o exercício do direito de ser sujeito frente ao sistema social e religioso, mas o personagem reconhece a complexidade do mundo que lhe apresentado por YHWH nos seus discursos teofânicos.
Interpretação similar vale para a última expressão ‘al ‘afar wa’efer (42,6b). Aqui não se trata da indicação de um ritual de penitência nem do reconhecimento do ser-criatura de Deus por Jó, mas muito provavelmente é a indicação do lugar social real em que Jó realiza este discernimento mais profundo. Cabe lembrar que Jó está sentado em pó e cinzas desde 2,8 e todas as discussões com os amigos são travadas a partir deste lugar social, isto é, a partir da condição de marginalidade social, de empobrecimento. Nesta condição periférica, na discussão com os amigos, Jó ainda desfilava a sua anterior forma de pensar aristocrática, em conformidade com a filosofia de vida sapiencial tradicional dos proprietários livres de Israel e em conformidade com os seus direitos de recompensa face à observância dos preceitos da Torá. Agora, a partir do seu sofrimento em condição marginal, porém, ele percebe que dentro da dinâmica ecocêntrica de um mundo complexo, perpassado por espaços e poderes hostis, com gozo de liberdade, não se pode pensar as relações com os outros e com Deus dentro de um esquema diretametne retributivo. O ser humano permanece interlocutor primeiro e preferencial de Deus, mas é um elo dentro de uma tessitura cósmica maior. E dentro deste amplo e complexo espaço planetário, Jó tem o seu direito de ser sujeito frente ao sistema plenamente resguardado. Jó é um pobre-sujeito!
Este ser sujeito do Jó empobrecido é ratificado na moldura narrativa final. Em 42,7-8, o autor da obra faz o próprio YHWH censurar a postura de intransigente defesa do sistema por parte dos amigos e, simultaneamente, afirmar que a postura de Jó em suas falas e em suas profundas e sofridas buscas pelo sentido da vida e pelo agir de Deus no mundo eram retas (hebr.: nekonah) perante Deus. Este ser-sujeito de Jó no questionamento do sistema é plenamente mantido!
V. Concluindo
As várias vozes dentro da polifonia do livro de Jó buscaram expressar opiniões sobre o problema de Jó, isto é, a questão da teodicéia. Várias opiniões foram expressas, com acertos e desacertos. Um dos objetivos da obra na referida ‘crise da sabedoria’ era buscar a superação da teologia retributiva. Neste sentido, o autor da obra acrescenta às várias vozes, a opinião de certa forma dominante de que o mundo como criação divina é um espaço complexo, perpassado de elementos e poderes hostis, no qual, porém, cada elemento pode gozar de liberdade. Dentro desta nova concepção de Deus e de sua complexa criação, o personagem Jó é desafiado a encontrar o seu lugar próprio. De sujeito da Torá, após seus questionamentos a Deus, Jó é desafiado ironicamente a ser sujeito de transformações sociais, um empreendimento difícil, mas não impossível. Na sua condição de empobrecido, embora ainda desfraldando ética e postura patriarcal, Jó exercita um novo direito: o direito de ser sujeito frente ao sistema. Esse direito é resguardado ao personagem até o final.
Assim, o problema de Jó recebe várias soluções possíveis, porém não as soluções últimas, pois enquanto houver gente no mundo que sofre de modo inocente deverá haver sempre de novo o exercício do direito da subjetividade e da autonomia humanas frente ao sistema. Na ótica e na pena do poeta-autor da obra, porém, também o caso de Jó, isto é, o caso de um justo sofredor recebe uma solução. Ao exercitar a intercessão pelos amigos (42,10), Jó teve sua condição de bem-estar restituída. Na descrição dessa nova mudança, o texto se move no mesmo nível do lendário da parte inicial. Jó volta a ser novamente um cabra muito rico. Essa pode não ser a melhor solução para o caso; talvez bastasse a descrição de um bem-estar razoável, sem os artifícios da riqueza lendária. Advogo, porém, em favor de que não se interprete esta nova mudança da condição de Jó como um reenquadramento dentro do superado sistema de retribuição. Considero mais adequado interpretar este final como uma resposta exagerada, mas acertada de que um empobrecido voltou a viver em plenitude! É um outro Jó! É um Jó que se sente livre em relação à obrigação do sistema retributivo! Ele pode acompanhar, agora, mesmo que com temor, as andanças de seus novos filhos e novas filhas. Ele sabe agora que a vida em liberdade frente ao sistema e dentro da complexidade da criação traz perigos intrínsecos, mas que ele não pode nem prever nem prevenir plenamente. Por isso, este Jó pôde morrer “velho e farto de dias” (42,17). Esta é a história de Jó: um pobre-sujeito!

Agradecimentos a Haroldo Reimer