sábado, 30 de julho de 2011

John P. Meyer, E.P. Sanders, Paula Fredriksen, e os quadros mais diversos sobre o "Filho do Homem"

Saber quem foi Jesus, o que ele fez e qual o significado de sua passagem pelo mundo sempre foi uma espécie de obsessão das pessoas. Além do que está escrito sobre aquele que os cristãos consideram como o Salvador nas páginas da Bíblia, muitos estudiosos têm-se debruçado sobre os registros acerca do homem que viveu na Palestina do século I – alguém tão importante que foi ele mesmo que estabeleceu, com seu advento, essa contagem do tempo. A partir dos anos 1980, o interesse acadêmico sobre o Jesus histórico deu um salto. Na América, pesquisadores como Ben F. Meyer, E. P. Sanders, John Dominic Crossan, Marcus Borg, Paula Fredriksen, e N. T.Wright começaram a traçar quadros os mais diversos do chamado Filho de Deus. Alguns destes estudos pareciam bizarros; outros aproximavam-se um pouco mais da ortodoxia e dos evangelhos canônicos.

Mas a quê a expressão ‘Jesus histórico’ de fato se refere? Para início de conversa, Jesus – o rabi galileu que viveu, respirou, comeu, conversou e chamou discípulos, sendo ao fim de 33 anos crucificado – é um personagem cuja existência gera hoje pouca controvérsia. Mesmo fora do registro bíblico, já há evidências suficientes de sua trajetória: um homem pobre, nascido na Judeia sob a dominação romana, que exerceu ofícios manuais ao lado da família até iniciar seu trabalho de pregador itinerante, por volta dos trinta anos. Através de diversos estudos históricos, esse Jesus tem sido inserido em seu contexto judaico. Podemos chamar esse Jesus de o “Jesus judeu”. Já os quatro evangelistas e outros autores do Novo Testamento, que levam em conta o que está desvendados nas Escrituras, interpretam Jesus com o uso de termos com “Messias”, “Filho de Deus”, e “Filho do Homem”, entendendo-o como o agente da redenção de Deus. Podemos chara esse Jesus de o “Jesus canônico”. Outro aspecto precisa ser observado: a Igreja ampliou seu entendimento de Jesus, uma vez que o interpreta à luz de conceitos teológicos. Esse seria o “Jesus ortodoxo”, a segunda pessoa da Trindade.


Mas o Jesus histórico é alguém ou algo à parte. Ele é o Jesus que os estudiosos reconstruíram com base nos métodos históricos, tanto o Jesus canônico do Novo Testamento como o Jesus ortodoxo da teologia da Igreja. O Jesus histórico parece mais com o Jesus judeu do que com o ortodoxo ou o canônico. Fazer distinções entre estas visões é importante para entender o que acontece no cenário acadêmico. Em primeiro lugar, o Jesus histórico é o Jesus que os acadêmicos reconstruíram com base nos métodos. Visto que os estudiosos são diferentes uns dos outros, suas reconstruções também o são umas das outras. Os métodos também são distintos, o que diferencia ainda mais a reconstrução. A maior parte deles toma os evangelhos como pouco confiáveis – mesmo assim, não os abandonam, tentando ver o que eles dizem. Outros critérios foram desenvolvidos, criticados, rejeitados e modificados, mas todos têm isso em comum: estudiosos do Jesus histórico reconstruíram Jesus com base em seus métodos históricos para, então, determinar o que, nos evangelhos, deve ser crido.

O critério essencial usado, ainda que cheio de falhas, é chamado de dissimilaridade dupla. De acordo com ele, os únicos ensinos ou ações de Jesus que podem receber crédito são os que são dissimilares tanto para o judaísmo dos dias de Jesus quanto para seus primeiros seguidores. Um dos principais exemplos é sua forma característica de chamar Deus de Abba, expressão raramente encontrada no judaísmo ou cristianismo primitivo como referência a Deus e que significa “pai”, ou, ainda, “paizinho”. Em segundo lugar, a palavra reconstruir precisa receber mais atenção. A maioria dos estudiosos do Jesus histórico entende que os evangelhos excederam nas imagens que construíram de Jesus, e que a teologia trinitariana da Igreja maximiza tudo o que Jesus pensou acerca de si mesmo, e tudo no qual os evangelistas acreditavam. Estes estudiosos construíram um Jesus que é diferente daquele ensinado pela Igreja e pelos evangelhos.


Novo Jesus – Não há razão para fazer estudos sobre o Jesus histórico – provar quem ele realmente era – se os evangelhos estão corretos e se as crenças da Igreja são justificáveis. Há apenas duas razões para se engajar na busca do Jesus histórico: a primeira, ver se a Igreja o entendeu de forma correta; e a segunda, caso a igreja não o tenha feito, é a de achar um personagem que seja mais autêntico do que o que a Igreja apresenta. Isso leva à conclusão necessária de que os acadêmicos do Jesus histórico construíram, na verdade, um quinto evangelho. A reconstrução apresenta um Jesus que não é idêntico ao canônico nem ao ortodoxo. Ele é o Jesus reconstruído; isto é, um novo Jesus. E os acadêmicos realmente acreditam no Jesus por eles construído. Durante o que ficou conhecido como a “primeira busca” pelo Jesus histórico, no começo do século 20, Albert Schweitzer entendeu que Jesus era apocalíptico. Nas mais recentes busca, temos diversos perfis: o Jesus de Sander é um profeta escatológico; o de Crosan, um camponês mediterrâneo cínico e cheio de perspicácia; o de Borg é um gênio místico; já Wright o aponta como um profeta messiânico do fim do exílio, que acreditava ser Deus voltando a Sião.

O terceiro ponto, e que precisa ser reforçado nos dias de hoje, é de que os acadêmicos do Jesus histórico construíram um Jesus em contraste com as categorias que os evangelistas e a Igreja primitiva apresentam. Wright é o mais ortodoxo dos conhecidos estudiosos dessa área. Eles partem do princípio que os evangelhos exageraram, e que a Igreja absorveu o profeta galileu nas categorias da filosofia grega. A busca pelo Jesus histórico é uma tentativa de ir além da teologia e estabelecer a fé no Jesus que foi – é preciso dizer desta forma – muito mais do que o Jesus que gostaríamos que ele fosse.


Há quem pense se o que está por trás desse movimento de busca histórica não seja uma descrença, a priori, na ortodoxia, mais do que uma genuína busca histórica ou interesse pelo que aconteceu. As conclusões teológicas daqueles que buscam o Jesus histórico simplesmente correlacionam de forma muito forte com suas próprias predileções teológicas para sugerir o contrário. A pergunta que muitos de nós devemos fazer é a seguinte: podem a teologia, a cristologia ou, até mesmo, a fé, estar conectadas com as vicissitudes da busca histórica e de seus resultados? A academia espera que nós descubramos o Jesus verdadeiro. Um a um, quase todos fomos convencidos de que não importa o quanto tentemos: alcançar o Jesus não interpretado é praticamente impossível. Além disso, um Jesus descoberto é apenas a versão de um pesquisador. E o detalhe é que é incomum que pessoas, que não o próprio estudioso e alguns de seus seguidores, sejam realmente convencidas por suas descobertas.

O teólogo alemão Martin Kähler convenceu sua geração que fé em Jesus não poderia nem deveria estar baseada nas conclusões históricas sobre o que aconteceu ou não. Precisamos, então, nos perguntar: em qual Jesus devemos confiar? Será no dos evangelistas e apóstolos? Será no da Igreja – aquele dos credos? Ou no Jesus ortodoxo? Será na mais recente proposta de um historiador brilhante? Será em nosso próprio consenso baseado nas pesquisas modernas? Ou tudo deve ser somente balizado pela fé?

“Produzimos o que queremos” – Diante de tantos descaminhos, temos presenciado a morte dos últimos estudos sobre o Jesus histórico. Não completa, é verdade, porque alguns ainda estão ocupados tentando reconstruir Jesus para eles mesmos e para os que os ouvirem. Ainda assim, o entusiasmo se foi, e as propostas parecem-se cada vez mais com teses vagas do que com uma esperança de um verdadeiro encontro da história de Jesus. Dois estudiosos recentes leram o obituário dos estudos nessa área. James Dunn argumenta em suas obras que o mais longe que podemos chegar além dos evangelhos é compreender a figura de Jesus com base no que seus primeiros seguidores disseram. Isso é o máximo que podemos fazer. Esse é o Jesus que deu vida à fé cristã, e o Jesus que é digno de ser seguido. Na perspectiva de Dunn, o Jesus relembrado contém a perspectiva de seus discípulos – e além dela não podemos ir.

Dale Allison, um dos mais bem preparados acadêmico do Novo Testamento nos Estados Unidos, é menos sanguíneo e mais cínico que Dunn em seu recente livro. Depois de três décadas de trabalho nessa área, Allison esboça a variedade de percepções sobre o Jesus histórico e a suposta teoria moderna de que, se unirmos nossas mãos, chegaremos a conclusões firmes. Ele apresenta essa conclusão deprimente: “O progresso não abrangeu todos os assuntos, e seja qual for o consenso existente, ele permanecerá excessivamente chato”. Em uma única sentença, ele diz tudo: “Usamos nossos critérios para produzir o que queremos”. E ele admite isso em relação a um de seus próprios livros sobre Jesus: “Abri meus olhos para o óbvio: criei um Jesus à minha própria imagem. Talvez tenhamos transformado a sua biografia em nossa próprio autobiografia”, conclui.

Quando dois estudiosos desse porte, ambos altamente dedicados à busca do Jesus histórico por ângulos distintos, chegam a conclusão similar – a de que não chegaremos ao Jesus original por esses caminhos –, uma mensagem é transmitida. Podemos provar que Jesus morreu e que ele pensou em sua morte como uma expiação. Podemos estabelecer que a tumba estava vazia e que a ressurreição é a melhor explicação para tal fato. Contudo, algo que nossos métodos históricos não podem provar é que Jesus morreu por nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação.


Em um determinado ponto, métodos históricos encontram seus limites. Estudos acadêmicos sobre Jesus não podem nos levar a lugares nos quais o Espírito Santo nos leva. O homem curado por Jesus da cegueira sintetizou tudo magistralmente a dizer que não sabia quem era o homem que o curou; disse apenas: “Sei que outrora estava cego, e que agora posso ver”. De maneira análoga, os métodos históricos, a despeito de seu valor, não são capazes de nos fazer enxergar com clareza o Filho de Deus. A fé não pode ser completamente baseada no que a história é capaz de provar. A busca pelo verdadeiro Jesus, árdua e longa, tem provado exatamente isso.

A busca pelo Jesus Histórico é um empreendimento acadêmico do período moderno e deste nosso tempo que tenta apresentar um Jesus a partir do uso de instrumentos científicos da moderna pesquisa histórica. Desde o século XVIII, o cristianismo e a figura de Jesus Cristo – sua identidade e significado – tem sido desafiados pelas incursões desta busca.

Como a temática é atualíssima, apesar de suas origens serem seculares, resolvemos, a seguir, apresentar, sucintamente, um percurso historiográfico da busca pelo Jesus Histórico. O que é descrito logo a frente está dividido em três períodos chamados de antiga busca do Jesus Histórico, nova busca do Jesus Histórico e terceira busca do Jesus Histórico. Na sequência é destacada, através de uma pequena explanação, à chamada crítica à busca.

Sigamos nosso trajeto.
1. A Antiga Busca do Jesus Histórico (“Old Quest”)

A antiga busca pelo Jesus histórico começou em sua forma clássica com Herman Samuel Reimarus (1694-1768). Reimarus era docente de línguas orientais de Hamburgo e foi durante sua vida um pioneiro literário da religião da razão do deísmo inglês. Ele foi o primeiro a desenvolver uma imagem de Jesus diferente da do Cristo apresentado nos Evangelhos. Ele submeteu a Bíblia aos padrões da crítica racionalista. Raymond Brown (2004) diz que Reimarus via Jesus como um revolucionário que falhou em sua tentativa de estabelecer um reino messiânico na Terra, ao passo que o Cristo não passava de uma projeção fictícia daqueles que teriam roubado o corpo de Jesus e que proclamavam fraudulentamente a sua ressurreição.

A obra de Reimarus, An Apology for the Rational Worshipper of God não fora publicada. Porém, depois de sua morte, esse seu texto caiu nas mãos de Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) que a publicou sem dizer o nome do autor. No conteúdo da obra havia um forte ataque à historicidade da ressurreição de Jesus (MCGRATH, 2007).

Depois de Reimarus vieram outros estudiosos importantes como F. C. Baur (1792-1869), David Friedrich Strauss (1808-1874) e Johannes von Weiss (1863-1914).

As grandes contribuições da “Old Quest” foram:

*a diferenciação entre os sinóticos e João como fontes históricas;
*a escolha de Marcos como o mais antigo evangelho;
*o posicionamento de Jesus dentro do contexto escatológico da sua época.

Esse período encerrou-se no ano de 1953 quando o teólogo luterano Ernst Kasemann (1906-1998) proferiu uma palestra sobre o Jesus Histórico em outubro de 1953. É nesse momento que há a transição da Antiga Busca do Jesus Histórico para a Nova Busca.

2. A Nova Busca do Jesus Histórico (“New Question”)

Essa nova busca distingue-se da antiga. Ao passo que esta última trabalhava para desacreditar a imagem do Cristo do Novo Testamento, dado como uma figura mitológica, a primeira se preocupou em “linkar” a pregação de Jesus Cristo com a pregação dos primeiros cristãos sobre Jesus Cristo. Com isso, a Nova Busca Pelo Jesus Histórico consolidou a imagem neotestamentária. No entanto, é necessário entendermos que não é tudo o que dizem os textos neotestamentários sobre Jesus que não é mitológico. A questão para Kasemann é que existe sim uma relação entre o Jesus da História e o Cristo da Fé e isso é possível de ser constatado a partir do discernimento do que é o kerygma nas ações e na pregação de Jesus, o nazareno.


Kasemann identificou a ligação existente entre o Jesus histórico e o Cristo kerigmático na declaração de ambos da vinda do reino escatológico de Deus. Tanto na pregação de Jesus quanto no kerigma cristão primitivo, o tema da vinda do reino é de suma importância. (MCGRATH, 2007, p. 301)

Nessa nova busca o interesse no Jesus Histórico relaciona-se com a prédica escatológica de Jesus e a cristologia ensinada pela igreja.

A síntese do pensamento de Kasemann é a seguinte:

*Os sinópticos são documentos teológicos;
*Suas declarações teológicas são expressas dentro da forma histórica;
*Os autores dos sinópticos acreditavam ter acesso a informações históricas sobre Jesus;
*Há nos evangelhos sinópticos tanto a narrativa histórica como o kerygma.


Outros teólogos como Joachim Jeremias, Gerhard Ebeling, Gunter Bornkamm trataram do kerygma cristão primitivo a partir de posições distintas.

Superada a Nova Busca Pelo Jesus Histórico, entramos no período chamado de Terceira Busca.

3. Terceira Busca do Jesus Histórico (“Third Question”)

Alguns teóricos como o Dr. Alister Mcgrath, professor de Teologia Histórica na Oxford Univesity, afirmam que esse movimento é deficiente porque os estudiosos envolvidos com ele e suas respectivas obras não possuem elementos em comum em número suficiente para serem categorizados como Terceira Busca, ou seja, sua multiplicidade de hipóteses de trabalho depõe contra. No entanto, eles admitem que tal movimento tem recebido uma aceitação considerável e que o mesmo ainda receberá destaque nas discussões sobre esse assunto importante.

A “Third Question” iniciou-se nos anos 70 e perdura até os dias atuais. Suas principais metas são:
*Examinar fontes arqueológicas, históricas e textuais do primeiro século e aplicar os descobrimentos da sociologia e antropologia a estas fontes para tentar entender a Jesus;
*Enfatizar o judaísmo de Jesus e a necessidade de sua compreensão no contexto do primeiro século.

Alguns nomes de estudiosos de destaque desse movimento são: Burton L. Mack, Marcus L. Borg e John Dominic Crossan. Para esses teóricos – principalmente Crossan – o Jesus Cristo dos Evangelhos é um Jesus mítico. Destacamos o Dr. Crossan porque ele é o representante atual de mais notoriedade, nos meios acadêmicos, do chamado Jesus Seminar. Para ele Jesus era um homem normal que foi mitologizado e divinizado, posteriormente, pelos evangelistas. Ele diz: “Isso tudo diz respeito à mitologia grega e à romana, e o que eu posso fazer? Devo acreditar em todas essas histórias, ou devo dizer que todas elas são mentiras, exceto a nossa história cristã?”

Fazendo um percurso diferente dos estudiosos do Jesus Seminar, mas incluídos na chamada Terceira Busca, temos importantes estudiosos como Geza Vermes, E. P. Sanders, John Paul Meier, Raymond E. Brown, entre outros. As pesquisas sobre o Jesus histórico nesses últimos anos têm recebido diferentes enfoques: o Jesus mestre da sabedoria; o Jesus profeta do cumprimento das expectativas dos últimos tempos; estudos sobre o contexto histórico-social da Palestina do I séc. d.C. – a Galiléia; a guerra judaica; o movimento de Jesus; as influências helênicas no movimento de Jesus, etc.

A relação entre essas buscas é encontrada na crença dos estudiosos de que o Jesus Histórico, por definição, não é um ser sobrenatural. O que os evangelhos apresentam é o Cristo da Fé, um ser mítico. Usando de um tom provocativo, os teóricos do Jesus Seminar afirmam que observar essa distinção é a primeira coluna da sabedoria acadêmica.

4. A Crítica à Busca

Entre os anos de 1890 a 1910 A Crítica à Busca emergiu a partir do pensamento de importantes estudiosos como Albert Schweitzer (1875-1965), William Wrede (1859-1906) e Martin Kahler (1835-19120). Depois, temos o proeminente teólogo alemão Rudolf Bultmann (1884-1976) que considerava essa busca pelo Jesus Histórico um beco sem saída. Reveste-se de grande valor falarmos um pouco sobre Rudolf Bultmann e o seu afastamento da História.


Bultmann era cético quanto a possibilidade de alcançar o Jesus histórico por meio de métodos históricos. Ele também “estava convencido de que o erro destas tentativas anteriores (as buscas pelo Jesus histórico) estava intimamente conectado com suas pressuposições filosóficas, que as levaram a rejeitar a possibilidade de um evento salvador” (GONZALEZ, 2004, p. 450).

Para Bultmann:
"Jesus Cristo vem ao nosso encontro somente no kerigma, da mesma maneira como confrontou o próprio Paulo e o levou a tomar uma decisão. O kerigma não proclama verdades universais ou uma idéia eterna – seja ela uma idéia de Deus ou do redentor – mas um fato histórico… Portanto, o kerigma não é um veículo para idéias eternas nem o mediador de informações históricas; o fato de importância decisiva é este: o kerigma é o “que” de Cristo, seu “aqui e agora”, um “aqui e agora” que se torna presente no próprio discurso. (apud MCGRATH, 2007, p. 299)"

Bom, é preciso explicar algumas coisas. Primeiro: Bultmann considera como fato histórico aquilo que ocorre dentro da história humana. Aqui encontramos a presença do existencialismo do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) que fora colega de Bultmann na Universidade de Marburg.

Segundo Gilbert Durand, as idéias de Bultmann são típicas do círculo em que mergulha todo pensamento que busca um sentido enquanto se satisfaz em dar voltas lineares, prisioneiro da temporalidade histórica; em que a tradição passada remete à existência presente e vice-versa, indefinidamente. (1995, p. 233)

Segundo, a compreensão de Bultmann de que o kerygma não é mediador de informações históricas implica na admissão de que enxergar o que está por detrás do kerygma para reconstruir o Jesus histórico é um erro, pois esse procedimento leva ao não mais existente “Cristo segundo a carne” que em hipótese alguma é o Senhor, diferentemente do Jesus Cristo que é pregado. Dessa perspectiva bultmaniana, duas perguntas emergem:

*Como era possível ter certeza de que a cristologia estava fundamentada corretamente na pessoa e obra de Jesus Cristo?
*Como verificar a cristologia se a história de Jesus era irrelevante?

Em linhas gerais, pode-se dizer que a busca pelo Jesus Histórico foi, e é, até certo ponto, baseada no racionalismo, no naturalismo e criticismo. Dito isso, destacamos a seguinte crítica de Paul Tillich a essas tentativas de busca do Jesus histórico:
Os que nos falam sobre Jesus de Nazaré são os mesmos que nos falam sobre Jesus como o Cristo, ou seja, as pessoas que o receberam como o Cristo. Portanto, se tentarmos encontrar o Jesus real que está por trás da imagem de Jesus como o Cristo, é necessário separar criticamente os elementos que pertencem ao lado factual do evento e os elementos que pertencem à recepção. Ao fazer isso, esboça-se uma “Vida de Jesus” – e fizeram-se muitos desses esboços. Em muitos deles colaboraram a honestidade científica, a devoção amorosa e o interesse teológico. Em outros são visíveis o distanciamento crítico e inclusive a rejeição malévola. Mas nenhum deles pode reivindicar ser uma imagem provável em que tenha desembocado o tremendo esforço científico dedicado a esta tarefa durante 200 anos. No máximo, eles são resultados mais ou menos prováveis, incapazes de fornecer uma base para a aceitação ou para rejeição da fé cristã. (2005, p. 396)

Conclusão:
Terminando essa nossa curta jornada historiográfica, vale ressaltar uma conclusão de John P. Meier, professor da cadeira de Novo Testamento na Universidade Católica da América em Washington, D.C. sobre toda esta tentativa acadêmica de encontrar o Jesus Histórico. Em seu livro Um Judeu Marginal, repensando o Jesus Histórico, vol. 1, página 35, Meier diz:
"Não podemos conhecer o Jesus “real” através da pesquisa histórica [...] No entanto, podemos conhecer o “Jesus histórico” [...] o Jesus da história é uma abstração e constructo modernos [...] O Jesus histórico não é o Jesus real, e vice-versa [...] O Jesus histórico pode nos proporcionar fragmentos do indivíduo “real”, e nada mais. (1992)".




quinta-feira, 28 de julho de 2011

O Bispo John Selby Spong e as narrativas tardias da ressurreição de Cristo

Em seu último livro, “Por que o Cristianismo deve mudar ou morrer: um bispo fala com os crentes no exílio”, o Bispo Spong estabeleceu um programa claro para o futuro da teologia anglicana e da teologia cristã. Ele acredita que o Cristianismo morrerá, a não ser que sejam feitas mudanças radicais que redundem numa nova Reforma.

Se nós devemos reformular uma visão da futura teologia anglicana, como acredito que devemos, cabe a nós faze-lo, em diálogo com o Bispo Spong. O seu desafio merece ser levado a sério e não considerá-lo como disparates violentos de um bispo herege. As questões e os debates que ele coloca são inevitáveis, mas suas respostas são problemáticas para nós que temos feito esforços para combinar, numa síntese aceitável, o tratamento crítico destemido do Novo Testamento com uma adesão fiel à sua mensagem como ela é formulada no quérigma apostólico e resumida nos credos (em outras palavras, uma ortodoxia crítica).

A necessidade dessa abordagem dual foi impressa em mim pelas minhas sucessivas experiências nos estudos do Novo Testamento em Cambridge e em Tubinga, na Alemanha. Em Cambridge aprendi métodos críticos, em Tubinga mergulhei na Igreja da Alemanha e na sua resistência teologicamente fundamentada aos desafios do Socialismo Nacional, um desafio que pode ser enfrentado por uma adesão fiel à palavra de Deus testemunhada nas Santas Escrituras. Em lealdade a essa dupla inspiração que entro aqui no exame da chamada para a mudança feita pelo Bispo Spong.

Teísmo

O Bispo Spong argumenta que, se o Cristianismo deseja ter o futuro, devemos abandonar o que ele denomina de “teísmo”. Por essa afirmação ele não quer dizer que todos nós devamos ser “ateus”, mas devemos abandonar uma espécie particular de teísmo, a visão de Deus como “uma divindade personalista”, localizada num lugar externo, “lá em cima”. Tal Deus foi pensado como Deus que intervém no processo cósmico e na história humana. É o argumento do Bispo Spong de que a visão do mundo sucessiva e cumulativamente moldada por Copérnico, Galileu, Newton, Darwin, Freud e Einstein não podem possivelmente acomodar a visão tradicional da divindade. Em lugar do “teísmo” assim entendido, o Bispo Spong propõe que o substitua com a idéia tillichiana de Deus como “fundamento do Ser”.

Todavia, aqui se recomenda certo cuidado. A visão do mundo como um sistema fechado de causa e efeito não é quase tão seguro hoje como tem sido desde o Iluminismo. Há uma crescente abertura para a possibilidade de dimensões da realidade não suscetíveis à observação científica. Marcus Borg chama a atenção para isso, quando ele diz que “a visão do mundo que rejeita ou ignora o mundo do Espírito é não só relativa, mas está em processo de ser rejeitada. Não há nenhuma razão intelectual para supor que essa segunda ordem da realidade seja irreal e há muitas evidências experimentais para sugerir a realidade do Espírito.” Borg não está falando de um outro mundo lá em cima, mas de uma dimensão ou profundidade da realidade observável, que transcende à observação científica e que é perceptível somente a uma visão espiritual.

Muito do que o Bispo Spong trata como teísmo tradicional é denominado de “mitologia” por Rudolph Bultmann. Isso é verdade, por exemplo, com o conceito “Deus lá em cima” e “Deus que desce lá de cima”. Tal linguagem mitológica deve ser, certamente, “demitologizada”. Por essa operação, Bultmann quis dizer que essa linguagem não deve ser interpretada literalmente nem ser eliminada, mas antes interpretada existencialmente. Embora questionemos a adequação da interpretação existencial de Bultmann da mitologia bíblica, concordaríamos inteiramente que quando a Bíblia diz Deus está “lá em cima” e “está descendo”, não faríamos nem uma interpretação literal nem sua eliminação, porque essa linguagem estaria dizendo alguma coisa de muita importância sobre Deus. Ela está atentando uma experiência de Deus como uma realidade que transcende o nível ordinário da realidade. Os textos bíblicos tais como esses dão testemunho disso: “Assim diz o Alto e Sublime que vive para sempre, e cujo nome é santo: Habito num lugar alto e santo, mas habito também com o contrito e humilde de espírito, para dar novo ânimo ao espírito humilde...” (Is 57.15). A passagem fala no mundo do Espírito como a dimensão do ser de Deus. Ela se refere a uma outra dimensão da realidade não acessível à observação científica. Não fala na localização de Deus, mas da qualidade do ser de Deus.


A Bíblia fala por meio da linguagem mitológica sobre o “Deus que desce”, especialmente em um ponto crucial na história de Israel, o Êxodo: “De fato tenho visto a opressão sobre o meu povo no Egito, tenho escutado o seu clamor, por causa dos seus feitores, e sei quanto eles estão sofrendo. Por isso desci para livra-los das mãos dos egípcios e tira-los daqui para uma terra boa e vasta, onde manam leite e mel” (Ex 3.7-8).

Noutra vez, no retorno do Exílio: “Ah! Se rompesses os céus e descesses!” (64.1); no evento de Cristo: “Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima de todos os céus” (Ef 4.10), ou “Aquele que vem do Alto está acima de todos” (Jo 3.31).

A linguagem da “descida” é indispensável para a visão bíblica de Deus. Esta linguagem não deve ser tomada literalmente, mas ela fala da condescendência divina, o que Lutero denominou de Herablassung, a permissão divina de se humilhar. Nesses eventos cruciais da história da salvação, Deus se envolveu graciosamente com o sofrimento do seu povo. Rejeitando isso, rejeita-se o que a Bíblia quer dizer quando ela declara que, em última instância, Deus é amor. Certamente, o Bispo Spong não deseja negar isso.

Quanto à linguagem tillichiana de Deus como o fundamento do Ser, tal conceito é bom até certo ponto. Mas é precisamente a divindade transcendente – o Deus que está “acima de todos os céus”, o qual “desce” no êxodo e se revela no evento de Cristo – que é o fundamento de nosso Ser. É uma questão de isto e aquilo mantido em tensão paradoxal, e não de Deus só lá em cima ou Deus ou só Deus nas profundezas de nosso ser. Em síntese, o teísmo não deve ser abandonado, se devemos ser fiéis à mensagem bíblica, mas deve ser expandido para incluir tanto o “hiper-panteismo” e o “panteísmo” (Deus acima de todas as coisas e em todas as coisas).

Denominamos este Deus de Deus pessoal, não porque Deus é uma pessoa como nós, mas porque o Deus bíblico volta-se para as pessoas em sua Palavra. Por essa palavra, Deus nos chama numa relação de “eu e tu” com Deus. O conceito da Palavra de Deus, tão central através da Bíblia, nos proíbe negar a imagística da pessoa atribuída a Deus como o Bispo Spong negaria.

Porém pode esta alegação de que Deus interferiu na história do seu povo, Israel, ser sustentada, diante de uma visão do mundo como um sistema fechado de causa e efeito? Alguns argumentam hoje em dia que a concepção moderna do mundo foi modificada pela descoberta de um fator de indeterminação no processo cósmico e alguns apologistas cristãos não se têm mostrado vagarosos em explorar essa revisão. Entretanto, essa indeterminação parece estar confinada ao nível das partículas subatômicas e devemos fazer uso disso com cautela antes de aplicar a possibilidade de indeterminação aos eventos históricos. Seria mais proveitoso ao teólogo apelar a dois níveis de realidade já mencionados. Em nível de observação histórica-crítica, todos os eventos históricos são, em princípio, explicáveis em termos de causa e efeito. Isto é verdade mesmo a respeito dos eventos bíblicos centrais. Porém esses eventos podem ser vistos de uma perspectiva diferente, num nível diferente. Os grandes eventos bíblicos são acompanhados de declarações proféticas. Moisés afirma ser o Êxodo uma intervenção de Deus; o deutero-Isaias afirma que o retorno é um ato de Deus e os apóstolos dão testemunho de Jesus Cristo como ato redentor de Deus. Em cada caso, a Palavra é proclamada e recebida em fé ou rejeitada em desconfiança. É a Palavra e a fé que possibilitam à teologia cristã falar dos atos de Deus, da intervenção divina na história, nos eventos que, ao nível ordinário, são entendidos em termos de causa e efeito.

Pecado humano e a Lei

Está correto o Bispo Spong ao rejeitar como um todo o conceito da condição humana pecaminosa, que a teologia tradicional tem denominado de “pecado original”? É verdade como argumenta o bispo, que a nossa visão da conduta humana é muito diferente do que a de cinqüenta anos atrás, para não dizer nada sobre o Novo Testamento? Entendemos muito mais sobre a conduta humana desde Marx, Freud e Jung, entretanto os seres humanos ainda exploram e matam uns aos outros.

Essas considerações trazem questões sobre a Lei. Naturalmente, a estória de Moisés, que sobe à montanha para receber o Decálogo nas tábuas de pedra é um mito, como o bispo reconhece corretamente. Como todos os grandes mitos bíblicos, este expressa uma verdade importante. Os seres humanos têm, geralmente, alguma espécie do senso do certo e errado. Eles sentem, no geral, estar debaixo do que Kant denominou de “imperativo categórico”. Esse senso do certo e errado foi moldado pela experiência de Deus por parte de Israel. Eles reconheciam ser responsáveis a Yahweh e que tinham de prestar contas de sua conduta. Eles compreenderam que o senso deles sobre o certo e o errado não era sua imaginação. Naturalmente, suas formulações dos Mandamentos foram culturalmente condicionadas, como o bispo bem ressalta. Isso foi verdade com respeito ao mandamento que ordena a observação do sábado. Também, é verdade que a proibição do adultério tinha muito mais a ver com o direito da propriedade do que com a moralidade sexual. Porém devemos interpretar os Dez Mandamentos (ou, pelo menos, a segunda tábua) nos termos da radicalização que Jesus fez deles no Sermão do Monte, e nos termos do mandamento duplo do amor. Mesmo o quarto (ou terceiro) mandamento não é inteiramente irrelevante: o sábado encontra sua realização escatológica na vinda do Reino de Deus e celebramos a vinda do Reino e nela participamos na observância semanal do Dia do Senhor. Por conseguinte, para os cristãos o domingo não é o sábado, mas sua realização escatológica.

Há uma outra razão para insistir na origem divina do imperativo moral: o pecado é visto como pecado só à luz da exigência divina. Paulo percebeu isso quando se referiu à lei como convocação para o arrependimento (Rm 7.7-25). Só se for a transgressão de um imperativo divino será exposta como pecado, isto é, rebelião contra Deus e perversão de nossa relação com Deus. Até que isso aconteça, não será percebida a necessidade da libertação que vem de Deus. É em resposta a essa situação que o ato redentor em Jesus Cristo aconteceu. Para isso voltemos a nossa atenção.

Evento de Cristo

Podemos concordar com o Bispo Spong que partes da estória de Jesus nos evangelhos não devem ser tomadas literalmente. Isto é verdadeiro, especialmente, com respeito às narrativas da infância e às narrativas da ressurreição.

Tenho argumentado alhures que as estórias de nascimento em Mateus e Lucas são essencialmente expressões narrativas de Cristologia e que a crença cristã significa a aceitação da cristologia que elas expressam. O bispo está no caminho certo quando ele as trata como “midrash”, embora midrash – que, no geral, é entendido como interpretação expandida de um texto do Antigo Testamento – provavelmente não seja um termo técnico correto nesta conexão. Talvez as estórias do nascimento contenham um pouco mais de história factual do que o bispo está pronto a admitir. Certos pontos de concordância entre Mateus e Lucas esclarecem que alguma coisa das tradições factuais entesouradas nas estórias são de origem pré-evangelho e podem, de fato, ser históricas. Tais itens incluem os nomes de Maria e José, a alegação de que José é de origem davídica e a datação do nascimento de Jesus pelo fim do período do reinado de Herodes e, talvez, o curioso timing da concepção e a localização do nascimento em Belém. Ao ler essas estórias, devemos, todavia, ouvir a proclamação que elas entesouram – que Jesus Cristo é a intervenção de Deus, cumprimento da esperança da restauração de Israel.

O Bispo John Spong tem alergia em alto grau para com a “teologia do sangue”, isto é, a interpretação da morte de Jesus como sacrifício. (É irônico que esteja enfastiado com este tópico, considerando que este século pode ser o mais sanguinolento da história humana!) Podemos concordar com ele que a linguagem do sacrifício que ocorre no culto não tem sentido na cultura contemporânea. Entretanto os seguintes pontos devem ser considerados:

1. O sacrifício no culto se supre de apenas uma de várias imagens com que o Novo Testamento apresenta o sentido da morte de Cristo. Para Paulo, essa imagem tem apenas um papel menor e nas citações das tradicionais fórmulas de hinos outras importantes imagens são tomadas das relações pessoais e internacionais (reconciliação), tribunal (justificação) e campo de batalha (vitória sobre os poderes cósmicos do mal).

2. A Cruz é central para a mensagem cristã, o coração do ato de Deus em Jesus Cristo. Os teólogos não devem abandoná-la como incompreensível, mas devem descobrir uma imagística adequada para a sua compreensão contemporânea.

3. “Sangue” no pensamento hebraico significa, não simplesmente uma realidade física, mas a própria vida, especialmente, a vida entregue à morte.

4. A idéia do amor doador, derramado até a morte, não é certamente estranha para a nossa cultura ou para qualquer outra cultura. Podemos apreciar o sentido paulino quando ele se refere a Cristo, que “me amou e deu a si mesmo por mim” (Gl 2.20).

Estórias (narrativas) da Páscoa

A proclamação da Páscoa resumida em 1Coríntios 15.3-8 é, geralmente, reconhecida pelos estudiosos como sendo pré-paulina e, provavelmente, seja uma tradição muito antiga. As pessoas constantes da lista nessa formulação tiveram experiências visionárias que podem ser suscetíveis à explicação psicológica, num certo nível. Entretanto, no nível da proclamação e da fé, o Novo Testamento afirma que elas são encontros de revelação. Por meio dessas revelações os receptores vieram a crer que Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos e o exaltou ao modo transcendente de ser Deus. As narrativas de aparição no fim dos evangelhos são, no entanto, tardias. Em analogia com as estórias de nascimento, elas são expressões narrativas da mensagem da Páscoa entesouradas na tradição mais antiga. Elas põem ao público o caráter revelador das aparições e suas implicações: a inauguração da quérigma, a fundação da Igreja e sua missão e a origem do batismo cristão e alguns aspectos da eucaristia.

Muito mais está em debate a estória do túmulo vazio. Muitos estudiosos concordariam com o Bispo Spong e, na esteira de R.Bultmann, a abandonam como uma “lenda tardia”. Eles podem estar certos. Todavia tenho dito alhures que há um núcleo histórico da estória, a partir do qual a “lenda posterior” se desenvolveu. Este é o fato de que Maria Madalena, talvez, com outras mulheres, descobriram o túmulo, no qual Jesus foi sepultado, inexplicavelmente vazio. Como todos os outros fatos históricos é suscetível de explicações naturais e um certo número dessas possibilidades é mencionado ou sugerido nos evangelhos. Por exemplo, Marcos se esforça em ressaltar que as mulheres anotaram o local do túmulo na tarde da Sexta-feira, portanto, elas foram ao túmulo errado na manhã da Páscoa. Mateus fala no rumor de que os discípulos roubaram o corpo. João sugere que alguma outra pessoa (um jardineiro, por exemplo) removeu o corpo. Não há dúvida que há outras explicações naturais possíveis, mas as narrativas dos sinóticos oferecem expedientes literários de um anjo que faz a interpretação. Aqui aparece a comunidade da fé propiciando uma categoria de interpretação da revelação a um fato histórico. Um outro argumento mencionado, freqüentemente, contra a historicidade do túmulo vazio é sua ausência no quérigma pré-paulino de 1 Coríntios 15.3-8, e no debate subseqüente de Paulo nesse capítulo. Entretanto, é não só defensável que a seqüência “foi sepultado – foi ressuscitado” implica na inversão do sepultamento, porém, mais importante é o argumento subseqüente de Paulo de que a ressurreição dos fiéis implica numa ressurreição do corpo. A ressurreição de Jesus e a ressurreição geral dos fiéis envolvem a transformação do corpo. Naturalmente, isso não significa – como se insiste freqüentemente hoje em dia – a ressuscitação do cadáver, mas a transformação do físico. A tradição do túmulo vazio é um lembrete de que o cristão deve abraçar a glorificação da matérias do cosmos.

Ascensão

A ascensão é contada apenas duas vezes no Novo Testamento e só nos escritos de Lucas 24.50-51 (texto mais longo) e Atos 1.6-11. A segunda versão é claramente o que o Bispo Spong chamaria de midrash baseada numa estória semelhante acerca de Elias em 2 Reis 2.1-12. Ela coloca na forma de estória uma crença que foi, geralmente, mantida na Igreja primitiva, isto é, que – sendo ressuscitado dentre os mortos – é agora exaltado ao modo transcendente do ser de Deus. O bispo, na minha opinião, está muito certo em insistir que a estória não deve ser tomada literalmente. Porém não deve ser eliminada a verdade que ela enuncia. A “ascensão” é uma linguagem mitológica para a verdade-fé essencial de que Jesus é Senhor, removido das restrições do espaço e tempo e constantemente acessível e presente na Palavra e sacramento.

Parusia

Do mesmo modo, a parusia não deve ser considera como evento literal, no qual Cristo desce com seus anjos sobre nuvens do céu no fim da história. É uma expressão simbólica do que Teilhard de Chardin denominou de “ponto ômega”, o alvo da história humana e do processo cósmico. Mais uma vez, o Bispo Spong é correto em insistir que esse evento não pode ser tomado literalmente. Entretanto, mais uma vez, deve ser interpretado e não eliminado.

Jesus como pessoa de Espírito


O bispo tomou de Marcus Borg a descrição de Jesus de Nazaré como “pessoa do Espírito”. Esta idéia tem sua atração, certamente. Jesus pode ser apresentado inteligivelmente ao mundo contemporâneo como uma figura de uma classe de gente que teve uma experiência fora do comum daquelas dimensões elevadas da realidade, do sagrado, do mundo do Espírito. Porém essa compreensão não consegue captar o que é único sobre Jesus. É como a descrição dele como mestre e profeta, o que é verdade.

É interessante que, em apoio a essa visão sobre Jesus como pessoa do Espírito, Marcus Borg cita a versão de Lucas do discurso inaugural de Jesus na sinagoga de Nazaré, (Lc 4.18-19), no qual Jesus menciona Isaías 61. Tão impressionado, por ser tão oportuna essa citação para a situação, Borg está tentado a aceitar a sua autenticidade, a despeito de ser uma expansão de Marcos 6.1 por parte de Lucas e, portanto, provavelmente seja mais redacional, (isto é, aditamento editorial). Seja como for, há outras passagens para apoiar a noção de que Jesus é a figura plena de Espírito, por exemplo, Marcos 3.28-29; Lucas 7.22, que ressoam Isaias 61. Há passagens cuja autenticidade está menos aberta à dúvida do que a versão de Lucas do sermão em Nazaré. Por conseguinte, podemos concordar que Jesus entendeu a si mesmo como estando habilitado para a sua missão pelo Espírito e neste contexto, há algo mais preciso: o poder escatológico de Deus que vem de um modo único sobre seu único agente escatológico. Aqui, na interpretação que Jesus faz de si mesmo, encontramos a gênese pré-Pascal da cristologia pós-pascal, pós-ressurreição.

Conclusão

A teologia anglicana tem sempre se esforçado em ser fiel ao quérigma e ao credo, e aberta aos novos conhecimentos. Alcançar tal síntese é uma tarefa árdua e um constante desafio. É sempre mais fácil aderir rigidamente ao sentido literal da Bíblia e rejeitar qualquer novo conhecimento. É igualmente mais fácil se capitular sem reserva ao pensamento contemporâneo e comprometer a verdade do evangelho. Porém, desde a publicação de Lux Mundi, o anglicanismo tem demonstrado a preferência por “isto e aquilo”, ao invés de “ou isto ou aquilo” – tanto a fidelidade para com a revelação quanto para com a abertura para novas descobertas da verdade. Continuar nesse caminho será o desafio para a teologia anglicana no terceiro milênio.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

De pregador itinerante a Filho de Deus

O general romano Hermógenes estava estacionado com seus soldados em frente aos muros de Constantinopla, então a capital do império. Sentia-se preocupado. Fora incumbido pessoalmente pelo imperador Constâncio de prender um líder rebelde local, mas encontrara a cidade tomada por lutas de rua e parcialmente em chamas. Hermógenes decidiu pernoitar fora de Constantinopla para preparar seus próximos movimentos. Durante a noite, porém, a casa em que dormia foi descoberta por populares. Eles a incendiaram e arrastaram o militar para as ruas, onde foi surrado até morrer.

A morte de Hermógenes, ocorrida em 342, mostra o grau de enfrentamento e divisão que varreu o Império Romano durante o ciclo que entrou para a história como a controvérsia ariana. O que começou como um erudito debate teológico sobre Jesus se transformou numa questão de estado que durou cerca de 70 anos, rachou a sociedade da época e quase a arrastou para a guerra civil. O conflito só terminou quando um dos dois lados conseguiu empurrar o outro para a ilegalidade e a lata de lixo da história. A vitória teve um alcance que extrapolou, em muito, o próprio Império Romano. Pois foi durante aquele redemoinho histórico que se estabeleceu, na Igreja antiga, o dogma da identidade entre o carpinteiro Jesus de Nazaré e o Deus a quem ele chamava de Pai.

A controvérsia ariana é um drama, cheio de conspiração e de viradas inesperadas (veja arte ao longo do texto). Mas suas origens estão, na verdade, na pluralidade de pensamento que caracterizou o início do cristianismo, quatro séculos antes.

Após a morte de Jesus, seus seguidores espalharam-se pelo mundo. As primeiras comunidades cristãs surgiriam em cidades da Palestina, da Síria, da Ásia menor, da Grécia e até em Roma. "Devido à própria diversidade geográfica, esse grupos entraram em contato com diferentes idéias religiosas já existentes: alguns sofreram influências do judaísmo, outros do mundo grego".

Na segunda metade do século 1, algumas comunidades escreveram suas memórias da vida e dos ensinos de Jesus, criando os primeiros evangelhos. Os evangelhos atribuídos a Marcos, Mateus, Lucas e João serão depois considerados inspirados, e incorporados à Bíblia, enquanto outros, como o de Tomé, serão rejeitados. Neles já se refletem as diferenças entre as comunidades. "No evangelho de Marcos a narrativa só começa quando Jesus é reconhecido como filho de Deus, no batismo. Um outro grupo, porém, vai descrever sua infância, para afirmar que ele já era especial desde o nascimento. Não é que um texto queira negar o outro, mas sim ir além".

Ele conta que entre as idéias dos primeiros seguidores de Jesus estava a de que ele seria um profeta e libertador escatológico. Ou um enviado de Deus e, portanto, seu filho. "As pessoas exploravam diferentes maneiras de compreendê-lo", diz a americana Elaine Pagels, professora da Universidade Princeton, especialista no cristianismo primitivo e autora de "O Evangelho Desconhecido de Tomé".

Pagels diz que Marcos, Mateus e Lucas consideravam Jesus um ser humano com uma missão especial. "Eles o vêem como um messias, ou um rei enviado por Deus. Mas o rei Davi fora chamado de messias também. Só as cartas de Paulo e o evangelho de João é que falam diretamente sobre a divindade de Jesus", afirma.

Como alguém podia ser um cristão devoto e pensar que Jesus não é Deus? Uma possibilidade vem se revelando por meio da pesquisa dos manuscritos do Mar Morto, descobertos em 1947. No livro "Rei e Messias", o estudioso inglês Cristopher Rowland, de Oxford, explica que muitos viam Jesus como um "mediador angélico". Para esses cristãos Jesus era "aquele que, como o anjo de Deus no Antigo Testamento, foi enviado para revelar e cumprir a vontade de Deus, que está no céu".

O debate sobre a Bíblia

A disputa entre as diferentes visões sobre Jesus se refletiu também na discussão sobre a formação do livro sagrado dos cristãos
• 30 d.C.

Crucificação de Jesus

• Década de 50

Escritos do apóstolo Paulo

• 50-70

Escrita do evangelho de Tomé

• 70-90

Escrita dos evangelhos das comunidades de Marcos, Mateus e Lucas

• 90-100

Escrita do evangelho da comunidade de João

• Século 2

O número de evangelhos escritos por diferentes comunidades cristãs chega às dezenas. Irineu, bispo de Lião, denuncia boa parte desses grupos e seus textos como heréticos

• 144

Marcião, importante líder cristão, propõe um cânone bíblico composto por apenas um evangelho e as cartas de Paulo. Ele é denunciado como herege

• 170

Taciano escreve uma versão condensada dos evangelhos, que é recusada

• Século 3

Intenso debate teológico sobre a figura de Jesus

• 318

Início da controvérsia ariana

• 325

Reunidos no concílio de Nicéia, bispos escolhem uma fórmula que é contrária ao arianismo

• 367

Em seu esforço para combater o arianismo, o bispo Atanásio faz a primeira lista dos textos que compõem o novo testamento

• 381

Concílio de Constantinopla, convocado pelo imperador Teodoro, bane os bispos arianos

• 382

Concílio em Roma confirma a lista de Atanásio

Outros acreditavam que Jesus tivesse se tornado angelical ao ser elevado aos céus. Paulo Nogueira explica que "na tradição apocalíptica judaica, quando um homem subia aos céus, tinha que se transformar em anjo ou seria fulminado". Mas o caso de Jesus é diferente. "Ele seria maior do que os anjos, pois sobe aos céus para morar com Deus e governar o universo com ele, tornando-se um vice-regente ", diz.

E a diversidade de pontos de vista sobre Jesus só aumentaria com o tempo. A região do Mediterrâneo Oriental era um cadinho de povos e idéias. A cultura mais influente era a grega, com sua tradição de racionalismo e filosofia. À medida que o cristianismo penetrava nesse mundo, o encontro entre o pensamento grego e as escrituras da nova religião dava origem a formas mais sofisticadas de teologia cristã. "As discussões especulativas, que eram próprias das escolas filosóficas, foram transferidas para a teologia cristã". As escolas de teologia de certa forma foram sucessoras das academias filosóficas".

No início do século 4, as cidades de Antioquia e de Alexandria haviam se firmado como os dois grandes centros teológicos da cristandade, mas com diferentes tradições intelectuais. Em Antioquia era forte a influência aristotélica, e privilegiava-se uma leitura mais literal da Bíblia. Em Alexandria predominava uma releitura de Platão. E tendia-se a interpretar os textos bíblicos como alegorias.

A polêmica ariana teve início em 312 quando Ário, um popular padre de Alexandria, começou a pregar que Jesus não era igual a Deus, mas sim criado por ele e subordinado a ele. Alexandre, o bispo de Alexandria, considerou essa posição herética e em 318 puniu-o com o exílio. Mas o padre não era propriamente o autor de tais idéias; ele as absorvera em parte durante seus anos como estudante de teologia em Antioquia. E de maneira geral, a doutrina da subordinação de Jesus ao Pai era uma crença forte na parte oriental do Império Romano. "Não estava claro que a doutrina de subordinação fosse herética", explica Richard Rubenstein, autor de "Quando Jesus se Tornou Deus", o livro que inspirou esta reportagem. "Esse foi um dos fatores que fez com que a luta durasse tanto."

Ário partiu para a cidade de Nicomédia para receber o apoio de Eusébio, um antigo colega de estudos em Antioquia que se tornara bispo influente da igreja oriental. Começava a disputa entre arianos e antiarianos.

Uma divisão na Igreja era tudo o que o então imperador Constantino não queria. Ao contrário, seu objetivo era restaurar os dias de paz e grandeza do império, que se ressentia dos momentos difíceis do século anterior.

No início dos anos 220, tribos germânicas e soldados persas haviam invadido as fronteiras da Europa e da Ásia, e imposto aos legionários derrotas sem precedentes. Para sustentar o exército romano, os impostos foram duplicados sucessivas vezes, o preço dos alimentos subiu e a inflação explodiu. Em 70 anos, 17 generais diferentes tomaram o poder. O povo era impelido em massa para a escravidão e o banditismo assolava o império. Por volta de 290, porém, a crise parecia superada, ou superável. O imperador Diocleciano se propõe a trazer de volta a grandeza de Roma, e decreta a partir de 303 uma perseguição ampla, mas malsucedida, aos cristãos.

Diocleciano morre e em 312 o poder vai parar nas mãos de Constantino. Mesmo sem se batizar, Constantino é um cristão convicto. Cessa as perseguições, restitui à Igreja os bens confiscados, e abre a ela os cofres públicos. Constantino queria transformar o cristianismo numa ideologia oficial, capaz de trazer unidade a um império marcado pelo medo da dissolução e pelas diferenças regionais, especialmente entre a porção ocidental, que falava latim, e a oriental, que falava grego.

Buscando conciliação, ele convocou em 325 um concílio de bispos na cidade de Nicéia, o qual presidiu pessoalmente. Os bispos aprovaram uma fórmula conhecida como credo de Nicéia, que afirmava explicitamente que Jesus e Deus compartilhavam a "mesma essência". Foi uma derrota dos arianos.

Após o concílio, o bispo Eusébio de Nicomédia caiu nas graças de Constantino, que também se aproximou de Ário. As idéias de Ário foram declaradas corretas em concílios posteriores, e ele morreu bem no dia em que seria formalmente reintegrado à Igreja por ordem expressa do imperador. Sua morte não terminou o conflito, pois suas idéias eram apoiadas pela maior parte dos bispos da região de fala grega do império, enquanto seus adversários (o bispo Alexandre e seu discípulo e sucessor, Atanásio) tinham o apoio da parte latina da Igreja.

Rubenstein explica que a divisão era um reflexo das diferenças culturais. "A igreja do Oriente ainda se via, em alguma medida, como uma continuação do judaísmo e da cultura grega. Já a visão do grupo niceno era mais radical, e defendia uma ruptura com as heranças grega e judaica."

Na tela, um homem de muitas faces

Durante o século 20 o cinema mostrou várias versões sobre a personalidade do carpinteiro de Nazaré. Inicialmente com uma reverência que parecia beirar o temor. "Nos primeiros filmes Jesus era mostrado só de longe, não se via seu rosto", explica o professor de literatura Antônio Carlos Fester, que dá palestras em que analisa as diferentes formas como Cristo foi retratado na telona. "Isso só acontece, no cinema americano, com o 'Rei dos Reis', em 1927.

"Ex-membro da comissão de justiça e paz de São Paulo - sobre a qual está lançando um livro -, Fester é um católico cinéfilo, e criou, em meio a sua coleção de centenas de DVDs, uma sessão com dúzias de filmes onde Cristo é retratado como personagem principal ou coadjuvante. A partir da coleção, conseguiu detectar alguns padrões. "Existe um Jesus no cinema que é uma figura convencional, quase acadêmica." É o caso de filmes como o "Jesus de Nazaré", de Franco Zefirelli. "Os padres gostam muito desse filme porque é muito completo do ponto de vista biográfico. Embora seja preciso lembrar que os evangelhos não foram escritos como biografias", ressalta. Nestas obras é comum vê-lo como um homem de gestos pausados, bastante sério e com alguma pompa. Ao mesmo tempo há bastante ênfase nos milagres, recriados de forma impactante. É como se a parte divina do personagem fosse a sua totalidade.

Com o tempo, surgiu um Jesus mais pessoal. Em "A Maior História de Todos os Tempos", de George Stevens (onde o papel fica a cargo de Max von Sidow), ressalta-se a sua identidade como judeu praticante. Em "O Evangelho Segundo São Mateus", de Pasolini (que foi elogiado pelo Vaticano), mostra-se um cristo atuante, confrontando as autoridades temporais e religiosas da sua época. "A Última Tentação de Cristo", de Martin Scorsese, mostra uma progressiva descoberta de sua tarefa messiânica, intermeada com sentimentos de paixão amorosa, medo, dúvida. "Essa linha de filmes causa estranhamento e faz pensar sobre quem foi esse homem e qual sua mensagem", diz.

Essas diferenças sobressaíam-se na maneira como viam Jesus. "Os arianos tinham uma visão mais otimista da natureza humana, e viam Jesus como um exemplo moral. Tendiam a ressaltar seus aspectos de Filho, que o mostravam mais como um irmão mais velho do que uma figura paterna." Já os nicenos eram mais pessimistas quanto ao caráter pecador da humanidade, e consideravam que só um Jesus que estivesse no mesmo nível de Deus poderia vencer o pecado e a morte. Também viam a Igreja como o elemento mais importante de salvação, uma instituição que deveria resistir até mesmo ao fim do Império Romano - o que acabou acontecendo.

Por duas vezes, durante a controvérsia, o poder imperial esteve nas mãos dos arianos (um deles o Constâncio que enviou seu general Hermógenes para morrer nas mãos do povo de Constantinopla). Mas o bispo Atanásio de Alexandria revelou-se um adversário à altura. Durante quatro décadas, atazanou sem parar seus inimigos, recorrendo até mesmo à violência. Morreu em 373, pouco antes de a maré virar a seu favor. Em 378, as legiões romanas, sob o comando do imperador ariano Valente, foram arrasadas pelos godos na batalha de Adrianópolis. O império, mais uma vez, estava no fundo do poço. Ambrósio, bispo antiariano de Milão, fez um comentário severo: "Esse é o julgamento de Deus sobre os arianos". Teodósio I, o sucessor de Valente, conseguiu afastar por algum tempo o perigo das invasões . Durante uma viagem à Itália, aproximou-se dos bispos da igreja latina, e em fevereiro de 380 publicou um edito que promulgava a ortodoxia nicena como lei. A seguir, proibiu que os arianos celebrassem cultos em qualquer igreja e removeu-os dos bispados mais importantes.

Teodósio convocou um concílio em Constantinopla, em 381, que reafirmou o credo niceno, com algumas variações. Por fim veio a ordem para queimar os documentos arianos, cuja posse era crime mortal. "Depois de 70 anos de lutas internas que culminaram com o desastre de Adrianópolis, Teodósio apareceu num estágio histórico semelhante a Napoleão ou Stalin: uma figura autoritária cuja missão era consolidar a revolução cristã, preservar e adaptar a religião às realidades sociais existentes e, ao mesmo tempo, incorporá-la à estrutura do poder governamental", escreve Rubenstein.

Mas não foi o fim dos debates sobre a natureza de Cristo. No século 5 começou a impor-se nas igrejas da Síria Ocidental, Armênia, Egito e Etiópia a corrente monofisista, que privilegiava seu aspecto divino. No Ocidente subsistiu uma visão que afirmava a plena humanidade de Jesus. Mas sem torná-lo menos divino, pois o concílio de Constantinopla afirmou a crença num Deus trinitário, composto de três pessoas que partilhavam uma só substância divina. E Jesus, identificado com a segunda pessoa da trindade, foi reconhecido como Deus encarnado.

1 - Em Alexandria, o padre Ário afirma em seus sermões que Jesus é subordinado a Deus, e não o próprio Deus. Bom pregador e poeta, Ário torna-se uma figura popular.
2 - Alexandre, o bispo de Alexandria, convoca Ário para explicar suas idéias, as quais julga incorretas. Ele o excomunga e bane de Alexandria.
3 - Ário foge para Antioquia onde o bispo local, Eusébio, é seu amigo e figura poderosa na região oriental do império. Eusébio convoca um concílio, uma reunião de bispos para debater a doutrina, o qual conclui que as idéias de Ário não são heréticas.
4 - Preocupado com a divisão entre adeptos e adversários de Ário, o imperador Constantino convoca um concílio na cidade de Nicéia. Alexandre comparece levando seu pupilo Atanásio, que será o grande adversário dos arianos. O líder dos arianos é Eusébio. Os participantes criam um credo que condena indiretamente as idéias arianas. Ário se recusa a validar o credo e é expulso. Eusébio pouco depois será exilado.
5 - Numa reviravolta, Constantino chama Eusébio de volta do exílio e o nomeia seu conselheiro particular. Sob o patrocínio de Eusébio é convocado um novo concílio que considera as idéias de Ário corretas. Constantino exige que o bispo Alexandre readmita Ário a sua igreja em Alexandria.
6 - Alexandre se recusa terminantemente a readmitir Ário e morre pouco depois. Atanásio se torna bispo de Alexandria. Ele organiza uma resistência por vezes violenta contra os partidários de Ário.
7 - O imperador funda uma nova capital, Constantinopla. Atanásio é furiosamente perseguido e acusado de organizar o espancamento de cristãos arianos. Ele não nega as acusações, mas vai até Constantinopla falar com o imperador, a quem consegue impressionar favoravelmente.
8 - Ário escreve a Constantino reclamando que ainda não foi reintegrado à sua igreja. Constantino se sente ofendido pelo tom da carta e responde chamando-o de inimigo da religião. Ário vai a Constantinopla e se reaproxima de Constantino, que se dispõe a ajudá-lo diretamente a voltar para Alexandria.
9 - Os arianos organizam um concílio na cidade de Tiro, que condena Atanásio. Mas ele foge do Egito e é exonerado de seu posto e excomungado.
10 - Num concílio em Constantinopla, Ário apresenta sua própria versão do credo que, embora diferente do credo aprovado em Nicena, é julgado ortodoxo. O concílio ordena que ele receba a comunhão na principal igreja de Constantinopla, como forma de abrir o caminho à sua volta para Alexandria. Mas ele morre subitamente poucas horas antes da missa. Constantino também morre e o império é dividido entre seus filhos. Constante, que defende os antiarianos, fica com a Itália, e Constâncio, que protegerá os arianos, com a parte oriental do império.
11 - Ocorrem lutas violentas entre adeptos das duas correntes por todo o Mediterrâneo oriental. Tropas do exército desembarcam em Alexandria para prender Atanásio, mas ele foge para Roma. Eusébio, no auge do poder, se torna bispo de Constantinopla.
12 - Eusébio morre. Os adeptos de Atanásio tentam entronizar como novo bispo um dos seus, Paulo. Isso gera lutas violentas em Constantinopla, inclusive incêndios. Constâncio envia um general para prender Paulo, mas o militar morre espancado por uma multidão. As metades oriental e ocidental do império estão cindidas. Constante ameaça Constâncio com o uso da força para defender Atanásio. Risco de uma guerra civil entre Constante e seu irmão.
13 - Constâncio se torna o único líder do império e vê os adeptos de Atanásio como uma ameaça à estabilidade. Ele força a convocação de um outro concílio que adota um credo para subsitituir o de Nicéia. Mas ele morre pouco depois.
14 - O trono romano passa por vários ocupantes em poucos anos, enquanto o império sofre fortes reveses militares. Um general, Teodósio, consegue estabilizar a situação.
15 - Teodósio se aproxima dos bispos do ocidente e publica um edito defendendo o credo niceno. Ele ordena a perseguição dos arianos e consolida o cristianismo como religião oficial do império. É a vitória dos ortodoxos.
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Para ler:

• "Quando Jesus se tornou Deus", Richard Rubenstein. Fisus Editora, 2001.

• "Além de Toda Crença - O Evangelho Desconhecido de Tomé", Elaine Pagels. Objetiva, 2003.

• "História do Movimento Cristão Mundial", Dale Irvin. Paulus, 2004.

• "Rei e Messias", John Day (org.). Paulinas, 2005

• "O Nascimento do Cristianismo", John Dominic Crossan. Paulinas, 2005

domingo, 24 de julho de 2011

O Jesus Ariano



A teologia e sua atração pelo racismo. Nisso me refiro especialmente a neotestamentólogos do início do século 20 e sobretudo do tempo dos nazistas. O surpreendentemente grande número de professores proeminentes, de cientistas e estudantes jovens que eram envolvidos em esforços de associar nazismo com cristianismo, pretende aqui não simplesmente ser entendido como reação ao desenvolvimento político ou como resultado duma discussão dentro da teologia. Antes, queria mostrar que perceberam e levaram à luz do dia afinidades fundamentais entre racismo e teologia. O meu ensaio esboçará os desenvolvimentos, que queria descrever somente em parte, e a seguir analisar essa afinidade imprevista. A base da minha apresentação é material de arquivo que faz poucos anos descobri na Alemanha. Evidencia a existência dum pseudo-instituto de pesquisa para teólogos, o qual se assemelha a outros institutos pseudocientíficos para a "pesquisa dos judeus", os quais foram instalados em quase todos os âmbitos acadêmicos da Alemanha durante o "Terceiro Império". Descreverei brevemente a história, a atividade, os membros, a ideologia etc. do instituto. Por razões de espaço omitirei lamentavelmente exposições sobre as carreiras com sucesso de membros do instituto depois da guerra. Igualmente, tratarei de somente dois aspetos do trabalho "científico" dos membros do instituto, a saber o entusiasmo pelos métodos da escola de história de religião e da participação de muitos desses cientistas na pesquisa dos rolos do Mar Morto depois da guerra.

Descrição do instituto

No meio dia do sábado de 6 de maio de 1939, um grupo de teólogos, pastores e freqüentadores de igreja protestantes e reuniu na Wartburg histórica para, repleto de orgulho luterano e nacional-socialista, celebrar a abertura oficial do "Institut zur Erforschung und Beseitigung des jüdischen Einflusses auf das deutsche kirchliche Leben" [Instituto para a pesquisa e eliminação da influência judaica na vida eclesial alemã]. Os fins do instituto eram tanto políticos como também teológicos. Para conseguir uma Igreja "desjudizada" para uma Alemanha que estava a "limpar" a Europa de todos os judeus, o instituto desenvolveu novas interpretações da Bíblia e material novo para a liturgia. Nos seis anos da sua existência, durante os quais o regime nazista cometeu o genocídio nos judeus, o instituto definiu de novo o Cristianismo como uma religião germânica. O fundador desta, o ariano Jesus, teria lutado corajosamente para destruir o Judaísmo e teria caído vítima na luta, assim que os alemães agora estariam exortados a chegar a serem vencedores na própria luta de Jesus contra os judeus. No nível teológico, o instituto conseguiu sucesso notável, porque ganhou um grupo de representantes de Igreja e professores para a sua agenda radical, os quais saudavam a eliminação de elementos judaicos da Bíblia e liturgia cristãs, bem como a neodefinição do Cristianismo como religião ariana. Membros do instituto e muitos outros no Império trabalhavam dedicadamente "para o Führer [Líder, Dirigente = Adolf Hitler]", como Ian Kershaw o formulou, para ganhar a luta contra os judeus. A sua dedicação os fez cada vez mais extremos, assim que trespassaram a doutrina cristã tradicional e, em vez desta, contraíram uma coalizão com líderes neo-pagãos. Começaram com uma propaganda de difamar, a qual correspondia às medidas do Terceiro Império contra os judeus. "Ariano" estava, correspondentemente a isso, não simplesmente só para características físicas ou biológicas, mas ainda mais para uma índole interior, a qual era ao mesmo tempo poderosa e também profundamente vulnerável, precisando da proteção duma ameaça de degeneração por não arianos, principalmente por judeus. Na Alemanha nazista, a "higiene de raça" chegou a ser uma disciplina, na qual era ensinado como o corpo, em que o espírito ariano habita, possa ser protegido; a teologia desse instituto se dedicava à assistência a esse espírito.

A maioria dos membros e especialmente o diretor acadêmico do instituto, Walter Grundmann, professor para Novo Testamento em Jena, se via como vanguarda teológica, a qual se dedicava a resolver dum problema que já faz muito tempo atormentava: Como se pode tirar uma fronteira clara e explícita entre o Cristianismo primitivo e o Judaísmo, eliminando todos os vestígios de influência judaica da teologia e prática cristãs? Como cientistas pertencentes preponderantemente à geração mais jovem, que foram formados pelos pesquisadores do Cristianismo primitivo alemães — muitos eram discípulos do professor importante de Tübingen, Gerhard Kittel — os membros do instituto se viam em condição para recuperar o Jesus historicamente genuíno, não judaico, fazendo a mensagem cristã compatível com identidade alemã contemporânea. Quiseram limpeza, autencidade e uma revolução teológica — tudo em nome do método histórico-crítico e da sua dedicação ao "Deutschtum". Alcançar isso eles quiseram pela extinção do judaico do cristão. Nem uma mensagem cristã que estivesse com judaico poderia ser útil a alemães, nem uma mensagem judaica poderia ser uma doutrina exata de Jesus.
Os fins do instituto foram explicados sem rodeios por Grundmann na inauguração do mesmo numa alocução programática sobre "A remoção do judaico da vida religiosa como tarefa da teologia alemã e da Igreja". Esta era, assim declarou, comparável como aquela da reformação: Os protestantes precisam hoje superar o Judaísmo como Lutero superou o catolicismo. A eliminação da influência judaica à vida alemã seria uma interpelação à situação religiosa alemã daquele tempo. Como as pessoas no tempo de Lutero não podiam imaginar um Cristianismo sem o papa, assim não poderiam hoje em dia — assim Grundmann — os cristãos imaginar uma salvação sem o Antigo Testamento. Mas esse fim estaria alcançável. A ciência neotestamentária moderna teria mostrado que "somente por força duma transformação, idéias neotestamentárias e cumprimento neotestamentário podiam ser encontrados como pré-formados no Antigo Testamento. Assim se acresce com pleno ímpeto a percepção do judaico no Antigo Testamento e também em determinados partidos do Novo Testamento como elemento que obstrui para inúmeras pessoas humanas alemãs o acesso à Bíblia."
A Bíblia, assim Grundmann continuou, deveria ser limpada, a sua qualidade não-falsificada restituída, para anunciar ao mundo a verdade sobre Jesus, a saber que era um ariano, o qual aspirava a destruição do Judaísmo. Grundmann deu um esboço das tarefas científicas as quais se punham ao instituto. Essas incluíram, segundo ele, esclarecer o papel do Judaísmo no Cristianismo mais primitivo e a sua influência à filosofia moderna. Cada oposição contra o nacional-socialismo a partir da Igreja teria partido duma influência nociva do Judaísmo, como por exemplo a afirmação de cientistas judaicos de que Jesus teria sido um judeu. Os judeus teriam destruído o pensar nacional dos alemães, querendo agora, com a ajuda do bolchevismo, forçar o "domínio mundial do Judaísmo". A ameaça judaica da Alemanha seria séria: Daí teria passado, assim Grundmann em aceitação da propaganda nazista, a luta contra os judeus irrevogavelmente ao povo alemão. A guerra contra os judeus é para ele não somente uma batalha espiritual: "A influência judaica a todas as áreas da vida alemã, inclusive da vida religiosa-eclesial, deve ser desmascarada e quebrada." Essa frase é que Grundmann a repete várias vezes, para descrever a tarefa do instituto.
De 1939 a 1945, o instituto funcionou como uma grande cobertura, sob a qual se podia articular um grande número de posições teológicas antijudaicas de cientistas e pastores. Alguns, como o próprio Grundmann, empenhavam-se para o afastamento do Antigo Testamento da Bíblia cristã., porque é um livro judaico.
Outros, como Johannes Hempel, professor do Antigo Testamento na universidade de Berlim, tentavam a manter o Antigo Testamento para os cristãos, já que era no fundo uma mensagem sobre o povo de Israel (e não sobre os judeus), a qual seria importante para o povo alemão ouvir.
Entre os membros ativos do instituto encontravam-se cientistas de reputação internacional dos escritos judaicos, como Hugo Odeberg, mas também estudantes de teologia e demagogos, como Hans-Joachim Thilo e Wolf Meyer-Erbach.
Em 1942, no ano então em que a maioria dos judeus europeus foi assassinada, o número dos membros como o dos assuntos foi ampliado, convidando escritores populares para preleções sobre a herança teutônica da Alemanha e a sua compatibilidade com o Cristianismo.
O que unia os membros do instituto era a confissão para a exterminação do judaico como meio para a limpeza do Cristianismo e da Alemanha. No público conhecido como "instituto de desjudiação" o instituto era o instrumento da Igreja Protestante para a propaganda anti-semita. Resultados teológicos sobre ensinamentos de Jesus e a sua relação aos judeus do seu tempo foram formados para apoio retórico da ideologia nazista, assim que o nazismo apareceu como a realização política daquilo que os cristãos ensinavam religiosamente. Conferências e publicações do instituto chegaram a ser conhecidas, não pela sua originalidade científica, mas porque fizeram exegese da Bíblia e história de religião com métodos da doutrina de raça. Com membros que pertenciam aos teólogos, professores e docentes líderes do Terceiro Império inteiro, o instituto encobria cientifica e religiosamente um anti-semitismo politizado, o qual refletia a retórica do ministério de propaganda na sua descrição da guerra como pretensa defesa contra uma guerra judaica contra a Alemanha. Grundmann escreveu em 1941: "Então, porém, o nosso povo que está na luta, contra os poderes satânicos do judaísmo mundial, por ordem e vida deste mundo em geral, com direito lhe dá a despedida, pois não pode lutar contra o judeu e abrir o seu coração ao rei dos judeus."4 Com a prova de que Jesus era, não judeu, mas sim adversário dos judeus, Grundmann ligou o trabalho do instituto com os esforços de guerra dos nazistas.
A extensão da força de atração do instituto era notável: professores universitários, docentes e estudantes evangélicos de teologia em todo o Império chegaram a ser membros do instituto. Representavam um corte transversal de disciplinas, lugares geográficos, anos e níveis de obras científicas dentro do Império. Queria nomear alguns "representantes":
Walter Grundmann era professor para Novo Testamento na universidade de Jena. Aí lecionaram mais outros membros do instituto, Heinz Eisenhuth, professor para teologia sistemática, e Wolf Meyer-Erlach, professor para teologia prática. Johannes Hempel era desde o começo um membro ativo e estava muito perto de Grundmann, este que pediu a sua ajuda na propaganda para o instituto nos representantes eclesiais de Berlim. Hempel era professor para Antigo Testamento na universidade de Berlim e até 1959 editor da ZAW [Zeitschrift für Alttestamentliche Wissenschaft = Revista para a Ciência do Antigo Testamento].
Georg Beer, antigotestamentólogo na universidade de Heidelberg, era um dos membros mais velhos do instituto e perito para o Judaísmo rabínico.
A teologia sistemática foi representada por Martin Redeker, pesquisador de Schleiermacher na universidade de Kiel e por Theodor Odenwald da universidade de Heidelberg.
A ciência neotestamentária foi representada por Johannes Leipoldt da universidade de Leipzig, Herbert Preisker da universidade de Breslau e por Hugo Odeberg da universidade de Lund.
Membros mais jovens eram Georg Bertram, Gerhard Delling e Karl Euler. Alguns eram membros do partido (nazista), enquanto outros nunca entraram no partido [nazista].
Exatamente aquilo que acadêmicos procuravam foi oferecido pelo instituto: apoio em publicações e conferências para apresentar idéias, reuniões para encontrar colegas e a sensção da própria importância. Para membros que eram pastores, professores de religião ou estudantes de teologia havia a possibilidade de se poder encontrar com professores conhecidos do Império inteiro e da Escandinávia — uma grande atração, já que o instituto pagou todos os gastos. Valiosa apareceu também a oportunidade de poder publicar nos livros financiados pelo instituto, já que papel e e promoção durante a guerra eram escassos.
Os membros eram subdivididos em grupos de trabalho, produzindo dentro de um ano uma versão "desjudizada" do Novo Testamento, um cancioneiro "desjudizado", um catecismo nazificado e um grande número de livros e panfletos para leigos e cientistas, nos quais expuseram os seus argumentos teológicos. O instituto organizava muitas conferências e fundou uma filial na România, para ajudar a "alemães étnicos". Embora o instituto fosse fechado em 1945 pela Igreja do país de Turingia por falta de financiamento, os seus membros nunca foram repreendidos pelas suas Landeskirchen [Igrejas regionais] depois da guerra por causa do seu trabalho anti-semita. Hempel, por exemplo, que transformou o conhecido Institutum Judaicum de Berlim, que dirigiu de 1937-1945, para um centro de ciência racista, manteve a editoria da ZAW.
Teoria racista e Teologia
A minha pergunta abrangente é porque a teoria de raça era atrativa para teólogos protestantes da Alemanha durante a primeira metade do século 20, e porque era tão fácil interpretar o Cristianismo em categorias racistas. O racismo que se espalhou na segunda metade do século 19 na Europa, atraia protestantes alemães, primeiro, como componente nacionalismo. Com o século 20, porém, o racismo, especialmente o anti-semitismo, chegou a ser um meio da modernização do Cristianismo e da legitimização das suas doutrinas. Jesus foi apresentado, primeiro como adversário do Judaísmo, a seguir como inimigo deste e, finalmente, como ariano.
A questão pelo trabalho do instituto na "desjudização" do Cristianismo precisa ser contemplada, não somente em conexo com a política do "Terceiro Império", mas também como fenômeno teológico do Cristianismo que agradava um grande número de pastores, bispos e teólogos universitários. Já fazia muito tempo que percebera a contribuição de religião para o nacional-socialismo; outra questão porém é, como teologia tirava proveito de racismo e nacionalismo. Porque um número tão grande de teólogos e pastores protestantes alemães foi atraído pela teoria de raças e que criou uma autêntica teologia de raças? Quais ganhos teológicos alcançaram pelo racismo?
O relacionamento entre anti-semitismo cristão-teológico e anti-semitismo racista secular já estava sendo discutido multifariamente por historiadores e teólogos. Geralmente concordava-se em que o anti-judaísmo cristão seria um fenômeno que se distinguisse do anti-semitismo moderno. As raízes deste jazem em pensar que se baseia em categorias econômicas e racistas, razão por que doutrinas cristãs não estão sendo consideradas como responsáveis para o anti-semitismo.6 Esse argumento reflete em parte a opinião amplamente difundida de que o Cristianismo seja uma religião universal, a qual está aberta para todas as pessoas humanas, e isso em contradição ao Judaísmo, que junta religião com etnicidade.
Faz pouco que Denise Buell pôs essa suposição em questão. Mostrou que a universalidade do Cristianismo é uma construção moderna, enquanto o Cristianismo antigo mesmo, no entanto, se definia por etnicidade.7 A descrição do Cristianismo em categorias racistas, a qual entrou no primeiro plano com o nacionalismo alemão pode, portanto, também ser vista como revivência de correntes no Cristianismo primitivo, tanto mais quanto é certo que aqueles que eram engajados no movimento nacional ambicionavam um cristianismo alemão. A eliminação do judaico do Cristianismo motivava uma religião cristã concebida em categorias racistas e a auto-certificação desta como religião étnica. Ao mesmo tempo, foi desfocalizada a influência judaica ao Cristianismo em nascimento, negando ao Judaísmo o status duma religião definindo, no lugar, os judeus como raça e simultaneamente uma luta de raça entre judeus e arianos.
A afinidade entre protestantismo alemão e retórica racista está, porém, ancorada, ainda mais profundamente do que somente em comundades, em opiniões de doutrina determinadas sobre os judeus. Teóricos de raça se ocupam com a definição da natureza espiritual daqueles que estudavam. Walter Wust, professor para ciência de línguas na universidade de Munique e reitor desta de 1941-45, esclareceu, como diretor do centro de pesquisa "Das Ahnenerbe" [A herança dos antepassados] - que fora fundada pelo líder da SS [Schutzstaffel = Escalão de Proteção, uma organização paramilitar nazista] Heinrich Himmler para pesquisar as origens indo-germânicas — a ligação entre raça e religião: "Hoje sabemos que religião é propriamente uma atividade espiritual-corporal e que ela é portanto racista." A religião podia, no contexto da SS, de fato sobreviver somente como fenômeno racista novamente definido.
Pensar racista brota organicamente das dicotomias corpo-espírito, aproveitando-se facilmente da teologia cristã de encarnação. Originalmente, a teoria racista moderna acentuava, não tanto a inferioridade do corpo de determinadas pessoas como degeneração da sua moralidade e mentalidade e a pretensa ameaça que degeneração ("Entartung") tal representa para as raças superiores. Fisionomia nunca está ficando sozinha. Antes, os teóricos de raça modernos viam o corpo como portador da alma, logo de capacidades morais e espirituais. É a ameaça moral e espiritual por raças degeneradas — como por exemplo os judeus — sobre a qual os racistas estavam preocupados. Os corpos degenerados dessas raças, porém, eram portadores das suas mentalidades estragadas, mas não a base do ser degenerado. A carne é, para o pensar racista extremamente importante, porque não é simplesmente só um símbolo para o espírito degenerado. Antes, degeneração moral se encarna dentro do corpo, assim que ambos não podem ser separados um do outro. A relação decisiva entre corpo e alma, que determina o discurso racista moderno, reflete o dilema corpo-alma, a parte coração da metafísica cristã. Exatamente isso é o carimbo que o Cristianismo imprimiu à filosofia ocidental.9 A categoria "raça" revivia outra vez a distinção cristã clássica entre carnalidade do Judaísmo e a espiritualidade do Cristianismo.
A teologia racista levanta, para além do repúdio do Judaísmo no Cristianismo, também a questão pelas semelhanças entre o discurso teológico e o de raça. Esse pode ser lido como discurso religioso de moralidade e espiritualidade. Este pode, pela sua acentuação de moralidade e espiritualidade, também ser lido como discurso religioso. Raça está finalmente ocupada, não com biologia, mas antes com o espírito humano. Teóricos de raça se ocupam com graus da degeneração moral e espiritual e com os perigos que partem daí para a sociedade. Esses perigos se exprimem na anatomia e fisiologia.
O nariz judaico, por exemplo, não é perigoso como tal, mas corporiza - encarna — a decadência moral.
O sangue é, tanto para a raça quanto também para a teologia — de importância central, pois liga espírito e corpo, o humano e o divino, a metáfora e a realidade física. A teologia se move dentro do âmbito do sangue, falando de gradações da transubstanciação como a presença atual ou simbólica do divino na matéria. O racismo postula, igualmente como a teologia, a presença de qualidades morais e e espirituais no sangue, no nariz, na cor da pele, no cabelo e assim em diante, criando assim raça por discurso teológico. É portanto também não para admirar que o nacionalsocialismo, nos primeiros anos, manifestou o seu apoio para a Igreja, p.ex. quando Hitler se apresentava a si mesmo como homem religioso que defendesse a fé cristã contra os inimigos da Igreja, os bolcheviques e os judeus. Hitler usava o Cristianismo manipulativa e bem-pensadamente, sendo encorajado para isso pela nascente teologia de raça.10 Nesse sentido, a teologia do instituto pode ser vista como algo que o Cristianismo tratava com corpo e o nazismo tratava com espírito, isso é como tentativa de encarnar o nazismo no Cristianismo.
Está sendo assumido usual mas falsamente que o racismo moderno defendia a noção duma essência imutável. Imutabilidade biológica, argumenta-se, distingue o racismo moderno de formas de preconceito anteriores. Enquanto a Igreja se desempenhava na sua história pela conversão dos judeus ao Cristianismo, racistas modernos, depois dessa argumentação, recusam a possibilidade da conversão de judeus ao Cristianismo, porque o ser judeu é qualidade biológica que não pode ser aniquilada. Essa suposição, porém, passa por cima da complexidade do pensar racista. Onde quiser que pensamentos racistas se impusessem, sempre se supôs que o status rassico, por exemplo por um matrimônio, se pudesse mudar, razão por que a mistura de raças era assunto central do racismo europeu. No "Terceiro Império", judeus foram rassicamente revalorizados quando casaram com ariano, enquanto arianos pioravam a sua raça por um matrimônio com um judeu. A violação da descendência ariana pura era considerada como algo que, pela contaminação do corpo, podia acontecer facilmente demais. Teoria de raça referia-se portanto, não só à superioridade dos arianos, mas sim também à vulnerabilidade desses por contaminação por raças inferiores e à degeneração que seguiu àquela.
A obra do conde Joseph-Arthur de Gobineau (1816-82), que influenciou Houston Steward Chamberlain, Alfred Rosenberg e Hitler, é um bom exemplo pelo argumento de que mistura de raças efetuou a degeneração dos arianos europeus.
O medo ariano de pureza rassica comprometida que se expressou em leis severas que proibiam relação sexual com não-arianos, mostra que se cria que relações sexuais fossem responsáveis por mudanças, que pudessem suceder até sem concepção ou reprodução. Isso chega a ser claro no livro bestseller "O pecado contra o Sangue" de Artur Dinter, no que crianças de um par ariano foram deterioradas porque a sua mãe muitos anos antes tinha uma relação sexual a um judeu, pela qual o seu sangue foi contaminado a longo prazo.
Dinter era ativo em política nacional nazista na Turíngia durante a década dos 1920. Era membro da NSDAP [Nazionalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei = Partido Nacional-Socialista de Trabalhadores, o partido nazista na Alemanha] com o número 5 servindo como Gauleiter [gerente de distrito] do partido na Turíngia, mas foi, em 1928, excluído do partido.
Nos teóricos modernos de raça e dos seus popularizadores literários, formiga para assim dizer de tais fantasias sobre a perda da pureza rassica-espiritual via o corpo. Nos sistemas religiosos, a vulnerabilidade do sangue ariano para o ser deteriorado com semente judaica reflete a vulnerabilidade da santidade pelo profano. Isso ilustra que a instabilidade da raça, mas não a sua imutabilidade, está no centro da sua invenção. Ann Stoler chega, no seu trabalho sobre raça e colonialismo à conclusão seguinte: "A força do discurso racico jaz exatamente na vista dupla, que o permite, a saber no fato de que combina imaginações de consistência e capacidade de fluir num modo fundamental para a sua dinâmica." Nenhum ariano era imune contra judaização ("Verjudung"), nem o nazista apaixonado. De fato a acusação de pensar judaico (por vezes chamado de "farisaico") foi freqüentemente levantada, quando simpatizantes nazistas presunçosos trocavam acusações entre si.
Por exemplo, Hans von Soden, professor para Novo Testamento na universidade de Marburg e adversário dos Deutsche Christen [Cristãos Alemães], num panfleto privadamente impresso, chamou o livro de Grundmann "Jesus o Galileu" uma peça de erudição "farisaica", porque tentou construir Jesus como um ariano. Grundmann, por sua vez, culpou ideólogos anti-cristãos nazistas pela afirmação deles de que Jesus era judeu, de terem sido judaizados ("verjudet") pelo filósofo judaico do século 18, Moses Mendelssohn.
O que aumentou o relacionamento entre teologia e raça, é a questão do sangue, que ligava teologia cristã e discursos racistas. Pelo sangue a raça está sendo, segundo a maioria dos discursos de raça do tempo nazista, transportada e transferida. E também é o sangue que pretensamente conduz consigo o sexo e o transfere. No centro simbólico está o sangue de Jesus, o qual está tanto salvador quando sacramental, e isso porque ele o derrama e o fiel o engole na eucaristia. A centralidade do sangue, tanto para a narrativa cristã quanto a nazista, permitia um parentesco entre os dois sistemas de pensar, mas deu também ao mesmo tempo motivo para briga e conflitos. No nacionalsocialismo, era-se fixado e determinado pelo sangue, assim que não havia nenhuma possibilidade para mudança ou conversão. O entendimento luterano da transubstanciação era, porém, menos estrito: O vinho não era o sangue real, embora se tratasse da presença real de Cristo no vinho e na hóstia. Poder-se-ia achar que a eucaristia foi, com o surgimento do nazismo, novamente determinada, para lhe dar um significado mais firme e menos simbólica, isso é: fazer a definição de sangue mais rígida, pondo-a em consonância com a teoria de raça. Mas definições novas da eucaristia não tiveram lugar. A atitude anti-doutrinária dos Deutsche Christen não se referia ao melhoramento de dogmas tradicionais. A eucaristia foi celebrada nas igrejas protestantes durante o "Terceiro Império" de modo plenamente convencional, também nas igrejas que foram gerenciadas por Deutsche Christen.
Como religião de encarnação, o Cristianismo se encontra na crista estreita entre humano e divino, entre carnal e espiritual e entre judaico e cristão. Essa instabilidade foi trazida à luz pelo historismo teológico e por perguntas de teólogos judaicos do século 19: Onde começa o Cristianismo propriamente termina o Judaísmo? A pessoa de Jesus está nisso o centro de rotação e de pólo: Ele é ao mesmo tempo judeu e fundador do Cristianismo. Jesus começa a sua vida como judeu, mas o termina com cristão. O Cristianismo é somente alcançado, assim o implica o narrativo da vida de Jesus, por um processo de surgimento, por uma limpeza religiosa, a qual tenta livrar o judaico do cristão. Esse judaico, o que está plenamente carnal nem plenamente espiritual, apresenta uma ameaça indeterminada, vaga. Pois o judaico não pode depois eliminar nem o corpo nem o espírito, penetrando pelo um no outro, assim que suje o corpo ou o espírito pela decomposição do espírito. A pureza do eu pode ser alcançada pela cristianização do eu, o que significa abolição do judaico, e isso exatamente como uma limpeza do judaico caracteriza a criação do cristão. Daí, o surgimento da teologia racista protestante nos primeiros decênios do século 20 deveria ser visto, não somente como resposta ao desenvolvimento político na Alemanha, mas sim como confirmação da aporia de Jesus, o judeu, que era o primeiro cristão.
O historismo teológico era fascinado pela possibilidade de poder fixar a data das origens cristãs. Mas "como não é possível traçar uma fronteira claramente definida entre realidade e imaginação", como James Donald disse, também as reconstruções do Cristianismo primitivo são sempre imaginativas e sempre, para falar com Michel de Carteau, um rumor: "Lugares em que andam fantasmas são os únicos nos quais pessoas humanas possam viver." As raízes do projetos de desjudaização do instituto são altamente imaginativos, podendo ser seguidas para trás até às questões pela identidade de Jesus, as quais já foram levantadas já nos primeiríssimos momentos da auto-informação cristã-teológica.
Mas a questão pela identidade de Jesus chegou a ser ainda mais fundamental e palpitante quando se começava examinar historicamente as origens do Cristianismo no século 19, e isso no quadro da recusa da doutrina de fé e do sobrenatural. A teologia era para ser fundada no Jesus histórico, no seu comportamento e nas suas doutrinas. Enquanto então muitos fatores políticos, sociais e econômicos contribuíam para a subida do anti-semitismo na Alemanha moderna, surgiu também, como resultado do processo teológico interno no Cristianismo o Jesus ariano. Simultaneamente, trouxe à luz uma conseqüência do método histórico-crítico da teologia protestante liberal.
Não era, porém, tarefa simples afastar o judaico do cristão. Junto com outros nazistas, Alfred Rosenberg percebera a dificuldade dessa tarefa e levou os esforços dos teólogos cristãos ao ridículo. Afirmou que sobrasse nada, quando se afasta o judaico do cristão. Até os membros do instituto não estavam de acordo sobre a resposta à questão de que então seria exatamente o judaico que precisasse ser eliminado. O Antigo Testamento para fora da Bíblia? O judaico para fora de Jesus? Paulo para fora do Novo Testamento? O hebraico do livro dos cantos? A tarefa era imensa. Com cada esforço surgia uma tarefa nova.
Em novembro de 1933, a exortação do diretor dos Cristãos Alemães Berlinenses, Reinhold Krause, de que o Antigo Testamento seria para ser repudiado, chocou; menos perturbadora era em 1039 a declaração de Jesus para ser ariano; e ao redor de 1942, quando o assassínio nos judeus corria, a eliminação do Judaísmo não era mais de interesse central, sendo substituída por tentativas de produzir uma síntese do teutônico com aquilo que sobrava do "cristão" "desjudaizado".
Enquanto as origens racicas do sangue de Jesus não eram bastante certas para poderem ser declaradas arianas, a identidade de Paulo não deixou uma indeterminação tal. Como Paulo, nos seus próprios escritos, se designava como judeu e fariseu, uma conversão de Paulo ao Cristianismo era inaceitável segundo o esquema racista dos nazistas, o qual declarou impossível que um judeu se pudesse dispensar do seu ser judeu. Mas uma recusa de Paulo teria minado a teologia cristã e especialmente a obra de Martinho Lutero, cuja afinidade a Paulo representava um dos fundamentos da Reforma. A observação rigorosa do método histórico-crítico, o qual era central para o trabalho do movimento dos Cristãos Alemães, era uma ajuda no demascar o judeu Jesus fazendo visível o ariano autêntico. Mas os mesmos métodos forçavam para o reconhecimento do fato de que Paulo era invariavelmente um judeu. Além disso, os Cristãos Alemães aceitaram os métodos da escola de história de religião, mas o interesse teológico desviado da doutrina paulina e virado a Paulo como a um indivíduo religioso. Assim, atenção ulterior à formação espiritual de Paulo nos fariseus, ao ambiente histórico, bem como ao seu fundo de formação e o ambiente cultural daquele tempo.
As "tentativas de desjudização" no nível teológico eram finalmente um empreendimento inútil. Mas o próprio empreendimento tinha conseqüências que foram longe além do movimento dos Cristãos Alemães. Em consideração entra aqui o efeito que propaganda anti-semita desenvolvia. Em disfarce religioso, dentro da sociedade nazista, a qual pretendia a produzir uma Europa "limpa de judeus". Outra conseqüência é o efeito ao discurso teológico depois da guerra o qual, embora se abstivesse das exortações para a eliminação do judaico, nem por isso continuava alguns das mesmas pressuposições referentes à natureza religiosamente deteriorada do Judaísmo e da adversidade de Jesus contra aquela. Ambos os aspetos apontam inexoravelmente ao significado mais profundo de que a teologia cristã se batia com vergonha sobre as suas origens no Judaísmo.
O Jesus ariano era polissêmico. Segurava a identidade alemã, rejeitando os judeus. Com isso participava numa tradição longa de teologia cristã, a qual definia o Cristianismo em condição ao Judaísmo. O instituto assumia essa tradição teológica, enriquecia-a com o anti-semitismo da década dos 1930, empacotando-a novamente como teologia cristã tanto para o regime nazista quanto para a Igreja.
Como teologia anti-semita podia sobreviver o Terceiro Império e (sem a palavra "ariano", pois essa era deixada cair depois de 1945) e entrar na Alemanha depois-guerra, como se seria um pensar cristão legítimo. A ficção de que a Igreja estava em oposição ao nacionalsocialismo e de que os nazistas eram anticristãos permitiam aos teólogos esquivar-se do exame exato, ao qual outras tradições e instituições culturais alemãs depois da guerra se precisam submeter.