sábado, 15 de outubro de 2011

Raymond Brown, James Charleswort e o estigma da exclusão das Sinagogas


A comunidade joanina nasceu com pessoas que estavam sofrendo com a restauração do judaísmo depois da destruição do Templo (ano 70 d.C.) e o sínodo de Jâmnia (80 d.C.) Este grupo de fariseus/judeus refaz e reconstrói o judaísmo a partir exclusivamente da Lei, em perspectiva farisaica e deuteronomista, negando, portanto, que Jesus seja a “consumação perfeita” messiânica de Deus. Os textos de Jo 9,22; 12,42; 16,2 nos mostram o quanto o Jesus joânico reprova os judeus e seu desconhecimento de Deus (5,37-47; 8,19.55) e o quanto os judeus também tornam evidente sua não-aceitação a Jesus numa atitude agressiva: a exclusão da sinagoga judaica.


Embora os judeus ocupem um lugar de destaque no Quarto Evangelho, o evangelista parece ter uma aversão odiosa sem limites para com eles. Quem são afinal os judeus no Quarto Evangelho? O autor do evangelho era anti-semita? Neste artigo tentaremos distinguir e definir quem são os judeus do Quarto Evangelho e o que foi a exclusão da sinagoga para a comunidade joanina.


É indiscutível que “os judeus” desempenhem um papel importante. Assim o confirma o surpreendente dado estatístico segundo o qual o evangelho menciona “os judeus” em 70 passagens, 33 das quais eles aparecem como os inimigos de Jesus. Este dado é tanto mais chocante quando se tem em conta que esta expressão aparece muito raramente nos Sinóticos: 5 vezes em Mateus, 6 vezes em Marcos e 5 vezes em Lucas. A maior parte dos textos em que se fala dos judeus no Quarto Evangelho é para indicar os opositores de Jesus e seus discípulos. Por outro lado, encontramos textos que falam dos judeus de um modo geral, para se referir aos seus costumes, suas leis ou sua religião.


Tanto os personagens positivos quanto os negativos são judeus. Daí que o termo “judeu” no Quarto Evangelho não designa uma etnia, nem uma cultura, nem um povo. Quando usado por João com conotação adversativa, este termo não indica os judeus em geral – presentes tanto na Judéia como na Galiléia – para falar dos seus costumes, suas leis ou sua religião, mas se refere aos opositores de Jesus e seus discípulos: um grupo especial no ambiente judaico que tem peso político e social e até certo poder de decisão; uma ideologia que está tomando corpo numa estrutura de poder. Ao usar o termo “os judeus” em sentido hostil, o escritor joanino aponta o grupo judaico dominante, quer no tempo de Jesus, quer no tempo das comunidades joaninas (constituídas de judeus e não judeus). O problema é que João não distingue estes dois momentos e projeta anacronicamente a situação ulterior sobre a narrativa do ministério de Jesus. Funde em um só horizonte o ano 30 d.C. e o ano 90 d.C.4 Porém, não há razão para deduzir, do uso deste termo, que o Evangelho de João seja anti-judaico. É que João usa o termo para expressar: o povo judeu, os habitantes da Judéia, as autoridades judaicas; e meio século mais tarde, o novo judaísmo, enquanto oposto aos seguidores de Jesus.


Os textos que mencionam os judeus de forma pejorativa encontram-se, sobretudo, nos capítulos 5-10 e 18-19. As razões desta tomada de posição são claras: a messianidade de Jesus, sua origem, suas pretensões, sua conduta em relação ao sábado e, mais grave, Jesus se apresenta como “Um com o Pai” (8,52; 10,30.31).


Encontramos diversos grupos entre os judeus e dentre estes há um grupo opositor que não crê em Jesus (7,48; 9,39-41; 10,25; 12,37). Portanto, quando se diz que a “luz brilha”, sem que as trevas apreendam, que a luz veio ao mundo, sem que o mundo a conheça, ou que veio entre os seus e os seus não a receberam, está se falando de um grupo que recusa a verdade que Jesus veio proclamar. Embora o autor do evangelho não se refira explicitamente a um grupo concreto no tempo de Jesus, porque às vezes se fala do povo, outras dos judeus, outras dos fariseus e, finalmente, do Sinédrio. Podemos identificar este grupo como sendo o círculo de “judeus” e fariseus que estão em volta do Templo e do culto oficial, ou seja, as autoridades político-religiosas judaicas (1,19; 2,18; 5,10; 5,15; 7,13; 8,22; 8,59; 9,40-41). No fundo, o evangelho nos diz daqueles que levaram Jesus à cruz. Eles são exatamente os seus contemporâneos: os que não aceitam Jesus, os “judeus” de seu tempo, herdeiros do farisaísmo que se impôs depois da queda de Jerusalém, quando se reuniram em Jâmnia.


Com efeito, uma das políticas das lideranças de Jâmnia foi justamente a culpabilização do povo judeu, imperfeito no cumprimento da lei mosaica segundo os mesmos, pela destruição do Templo. A crença na messianidade de Jesus foi interpretada pelos fariseus como infidelidade à lei, como heresia. A reação da comunidade joanina se expressa em termos de desprezo pela autoridade farisaica e de rechaço ao “Judaísmo” por eles apregoado.


Este referencial da sinagoga com poderes políticos sobre a comunidade judaica e com possibilidade de mobilizar poderes civis e militares contra seus dissidentes, real no reinado de Agripa II faz com que o Quarto Evangelho deva ser examinado no contexto cultural – religioso da comunidade judaica siro-palestinense, profundamente marcada pelo trauma da Guerra Judaica, pela fragmentação ideológica, pela pressão do movimento unificador sediado em Jâmnia – enfim, uma coletividade marcada pelo medo.


Isso não implica em dizer que a comunidade joanina hauria todo seu conhecimento do judaísmo, daquilo que era ensinado e praticado nas sinagogas dos anos 80. Ao contrário: se houve conflitos entre ambas as instâncias, o motivo provavelmente terá sido a discordância a respeito da interpretação de pontos específicos da tradição judaica, realizada de forma diferente por judeus da sinagoga e por judeus da comunidade joanina. Deve-se tomar a sinagoga como referencial sócio-político, mas não necessariamente como seu referencial cultural – religioso. O substrato cultural possivelmente seria o mesmo, ou muito próximo, mas cada segmento fez sua leitura particular dos dados recebidos. Afinal, não teria a comunidade joanina compreendido a si mesma como um novo movimento religioso, autônomo tanto em relação à sinagoga quanto a outros grupos cristãos?


Os “judeus” representam, portanto, também a sinagoga judaica que sucedeu ao grupo do Templo. É aqui que se pode compreender a importância do momento histórico em que foi escrito o evangelho. A incredulidade descrita e as discussões de Jesus com os “judeus” estão mais centradas na problemática do tempo do autor do que na do tempo de Jesus.


Segundo J. Louis Martyn, temos que ler o Evangelho de João num nível duplo: o nível da vida de Jesus e o nível da presença poderosa deste Jesus no âmbito de sua comunidade. O Evangelho de João reflete um estágio inicial de banimento no judaísmo formativo. O ponto de partida do trabalho de Martyn é a expulsão dos cristãos da sinagoga, que ele classifica como dado anacrônico, pois esta medida contra os cristãos só foi executada a partir dos anos 90 d.C. Sua aplicação à vida de Jesus é um indício de que outros dados semelhantes podem ser mais um reflexo dos problemas e preocupações da comunidade joanina do que dados históricos sobre Jesus. É preciso ler o Quarto Evangelho à luz de vertentes outras do mundo e da cultura judaica, não representadas pelos fariseus nos anos pós-Guerra Judaica, mas sem deixar de se perguntar sobre a originalidade do cristianismo joanino em relação a estas outras formas culturas religiosas.


Para Klaus Wengst, ainda que o Jesus do Evangelho de João apresente as Escrituras, Moisés e a Lei a seu favor e ainda que o mesmo se qualifique como judeu, fala, no entanto, em “vossa Lei” (8,17; 10,34), como se tampouco ele não fosse judeu. Também chama seus antepassados do deserto de “vossos pais” (6,49). É indiscutível que esta distância que estabelece no evangelho e que apresenta o judaísmo como alheio a Jesus não concorde com a realidade do Jesus terreno. Este tipo de exposição é compreensível, em compensação, como expressão do contraste entre judaísmo e cristianismo da época do evangelista. A mesma distância acontece quando este fala da “páscoa dos judeus” (2,13; 6,4; 11,55), da “festa dos judeus” (5,1; 6,4) e da “purificação dos judeus” (2,6). O julgamento aparece aqui como um coletivo religioso bem definido frente a Jesus – e é, no plano do evangelista, frente à comunidade que aceita e crê – com sua Escritura, festas e costumes.


Para Harold Bloom, entre todos os evangelhos, o de João parece exibir o tom mais angustiado, e a modalidade dessa angústia apresenta uma natureza que ele consideraria tão literária quanto existencial ou espiritual. Sinal dessa angústia para ele é a diferença palpável entre a atitude de Jesus, em relação a si mesmo, no Quarto Evangelho, comparada àquela que observada nos outros três: “O Jesus de João demonstra certa obsessão com a própria glória, de modo especial, com o que deve constituir essa glória no contexto judaico.”


O evangelho, no entanto, não somente marca as distâncias da comunidade cristã frente ao judaísmo, como também fala de uma profunda hostilidade. Essa hostilidade põe em evidência o quanto o Jesus joânico reprova os judeus e seu desconhecimento de Deus (5,37-47; 8,19.55), o quanto os judeus também tornam evidente sua não-aceitação a Jesus com uma atitude agressiva. Por isso, a incredulidade é definida como fazer obras contra luz.


Quer dizer, a incredulidade e a hostilidade dos judeus não são simplesmente um não permitir que a revelação ilumine a vida deles, mas tendem a aniquilar a revelação ou, aniquilar Jesus. Daí a perseguição sistemática a Jesus até sua morte de cruz.


A comunidade joanina viveu forte conflito com o império romano e com as autoridades judaicas. Estes são os representantes supremos da oposição e do ódio contra Jesus. Ao romper com o sistema baseado no cumprimento rigoroso da Lei, ameaça a autoridade dos judeus/fariseus. Então, os cristãos são expulsos da sinagoga e começam a ser perseguidos. A primeira medida que os judeus tomaram em relação aos primeiros seguidores de Jesus parece haver sido a exclusão e a expulsão da sinagoga.


Embora não esteja claro que este seja um acontecimento produzido no tempo de Jesus, indica que aqui aflora um problema crucial que já delineava o tempo de Jesus. A primeira vez em que aparecem as autoridades judaicas excluindo e conseqüentemente expulsando alguém da sinagoga é em 9,22, no contexto da Narrativa da Cura do Cego de Nascença. Primeiro estas autoridades são mencionadas como fariseus e depois como judeus e aparecem ostentando um poder autoritativo. Estes judeus investidos de autoridade chamam a julgamento, segundo 9,18-23, os pais do ex-cego e os interrogam acerca de seu filho que fora curado por Jesus. Perguntam a eles sobre como o filho deles recuperou a visão. Os pais confessam sua ignorância dizendo que ele é maior de idade e pode falar por si mesmo. Os pais falaram assim porque temiam os dirigentes judeus, que já haviam combinado de expulsar da sinagoga quem a Cristo confessasse como o messias. Depois de sua confissão indireta de Jesus em 9,30-33, o cego curado aparece em 9,34 sendo expulso da sinagoga.


Segundo Schnackenburg, a expressão expulsão (9,34) poderia significar simplesmente um afastamento do lugar de reunião, porém, em relação a 9,22, por uma parte, e a confissão explícita posterior do ex-cego, por outra, prova que o evangelista se refere a uma exclusão da sinagoga. Também em 9,22 chama a atenção a frase de que os pais do ex-cego “temiam os judeus”, como se eles mesmos também não fossem judeus. Isto nos mostra por quanto o evangelista não apresenta os pais do ex-cego como seguidores de Jesus. Os judeus aparecem, pois, nesta passagem com poder autoritativo que procede severamente contra os dissidentes de seu próprio campo. Especialmente significativo é o advérbio “já”, que aponta que a pena já era aplicada no tempo de Jesus, porém não há nenhum documento que comprove esta expulsão. Contudo, a sanção era conhecida e aplicada no tempo do evangelista, como indica claramente o advérbio “já”.


Também no capítulo 20,19 se diz que os discípulos reunidos em uma casa ao anoitecer da páscoa tinham as portas fechadas por “medo dos judeus”. Esta frase referindo-se ao contexto histórico dos discípulos de Jesus mostra um resultado muito estranho: parece dizer que estes discípulos não eram judeus. A frase encontra todo o sentido quando se é transferido ao plano histórico do evangelista, se sua comunidade se viu realmente submetida à prepotência de um judaísmo hostil e excludente.


Uma segunda passagem em que encontramos a expressão expulsão é 12,42: “Contudo, muitos chefes creram nele, mas, por causa dos fariseus, não o confessavam, para não serem expulsos da sinagoga.” Neste texto aparecem os fariseus exercendo uma autoridade que não possuíam no tempo de Jesus. Tampouco esta frase é aplicada à época anterior ao ano 70 d.C. Tem sentido, em compensação, quando se aplica ao tempo do evangelista, pois sua comunidade contava com simpatizantes da classe dirigente que evitavam um reconhecimento público por medo dos judeus/fariseus e suas conseqüências.


Temos como exemplos judeus que acreditavam em Jesus (Jo 2,23; 8,31; 12,10-11), porém não têm coragem de manifestar sua fé publicamente por medo dos judeus e também porque não querem abrir mão de seus privilégios e status social. É o caso de Nicodemos e José de Arimatéia, pessoas importantes na comunidade judaica. A fé em Jesus é motivo para que o judaísmo de orientação farisaica decretasse a exclusão da sinagoga.


A terceira passagem é 16,2, uma predição que Jesus tem ao despedir-se de seus discípulos: “Expulsar-vos-ão das sinagogas.” Parece claro que a exclusão da sinagoga não é uma medida que faz referência à época de Jesus. O evangelista tem presente um problema instigado no seu tempo. O contexto o confirma: os versículos 1 e 4 assinalam que Jesus predisse a seus discípulos o ódio que iria desencadear sobre eles e conferem a esta predição um caráter de consolo: “Digo-vos isto para que não vos escandalizeis”. E conclui: “Mas vos digo tais coisas para que, ao chegar a sua hora, vos lembreis de que vô-las disse.” Porém, isto somente pode significar que a comunidade do evangelista seja objeto de ódio por reconhecer a Jesus como o messias e o evangelista trata de consolar-lhes fazendo-os compreender que as tribulações que os afetarão não são o fruto de uma cega fatalidade, mas que já foram preditas e anunciadas por Jesus. E o versículo 3 indica o verdadeiro motivo da conduta de seus perseguidores: “E isso farão porque não reconheceram o Pai nem a mim.” Agora, bem dentro das medidas concretas que afetam aos discípulos de Jesus: “Vos expulsarão da sinagoga.” Por isso, a expulsão da sinagoga é uma experiência dolorosa para a comunidade joanina. E porque a comunidade sofre com esta experiência, o evangelista assinala que Jesus a havia predito.


Além disso, 16,2 assinala outra medida complementar e ainda mais extrema: “virá a hora em que aquele que vos matar julgará realizar ato de culto a Deus.” Deixa claro, pelo contexto, que o evangelista tem presente uma experiência que a sua comunidade está vivendo. Essa experiência consiste em que o evangelista faz referência aos judeus enquanto sujeitos ativos, como, por exemplo, com poder de expulsar alguém da sinagoga. E isto, porque condenar os cristãos à morte pressupõe uma suposta obediência a Deus. Então, também fica claro que as vítimas são judeus cristãos e que a ocasião entendida como obediência a Deus só tem sentido – sob a óptica judaica – tratando-se de judeus renegados.


Na prática, a expressão expulsão deve significar uma excomunhão e ter sido uma medida disciplinar adotada pela sinagoga e que, portanto, tinha um limite temporal. Porém, as passagens do Quarto Evangelho mostram uma medida muito mais rigorosa. Trata-se de uma separação, de uma exclusão total da comunidade de fé judaica, como mostra claramente em 16,2, onde se fala inclusive de sentença de morte.


De acordo com Overmam, no período fluído que deu origem ao judaísmo formativo, uma série de facções competia por influência e controle. A possibilidade de excluir dissidente indica que aqueles que excluem possuem um grau de autoridade no ambiente em que o banimento é aplicado. O grupo que pratica a exclusão também precisa ter uma identidade suficientemente bem definida para poder entrar em um acordo quanto ao que constitui uma violação grave, a ponto de merecer exclusão. Porém, uma série de comunidades sectárias do judaísmo havia atingido claramente este estágio decisivo de definição e organização. Quando o banimento é praticado, significa que a comunidade, de uma forma ou de outra, atingiu um consenso quanto ao que ela é e o que ela representa. O judaísmo formativo desenvolveu a prática institucional do banimento, que protegia o grupo.


Um dos procedimentos adotados e que evoluiu no judaísmo formativo tem referência à recepção da birkat hamminin (a bênção dos hereges), eufemismo para designar a maldição dos dissidentes. Esta representa a décima segunda de dezoito bênçãos pronunciadas na sinagoga, as chamadas Amidah. Teve sua elaboração ligada ao concílio de Jâmnia e vai se consolidando no final do século I, porém sua redação, segundo autores modernos, é do século II. Esta bênção, que tradicionalmente incluía uma maldição dos inimigos de Deus (“que toda maldade pereça, de repente”), teve sua maldição assim reformulada: “Para os apóstatas, que não haja esperança. O domínio da arrogância elimine rapidamente em nossos dias. E deixa os nazarenos e os minim perecer em um momento. Deixa-os ser apagados do livro da vida. E que não sejam escritos junto com os justos”.


Os judeus cristãos, que tinham que ficar em silêncio enquanto a congregação recitava a nova fórmula, foram obrigados a retirarem-se. Não podiam beneficiar-se do “amém” comum da comunidade, ou sequer rezarem esta benção como recitadores nas assembléias da sinagoga. Porém, a remodelação do judaísmo não se inicia com a redação da birkat hamminin, que somente marca uma etapa neste processo. Por isso, as passagens expulsão da sinagoga do Quarto Evangelho se referem provavelmente à estigmatização dos judeus cristãos como hereges pela ortodoxia farisaica em processo de formação; pois esta estigmatização tinha como conseqüência a expulsão da comunidade sinagogal.


O desenvolvimento do judaísmo depois do ano 70 d.C., que atua contra a comunidade joanina e também contra outras correntes, explica a imagem que temos dos judeus no Evangelho de João como uma retrospecção desta época à época de Jesus. A expulsão da sinagoga não tinha somente conseqüências religiosas para os dissidentes, mas também era um ato que alterava substancialmente todas as circunstâncias da vida.


Por esse motivo, a exclusão e a separação do judaísmo era um momento de treva para quem proclamava Jesus como messias. Os dissidentes ficavam sem proteção, sem trabalho, sem relações sociais e comerciais, separados de sua tradição religiosa, dos serviços e ritos religiosos. Portanto, sem a religião judaica farisaica, permitida pela lei do império, os judeus cristãos deveriam assumir outra religião que fosse reconhecida pelos romanos, caso contrário, seriam vistos como inimigos. A situação da comunidade joanina era de muita insegurança. De um lado, as autoridades religiosas e do império mantinham sobre ela uma vigilância continua. De outro lado, a multidão passou a ver os dissidentes cristãos como pessoas suspeitas, gente perigosa.


Quanto à “expulsão dos cristãos joaninos da sinagoga” (9,22; 12,42; 16,2), há muito tratada como causa polêmica anti-judaica, podemos dizer que não temos como datar semelhante “expulsão”, uma vez que as sinagogas já existiam antes do ano 70 a.C. Também aludir à oração das dezoito bênçãos (birkat hamminin), ligada ao sínodo de Jâmnia, com oração aos Minim (cristãos), como é usual fazer, parece-nos não ser o mais correto. Assim sendo, a expressão expulsar da sinagoga dos textos supracitados refere-se possivelmente a um conflito local entre a comunidade joanina e os seus vizinhos judeus. No contexto histórico de Jesus, somente cabe pensar em expulsão simples da sinagoga, que tinha duração de 30 dias. Mas de modo algum se deve compreender como decreto de excomunhão de todo o cristianismo por parte do novo judaísmo de Jâmnia. Assim sendo, o judaísmo não pode ser responsabilizado exclusivamente pela ruptura entre judaísmo e cristianismo. Na compreensão dos textos joaninos anti-judaicos, há que não se confundir entre a intenção do autor e respectivos destinatários reais e implícitos e a compreensão dos mesmos textos ao longo do tempo.



quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O Evangelho de Tomé

O Evangelho de Tomé, preservado em versão completa num manuscrito copta em Nag Hammadi, é uma lista de 114 ditos atribuídos a Jesus. Alguns são semelhantes aos dos evangelhos canônicos de Mateus, Marcos, Lucas e João, mas outros eram desconhecidos até a descoberta desse manuscrito em 1945. Tomé não explora, como os demais, a forma narrativa, apenas cita - de forma não estruturada - as frases, os ditos ou diálogos breves de Jesus a seus discípulos, contados a Tomé o Gêmeo, sem incluí-los em qualquer narrativa, nem apresentá-los em contexto filosófico ou retórico. Duas características marcantes do Evangelho de Tomé, que o diferenciam dos canônicos, são a recomendação de Jesus para que ninguém faça aquilo que não deseja ou não gosta e a ênfase não na fé, mas a descoberta de si mesmo.

Uma boa discussão, em língua portuguesa, sobre esse evangelho encontra-se no livro "Além de Toda Crença: O Evangelho Desconhecido de Tomé", da historiadora Elaine Pagels, que defende a tese de que o Evangelho de João teria sido escrito para refutar o de Tomé. Obtém-se nesse livro proveitosa aula sobre o início do Cristianismo e entende-se melhor a escolha dos evangelhos canônicos e a posterior rejeição aos demais, tratados como "heréticos".

O escritor brasileiro Isaque de Borba Corrêa defende uma interessante tese baseada em antigas cartas de jesuítas, nas quais se relata a presença desse apóstolo na América. Segundo Corrêa, mais de vinte jesuítas peregrinaram pelas Américas em busca das informações que o santo teria legado a seus sucessores. Isaque advoga a tese de que São Tomé teria não apenas viajado até a Índia, como teria estendido seu périplo às "Índias Ocidentais", atual América.

Segundo a tradição, São Tomé teria partido para as Índias acompanhado de João Crisóstomo. O escritor Panteno, segundo Eusébio, também esteve na Índia e conversou com Crisóstomo, mas não comentou sobre Tomé. O Padre Simón, na Colômbia, foi conduzido por um índio até uma gravura em pedra, na qual estavam gravadas as imagens de três homens, cada um contendo uma inscrição que Simón não teria conseguido traduzir. O ingênuo nativo traduziu-as para o jesuíta, explicando que as inscrições eram os nomes de cada um deles: João Crisóstomo, Tomé e Engélico. Eram figuras humanas que usavam barba, batina e sandálias. A figura central, Tomé, trazia na mão algo parecido com um livro. Isaque afirma que as pesquisas acerca da estada desse santo na América não prosperaram em virtude de um decreto emitido pelo Papa Urbano VIII, que considerou tal propósito uma heresia. Temendo um processo inquisicional por parte do Tribunal do Santo Ofício, os jesuítas recuaram em seu propósito e abandonaram as pesquisas.

Texto Gnóstico encontrado em Nag Hammadi, Egipto

Estas são as palavras secretas que Jesus o Vivo proferiu e que Dídimo Judas Tomé escreve:

(1) E ele disse: "Quem descobrir o significado interior destes ensinamentos não provará a morte."

(2) Jesus disse: "Aquele que busca continue buscando até encontrar. Quando encontrar, ele se perturbará. Ao se perturbar, ficará maravilhado e reinará sobre o Todo."

(3) Jesus disse: "Se aqueles que vos guiam disserem, ‘Olhem, o reino está no céu,’ então, os pássaros do céu vos precederão, se vos disserem que está no mar, então, os peixes vos precederão. Pois bem, o reino está dentro de vós, e também está em vosso exterior. Quando conseguirdes conhecer a vós mesmos, então, sereis conhecidos e compreendereis que sois filhos do Pai vivo. Mas, se não vos conhecerdes, vivereis na pobreza e sereis essa pobreza."

(4) Jesus disse: "O homem idoso não hesitará em perguntar a uma criancinha de sete dias sobre o lugar da vida, e ele viverá. Pois muitos dos primeiros serão os últimos e se tornarão um só."

(5) Jesus disse: "Reconheça o que está diante de teus olhos, e o que está oculto a ti será desvelado. Pois não há nada oculto que não venha ser manifestado."

(6) Seus discípulos o interrogaram dizendo: "Queres que jejuemos? Como devemos orar? Devemos dar esmolas? Que dieta devemos observar?"

Jesus disse: "Não mintais e não façais aquilo que detestais, pois todas as coisas são desveladas aos olhos do céu. Pois não há nada escondido que não se torne manifesto, e nada oculto que não seja desvelado."

(7) Jesus disse: "Bem-aventurado o leão que se torna homem quando consumido pelo homem; maldito o homem que o leão consome, e o leão torna-se homem."

(8) E ele disse: "O homem é como pescador sábio que lança sua rede ao mar e a retira cheia de peixinhos. O pescador sábio encontra entre eles um peixe grande e excelente. Joga todos os peixinhos de volta ao mar e escolhe o peixe grande sem dificuldade. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça."

(9) Jesus disse: "Eis que o semeador saiu, encheu sua mão e semeou. Algumas sementes caíram na estrada; os pássaros vieram e as recolheram. Algumas caíram sobre rochas, não criaram raízes no solo e não produziram espigas. Outras caíram em meio a um espinheiro, que sufocou as sementes e os vermes as comeram. E outras caíram em solo fértil e produziram bons frutos; renderam sessenta por uma e cento e vinte por uma."

(10) Jesus disse: "Eu lancei fogo sobre o mundo, e eis que estou cuidando dele até que queime."

(11) Jesus disse: "Este céu passará, e aquele acima dele passará. Os mortos não estão vivos e os vivos não morrerão. Nos dias em que consumistes o que estava morto, vós o tornastes vivo. Quando estiverdes morando na luz, o que fareis? No dia em que éreis um vos tornastes dois. Mas quando vos tornardes dois, o que fareis?"

(12) Os discípulos disseram a Jesus: "Sabemos que tu nos deixarás. Quem será nosso líder?"

Jesus disse-lhes: "Não importa onde estiverdes, devereis dirigir-vos a Tiago, o justo, para quem o céu e a terra foram feitos."

(13) Jesus disse a seus discípulos: "Comparai-me com alguém e dizei-me com quem me assemelho."

Simão Pedro disse-lhe: "Tu és semelhante a um anjo justo."

Mateus lhe disse: "Tu te assemelhas a um filósofo sábio."

Tomé lhe disse: "Mestre, minha boca é inteiramente incapaz de dizer com quem te assemelhas."

Jesus disse: "Não sou teu Mestre. Porque bebeste na fonte borbulhante que fiz brotar, tornaste-te ébrio. (128) E, pegando-o, retirou-se e disse-lhe três coisas. Quando Tomé retornou a seus companheiros, eles lhe perguntaram: "O que te disse Jesus?"

Tomé respondeu: "Se eu vos disser uma só das coisas que ele me disse, apanhareis pedras e as atirareis em mim, e um fogo brotará das pedras e vos queimará."

(14) Jesus disse-lhes: "Se jejuardes, gerareis pecado para vós; se orardes, sereis condenados; se derdes esmolas, fareis mal a vossos espíritos. Quando entrardes em qualquer país e caminhardes por qualquer lugar, se fordes recebidos, comei o que vos for oferecido e curai os enfermos entre eles. Pois o que entrar em vossa boca não vos maculará, mas o que sair de vossa boca – é isso que vos maculará."

(15) Jesus disse: "Quando virdes aquele que não foi nascido de uma mulher, prostrai-vos com a face no chão e adorai-o: é ele o vosso Pai."

(16) Jesus disse: "Talvez os homens pensem que vim lançar a paz sobre o mundo. Não sabem que é a discórdia que vim espalhar sobre a Terra: fogo, espada e disputa. Com efeito, havendo cinco numa casa, três estarão contra dois e dois contra três: o pai contra o filho e o filho contra o pai. E eles permanecerão solitários."

(17) Jesus disse: "Eu vos darei o que os olhos não viram, o que os ouvidos não ouviram, o que as mão não tocaram e o que nunca ocorreu à mente do homem."

(18) Os discípulos disseram a Jesus: "Dizei-nos como será o nosso fim."

Jesus disse: "Haveis, então, discernido o princípio, para que estejais procurando o fim? Pois onde estiver o princípio ali estará o fim. Feliz daquele que tomar seu lugar no princípio: ele conhecerá o fim e não provará a morte."

(19) Jesus disse: "Feliz o que já era antes de surgir. Se vos tornardes meus discípulos e ouvirdes minhas palavras, estas pedras estarão a vosso serviço. Com efeito, há cinco árvores para vós no Paraíso que permanecem inalteradas Inverno e Verão, e cujas folhas não caem. Aquele que as conhecer não provará a morte."

(20) Os discípulos disseram a Jesus: "Dizei-nos a que se assemelha o reino do céu."

Ele lhes disse: "Ele se assemelha a uma semente de mostarda, a menor de todas as sementes. Mas, quando cai em terra cultivada, produz uma grande planta e torna-se um refúgio para as aves do céu."

(21) Maria disse a Jesus: "A quem se assemelham teus discípulos?"

Ele disse: "Eles se parecem com crianças que se instalaram num campo que não lhes pertence. Quando os donos do campo vierem, dirão: “Entregai nosso campo”. Elas se despirão diante deles para que eles possam receber o campo de volta e para entregá-lo a eles. Por isso digo: se o dono da casa souber que virá um ladrão, velará antes que ele chegue e não deixará que ele penetre na casa de seu domínio para levar seus bens. Vós, portanto, permanecei atentos contra o mundo. Armai-vos com todo poder para que os ladrões não consigam encontrar um caminho para chegar a vós, pois a dificuldade que temeis certamente ocorrerá. Que possa haver entre vós um homem prudente. Quando a safra estiver madura, ele virá rapidamente com sua foice em mãos para colhe-la. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça."

(22) Jesus viu crianças sendo amamentadas. Ele disse a seus discípulos: "Esses pequeninos que mamam são como aqueles que entram no Reino." Eles lhe disseram: Nós também, como crianças, entraremos no Reino?" Jesus lhes disse: "Quando fizerdes do dois um e quando fizerdes o interior como o exterior, o exterior como o interior, o acima como o em baixo e quando fizerdes do macho e da fêmea uma só coisa, de forma que o macho não seja mais macho nem a fêmea seja mais fêmea, e quando formardes olhos em lugar de um olho, uma mão em lugar de uma mão, um pé em lugar de um pé e uma imagem em lugar de uma imagem, então, entrareis (no Reino).

(23) Jesus disse: Escolherei dentre vós, um entre mil e dois entre dez mil, e eles permanecerão como um só."

(24) Seus discípulos disseram-lhe: "Mostra-nos o lugar onde estás, pois precisamos procurá-lo."

Ele disse-lhes: "Aquele que tem ouvidos, ouça! Há luz no interior do homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro. Se ele não brilha, ele é escuridão."

(25) Jesus disse: "Ama teu irmão como à tua alma, protege-o como a pupila de teus olhos."

(26) Jesus disse: "Tu vês o cisco no olho de teu irmão, mas não vês a trave em teu próprio olho. Quando retirares a trave de teu olho, então verás claramente e poderás retirar o cisco do olho de teu irmão."

(27) Jesus disse: "Se não jejuardes com relação ao mundo, não encontrareis o Reino. Se não observardes o sábado como um sábado, não vereis o Pai."

(28) Jesus disse: "Assumi meu lugar no mundo e revelei-me a eles na carne. Encontrei todos embriagados. Não encontrei nenhum sedento, e minha alma ficou aflita pelos filhos dos homens, porque estão cegos em seus corações e não têm visão. Pois vazios vieram ao mundo e vazios procuram deixar o mundo. Mas no momento eles estão embriagados. Quando superarem a embriaguez, então mudarão sua maneira de pensar."

(29) Jesus disse: "Seria uma maravilha se a carne tivesse surgido por causa do espírito. Mas seria a maior das maravilhas se o espírito tivesse surgido por causa do corpo. Estou realmente surpreso pela forma como essa grande riqueza fez morada nessa pobreza."

(30) Jesus disse: "Onde há três deuses, eles são deuses. Onde há dois ou um, estou com ele."

(31) Jesus disse: "Nenhum profeta é aceito em sua cidade; nenhum médico cura aqueles que o conhecem."

(32) Jesus disse: "Uma cidade construída e fortificada sobre uma montanha elevada não pode cair nem pode ser escondida."

(33) Jesus disse: "Proclamai sobre os telhados aquilo que ouvirdes com vosso próprio ouvido. Pois ninguém acende uma lâmpada e coloca-a debaixo de um cesto, tampouco coloca-a num lugar escondido, mas num candelabro, para que todos que venham a entrar e sair vejam sua luz."

(34) Jesus disse: "Se um cego guia outro cego, ambos cairão numa vala."

(35) Jesus disse: "Não é possível que alguém entre na casa de um homem forte e tome-a à força, a menos que lhe ate as mãos; então será capaz de saquear sua casa."

(36) Jesus disse: "Não vos preocupeis de manhã até a noite e de noite até a manhã com o que vestireis."

(37) Seus discípulos disseram: "Quando tu te revelarás a nós e quando te veremos?"

Jesus disse: "Quando vos despirdes sem vos envergonhardes e tomardes vossas vestes e, colocando-as sobre vossos pés, pisardes sobre elas como criancinhas, então (vereis) o filho daquele que vive e não tereis medo."

(38) Jesus disse: "Muitas vezes haveis desejado ouvir essas palavras que vos digo, e não tendes outro de quem ouvi-las. Pois virão dias em que me procurareis e não me encontrareis."

(39) Jesus disse: "Os fariseus e os escribas tomaram as chaves da gnosis. Eles não entraram nem deixaram entrar aqueles que queriam entrar. Vós, no entanto, sede sábios como as serpentes e mansos como as pombas."

(40) Jesus disse: "Uma parreira foi plantada fora do Pai, porém, não sendo saudável, ela será arrancada pela raiz e destruída."

(41) Jesus disse: "Quem tiver algo em sua mão receberá mais, e quem não tiver nada perderá até mesmo o pouco que tem."

(42) Jesus disse: "Tornai-vos passantes."

(43) Seus discípulos disseram-lhe: "Quem és tu para dizer-nos tais coisas?"

[Jesus disse-lhes:] "Não percebeis quem sou eu pelo que vos digo, mas vos tornastes como os judeus! Com efeito, eles amam a árvore e odeiam seus frutos ou amam os frutos, mas odeiam a árvore."

(44) Jesus disse: "Quem blasfemar contra o Pai será perdoado e quem blasfemar contra o Filho será perdoado, mas quem blasfemar contra o Espírito Santo não será perdoado nem na terra nem no céu."

(45) Jesus disse: "Não se colhe uvas dos espinheiros nem figos dos cardos, pois eles não dão frutos. O homem bom retira o bem do seu tesouro; o malvado retira o mal de seu tesouro malévolo, que está em seu coração, e diz maldade. Pois da abundância do coração ele retira coisas más."

(46) Jesus disse: "Dentre os que nasceram da mulher, desde Adão até João, o Batista, não há ninguém superior a João, para que não abaixe os olhos [diante dele]. Mas eu digo, aquele dentre vós que se tornar uma criança conhecerá o Reino e se tornará superior a João."

(47) Jesus disse: "É impossível para um homem montar dois cavalos ou retesar dois arcos. E é impossível que um servo sirva a dois senhores, pois ele honra um e ofende o outro. Ninguém bebe vinho velho e logo em seguida deseja beber vinho novo. E não se coloca vinho novo em odres velhos, para que não arrebentem; nem se coloca vinho velho em odres novos, para que não o estraguem. E não se cose pano velho em veste nova, porque ela está arriscada a rasgar."

(48) Jesus disse: "Se os dois fizerem as pazes nesta casa, eles dirão a montanha: ‘Move-te!’ e ela se moverá."

(49) Jesus disse: "Bem aventurados os solitários e os eleitos, pois encontrareis o Reino. Pois, viestes dele e para ele retornareis."

(50) Jesus disse: "Se vos perguntarem: ‘De onde vindes?’ respondei: ‘Viemos da luz, do lugar onde a luz nasceu dela mesma, estabeleceu-se e tornou-se manifesta por meio de suas imagens’. Se vos perguntarem: ‘Vós sois isto?’ digam: ‘Nós somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivo’. Se vos perguntarem: ‘Qual é o sinal de vosso Pai em vós?’, digam a eles: ‘É movimento e repouso’."

(51) Seus discípulos disseram-lhe: "Quando ocorrerá o repouso dos mortos e quando virá o novo mundo?"

Ele disse-lhes: "Aquilo que esperais já chegou, mas não o reconheceis."

(52) Seus discípulos disseram-lhe: "Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos falaram de ti."

Ele disse-lhes: "Omitistes aquele que vive em vossa presença e falastes dos mortos."

(53) Seus discípulos disseram-lhe: "A circuncisão é benéfica ou não?"

Ele disse-lhes: "Se ela fosse benéfica, os pais gerariam filhos já circuncisos de sua mãe. Mas a verdadeira circuncisão, a espiritual, tornou-se inteiramente proveitosa."

(54) Jesus disse: "Bem-aventurados os pobres, pois vosso é o Reino do céu."

(55) Jesus disse: "Aquele que não odiar (2) seu pai e sua mãe não poderá se tornar meu discípulo. E quem não odiar seus irmãos e irmãs e tomar sua cruz, como eu, não será digno de mim."

(56) Jesus disse: "Aquele que conseguiu compreender o mundo encontrou (somente) um cadáver, e quem encontrou um cadáver é superior ao mundo."

(57) Jesus disse: "O Reino do Pai é semelhante ao homem que tem [boa] semente. Seu inimigo veio durante a noite e semeou joio por cima da boa semente. O homem não deixou que arrancassem o joio, dizendo: ‘temo que acabeis arrancando o joio e também o trigo junto com ele. No dia da colheita as ervas daninhas estarão bem visíveis e serão, então, arrancadas e queimadas."

(58) Jesus disse: "Bem-aventurado o homem que sofreu e encontrou a vida."

(59) Jesus disse: "Prestai atenção àquele que vive enquanto estais vivos, para que, ao morrerdes, não fiqueis procurando vê-lo sem conseguir."

(60) Eles viram um samaritano carregando um cordeiro a caminho da Judéia. Ele disse a seus discípulos: "Por que o homem está carregando o cordeiro?"

Eles disseram-lhe: "Para matá-lo e comê-lo."

Ele disse-lhes: "Enquanto o cordeiro estiver vivo, ele não o comerá, mas somente depois que o tiver matado e que o cordeiro se tornar um cadáver."

Eles disseram-lhe: "Ele não poderia fazer de outro modo."

Ele disse-lhes: "Vós, também, buscai um lugar para vós no repouso, a fim de que não vos torneis um cadáver e sejais devorados."

(61) Jesus disse: "Dois repousarão sobre um leito: um morrerá, o outro viverá."

Salomé disse: "Quem és tu homem, e de quem és filho? Tu te acomodaste em meu banco e comeste à minha mesa?"

Jesus disse-lhe: "Eu sou aquele que existe a partir do indivisível. Recebi coisas de meu pai."

[...] "Eu sou seu discípulo."

[...] "Por isso digo que, se for destruído, ele estará pleno de luz, mas, se ele estiver dividido, estará pleno de trevas."

(62) Jesus disse: "Eu digo meus mistérios aos [que são dignos de meus] mistérios. Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita."

(63) Jesus disse: "Havia um rico que tinha muito dinheiro. Ele disse: ‘Empregarei meu dinheiro para semear, colher, plantar e encher meu celeiro com o fruto da colheita, para que não me venha a faltar nada’. Essas eram suas intenções, mas naquela mesma noite ele morreu. Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça."

(64) Jesus disse: "Um homem tinha convidados. E quando a ceia estava pronta, mandou seu servo chamar os convidados. O servo foi ao primeiro e disse-lhe: ‘Meu mestre te convida’. O outro respondeu: ‘Tenho dinheiro aplicado com alguns comerciantes. Eles virão me procurar esta noite para que eu lhes dê minhas instruções. Apresento minhas desculpas por não ir à ceia. O servo foi até outro e disse: ‘Meu senhor está te convidando’. Este disse-lhe: ‘Acabo de comprar uma casa e precisam de mim hoje. Não terei tempo’. O servo foi a outro e disse-lhe: ‘Meu senhor está te convidando’. Este disse-lhe: ‘Um amigo vai se casar e coube-me preparar o banquete. Não poderei ir à ceia, peço ser desculpado. O servo foi a outro ainda e disse-lhe: ‘Meu senhor está te convidando’. Este disse-lhe: ‘Acabo de comprar uma fazenda e estou saindo para buscar o rendimento. Não poderei ir, por isso me desculpo’. O servo retornou e disse a seu senhor: ‘Os que convidaste para a ceia mandam pedir desculpas’. (134) O senhor disse ao servo: ‘Vai lá fora pelos caminhos e traze os que encontrares para que possam ceiar. Os homens de negócios e mercadores não entrarão no recinto de meu Pai’."

(65) Ele disse: "Um homem de bem tinha uma vinha. Ele a alugou a camponeses para que cuidassem dela e pagassem-lhe com uma parte da produção. Ele enviou seu servo para que os arrendatários entregassem-lhe o fruto da vinha. Eles pegaram seu servo e o espancaram, deixando-o à beira da morte. O servo voltou e contou a seu senhor o ocorrido. O senhor disse: ‘Talvez não o tenham reconhecido’. Ele enviou outro servo. Os camponeses também o espancaram. Então o proprietário enviou seu filho e disse: ‘Talvez eles tenham respeito por meu filho’. Como os camponeses sabiam que aquele era o herdeiro da vinha, pegaram-no e mataram-no. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça."

(66) Jesus disse: "Mostrai-me a pedra que os construtores rejeitaram; ela é a pedra angular."

(67) Jesus disse: "Se alguém que conhece o todo ainda sente uma deficiência pessoal, ele é completamente deficiente."

(68) Jesus disse: "Bem-aventurados os que são odiados e perseguidos. Mas os que vos perseguirem não encontrarão lugar."

(69) Jesus disse: "Bem-aventurados aqueles que foram perseguidos em seu interior. São eles que realmente conheceram o pai. Bem-aventurados os famintos, porque se encherá o ventre de quem tem desejo."

(70) Jesus disse: "Aquilo que tendes vos salvará se o manifestardes. Aquilo que não tendes em vosso interior vos matará se não o tiverdes dentro de vós."

(71) Jesus disse: "Destruirei esta casa e ninguém será capaz de reconstruí-la [...]"

(72) [Um homem disse-lhe]: "Dizeis a meus irmãos para que partilhem os bens de meu pai comigo."

Ele lhe disse: "Ó, homem, quem me institui partilhador?"

Voltando-se para seus discípulos, disse-lhes: "Eu não sou um partilhador, sou?"

(73) Jesus disse: "A colheita é grande mas os operários são poucos. Portanto, implorai ao senhor para que envie operários para a colheita."

(74) Ele disse: "Ó senhor, há muitas pessoas ao redor do bebedouro, mas não há nada na cisterna."

(75) Jesus disse: "Muitos estão aguardando à porta, mas são os solitários que entrarão na câmara nupcial."

(76) O Reino do pai é semelhante ao comerciante que tinha uma consignação de mercadorias e nelas descobriu uma pérola. Esse comerciante era astuto. Ele vendeu as mercadorias e adquiriu a pérola maravilhosa para si. Vós também deveis buscar esse tesouro indestrutível e duradouro, que nenhuma traça pode devorar nem o verme destruir."

(77) Jesus disse: "Eu sou a luz que está sobre todos eles. Eu sou o todo. De mim surgiu o todo e de mim o todo se estendeu. Rachai um pedaço de madeira, e eu estou lá. Levantai a pedra e me encontrareis lá."

(78) Jesus disse: "Por que viestes ao deserto? Para ver um caniço agitado pelo vento? E para ver um homem vestido com roupas finas como vosso rei e vossos homens importantes? Esses usam roupas finas, mas são incapazes de discernir a verdade."

(79) Uma mulher na multidão disse-lhe: "Bem-aventurado o ventre que te portou e os seios que te nutriram."

Ele disse-lhe: "Bem-aventurados os que ouviram a palavra do Pai e que realmente a guardaram. Pois virão dias em que direis: "Bem-aventurado o ventre que não concebeu, e os seios que não amamentaram."

(80) Jesus disse: "Aquele que reconheceu o mundo encontrou o corpo, mas aquele que encontrou o corpo é superior ao mundo."

(81) Quem enriqueceu, torne-se rei, mas quem tem poder que possa renunciar a ele."

(82) Jesus disse: "Aquele que está perto de mim está perto do fogo, e aquele que está longe de mim está longe do Reino."

(83) Jesus disse: "As imagens manifestam-se ao homem, mas a luz que está nelas permanece oculta na imagem da luz do Pai. Ele tornar-se-á manifesto, mas sua imagem permanecerá velada por sua luz."

(84) Jesus disse: "Quando vedes vossa semelhança, vós vos rejubilais. Mas, quando virdes vossas imagens que surgiram antes de vós, e que não morrem nem se manifestam, quanto tereis de suportar!"

(85) Jesus disse: "Adão surgiu de um grande poder e de uma grande riqueza, mas ele não se tornou digno de vós. Pois, se tivesse sido digno, não teria experimentado a morte."

(86) Jesus disse: "[As raposas têm suas tocas] e as aves têm seus ninhos, mas o filho do homem não tem nenhum lugar para pousar sua cabeça e descansar."

(87) Jesus disse: "Miserável do corpo que depende de um corpo e da alma que depende desses dois."

(88) Jesus disse: "Os anjos e os profetas virão a vós e darão aquelas coisas que já tendes. E dai vós também a eles as coisas que tendes e dizei a vós mesmos: ‘Quando virão tomar o que é deles?’"

(89) Jesus disse: "Por que lavais o exterior da taça? Não compreendeis que aquele que fez o interior é o mesmo que fez o exterior?"

(90) Jesus disse: "Vinde a mim, pois meu jugo é fácil e meu domínio é suave, e encontrareis repouso para vós."

(91) Eles disseram-lhe: "Dizei-nos quem tu és, para que possamos crer em ti."

Ele disse-lhes: "Vós decifrastes a face to céu e da terra, mas não reconhecestes aquele que está diante de vós e não soubestes perceber este momento."

(92) Jesus disse: "Buscai e encontrareis. No entanto, aquilo que me perguntastes anteriormente e que não vos respondi então, agora desejo vos dizer mas vós não me perguntais sobre aquilo."

(93) [Jesus disse]: "Não deis aos cães o que é sagrado, para que eles não o joguem no lixo. Não atireis pérolas aos porcos, para que eles..."

(94) Jesus [disse]: "Quem busca, encontrará, e [quem bate] terá permissão para entrar."

(95) [Jesus disse]: "Se tendes dinheiro, não o empresteis a juro, mas dai-o àquele de quem não o recebereis de volta."

(96) Jesus disse: "O Reino do Pai é como [uma certa] mulher. Ela tomou um pouco de fermento, [escondeu-o] na massa, e fez com ela grandes pães. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!"

(97) Jesus disse: "O Reino do Pai é como uma certa mulher que estava carregando um cântaro cheio de farinha. Enquanto estava caminhando pela estrada, ainda distante de casa, a alça do cântaro partiu-se e a farinha foi caindo pelo caminho atrás dela. Ela não se deu conta, pois não tinha percebido o acidente. Quando chegou em casa, colocou o cântaro no chão e percebeu que ele estava vazio."

(98) Jesus disse: "O Reino do Pai é como um certo homem que queria matar um homem poderoso. Em sua própria casa ele desembainhou a espada e enfiou-a na parede para saber se sua mão poderia realizar a tarefa. Então ele matou o homem poderoso."

(99) Os discípulos disseram-lhe: "Teus irmãos e tua mãe estão aguardando lá fora."

Ele disse-lhes: "Estes que estão aqui que fazem a vontade de meu Pai são meus irmãos e minha mãe. São eles que entrarão no Reino de meu Pai."

(100) Eles mostraram uma moeda de ouro a Jesus e disseram-lhe: "Os homens de César exigem-nos tributos."

Ele disse-lhes: "Dai a César o que é de César, dai a Deus o que é de Deus, e dai a mim o que é meu."

(101) [Jesus disse]: "Quem não odeia (3) seu [pai] e sua mãe como eu não pode se tornar meu [discípulo]. E quem não ama seu [pai e] sua mãe como eu não pode se tornar meu [discípulo]. Porque minha mãe [...], mas [minha] verdadeira [mãe] deu-me a vida."

(102) Jesus disse: "Ai dos fariseus, porque eles são como um cachorro dormindo na manjedoura dos bois, pois eles não comem nem permitem que os bois comam."

(103) Jesus disse: "Feliz do homem que sabe por onde os ladrões vão entrar, porque dessa forma [ele] pode se levantar, passar em revista seu domínio e armar-se antes deles invadirem."

(104) Eles disseram a Jesus: "Vem, oremos e jejuemos hoje."

Jesus disse: "Qual foi o pecado que cometi ou em que fui vencido? Porém, quando o noivo deixar a câmara nupcial, então que eles jejuem e orem."

(105) Jesus disse: "Quem conhece o pai e a mãe será chamado filho de prostituta."

(106) Jesus disse: "Quando fizerdes de dois, um, vos tornareis filhos do homem, e quando disserdes: ‘Montanha, move-te!’, ela se moverá."

(107) Jesus disse: "O Reino é como um pastor que tinha cem ovelhas. Uma delas, a maior de todas, extraviou-se. Ele deixou as noventa e nove e foi procurá-la, até encontrá-la. Depois de ter passado por todo esse incômodo, ele disse à ovelha: ‘Eu me interesso por ti mais do que pelas noventa e nove’."

(108) Jesus disse: "Quem beber de minha boca tornar-se-á como eu. Eu mesmo me tornarei ele, e as coisas que estão ocultas ser-lhe-ão reveladas."

(109) Jesus disse: "O Reino é como o homem que tinha um tesouro [escondido] em seu campo sem saber. Após sua morte, deixou o campo para seu [filho]. O filho não sabia [a respeito do tesouro]. Ele herdou o campo e o vendeu. O comprador ao arar o campo encontrou o tesouro. Começou então a emprestar dinheiro a juros a quem queria."

(110) Jesus disse: "Quem encontrou o mundo e tornou-se rico, que renuncie ao mundo."

(111) Jesus disse: "Os céus e a terra se dobrarão diante de vós. E aquele que vive do Vivo não conhecerá a morte. Jesus não disse: ‘Quem se encontra é superior ao mundo?’

(112) Jesus disse: "Ai da carne que depende da alma; ai da alma que depende da carne."

(113) Seus discípulos disseram-lhe: "Quando virá o Reino?"

[Jesus disse]: "Ele não virá porque é esperado. Não é uma questão de dizer: ‘eis que ele está aqui’ ou ‘eis que está ali’. Na verdade, o Reino do Pai está espalhado pela terra e os homens não o vêem."

(114) Simão Pedro disse-lhes: "Que Maria saia de nosso meio, pois as mulheres não são dignas da vida."

Jesus disse: "Eu mesmo vou guiá-la para torná-la macho, para que ela também possa tornar-se um espírito vivo semelhante a vós machos. Porque toda mulher que se tornar macho entrará no Reino do Céu."

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A presença do Diabo no ciclo da vida das comunidades judaicas medievais



O Diabo foi tema de vasta literatura no período medieval. Desde a patrística grega e latina, e por todas as crônicas e relatos do mundo medieval, o Diabo era onipresente e exercia uma influência notável, no mundo dos vivos sendo referenciado como atuante e proselitista. Um aceso debate ocorria entre teólogos e pensadores da Igreja que, ao mesmo tempo, tratavam de delinear os limites de seu poder, para evitar que o Cristianismo adotasse doutrinas dualistas, já que a onipotência divina, não podia ser igualada pelo exército satânico e, por outro, lado faziam uso cotidiano de sua presença e malignidade em prédicas, cultos e exorcismos, de todos os tipos.

Como a História se relacionou com este tema nos últimos séculos?


A historiografia de influência iluminista adotou uma postura cética e de estrito racionalismo. A escola metódica enfocando temas de conteúdo político, diplomático e militar, envidou poucos esforços em abordar tal tema. Grassava certo repúdio por um tema obscuro, que era impregnado de crendices tolas e superstições. Tais temas não seriam dignos de estudo. O Romantismo, por sua vez, retomou o interesse pelo medievo e pelos temas religiosos. Em meados do séc. XIX reaparece esta temática. A primeira obra digna de menção foi de autoria de Michelet, que em seu clássico livro La sorciére1 retomou de maneira pioneira o interesse, da história nos estudos do sobrenatural e das relações entre o mundo natural e o sobrenatural.

No século XX, vemos uma retomada lenta do interesse no estudo do sobrenatural e em particular no Diabo. Em seu livro clássico O Declínio da Idade Média, editado pela primeira vez em 1919, o celebrado autor Johan Huizinga dedica algumas palavras e referências, à presença marcante do Demônio ou Diabo no cotidiano medieval. O autor em diversos aspectos seria um dos “ancestrais” do gênero histórico

denominado como História das Mentalidades ou dos Comportamentos, que floresceu na segunda metade do século passado. Huizinga percebeu que o Demônio estava muito “vivo” no cotidiano das pessoas que viveram e descrevem os séculos XIV e XV.

Na seqüência, já em meados do séc. XX, houve contribuições interessantes neste tema, mas somente na terceira geração da escola de Annales é que os estudos se ampliaram e aprofundaram. Temos algumas obras de expressão: Delumeau, Áries, Duby, Le Goff, Richards, entre muitos mais. Essa tendência se espalhou e gerou obras diversas.

No Brasil podemos citar a obra de Carlos Roberto Nogueira, tanto sobre as bruxas e feiticeiras, quanto sobre o Diabo.

O Diabo e Deus: dilemas do monoteísmo

Como as religiões monoteístas se colocavam diante da temática do Diabo? A posição da Igreja é contraditória, mas, apesar de criticar certos exageros, é uma instituição que aceitou e utilizou-se de conceitos ligados ao Diabo. Desde a Antiguidade Tardia, os autores da Patrística, que definiram e conceituaram a teologia clássica cristã, debateram e advertiram sobre o Diabo. S. Jerônimo é uma das mais fortes referências. João Crisóstomo em Antioquia advertia seus paroquianos sobre os riscos do Diabo.

Isidoro de Sevilha falava intensamente e extensamente sobre o Diabo. Agostinho não tem dúvidas, na sua ótica neo-platônica e cristã, de que o Diabo transita no mundo inferior, na Cidade dos homens. Cria-se o conceito de que se travava uma batalha entre as forças do Bem e do mal. Nas palavras de Nogueira: “[...] os cristãos concordavam em que a queda do homem não foi mais que um episódio na história de um prodigioso combate cósmico, iniciado antes da Criação [...]”. A queda do homem teria sido precedida por uma revolta de algumas das falanges celestiais contra Deus e estes haviam sido precipitados do céu por Deus. Portanto, transitavam na terra e seduziam os humanos para obter adeptos a seu partido.

Até mesmo gente culta como os teólogos e pensadores S. Tomás de Aquino, fundamentado e autorizado por Santo Agostinho, determina que: “Omnes quae visibiliter fiunt in hoc mundo possunt fieri per daemones”. Muitos dos autores e pensadores medievais demonstram certa dose de crítica a esta postura da Igreja, mas nunca negam a existência e a presença do Diabo. Os opositores mais ferrenhos da Igreja, no medievo, foram os heréticos dualistas também denominados maniqueus. Foram sendo reprimidos através do tempo e do espaço: maniqueísmo, mazdeísmo, os paulicianos, os bogomilos e os albigenses. Acreditavam na existência de dois poderes antagônicos e contradiziam o monoteísmo trinitário. Isso era a negação de dogmas fundamentais da Cristandade e sugeria a necessidade de repressão. Eram, portanto, mais adeptos de presença do mal, como entidade independente, do que a própria Igreja que criticavam.

A construção e a manutenção das crenças do imaginário se dão num processo de longa duração. O imaginário se constrói dentro e em função de um determinado contexto social. O Diabo surge no Cristianismo primitivo como uma faceta do intenso dualismo que marca a luta da Igreja para se afirmar nos séculos III e IV. O medievo é uma sucessão de confrontos entre o bem (encarnado pela Igreja) e o mal (encarnado pelo Diabo e seus aliados).

O belicismo, o simbolismo e o contratualismo vigentes neste período são facetas do confronto contínuo entre Deus e a Igreja que o representa contra o Diabo. No dizer de autores como Hilário Franco Jr. o que predominava era “[...] a visão sobrenatural que se tinha do Universo”. O “sobrenatural se mostrando no natural” era um fato cotidiano e corriqueiro, já que a hierofania (manifestações do sagrado no profano) era parte da crença aceita. Até os inimigos da Igreja têm esta visão dualista. Mesmo sendo críticos da Igreja, muitos grupos heréticos tinham uma visão dualista do mundo e enxergavam o confronto entre o espírito e a matéria, entre o bem e o mal, Deus e o Diabo, no cotidiano e dentro de uma visão hierofânica. Isso pode ser visto entre as heresias dualistas e maniqueístas tais como os bogomílios, os albigenses, e os cátaros de uma maneira ampla, como já frisamos antes. O que muda é que a Igreja passa ser a encarnação do mal e que deve ser combatida. Os dualistas foram severamente perseguidos.

Para a Igreja católica, o Diabo não podia ser nivelado no mesmo patamar que Deus. Sendo essa premissa teológica respeitada, o Diabo tinha “salvo conduto”, para atuar entre os humanos e tentá-los. Sua atuação no cotidiano cristão medieval é completa. Está em tudo e em todos os lugares e situações. Seus seguidores são numerosos e ativos.

A Igreja com todo o seu poder político, religioso e social era a maior formadora de opinião, apesar da crítica das heresias e da contestação social vigente na baixa Idade Média. A Igreja comanda a luta contra o mal e seu líder: Satã. A ordem de Cluny comanda a luta a partir do século X. A Inquisição medieval encabeçada pelos dominicanos se tornará a vanguarda da luta contra o mal encarnado nas heresias, já no século XIII. Grande número de textos foram escritos sobre o assunto. A Igreja autorizou a publicação e deu divulgação através da ordem dos dominicanos de uma obra clássica do tema da bruxaria e da demonologia, o assim chamado Malleus Maleficarum, também popularmente conhecido como O Manual da Caça as Bruxas, que foi editado no final do século XV, por dois freis dominicanos, Heinrich Kramer e Jacob Sprenger. O seu uso declarado era para servir como guia aos Inquisidores que interrogavam e torturavam bruxas e seguidores de heresias satanistas. Exorcismos e formas de identificar bruxas e demônios povoam suas páginas.

Além de bruxos e feiticeiras, uma minoria era tradicionalmente discriminada e perseguida em épocas de crise durante a Idade Média européia: a minoria judaica.

A sociedade medieval cristã associava os judeus ao Demônio. Discriminava os judeus, excluía-os de determinadas ramos da produção econômica e marcava-os como perigosamente envolvidos com a magia e o poder satânico. A Igreja decretou inúmeras leis e regras para isolar os judeus do mundo cristão. As mais famosas regras foram determinadas, por Inocêncio III em 1215, no quarto concílio de Latrão. O objetivo era separar e isolar os judeus do mundo cristão. Os judeus deviam portar a “marca infame” nas suas roupas e habitar em bairros segregados para evitar que contaminassem os cristãos. Percebemos que se trata do mesmo concílio que colocou o maior empenho na guerra contra a heresia maniqueísta. Os judeus também eram considerados um perigo e deviam ser separados da sociedade cristã de maneira radical.

O Diabo no imaginário judaico

Contudo, essa separação não impediu os contatos entre judeus e cristãos. Apesar desta discriminação havia trocas entre o mundo cristão e a minoria judaica. O professor Joshua Trachtenberg, num trabalho pioneiro e pouco divulgado, percebeu em seus estudos o relacionamento e a influência mútua entre o Judaísmo e o Cristianismo no período medieval. Em ambas o imaginário coletivo era muito fértil no que tange ao mundo satânico. Trachtenberg mostra a aparição de uma religião popular (Folk Religion) que aparece paralelamente a religião judaica oficial, com todo o seu legalismo, regras e normas da Halachá (lei judaica). Permitimo-nos ampliar sua reflexão. O Judaísmo “oficial’ era erudito e se fundamentava em estudos metódicos e constantes que exigiam um elevado nível material, para se dedicar de maneira intensa aos profundos e demorados estudos talmúdicos”. Em locais e períodos nos quais havia estabilidade e plena tolerância aos judeus por parte da Igreja e das autoridades seculares, os judeus podiam fundar suas academias talmúdicas (ieshivot). Assim se deu na Espanha muçulmana na Idade de Ouro (séc. IX a XI); na Espanha cristã na Idade de Prata (séc. XII e XIII); em Ashkenaz (séc. X e XI) e na Polônia moderna (séc. XVI e XVII) em certos períodos isolados. No geral havia períodos de crise e perseguição, nos quais a religiosidade popular predominava no seio da população judaica: uma intersecção de religiosidade erudita na superfície e na liderança religiosa, lado a lado com crendices e religiosidade popular no seio da massa judaica, que se via diante de perseguições e preconceito. Certa “circularidade das idéias e da cultura” do topo à base e desta ao topo.

Nesta religião popular ocorrem influências do meio circundante, mesmo se este seja hostil ao Judaísmo. Os judeus influenciam e são influenciados pelo mundo cristão: contaminados com as crenças e crendices, com os mitos e superstições existentes no mundo medieval, como um todo. Trachtenberg distingue entre o cotidiano judaico e a forma pelas quais os grandes sábios e rabinos se opunham às superstições vigentes na sociedade judaica. Os rabinos tentavam manter a racionalidade do judaísmo e “esconder” as crendices. O pesquisador deve usar uma leitura crítica dos textos rabínicos. É óbvio que não se pode escrever história do imaginário, fazendo-se apenas uma leitura superficial dos escritos dos rabinos e sábios. Estes usaram pelo menos dois recursos bem definidos para combater as crendices. Num primeiro estágio as combatiam e condenavam. Numa segunda etapa, ao dar-se conta de que não podiam vencê-las, tratavam de dar-lhes uma vestimenta “mais racional e culta”, e encontraram explicações belas e diferentes para as diversas reações que a sociedade judaica criava na luta contra os demônios e espíritos malignos.

Utilizando nossa experiência no projeto “Heranças e Lembranças”, realizado no Rio de Janeiro, do qual participamos, constatamos a enorme quantidade de amuletos e objetos usados no combate a Satã, mesmo quando a religião judaica o ignore ou dê ao mesmo pouca importância. A religião popular sobrevive às pressões e a tentativa de torná-la culta e racional. No âmbito externo, os judeus que vivem isolados e discriminados, no seio da sociedade cristã (por exemplo) e são acusados de serem aliados do demônio, também acreditam no seu poder maligno. Os “aliados do demônio” (judeus) também o temem e se protegem dele com amuletos, exorcismos, rezas e proteções.

A partir daqui nos propomos a descrever a aparição do tema do demônio e dos espíritos malignos tal com aparece nos séculos XII a XV, entre os judeus da Europa Ocidental (denominada Ashkenaz = Alemanha). O tema também é válido e deve aparecer na Península Ibérica (Sefarad), no norte da África e na Europa Oriental (Polônia). Centralizaremos nossas observações do ciclo da vida judaico e a aparição do elemento satânico em Ashkenaz, mas quando pudermos ofereceremos exemplos de outras regiões a título de ampliação do foco. A guerra contra o mundo satânico e suas ferramentas, será nosso tema daqui por diante. Dividiremos o ciclo da vida em nascimento, casamento e morte, não dando importância à maioridade religiosa (Bar Mitzvá) por não ser um rito de passagem, todavia consolidado na Baixa Idade Média (até o séc. XV).

O nascimento

a) O período anterior ao parto

A mulher que estava grávida era um ser sensível e inspirava cuidados e atenções especiais. Cuidava-se de forma meticulosa da parturiente através de rezas, amuletos cabalísticos com textos mágicos. Escreviam-se nomes de anjos, fórmulas mágicas e orações. Usavam-se freqüentemente objetos metálicos como a chave da sinagoga e até da Igreja e facas, pois se acreditava que os metais tinham a capacidade de distanciar os maus espíritos. Um ser, em especial, era temido: a primeira mulher criada junto com o homem no sexto dia – Lilith. Esta mulher continha poderes malignos e competia com as descendentes de Eva, a primeira mulher. Há diversos amuletos que a exorcizam e rituais se sucedem para mantê-la afastada.

b) O período posterior ao parto e anterior à circuncisão

Acreditava-se que a criança depois de circuncidada e tendo ingressado no pacto de Abraão estaria “imunizada” diante da ameaça dos espíritos malignos. O mesmo é válido, apenas como comparação, na sociedade cristã, na qual o batismo “salvava a alma” e impedia sua queda nas mãos do maligno. Desta maneira a comunidade judaica se mobilizava e todo o arsenal anti-satânico era mobilizado também. Velas acesas dia e noite, o uso de objetos metálicos, textos e amuletos cabalísticos, rezas e vigílias que eram utilizadas na semana que separa o nascimento do menino da sua circuncisão. Em Ashkenaz (Alemanha) existe um costume neste período denominado Wachnacht. Seria uma noite de vigília total na qual não se deixava a mãe, tampouco o recém nascido por nem um segundo desacompanhados, durante a noite que antecede a circuncisão (Brit Milá). Um costume semelhante ocorre entre os judeus marroquinos que trazem cinco meninos já alfabetizados que escrevem uma carta cada um, com um texto que distancia a figura de Lilith que pretende roubar o futuro homem que acabou de nascer. Isso é semelhante aos judeus de origem sefaradita (Espanha), entre os quais o mohel (pessoa que realiza a circuncisão) traz um amuleto metálico e o coloca sob o travesseiro do recém nascido. Outro hábito comum em muitas comunidades judaicas medievais e que observamos em Ashkenaz é a mulher trocar de roupas com seu esposo durante a semana anterior a circuncisão, para que o Diabo e seus servidores se confundissem e pensassem que se trata de um homem e não da parturiente. Isso apesar do mandamento bíblico que proíbe mulheres de vestir roupas de homens e vice versa. Em Ashkenaz havia também a cerimônia de concessão do nome não judaico do recém nascido. O nome judaico era dado no oitavo dia, já o nome alemão era dado no trigésimo dia de vida. O nome da cerimônia era Hollekreisch. Os pesquisadores não entram em acordo sobre a explicação deste costume, mas concordam que deve estar relacionado com as questões dos perigos oriundos do Satã e seus aliados. Alguns dizem se tratar da Frau Holle ou senhora Holle, uma espécie de raptora de bebês que os leva para o interior da Terra.

Em alguns locais em Ashkenaz, se colocavam presentes para a “estrela da criança”, numa clara expressão de presentes para as almas e divindades. O mesmo hábito da achnacht aparece entre os judeus marroquinos, de forma semelhante, durante sete noites de vigília ao bebê e a parturiente para evitar “olho ruim” (semelhante ao popular olho gordo, usado no Brasil). O costume se denomina Tahdid. O uso de velas, muita luz, orações, metais, amuletos servem para espantar os demônios e almas, se assemelhando nos dois casos e mostrando que o hábito era comum em muitas comunidades. A convocação do profeta Elias (Eliahu Hanavi) era, e é, todavia comum a muitas comunidades judaicas. Ele seria um defensor da fé, dos oprimidos e também dos recém nascidos, visto a presença de uma cadeira especial para Elias nas cerimônias de circuncisão. A crença medieval era que Elias realmente se sentava nela, invisível aos mortais comuns. Conta-se que o rabi Iehudá Hachassid, renomado místico ashkenazi, cancelou uma cerimônia de circuncisão por não ter vislumbrado o profeta no seu local tradicional.

O casamento

Num célebre artigo, publicado pela primeira vez em 1925, Jacob Lauterbach levantou enorme polêmica ao afirmar que a quebra do copo no casamento tinha um significado original diferente, da “vestimenta racional” colocada nele pelos rabinos. Usa-se dizer que a quebra do copo, simboliza a destruição e as ruínas do Templo de Jerusalém e a esperança messiânica de reconstruí-lo. Há outras explicações racionais e cultas, tais como a necessidade de não se destruir, visto a impossibilidade de refazer as ruínas de um copo.

Lauterbach demonstra que o sentido medieval era outro, remontando a trechos talmúdicos e a hábitos medievais. Trata-se de mais uma arma anti-satânica. Os rabinos “vestiram” de forma culta, tal costume popular. As técnicas do combate seriam através de três caminhos: a) lutar contra os demônios; b) suborná-los com presentes; c) enganálos fazendo-os crer que as pessoas que aparentavam ser felizes, eram na verdade infelizes e não precisavam ser invejadas.

A quebra do copo durante a cerimônia do casamento não seria por recordação das ruínas do Templo de Jerusalém, mas sim um método de espantar ou até melhor desviar a atenção dos demônios. São frisados como métodos para afastar os demônios do casamento, o uso de tochas, ruídos, pitadas de sal, de pedaços de metal, alguns métodos semelhantes aos já citados no nascimento e muitos deles também usados pelos cristãos.

Havia também presentes ou subornos aos demônios e almas na forma de grãos de trigo, amêndoas, peixe e carne secos. O terceiro e último caso seria enganar ou iludir os demônios e almas. Além da quebra do copo, havia a troca de roupas entre o noivo e noiva, o uso do véu pela noiva com métodos de iludir. Havia é claro o uso do círculo mágico, através do qual se isolava o casal de influências maléficas. Entre outras comunidades, podemos citar a tradição que persiste até hoje entre os judeus de origem marroquina e algumas comunidades orientais de usar o tingimento de cabelos e/ou dedos com hena e o uso de amuletos em forma de uma mão com trechos cabalísticos (a denominada hamsa).

É comum usar a hamsa em outras ocasiões, mas o seu uso é sempre no sentido de proteger seus portadores do mau olhado e de espíritos malignos.

A morte e o sepultamento

É bastante conhecida dos estudiosos da Idade Média a dança macabra (França) ou a dança dos mortos (Inglaterra). O tema foi vastamente descrito através de textos, pinturas e músicas, em especial nos séculos que seguiram a Peste Negra (1348). Em todas as formas de expressão artística a ênfase era na luta do homem para viver diante das doenças, espíritos malignos, o demônio e a morte.

É evidente que o temor dos demônios e almas cresce quando se aproxima o tema da morte. As mesmas armas que vimos nos casos anteriores eram utilizadas para cuidar do corpo do falecido: profusão de velas e luzes, vigílias e orações sem cessar, pedaços de metal com ou sem inscrições, abundância de sal sobre o cadáver.

Quando a pessoa aparentava estar agonizando, ocorria uma reunião de todos os parentes próximos junto ao seu leito, muitos de seus melhores amigos e conhecidos, e ocorria uma cerimônia repleta de etiqueta e regras. Isso foi mais acentuado nos séculos XIV e XV. Entre estes se instituiu a extrema unção (Vidui), bastante assemelhado a mesma cerimônia existente no Cristianismo. O objetivo era salvar a alma do moribundo antes que este perdesse sua consciência e blasfemasse ou fizesse alguma afirmativa contrária à salvação de sua alma, que talvez pudesse ser colocada no seu ouvido por algum demônio ou alma penada.

O uso de orações tais como o Ana Becoach na qual existe um acróstico com os nomes de Deus era considerado muito útil para a salvação do moribundo.

Acostumava-se jogar fora toda a água armazenada na casa do falecido. Havia muitas explicações. Numa diziam que o Anjo da Morte limpara sua espada na água. Outras explicações salientam a utilização da água por demônios e espíritos e a possível permanência de alguns deles nesta água. As rezas se prolongavam até o sepultamento. O féretro era feito sob um ritual minucioso de estações e orações com o objetivo de defender o defunto dos demônios e almas. A crença dizia que o caixão deveria sair antes do que qualquer ser vivo de dentro da casa do defunto ou do local aonde se encontrava para evitar que por engano, os demônios se precipitassem sobre alguém vivo e o vitimassem.

Algumas comunidades do Norte da África costumavam atirar moedas de ouro para todas as direções a fim de afastar o Satã do caixão e do morto, pois o maligno é profundamente ambicioso e deseja riquezas e materialismo. Na Europa Ocidental (Ashkenaz) imitaram os cristãos, ao tomar de porções de terra e grama e atirá-los por detrás dos ombros, proferindo dizeres para espantar e confundir os demônios.

O tradicional costume judaico de lavar as mãos depois de um enterro ao sair do cemitério e/ou ao entrar na sua casa novamente é explicado como sendo um ato de purificação ritual ou como um símbolo de sermos inocentes diante desta morte. Há contudo, quem relacione com demônios e almas.

Conclusões

A imagem do judeu no período medieval era bastante manipulada pela Igreja que construiu uma “mídia” bastante ostensiva contra os “assassinos” de Cristo e aliados do Demônio. A relação Diabo-Judeu é um tema de muita reflexão. Por seu lado, o judaísmo era rigidamente monoteísta e não poderia permitir em seu seio a presença de entidades satânicas que existissem à revelia da vontade divina. Trata-se de uma contradição que acreditamos seja fruto do meio circundante: tanto a Cristandade, quanto o Islã aceitavam e apontavam para existência de hostes do mal e dos riscos de ser seduzido pelos seus representantes. O Judaísmo não era imune a estas idéias e foi fortemente influenciado por elas ainda no período do segundo Templo (entre 530 a.C. e 70 d.C.), quando se escreveram alguns dos livros canônicos, que tratam da existência do Mal. O mais marcante é o livro de Jó, no qual Satã é um servo da corte de Deus. Uma espécie de promotor do reino celeste, que fustiga a humanidade com acusações e reprimendas.

Nos livros externos (apócrifos), não incorporados ao cânone judaico, tampouco ao cristão, se configura a figura do Mal. E há uma interpretação de diversos textos canônicos sob uma ótica mais dualista, que acaba formatando a malignidade através de seres diversos encabeçados pelo Diabo ou Lúcifer, o anjo decaído.