terça-feira, 11 de outubro de 2011

Josh McDowell e Thomas Paine e a eterna polêmica sobre O Messias no AT e NT

O Velho Testamento... contém várias centenas de referências ao Messias. Todas se cumpriram em Cristo e estabelecem uma confirmação sólida das suas credenciais como o Messias.

Josh McDowell

Examinei todas as passagens do Novo Testamento que são citações do Velho [Testamento], e as assim chamadas profecias a respeito de Jesus Cristo, e não encontro qualquer profecia a respeito de tal pessoa, e nego que [essas profecias] existam.

Thomas Paine

Estas duas citações expressam pontos de vista diametralmente opostos sobre a questão de saber se a vida de Jesus conforme é descrita nos evangelhos do Novo Testamento cumpre profecias do Messias judeu que se encontram nas escrituras hebraicas. O ponto de vista de Josh McDowell é o ponto de vista padrão dos missionários, que encontramos em inúmeras obras apologéticas cristãs. Contudo, o ponto de vista expresso por Thomas Paine é muito menos conhecido. É pena que assim seja, pois Paine está certo. Todo o caso de alegado cumprimento de profecias messiânicas sofre de um dos seguintes defeitos:

(1) a alegada profecia nas Escrituras Hebraicas não é uma profecia messiânica ou nem sequer é uma profecia de todo;

(2) a profecia não foi cumprida por Jesus;

(3) ou a profecia é tão vaga a ponto de não ser convincente na sua aplicação a Jesus.

O Significado das Profecias Messiânicas

Antes de examinar alegações específicas de profecias messiânicas cumpridas, devem ser feitas algumas observações sobre o seu significado. O cumprimento de profecias bíblicas é um pilar central nos argumentos apologéticos missionários que pretendem provar a verdade e a exatidão da Bíblia. A Bíblia contém muitas declarações sobre eventos futuros que pretendem ser proféticos — os livros dos profetas, como os de Isaías e Jeremias, estão cheios desse tipo de declarações, no entanto muitas destas declarações são sobre eventos históricos reais do passado. Tendo em consideração o nosso conhecimento atual da cronologia da escrita da Bíblia, contudo, na maioria dos casos não pode ser demonstrado que as declarações proféticas não são posteriores aos eventos "preditos". No caso das profecias das Escrituras Hebraicas a respeito do Messias, porém, temos documentos (por exemplo, os Rolos do Mar Morto) que realmente são anteriores ao tempo em que se acredita que o Jesus histórico tenha vivido. Se encontrássemos nas Escrituras Hebraicas profecias numerosas e específicas condizentes com a vida do Jesus histórico, isto providenciaria considerável evidência em apoio da fé cristã. É exatamente isto que os missionários tentam fazer.

Por outro lado, se descobrirmos que não existem tais profecias específicas cumpridas por Jesus, ou que existem profecias messiânicas específicas que não foram cumpridas por Jesus, isto seria evidência contra a veracidade do Cristianismo. Como o Cristianismo alega exatidão e verdade tanto das Escrituras Hebraicas como do Novo Testamento, está vinculado aos padrões bíblicos para um profeta verdadeiro de D'us delineados nas escrituras hebraicas. O livro de Deuteronomio apresenta estes padrões quando diz que Moisés, falando em representação de D'us no capítulo 18 versículo 22, proclamou que "Quando um profeta fala no nome do Senhor, se a coisa não suceder nem se realizar, essa é a coisa que o Senhor não falou. O profeta falou-a presunçosamente; não terás medo dele." No versículo 20, ele diz que: "... o profeta que falar presunçosamente em meu nome uma palavra que não lhe ordenei, ou que falar em nome de outros deuses, esse profeta morrerá." Por outras palavras, qualquer profecia de D'us é necessariamente exata, e qualquer profecia que não seja de D'us mas dada em seu nome resultará na morte do profeta.

Embora estes padrões requeiram que profecias de D'us sejam exatas, a verdade de uma profecia não garante que vem de D'us. Deuteronómio 13:1-5 indica que falsos profetas também podem ser exatos, mas profetas verdadeiros nunca desencaminharão os judeus da sua religião, sob pena de morte. 1

Conforme vamos mostrar, existem profecias messiânicas que não foram cumpridas por Jesus (e que não serão cumpridas no futuro, pois segunda vinda não é um padrão das Escrituras Hebraicas), então estes padrões têm como consequência que ou Jesus não foi o Messias, ou as profecias em questão não foram feitas por um verdadeiro profeta de D'us. Ambos os extremos do dilema têm a consequência de que é falsa qualquer forma de Cristianismo que mantenha a infalibilidade da Bíblia.

Profecias Relacionadas com o Nascimento

Existem várias alegadas profecias messiânicas sobre o nascimento de Jesus: profecias sobre o local, modo e tempo do seu nascimento, sobre a sua genealogia, e sobre eventos que deviam ocorrer no momento do seu nascimento.

Nascido de uma virgem

Provavelmente a profecia mais famosa de entre estas é aquela que diz que Jesus nasceria de uma virgem. Os evangelhos de Mateus (1:18-25) e Lucas (1:26-35) alegam que Jesus nasceu de uma virgem, mas só Mateus (1:23) apela para as escrituras hebraicas como explicação para a razão por que isto devia acontecer. O versículo invocado é Isaías 7:14, que diz: "Por isso, o mesmo Senhor vos dará um sinal: Eis que a Virgem concebeu e dá à luz um filho, e o chama Emanuel." (Bíblia Missionários Capuchinhos)

Existem várias dificuldades nesta passagem. Conforme muitos observaram, a palavra hebraica traduzida por "virgem" neste versículo é "almah", que é traduzida de forma mais exata simplesmente como "jovem mulher". A palavra hebraica "bethulah" significa "virgem". No livro de Isaías, "bethulah" aparece quatro vezes (23:12, 37:22, 47:1, 62:5) sempre dando sentido de "jovem mulher", portanto o autor desse livro conhecia a palavra "almah" e seu significado. Na tradução da Bíblia New American Standard Translation, todas as outras ocorrências de "almah" são traduzidas simplesmente como "moça", "menina" ou "donzela" (a saber, Gênesis 24:43, Êxodo 2:8, Salmos 68:25, Provérbios 30:19, Cântico de Salomão 1:3, 6:8). Assim, o alegado cumprimento acrescenta uma condição biologicamente impossível que nem sequer está presente na profecia original. 2

Outro problema é que em nenhum lado no Novo Testamento Maria, a mãe de Jesus, se lhe refere como "Emanuel". Portanto não temos evidência de que uma das condições da profecia se tenha alguma vez cumprido.

Mas o problema mais sério desta alegada profecia messiânica é que foi tirada fora do contexto. Analisando por inteiro o sétimo capítulo de Isaías, torna-se claro que a criança em questão nasceria como um sinal para Acaz, Rei de Judá, garantindo que ele não seria derrotado em batalha por Rezim, Rei da Síria, e Peca, filho do Rei de Israel. O nascimento de Jesus não podia ser esse sinal pois veio com sete séculos de atraso. Em Isaías 8:3-4, uma profetisa dá à luz um filho — Maer-Salal-Hás-Baz — que é claramente descrito como o cumprimento da profecia de Isaías 7:14. 3

J. Edward Barrett apresenta evidência em como os Cristãos primitivos rejeitavam o nascimento virginal. Um elemento da evidência de Barrett é que em 1 Timóteo 1:3-4, o escritor (que pode ou não ter sido o apóstolo Paulo) aconselha a sua audiência a "impedir que certas pessoas ensinassem doutrinas estranhas, e se interessassem por fábulas e genealogias intermináveis que ocasionam disputas em lugar de promoverem a obra de D'us que se baseia na fé." (MC) O evangelho mais antigo, Marcos, não tem um relato do nascimento de Jesus, tal como João, o evangelho mais tardio, também não tem. O nascimento virginal é muito relevante para a genealogia, e tanto Mateus como Lucas apresentam a genealogia de Jesus próxima da história [do nascimento virginal].

Nascimento em Belém

Uma segunda alegada profecia relacionada com o nascimento é que Jesus nasceria na cidade de Belém, citada nos evangelhos de Mateus (2:1-6), Lucas (2:4-7) e João (7:42). Destes, Mateus e João referem-se a uma profecia nas escrituras hebraicas. A passagem mencionada é Miquéias 5:2, que diz: "E tu, Belém Efrata, pequena demais para chegar a estar entre os milhares de Judá, de ti me sairá aquele que há de tornar-se governante em Israel, cuja origem é desde os tempos primitivos, desde os dias do tempo indefinido." (Tradução do Novo Mundo) "Efrata" é o antigo nome de Belém (Gênesis 35:19, Rute 4:11) mas a situação é mais confusa pois "Belém Efrata" também é o nome de uma pessoa: Belém o filho (ou neto) de Efrata (1 Crônicas 4:4, 2:50-51). Portanto esta profecia podia-se referir tanto a um nativo da cidade como a um descendente de uma pessoa. Se for este último caso, Jesus não se qualifica, pois nenhuma das suas alegadas genealogias (informação adicional sobre este assunto será apresentada mais adiante) inclui Belém ou Efrata. Se o primeiro caso for verdadeiro (o que é mais provável, visto que Belém foi o local onde nasceu o Rei Davi, de quem o Messias será descendente), então Jesus qualifica-se por local de nascimento 4 mas falha a verificação da condição de ser "governante em Israel". Os missionários alegam que esta é uma profecia que se cumprirá numa segunda vinda.

Genealogias

Existem várias profecias genealógicas sobre os ancestrais do Messias. As profecias sobre os ancestrais do Messias dizem que ele seria da tribo de Judá (Gênesis 49:10, Miquéias 5:2), da família de Jessé (Isaías 11:1, 10), e da casa de Davi (Jeremias 23:5, 2 Samuel 7:12-16, Salmos 132:11). Algumas destas profecias messiânicas parecem simplesmente referir-se a reis futuros. Todos estes versículos se referem a reis — e por isso nenhum deles foi cumprido por Jesus, que não foi rei de reino algum.

Mas os problemas destas profecias são ainda maiores. Será que Jesus é realmente da tribo de Judá, da família de Jessé, e da casa de Davi? A única evidência para isto são os dois conjuntos de genealogias de Jesus, em Mateus 1:1-17 e Lucas 3:23-38. Ambos traçam a linhagem de Jesus através do seu pai, José. Se a história do nascimento virginal for levada a sério, então Jesus não tem os ancestrais próprios. Por outro lado, se a genealogia de Mateus for levada a sério, então Jesus tem um ancestral chamado Jeconias (Mateus 1:12), sobre o qual o profeta Jeremias disse: "Inscrevei este homem como sem filhos, como varão vigoroso que não terá bom êxito nos seus dias; pois, dentre a sua descendência, nem um único será bem sucedido, sentado no trono de Davi e governando ainda em Judá." (Jeremias 22:30, TNM) A genealogia de Lucas sofre do mesmo problema, pois inclui Sealtiel e Zorobabel, que são descendentes de Jeconias.

Por fim, um problema muitas vezes notado é que as genealogias de Mateus e Lucas se contradizem mutuamente e contradizem as escrituras hebraicas. O avô paterno de Jesus foi Jacó (Mateus 1:16) ou Eli (Lucas 3:23)? O pai de Sealtiel foi Jeconias (1 Crônicas 3:17, Mateus 1:12) ou Néri (Lucas 3:27)? Mateus 1:11 omite Jeoiaquim (que em Jeremias 36:29-30 recebe uma maldição similar à do seu filho Jeconias) entre Josias e Jeconias (1 Crônicas 3:15) e Mateus 1:4 omite Admin entre Rão [ou Arni] e Aminadabe (Lucas 3:33, MC). Finalmente, Mateus 1:13 diz que Abiúde é filho de Zorobabel, Lucas 3:27 diz que Resa é filho de Zorobabel, mas 1 Crônicas 3:19-20 não menciona qualquer deles como sendo filhos de Zorobabel. 5

A matança das crianças

Outra profecia relacionada com o nascimento de Jesus é a alegação de que o Messias nasceria numa altura em que o Rei Herodes mataria crianças. Só o evangelho de Mateus (2:16-18) alega isso, citando uma profecia de Jeremias (31:15, TNM) que diz que "Ouve-se uma voz em Ramá, lamentação e choro amargo; Raquel chorando por seus filhos. Negou-se a ser consolada por causa dos seus filhos, porque eles já não existem." Existem dois problemas com esta alegada profecia messiânica: não é uma profecia sobre matança de crianças e é duvidoso que alguma vez tenha existido tal matança de inocentes por Herodes. "Raquel chorando por seus filhos" refere-se à mãe de José e Benjamim (e esposa de Jacó) chorando pelos seus filhos levados cativos para o Egito. No contexto, este versículo refere-se ao cativeiro Babilônico, que o seu autor testemunhou. Versículos subsequentes falam do regresso das crianças, e portanto referem-se ao cativeiro em vez de assassinato. A matança feita por Herodes também é duvidosa pois o escritor de Mateus é a única pessoa que menciona esse evento. O historiador Flávio Josefo, que relatou cuidadosamente os abusos de Herodes, não o menciona.

Levado para o Egito

Mateus prossegue dizendo que para fugir aos assassinos de Herodes, Jesus foi levado enquanto criança para o Egito. Isto é feito, segundo Mateus 2:15 (TNM), "para que se cumprisse o que fora falado por Jeová por intermédio do seu profeta, dizendo: Do Egito chamei o meu filho." Isto é uma referência a Oséias 11:1, que não é de modo nenhum uma profecia. É uma referência ao Êxodo dos Judeus do Egito.

"Será chamado Nazareno"

No fim do mesmo capítulo de Mateus (2:23, TNM), o seu autor escreve que Maria, José e a criança Jesus estabeleceram-se em Nazaré "para que se cumprisse o que fora falado por intermédio dos profetas: Ele será chamado Nazareno." Não existe tal profecia nas escrituras Hebraicas, embora alguns aleguem que isto se refere a Juizes 13:5. Este versículo descreve um anjo a falar com a mãe de Sansão, dizendo-lhe que o filho dela "se tornará nazireu". Não só isto não é uma profecia messiânica como também não pode ser aquilo a que Mateus se referia. Um nazireu é muito diferente de um Nazareno. Um Nazareno é um habitante de Nazaré, ao passo que um nazireu é um Judeu que tomou votos especiais para se abster de todo o vinho e uvas, não cortar o cabelo e realizar sacrifícios especiais (veja Levítico 6:1-21). Jesus bebeu vinho (Mateus 26:29, Marcos 14:25, Lucas 22:18), portanto não pode ter sido um nazireu.

Profecias sobre o ministério

Alegadas profecias sobre a vida e o ministério de Jesus dizem que ele seria precedido por um mensageiro (isto é, João Baptista), que ele teria um ministério na Galileia, que ele realizaria milagres, e que teria uma entrada triunfal na cidade de Jerusalém, montado num jumento.

Precedido por um mensageiro

A primeira destas, que ele seria precedido por um mensageiro, refere Isaías 40:3, que reza: "Uma voz grita: Abri no deserto um caminho para o Senhor, aplanai na solidão as veredas para o nosso Deus." (MC) Este versículo não fala de um mensageiro do Messias, fala dos Judeus sendo libertados do cativeiro Babilônico. Outro versículo que se diz apresentar a mesma profecia é Malaquias 3:1, que diz: "Eis que vou mandar o Meu mensageiro, o qual preparará o Meu caminho diante de Mim...." (MC) Esta pode ser tomada plausivelmente como uma profecia messiânica. Mas será que João Baptista realmente 'preparou o caminho' como mensageiro para Jesus? O historiador Flávio Josefo escreve sobre João Baptista mas não relaciona o seu nome com o de Jesus (Antiquities of the Jews 18.5.2; Josefo (1985), p. 382). Os escritos cristãos mais antigos, as cartas de Paulo, não fazem qualquer referência a João Baptista. Os evangelhos (e o livro de Atos, escrito pelo autor de Lucas) são a única evidência real de um elo [entre João Baptista e Jesus]. Mas a evidencia dos evangelhos não é consistente. O evangelho de João mostra João Baptista reconhecendo explicitamente Jesus como o Messias (João 1:25-34) antes de ser lançado na prisão por Herodes (João 3:23-24). Mas os evangelhos de Mateus (11:2-3) e Lucas (7:18-22) descrevem João Baptista, na prisão, enviando os seus discípulos a Jesus para perguntar se ele alega ser o Messias. Se a história de João fosse verdadeira, João Baptista não teria razão para fazer aquela pergunta.

Ministério na Galileia

Missionários alegam que o ministério de Jesus na Galileia é profetizado em Isaías 9:1, que diz: "... no tempo passado humilhou a terra de Zabulon e a terra de Neftali, no futuro cobrirá de glória o caminho do mar, a Transjordânia e a Galileia das nações." (MC) A única coisa que este versículo diz é que D'us fará a área "gloriosa" — não diz nada sobre o ministério do Messias. Os versículos seguintes (Isaías 9:6-7) falam de uma criança que nasceria no futuro e que seria rei, "o qual se chamará Conselheiro admirável, Deus forte, Pai Eterno, Príncipe da Paz." A tradição judaica diz que isto se refere ao Rei Ezequias, não ao Messias. Isaías 9:7, se aplicado a Jesus, não se cumpriu, pois fala do seu reino.

Milagres

Profecias sobre as curas milagrosas de Jesus são supostamente encontradas em Isaías 35:5-6 e Isaías 32:3-4. Este texto não menciona curas, mas diz que "Os olhos dos que vêem não se ofuscarão, e os ouvidos dos que ouvem estarão atentos. Os espíritos dos insensatos entenderão a ciência, e a língua dos tartamudos exprimir-se-á com prontidão e clareza." (MC) Diz-se ainda que isto ocorrerá durante o reinado de um rei (Isaías 32:1), o que não ocorreu em Israel durante o ministério de Jesus. O outro texto, por outro lado, descreve pessoas sendo curadas ("Então se abrirão os olhos do cego, e se desimpedirão os ouvidos dos surdos", MC) mas também, nos versículos 7 e 8, descreve a terra como sendo "curada". Não existe aqui qualquer indicação clara de que estas curas tenham algo que ver com o Messias, em vez disso, é o próprio D'us que faz as curas. Os evangelhos não contêm qualquer relato de Jesus curando a terra.

Entrada triunfal em Jerusalém, montado num jumento

Uma última profecia relacionada com a vida e o ministério de Jesus é Zacarias 9:9, que diz: "Eis que o teu Rei vem a ti... humilde, montado num jumento, no potrinho de uma jumenta." (MC) Novamente, Jesus não era rei, portanto esse aspecto da profecia continua sem cumprimento. O alegado cumprimento desta profecia também é problemático. Segundo Marcos (10:11-19), Lucas (19:28-38) e João (12:12-19), Jesus entrou em Jerusalém montado num jumento. Mas Mateus 21:1-11 apresenta Jesus montado tanto num jumento como num potro, o que indica que ele se equivocou com a profecia.

Profecias sobre a traição

Várias das alegadas profecias estão relacionadas com a traição de Jesus por Judas. Estas incluem profecias de que Jesus seria traído por um amigo por trinta moedas de prata e que este dinheiro seria lançado no templo e usado para comprar um campo de um oleiro. Dois versículos que são tomados como profecias de traição por um amigo são Salmos 41:9 e Salmos 55:12-14, o último dos quais diz: "Mesmo o meu amigo próximo, em quem eu confiava, que comia o meu pão, levantou o seu calcanhar contra mim." Ambos são salmos que falam de sentimentos de dor por ter sido traído por um amigo próximo em quem se confiava. Mas Jesus já tinha presciência da sua traição por Judas (João 13:21-26), e por isso não deve ter confiado nele. Quando o evangelho de João (13:18) cita o Salmo 41:9, admite tacitamente este problema ao omitir a expressão "em quem eu confiava". Nenhum destes versículos das escrituras hebraicas dá qualquer indicação de ter sido originalmente escrito com intenções proféticas.

Mateus 26:14-15 declara que foram pagas a Judas Iscariotes trinta moedas de prata pelos sacerdotes Judeus como pagamento pela sua traição. Mateus 27:9-10 alega que isto é feito para cumprir uma profecia de Jeremias:

"Cumpriu-se, assim, o que fora dito pelo profeta Jeremias: Tomaram as trinta moedas de prata, preço em que foi avaliado Aquele que os filhos de Israel avaliaram, e deram-nas pelo campo do oleiro, como o Senhor me havia ordenado."

O problema aqui é que o versículo citado não aparece em nenhuma parte do livro de Jeremias. Existe um versículo que é muito similar no livro de Zacarias, mas ali o profeta Zacarias está a falar de si mesmo e não está envolvida qualquer traição. O missionário Gleason Archer (1982, p. 345) tenta resolver este problema citando vários versículos em Jeremias que se referem ao "profeta comprando um campo em Anatot por um certo número de siclos" (32:6-9), "o profeta vendo um oleiro modelando vasos de barro na sua casa" (18:2), "um oleiro perto do templo" (19:2), e D'us dizendo: "Quebrarei este povo e esta cidade como se parte um vaso de oleiro" (19:11). Porque é que Archer escreve "um certo número de siclos" em vez de dar o número especificado em Jeremias? Porque Jeremias 32:9 diz dezessete siclos, não diz trinta. O que Archer fez aqui foi simplesmente procurar as palavras "oleiro", "siclo" e "campo", numa tentativa de argumentar que Mateus estava realmente a referir-se a Jeremias em vez de Zacarias. Mas realmente não há dúvida que Mateus se queria referir a Zacarias em vez de Jeremias. Compare com Zacarias 11:12-13:

"Eu disse-lhes: Se vos parece bem, dai-me o meu salário; se não, guardai-o. Eles pagaram-me pelo meu salário trinta moedas de prata. O Senhor disse-me: Arroja esse dinheiro no tesouro, essa bela soma pela qual avaliaram os teus serviços. Tomei as trinta moedas de prata e lancei-as no tesouro da casa do Senhor."

Novamente, isto é Zacarias falando da sua própria experiência em vez de ser uma profecia messiânica. Mas Mateus 27:5-7 tenta cumprir esta não-profecia contando uma história de Judas Iscariotes lançando o seu pagamento no templo antes de cometer suicídio, depois do que os sacerdotes usam o dinheiro para comprar um campo de um oleiro. Esta história não aparece nos outros evangelhos (embora Atos 1:18-19 diga que foi o próprio Judas, em vez de serem os sacerdotes, quem comprou o campo com o dinheiro (cuja quantidade não é especificada) ganho com a sua traição.

Outro problema com esta alegada profecia é que os manuscritos mais antigos (Siríaco) de Zacarias versículo 13 nem sequer contêm a palavra "oleiro" — em vez disso, têm "tesouro", que faz mais sentido mas prejudica ainda mais a sua credibilidade como profecia. (A Revised Standard Version apresenta o versículo como "Lancei-o no tesouro", com a tradução "para o oleiro" relegada para uma nota de rodapé.)

Profecias sobre a crucificação

Os missionários talvez estejam muito impressionados com várias alegadas profecias relacionadas com a crucificação de Jesus. Eles alegam que as escrituras hebraicas contêm profecias de que Jesus seria crucificado, que as suas vestimentas seriam divididas através do lançamento de sortes, que lhe dariam vinho misturado com fel ou mirra, que ele gritaria sobre ser abandonado, e que nenhum dos seus ossos se quebraria.

Seria crucificado

Existem vários versículos que são encarados como referindo-se à crucificação: Salmos 22:16, Zacarias 12:10, e Zacarias 13:6 são exemplos típicos. Salmos 22:16 diz: "Sou rodeado pelos cães; envolvido por um bando de malfeitores; trespassaram as minhas mãos e os meus pés". Este é um salmo de Davi que não dá indicação de ser profético e que se descreve a si mesmo sendo caçado e morto em vez de ser crucificado. Gerald Sigal argumenta que a palavra hebraica traduzida aqui por "trespassaram" significa "leão", e portanto uma tradução mais exata seria "como um leão [eles estão a morder] as minhas mãos e os meus pés." [N. do T.: a tradução Missionários Capuchinhos (católica) diz, numa nota de rodapé: "O hebraico] diz: «como um leão, as minhas mãos e os meus pés». O targum explica: «eles morderam como um leão»."] Gleason Archer, contudo, argumenta que "eles trespassaram" está correto, baseado na tradução Septuaginta e noutras considerações.

Zacarias 12:10 (MC) diz "... eles voltarão os seus olhos para Mim. Quanto àquele que traspassaram, chorá-lo-ão como se chora um filho único; chorá-lo-ão amargamente como se chora um primogénito." O evangelho de João (19:37) encara isto como sendo uma profecia cumprida na crucificação de Jesus, mas não há indicação de que Zacarias fale de crucificação. Além disso, o 'ele' sendo lamentado não é o 'eu' que está sendo traspassado. A interpretação Judaica deste versículo é que D'us está a falar do povo de Israel sendo "traspassado" ou atacado.

Zacarias 13:6 (MC) diz: "Que ferimentos são esses nas tuas mãos [a RSV diz "entre os teus braços"]?", referindo-se a alguém que afirma não ser profeta e que foi vendido como escravo na sua juventude (Zacarias 13:5). Ferimentos entre os braços não são característicos de crucificação e Jesus nem foi vendido como escravo nem afirmou que não era profeta.

Lançadas sortes sobre as vestimentas

Apenas o evangelho de João fala das vestimentas de Jesus sendo divididas entre os soldados e o lançamento de sortes sobre a sua túnica (João 19:23-24), e ele cita Salmos 22:18 como a profecia que é cumprida dessa forma. Este último versículo diz: "repartem entre si as minhas vestes e lançam sortes sobre elas." Este versículo conta um evento — roupas sendo divididas através do lançamento de sortes. Mas João transforma-o em dois eventos: primeiro a divisão da roupa de Jesus sem incluir a túnica (João 19:23) e depois o lançamento de sortes sobre a sua túnica (João 19:24). Parece que João criou uma história numa tentativa de providenciar um cumprimento para a sua compreensão equivocada de um versículo que não dá qualquer indicação de ter sido originalmente uma profecia.

Vinho misturado com fel ou mirra para beber

Mateus (27:34) fala de terem dado a beber a Jesus "vinho misturado com fel" e Marcos (15:23) diz que lhe ofereceram "vinho misturado com mirra". Ambos os versículos são encarados como referências a Salmos 69:21, que diz "Por alimento servem-me veneno, por bebida contra a minha sede, dão-me vinagre." A palavra hebraica traduzida aqui por "veneno" é "rosh", que significa veneno ou fel, e refere-se a alguma planta venenosa. O versículo diz que veneno está sendo colocado na comida, o que não se aplica à crucificação. Mirra, que não é venenosa, é referida pela palavra hebraica "mor", que não aparece em Salmos 69:21. Este salmo, que fala repetidamente de águas de uma inundação, não dá qualquer indicação de ser profético nem de se aplicar a Jesus.

"Por que me abandonaste?"

Os evangelhos de Mateus (27:46) e Marcos (15:34) dizem que as últimas palavras de Jesus foram: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?", uma citação do Salmo 22:1. Lucas (23:46) diz que as últimas palavras de Jesus foram "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito", enquanto João (19:30) apresenta Jesus a dizer: "Acabou-se." Só a primeira destas frases é alegadamente um cumprimento de profecia, no entanto dificilmente se poderá dizer que é miraculoso ter Jesus feito tal declaração. Presumivelmente Jesus estava familiarizado com as escrituras hebraicas. Tal observação, contudo, é inconsistente com a teologia cristã. Por que é que Jesus, que é supostamente D'us encarnado, falaria de ser abandonado por si mesmo em qualquer circunstância, quanto mais na culminação do seu plano para a salvação humana? Também não é evidente que Salmos 22 quer seja profético, quer aplicável a Jesus.

Nenhum dos seus ossos seria quebrado

Uma última profecia que desejo examinar, relacionada com a crucificação de Jesus, é que os ossos dele não seriam quebrados. Só o evangelho de João (19:32-36) afirma isso, dizendo que os soldados quebravam as pernas das vítimas da crucificação para apressar as suas mortes, no entanto pouparam Jesus pois ele já estava morto. João 19:36 cita Salmos 34:20: "Ele guarda cada um dos Seus ossos, nem um só será quebrado", como sendo a profecia que é cumprida dessa forma. Não há qualquer indicação de que Salmos 34 tenha sido escrito com intenções proféticas, nem que se aplique a Jesus. A intenção do evangelho de João é representar Jesus como um sacrifício, correspondendo especificamente ao cordeiro pascal (por exemplo, João 1:29, 36). Um requerimento do cordeiro pascal é que nenhum dos seus ossos seja quebrado (Êxodo 12:46, Números 9:12). Mas esta analogia falha por várias razões: o cordeiro pascal não era para expiação de pecado, e requeria-se que os sacrifícios judeus estivessem completamente sem deformidades físicas, chagas ou ferimentos (Levítico 22:20-25) ao passo que Jesus foi açoitado [chicoteado] e mutilado (João 19:1).

Conclusão

Este exame mostra que nenhuma delas é uma predição específica, detalhada e exata de um evento que tenha ocorrido na vida de Jesus. Em vez disso, as supostas profecias parecem ser o resultado de tentativas deliberadas por parte dos escritores dos evangelhos para encontrar similaridades entre eventos descritos no Novo Testamento e nas escrituras hebraicas.

------------------------------------------------------------------------------------------------

Notas

1 - Poderia argumentar-se (e é o que têm feito Judeus desde o terceiro século) que Jesus desencaminhou os Judeus da sua religião e por isso era um falso profeta. Veja Sanhedrin 43a no Talmude Babilônico.

2 - Deve-se notar que alguns missionários alegam que o sentido pretendido é "virgem" porque os tradutores judeus do Velho Testamento para o grego (a Septuaginta) usaram a palavra grega "parthenos" ("virgem") para "almah" ao traduzirem este versículo. Isto provavelmente indica, em vez disso, que Mateus usou a Septuaginta. Gerald Sigal indica um caso (Gênesis 34:3) em que a Septuaginta usa "parthenos" para a palavra hebraica quando a mulher em questão não é de modo nenhum uma virgem (veja Gênesis 34:2). também indica que traduções posteriores de Isaías, por Aquila, Theodocion, Lucian e outros não usaram "parthenos" ao traduzir "almah" em Isaías 7:14.

3 - A resposta missionária usual é invocar a doutrina do "duplo cumprimento" das profecias. Note que isto, combinado com a opinião cristã de que "almah" significa "virgem", implica que o Cristão tem de aceitar dois nascimentos virginais.

4 - O evangelho de João não diz nada sobre Jesus ser de Belém, mas em vez disso diz que ele é de Nazaré, na Galileia. Veja João 1:45-46 e 7:41-42, 52.

5 - Existem duas tentativas que costumam ser feitas para resolver estas contradições. A mais comum entre os missionários é alegar que a genealogia de Lucas é a de Maria, não a de José. Isto não explica a repetida convergência seguida de divergência que notamos à medida que analisamos as duas genealogias. Também não explica por que é que a genealogia de Lucas contém quase duas vezes mais ancestrais do que Mateus no mesmo período de tempo. Ainda outro problema é que essa explicação entra em conflito com a tradição católica que diz que os pais de Maria foram Joaquim e Ana. Uma segunda explicação, preferida pelos católicos, é que cada caso de divergência é o resultado de casamento de Levirato. Isto é, os pais discrepantes são irmãos uns dos outros, e quando um deles morreu, o outro casou com a esposa do seu irmão (veja Deuteronómio 25:5). Esta explicação também não explica a diferença no número de ancestrais.

6 - Miquéias 5:2 (nascido em Belém), Malaquias 3:1 (precedido por um mensageiro), Zacarias 9:9 (entra em Jerusalém montado num jumento), Zacarias 13:6 (traído por um amigo, ferido nas mãos), Zacarias 11:12 (traído por trinta moedas de prata), Zacarias 11:13 (prata lançada no templo e usada para comprar campo de oleiro), Isaías 53:7 (fica silencioso perante acusadores) e Salmos 22:16 (mãos e pés traspassados). Todos estes, exceto o versículo de Isaías, foram examinados acima.


segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Christopher D. Stanley, Catherine Hezser, e o letramento das sociedades nos estudos históricos do judaísmo de Jesus

O baixo nível de letramento das sociedades mediterrâneas dos primeiros séculos, em geral, e das comunidades rurais, em particular, não era levado em consideração nos estudos históricos do judaísmo de Jesus e sua continuação, o cristianismo primitivo. O estudo antropológico comparado de culturas, antigas e modernas, em que a comunicação é marcadamente oral trouxe novas luzes para a compreensão da transmissão primitiva das tradições de e sobre Jesus.

Não se encontra em parte alguma do material cristão, intra ou extracanônico, qualquer recomendação por parte do Jesus histórico (ou que a ele tenha sido atribuído) para que seus seguidores registrassem por escrito seus ditos e feitos para a posteridade. Antes, o que se observa, em vários ditos de diferentes seções do cristianismo, são menções explícitas a um programa de disseminação de uma mensagem, atrelada à interiorização e à exemplificação de um estilo de vida cujo meio primordial de transmissão seria a palavra falada. Implica dizer, a comunicação face a face, coletivamente repartida.

É inegável, porém, que os homens e mulheres que aderiram ao programa político-religioso do Reino de Deus, no espaço de algumas décadas, legaram substancial corpo de textos das mais variadas espécies e gêneros. Como declara Harry Gamble, “nenhum grupo religioso greco-romano produziu, usou ou deu valor a textos em escala comparável ao Judaísmo e ao Cristianismo, de tal modo que, excetuando a literatura judaica, não há um corpo apreciável de escritos religiosos com que a literatura cristã primitiva possa ser proveitosamente comparada.”

Com efeito, houve um espaço de tempo, aqui considerado como a transição do Jesus histórico ao cristianismo mais primitivo, em que as memórias dos feitos e ditos do milagreiro de Nazaré, mais ou menos afetadas por fatores emocionais, foram recordadas, criadas, desenvolvidas, alteradas, melhoradas, expandidas, abreviadas, contestadas e também esquecidas.

Essas memórias, não obstante esses fatores, circulavam e eram transportadas pelos seguidores que permaneceram ligados ao grupo de Jesus, ainda que não exclusivamente, mas essencialmente, tal qual projetada e vivenciada pelo próprio Jesus durante seu ministério público: por peregrinos em movimento no curso de pregações comunitárias.

Esse estágio intermediário, portanto, requer uma abordagem que leve em conta o mundo social das primeiras comunidades de judeus e gentios que se cristianizaram, ou seja, considerando: (a) o não-letramento massivo da população e (b) o papel desempenhado pela comunicação oral em todas as camadas sociais que caracterizam a época em que as tradições primitivas de e sobre Jesus eram transmitidas.

Nesse sentido, Christopher D. Stanley pondera que, virtualmente, todos os pesquisadores do Novo Testamento parecem divisar um mundo em que os autores cristãos escreviam para congregações letradas que cultivavam o hábito de ler, estudar e discutir entre si acerca das escrituras judaicas e os escritos das lideranças cristãs. Com efeito, embora vários estudiosos reconheçam que os baixos níveis de letramento estavam entre um dos fatores que contribuíram para a transmissão oral das tradições de e sobre Jesus antes de sua composição na forma de evangelhos, eles têm pouco a dizer sobre como esse baixo letramento poderia ter afetado o uso dos evangelhos nas comunidades primitivas após eles terem sido escritos. Ou seja, a maioria dos estudiosos contemporâneos trabalha com um modelo social que pressupõe níveis de letramento no interior das primeiras comunidades cristãs que variam de médio a alto.

Entretanto, quão realista é esse modelo? É evidente que estimar a extensão do letramento dentro das comunidades judaico-cristãs do primeiro século constitui-se num empreendimento incerto, embora alguns estudiosos concordem que pelo simples fato de que os evangelhos foram escritos e preservados implica um substancial conhecimento da escrita à medida que não faria sentido para seus autores compor textos para pessoas que não os pudessem ler. O problema dessa posição é que ela admite aquilo que precisa provar, ou seja, que os textos eram escritos para ser lidos e estudados por judeus cristãos comuns.

Outros acadêmicos argumentam que o aparecimento freqüente de citações e alusões bíblicas nos escritos cristãos indicaria um substancial grau de letramento nas comunidades primitivas. Por trás desse argumento jaz a crença de que os autores neo-testamentários esperavam que suas audiências fossem capazes de identificar todas as referências explícitas e muitas de suas alusões implícitas às escrituras judaicas. O que os pesquisadores não provam é como os primeiros seguidores obtiveram tão alto nível de letramento bíblico.

Segundo Stanley, uma porção de estudos recentes questionou se o letramento entre os judeus da antiguidade era, de fato, tão alto quanto anteriormente se pensava. Uma inspeção mais detida das evidências persuadiu muitos pesquisadores de que os textos utilizados como argumentos a favor de um letramento judaico amplamente disseminado estavam, em verdade, falando acerca de subgrupos especiais situados no interior da comunidade judaica. Catherine Hezser concluiu, após exaustivo levantamento de evidências literárias e epigráficas na Palestina romana, que pouquíssimos judeus eram capazes de ler textos simples e assinar seus próprios nomes durante a era imperial.

A autora descreve o letramento entre os judeus por meio da imagem de círculos concêntricos no qual o círculo central seria ocupado por um número muito pequeno de pessoas altamente letradas que podia ler textos em hebraico/aramaico e em grego. O círculo seguinte seria composto por pessoas que podiam ler textos em hebraico/aramaico ou em grego. Em torno desses dois círculos, haveria um terceiro, formado por pessoas que não conseguiriam ler textos literários, mas seriam capazes de ler somente listas ou cartas. Uma proporção bem mais ampla da população conseguiria identificar letras, nomes e rótulos e, finalmente, a vasta maioria da população que tinha acesso a textos apenas por meio de intermediários.

Ao mesmo tempo, vem crescendo uma consciência, como assegura Richard Horsley , que as comunicações na Galileia, assim “como em outras partes do império romano, eram em grande parte orais, mesmo entre os letrados. A escrita tinha pouca importância, a não ser para certas funções da elite”. Percepção bastante similar à oferecida por Eric Havelock, segundo a qual, “dos egípcios e sumérios aos fenícios e hebreus (para não mencionar os indianos e os chineses), a escrita nas sociedades onde era praticada restringiu-se às elites clericais ou comerciais, que se davam ao trabalho de aprendê-la”.

Por conseguinte, Horsley sugere que três fatores sejam reconhecidos: (1) no mundo antigo, pouquíssimas pessoas tinham as habilidades mínimas para ler; (2) a escrita estava a serviço, principalmente, da comunicação oral e (3) dadas as disponibilidades limitadas e a utilização proibitiva de rolos escritos tais como os das Escrituras Judaicas, o cultivo das tradições culturais israelitas se dava através da memória e da comunicação oral.

WERNER KELBER E AS LIMITAÇÕES DA CRÍTICA DAS FORMAS

Nos anos recentes, o campo dos estudos bíblicos histórico-críticos deparou-se com inovações em três áreas inter-relacionadas que apresentaram desafios fundamentais às suposições padrão até então predominantes: (a) na década de 70, alguns intérpretes começaram a ler os evangelhos intracanônicos como narrativas globais e não com o olhar centrado sobre alguns ditos e passagens; (b) na década de 80, começaram a despontar explorações sobre a comunicação oral que era predominante no mundo antigo e suas conseqüências para os materiais evangélicos e (c) nos anos 90, a memória cultural chamou a atenção de pelo menos alguns intérpretes como um fator central na composição e apropriação da literatura bíblica, em especial no que tange aos evangelhos.

Nessas três áreas inter-relacionadas, Werner Kelber foi um dos pioneiros em todas. Ele foi um dos primeiros a explorar o evangelho de Marcos como uma narrativa com um enredo central e não como uma espécie de “rosário”, no sentido de uma série de pequenos episódios e situações interligados por acidentes geográficos. Ele foi um dos primeiros a reconhecer que os evangelhos foram compostos e recebidos em um mundo dominado pela comunicação oral. Em conseqüência desses insights, Kelber demonstrou que as narrativas evangélicas foram produzidas por e a partir da memória cultural. Suas incisivas investigações nessas áreas conduziram a mudanças decisivas na abordagem e no entendimento do evangelho de Marcos. No entanto, como pondera Richard Horsley, nos estudos bíblicos “a inovação nem sempre é bem-vinda e é, às vezes, suspeita”.

Assim, uma das principais premissas que fundamentam toda a pesquisa de Kelber consiste na percepção de que a “consciência humana é estruturada em pensamentos pelas formas de comunicação disponíveis”. Por conseguinte, “o meio oral, em que as palavras são dirigidas da boca para o ouvido, manuseia a informação diferentemente do meio escrito, que liga os olhos a visíveis, porém silenciosas, letras sobre páginas e páginas”.

Porém, ele prossegue, a atual pesquisa bíblica acadêmica é, num grau elevado, um produto das forças interdependentes da lógica e da cultura impressa. A lógica, como é sabido, foi formalizada com a ajuda da escrita.

O surgimento do alfabeto converteu a linguagem falada em artefatos que facilitaram a indexação de sons em um número limitado de símbolos. Um triunfo da lógica em si mesmo, a alfabetização da linguagem veio a servir, de maneira crescente, como um catalisador na formação e implementação do pensamento abstrato. Mais tarde, a impressão despersonalizou as palavras e transformou a cultura manuscrita, fortalecendo a linguagem com um senso de objetivação desconhecido até então.

No entanto, fora dos estudos bíblicos observa-se uma ampliação da consciência que os padrões de regularidade linguística e as noções de propriedade verbal fixa não são empregáveis em culturas quirográficas e inaplicáveis para o discurso oral. Nesse sentido, reitera Kelber, “a reificação e neutralização de textos, embora altamente análogo ao processamento tipográfico da linguagem, fez-nos esquecer que as quirografias antigas nasceram, tanto pelo ângulo da composição quanto do ângulo da recepção, em um meio saturado por sensibilidades orais”.

Precisamente porque documentos escritos a mão não eram percebidos como sendo entidades estritamente autônomas com fronteiras impermeáveis, eles interagiam, em parte e no todo, com o discurso oral. Isso é excessivamente difícil para nós entendermos porque os métodos que empregamos nos estudos bíblicos instilaram em nós a idéia de entidades textuais autônomas, que cresceram de textos, ligaram-se diretamente a outros textos e, por sua vez, geraram outros textos.

Kelber assinala que os cristãos primitivos viviam em um mundo que não era estranho ao letramento, mas um sentido de dominação por textos e da primazia das palavras escritas é uma experiência do mundo que ocorre somente depois de Johannes Gutenberg. Por toda a antiguidade, ele prossegue, a escrita estava nas mãos de uma elite de especialistas treinados e a leitura exigia uma educação avançada disponível somente para poucos. Em função da vasta maioria das pessoas estarem habituadas à palavra falada, muito do que era escrito destinava-se à recitação e à escuta. A prática da escrita, ele considera, não transformou o letramento num novo modelo de comportamento linguístico, nem foram as formas e hábitos do discurso oral sumariamente extintos pela literatura.

Em seu ponto de vista, a escrita era, na antiguidade, essencialmente, um produto da urbanização e de povoados compactos, enquanto nas áreas rurais a linguagem era quase inteiramente confinada a comunicação face a face. À medida que o movimento liderado pelo Jesus histórico nasceu em e disseminou-se por ambientes rurais, Kelber considera que a fala era a norma das comunicações mais do que a circulação de textos.

Não sobram dúvidas que todos os evangelhos canônicos sustentam um retrato geral de Jesus como um proclamador de autorizadas e freqüentemente perturbadoras palavras, mas jamais como um leitor, escritor ou líder de uma escola. À proporção que ele é caracterizado como um orador profético e um mestre escatológico, deslocando-se de um lugar para outro, rodeado de ouvintes e envolvido em uma série de debates, os evangelhos terão retido um aspecto genuíno de um pregador oral. Consoante Kelber, “sua mensagem e sua pessoa estão ligadas, inextricavelmente, à palavra falada, não a textos”.

Por conseguinte, ele declara, “diferente de Sócrates, Jesus não tinha um herdeiro letrado que colecionasse e interpretasse sua mensagem. Ele pregou e recrutou mais entre a população rural da Galileia do que entre a classe média urbana”. Convém ressaltar que as palavras de Jesus, segundo Kelber, não estavam destinadas a serem memorizadas pelas autoridades, mas para serem lembradas pelas pessoas comuns e seus seguidores mais próximos. Mais que isso, Kelber também lança dúvidas se o Jesus histórico, “narrador de parábolas e proclamador de aforismos”, e os primitivos “escribas e recitadores” que mais adiante aderiram ao movimento, estavam comprometidos, como nós estamos, com um “ethos de pura formalidade, linearização do pensamento, compartimentação da linguagem, causalidade estratigráfica”.

Nesse sentido, o historiador moderno, persuadido da natureza literário-teológica dos evangelhos e resolvido a lidar com a mensagem de Jesus vê-se confrontado com a questão da fala. Por conseguinte, o primeiro evangelho canônico – Marcos – traria em si sua dívida para com a vida oral e a consciência não-letrada. Se primeiro veio à fala e se ela ajustou os padrões linguísticos para a tradição sinótica, uma importação de aspectos orais para esse evangelho deve ser admitida. Consoante seus argumentos, “a menos que se veja o texto [o texto de Marcos] como um corpo errante caído do céu, é razoável esperar conexões com o que precedeu sua existência”.

Em suma, Kelber destaca a formação de um paradigma que resultou das análises da Crítica das Formas inteiramente inconsistente com as realidades sociais da época e do meio em que a tradição sinótica entrou em circulação. De fato, ele sublinha, o letramento está tão profundamente implantado em todos os acadêmicos que estudam os textos bíblicos que é imensamente difícil evitar tomá-lo como o meio de comunicação normal e como a única medida da linguagem.

OUVINDO MARCOS E Q COMO PERFORMANCES ORAIS

Rompendo com o paradigma constituído pela Crítica das Formas, Kelber também chamou a atenção que qualquer investigação das dinâmicas da tradição e da cultura deve iniciar com uma abordagem sobre o papel da linguagem nas comunidades.

De acordo com Jonathan Draper, a linguagem é moldada pela interação humana, mas também molda essa interação, tanto pela ampliação quanto pela limitação, das possibilidades de comunicação. A linguagem, ele prossegue, também nos socializa dentro de hierarquias e classes sociais e marca nosso status social em termos da linguagem que falamos. Por conseguinte, a comunicação é uma interação entre sistema linguístico, cultura e estrutura/classe social.

Entre esses fatores, a estrutura/classe social afeta a comunicação de duas maneiras fundamentais. Em primeiro lugar, o dialeto é um aspecto importante de estrutura e classe. Apesar de diferentes dialetos se desenvolverem, normalmente, em diferentes espaços geográficos, eles tornam-se implicados na manutenção do status social. Assim, o dialeto de uma região dominante passa a ser a linguagem falada e escrita padrão do centro de poder em uma dada sociedade. Em segundo lugar, a comunicação também é afetada por um código socialmente determinado. Pesquisas empíricas nessa área mostram que crianças, originárias da classe média e da classe operária, são socializadas diferentemente por seus pais no que tange ao uso da linguagem, de modo que, pela linguagem empregada, pode-se presumir a classe social da criança.

Assim, à medida que as teorias linguísticas modernas têm enfatizado o quão importante é reconhecer o papel que a classe/estrutura social exerce sobre a comunicação, convém atentar para dois aspectos: (a) Jesus e seus companheiros provinham das classes menos favorecidas da sociedade de Israel. Como as narrativas intracanônicas fornecem indicações claras, eles eram pescadores, camponeses, pequenos agricultores; (b) embora só apareça em Mateus (26:73), encontra-se uma referência ao fato de os companheiros de Jesus possuírem um dialeto ou sotaque distintivo: “Pouco depois, os que lá estavam disseram a Pedro: „De fato, também tu és um deles; pois o teu dialeto te denuncia.”

Portanto, à luz das teorias sócio-linguísticas, a origem social dos missionários judeus cristãos pode ter afetado mais do que simplesmente o conteúdo de seu ensino; deve ter determinado e canalizado o processo comunicativo como um todo.

Implica dizer, o iletramento, a estrutura/classe social e o dialeto dos primeiros seguidores de Jesus que se dedicaram à disseminação do “evangelho” afetaram, substancialmente, a performance da mensagem. Não no sentido de empobrecimento, mas no de distingui-lo das performances executadas por sujeitos letrados.

Ademais, John Milles Foley defende o argumento que o contexto oral de uma performance oral fixada em um texto escrito pode ser reconstruído, visto que ela sobrevive em forma retórica. Essa reconstrução foca sua atenção sobre os indicadores chaves da performance oral na literatura que são aliterações, assonâncias, rimas, repetições, paralelismos e ritmos. Com efeito, todos esses indicadores são auxiliares da memória e artifícios para a fluência da declamação das histórias orais diante de audiências. Cumpre ressaltar que linguagem arcaica, fórmulas, imagens e linguagem simbólica são todas também encontradas em “textos” orais, como aspectos metonímicos. Outras ajudas à composição oral, a maior parte das quais são perdidas na transmissão escrita, são as canções, entonações da voz, acompanhamento por instrumentos musicais, diálogos e resposta da audiência.

Com efeito, se for possível deduzir que várias dessas características da comunicação oral se mostram presentes em Marcos e/ou Q, ficará evidenciada a natureza oral daqueles escritos. Assim, mais do que mapear textos da antiguidade, sublinhando indicadores chaves de performances orais, cabe, tal como buscado em relação à memória, atentar para uma teoria, com base empírica, que fundamente a suposição de que Marcos e/ou Q são transcrições de comunicações orais.

Conforme o antropólogo Dell Hymes, que propõe a teoria dos versos rítmicos, as narrativas do povo Chinookan – índios norte-americanos nativos do Óregon – estão organizadas em termos de linhas, versos, estrofes, cenas e no que se poderia chamar de atos. Um conjunto de aspectos dos discursos diferenciam as narrativas dentro de versos. No interior desses versos, é possível observar a diferenciação de linhas por meio de verbos. Os versos, por sua vez, são comumente reunidos em grupos de três e cinco. Esses versos agrupados constituem estrofes e, onde a elaboração das estrofes é tal que exige algum tipo de distinção, elas viram cenas. E, em narrativas mais longas, as próprias cenas são organizadas em termos de uma série de atos.

Essas conclusões, Hymes obteve após analisar “textos” orais de quatro povos Chinookan, coletados por diversos antropólogos e por ele mesmo, desde o fim do século XIX até os primeiros anos da década de 70. Ele admite, porém, que, em seu primeiro paper sobre as narrativas daqueles povos nativos dos EUA, vários detalhes passaram despercebidos, mas, após acompanhar outros pesquisadores e suas hipóteses e teorias, resolveu reescrever seu trabalho com o objetivo de comentar a relevância desse tipo de análise para outras abordagens da literatura oral.

Enfim, Hymes constata que a descoberta de tal organização nas narrativas americanas nativas parecem de importância fundamental à proporção que podem fornecer os rudimentos de, ao menos, uma teoria da estrutura do discurso literário na cultura em questão.

Portanto, consoante essa teoria, cabe afirmar: (1) uma estrutura consistente existe na literatura oral que pode ser identificada por uma análise cuidadosa e (2) a estrutura pode ser vista em co-variações de forma e significado. É certo que essa teoria, admitidamente, consiste de dificuldades e incertezas, pois infere uma padronização extremamente genérica para todos os exemplares de comunicação oral do mundo.

As performances orais da Boa Nova, por carismáticos itinerantes, foram, em algum momento, registradas por escrito. Isso parece ser uma conclusão óbvia. Igualmente, parece evidenciado, que o registro escrito das performances, relevando as possíveis interferências dos escribas, assumiu contornos específicos e peculiares a cada um dos presumidos profetas, ou grupos deles, que disseminavam as tradições de e sobre Jesus.

Não obstante, há uma categoria de ditos de Jesus que, embora os discursos não sejam paralelos em Marcos e em Q, podem ser analisados comparativamente. Kelber os denomina estórias didáticas e cobrem uma variedade de diálogos de controvérsias e contos biográficos cujo cume é sempre um dito de Jesus aparentemente exarado para ficar retido na memória do orador e sua audiência. Definido dessa maneira há seis exemplos que fornecem evidências claras de uma formulação pré-textual: Jesus à mesa de Levi (2:15-17), Debate sobre o jejum (2:18-19), Arrancar espigas de milho no sábado (2:23-28), Discussão sobre o divórcio (10:2-9), Questão sobre as posses (10:17-22) e Pagamento de impostos a César (12:13-17). Segundo Kelber, todas assumem a mesma forma padrão, com uma variação ou outra.


segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Bruce J. Malina e o “grupo do Jesus Messias”



Antes de tudo, é importante dizer que neste artigo procuraremos discutir a origem do movimento de Jesus, e não da religião cristã, que surgiu nas décadas que se seguiram à crucificação de Jesus. Essa distinção é importante, pois ao longo das próximas páginas tentaremos demonstrar que o movimento de Jesus pode ser entendido como um fenômeno popular de reação contra a pressão sofrida pelos camponeses da Galiléia do século I por parte do império romano. Embora a religiosidade não possa ser separada de qualquer outra área da vida dos antigos judeus, nós o faremos aqui, simplesmente para que os aspectos políticos e econômicos daquela sociedade que foram preponderantes para a ação de Jesus, não sejam obscurecidos pelos supostos planos divinos como tantas vezes tem acontecido ao longo da história.


Começaremos tratando do império romano e sua forma de governo; do choque cultural e econômico que sua chegara trouxe para a Palestina; e do papel das cidades no sistema administrativo deste império. Deixaremos para a segunda metade do trabalho o movimento de Jesus, quando nos voltaremos para a tradição cristã descrevendo alguns dos eventos que nos conduzirão a uma compreensão do projeto de Jesus e do significado do “Reino de Deus”.


É preciso, dizer que esta pesquisa não traz alguma descoberta revolucionária sobre Jesus. Na verdade, praticamente todos os tópicos aqui abordados estão bem desenvolvidos pela pesquisa de diversos outros pesquisadores. Todavia, esses resultados alcançados após séculos de pesquisa ainda são desconhecidos da maior parte dos interessados no tema, aos quais gostaría de dirigir o presente esforço; e além disso, não se pode dizer que o problema do Jesus Histórico seja um caso esgotado, o que torna necessário a contínua revisão e o aperfeiçoamento dos resultados através de novas tentativas como essa à qual nos propusemos, a fim de que vez ou outra, novos e importantes passos sejam dados.


PALÁCIOS ENTRE FAZENDAS


Sabe-se a princípio, que a agricultura era a base da economia dos povos da antiguidade, o que pode-se tranquilamente aplicar aos moradores da Galiléia, região norte da Palestina, que no primeiro século foi o palco do nascimento do cristianismo. Naturalmente, quando falamos dos galileus dentre os quais nasceu o cristianismo, geralmente nos referimos a camponeses que viviam em aldeias do norte da Palestina de modo bastante tradicional, envolvidos especialmente com a produção de grãos. Porém, esse simplório cenário agrícola não é capaz de explicar a vida das pessoas que escreveram o Novo Testamento. Décadas antes do nascimento de Jesus, toda a Palestina viu-se diante de uma drástica mudança de caráter político que mudaria significativamente a vida de todos daquele lugar, e também determinaria as condições de vida das gerações subseqüentes. Estamos nos referindo ao início da dominação do império romano sobre a Palestina na segunda metade de século I a.C., que impôs à região uma agressiva transformação.


Antes de Roma, a Palestina já conhecera a vida sob a dominação de impérios estrangeiros que usufruíam do trabalho dos seus habitantes principalmente através da extorsão de excedentes agrícolas. Todavia, a comercialização romana era bem mais agressiva. A unidade política do império era mantida pelo controle militar em centros urbanos espalhados pelas províncias (ainda que nas extremidades desse império a fragilidade dessa dominação forçada se deixasse ver por meio de províncias revoltosas), e destes pontos estrategicamente controlados Roma apropriava-se dos camponeses tirando deles não apenas os excedentes agrícolas, mas também a terra e a dignidade.


Ao tratar da antropologia de classe aplicada aos estudos do cristianismo primitivo, John Dominic Crossan aproveita o trabalho do antropólogo John Kautsky para definir o império romano como umimpério agrário mercantil, que se diferencia dos impérios agrários tradicionais que dominaram a Palestina antes de Roma, e ressalta o que temos dito com as seguintes palavras:


“... no império agrário tradicional, a aristocracia toma o produto excedente da classe camponesa; no império agrário mercantil, a aristocracia toma a terra da classe camponesa. O primeiro devora o esforço e o produto dos camponeses, o segundo a própria identidade e dignidade deles [...] No império agrário tradicional, a terra é herança familiar a ser conservada pela classe camponesa. No império agrário mercantil, a terra é mercadoria empresarial a ser explorada pela aristocracia”.


A dominação romana só poderia, portanto, ser recebida pela classe camponesa da Palestina como uma força opressora e “demoníaca”. Forçava-os pela superioridade militar a aceitar um sistema de troca nada recíproco, onde no fim das contas até mesmo o direito a terra, que com base na Lei de Deus era propriedade exclusiva de Javé e herança intransferível dos camponeses, era-lhes negado.


Essa primeira aproximação em relação ao problema da violenta transição pela qual passou a Palestina entre os séculos I a.C. e I d.C. pede que aprofundemos o tema, a fim de que compreendamos melhor como exatamente se dava essa expropriação do fruto do trabalho da classe camponesa, e como tudo isso relaciona-se com o surgimento do cristianismo. A tarefa é extensa, e não temos espaço para tratar dela com todos os detalhes possíveis, motivo pelo qual tentaremos restringir nossas observações sempre à Galiléia, terreno que deu origem aos textos que neste trabalho abordaremos, e às épocas que envolvem suas origens.


Durante a vida de Jesus o domínio romano na Galiléia foi exercido através do tetrarca Herodes Antipas (4 a.C. a 39 d.C.), que tratava de cuidar na região dos interesses próprios e do império. Tão logo assumiu o poder, Antipas investiu na reconstrução da cidade de Séforis (atacada após a morte de seu pai, Herodes Magno) para que servisse como capital da Galiléia, posto de administração e arrecadação tributária, e praça de comando militar. De Séforis eram enviados os cobradores de impostos e os soldados que mantinham por meio da violência a “ordem pública”.


Embora a principal função de cidades como Séforis fosse facilitar o controle sobre os excedentes produzidos nos campos, estas cidades também eram focos da disseminação gradual da cultura helenista, tendo o grego como idioma, cunhando moedas, construindo ginásios e teatros etc. A corte durante os governos de Herodes Magno (rei-cliente de Roma que governou toda a Palestina de 37-4 a.C.) e Herodes Antipas era, culturalmente, um retrato da dominação internacional. O primeiro Herodes era um idumeu que vivera e estudara em Roma por alguns anos, cuja esposa era uma mulher samaritana. Antipas deu seguimento ao caráter gentílico e cosmopolita da elite casando-se primeiro com a filha do rei Aretas da Nabatéia, e depois com uma mulher asmonéia.6 Além de Séforis, também foi Antipas quem também deu início à construção de outra cidade de grandes proporções a trinta quilômetros de Séforis, à beira do lado da Galiléia, para fazê-la sua nova capital. Esta cidade foi concluída entre os anos 18 e 20 d.C. e chamada Tiberíades, em homenagem ao imperador Tibério (14-37 d.C.). O historiador judeu Flávio Josefo escreveu sobre a população original de Tiberíades com evidente desprezo pela gente que Antipas implantou ali, vinda de todas as partes (Ant. 18.36-38).


Deveras, durante a revolta dos judeus contra os romanos em 66-70 d.C., provavelmente era grande o número de gregos que habitavam Tiberíades, e em Séforis Richard Horsley acredita que a maior parte dos habitantes eram não-judeus. Ainda que isso não seja prova da predominância gentílica de Séforis durante a revolta, sabemos que naqueles dias de crise os aristocratas citadinos adotaram uma posição pró-romana, buscando a proteção de Vespasiano contra as ameaças dos revoltosos camponeses galileus, destruindo as próprias defesas para demonstrar que não resistiam à invasão romana. Não por acaso, diferentemente de Jerusalém, a cidade de Séforis sobreviveu à guerra e continuou a ser uma cidade de influência na região por séculos.


Mesmo que as poucas informações compartilhadas acima não sejam suficientes para nos fornecer um retrato completo (se é que isso é possível) da presença citadina na Palestina durante o primeiro século, podemos concluir com certa segurança que as cidades eram edificadas para receber as elites e os sistemas de manutenção do seu poder. Eram núcleos de onde uma minoria controlava e explorava os arredores e a maioria da população. Mas lá também se reunia um grande número de pessoas não tão “nobres” que viviam para satisfazer das mais diferentes maneiras as necessidades da elite. Ekkehard e Wolfgang Stegemann nos dão uma relação breve dos vários tipos de profissionais que constituíam as populações citadinas da seguinte forma:


“Na população da cidade há, entre outros, “funcionários públicos”, sacerdotes, eruditos, escrivães, comerciantes, servos, soldados, artífices, trabalhadores e mendigos. Ao lado destes, existe uma pequena elite que obtém o seu sustento da posse da terra e/ou de cargos políticos”.


Dentre os trabalhadores mencionados, podemos incluir ainda os que trabalhavam com o transporte, alguns professores, artistas, os ocupados com a construção, as prostitutas etc.


Apesar disso tudo, há quem prefira referir-se ao cosmopolitismo das cidades galiléias com maior cautela. Este é o caso de Gerd Theissen, que vê o helenismo das cidades da Galiléia mais como uma expressão de uma forma “moderna” de judaísmo do que como uma invasão generalizada da cultura greco-romana na Palestina. Aqui podemos dizer que além das autoridades nomeadas pelo império para administrar a província, eram moradores das cidades sacerdotes e outros judeus que conseguiram algum poder e status social a partir de suas funções e posses em relação à aristocracia estrangeira. Mark Chancey, a partir de pesquisas arqueológicas, tem demonstrado que mesmo nesses ambientes urbanos ainda havia predominância da cultura judaica. Isso é algo valioso para nós, já que depois da revolta de 66-70 d.C. e da destruição do Templo de Jerusalém, foi nos ambientes citadinos da Galiléia que se deu início a uma coalizão de judeus em busca de unidade religiosa, criando um movimento que hoje muitos chamam de judaísmo formativo. O evangelho citadino de Mateus mostrar-se-á uma evidência disso.


Fiquemos, em relação às cidades de Séforis e Tiberíades, com a imagem de que eram pólos da opressão da elite sobre o campo, e que embora essa elite sirva a Roma e possua um caráter cosmopolita inquestionável, também fazia parte desse grupo opressor a aristocracia judaica. Tentando atender às pesadas exigências tributárias do violento governo herodiano e também às cobranças dos impostos religiosos, os camponeses galileus enredavam-se em empréstimos oferecidos principalmente por funcionários da administração herodiana e aristocratas sacerdotais, dando a própria terra, sua fonte de sobrevivência que devia ser inegociável, como garantia de pagamento. A pesada extorsão de excedentes unida à desonesta comercialização agrária gerou um previsível e gradativo processo de endividamento que conduziu grande parte da classe camponesa à completa miséria. Enquanto a aristocracia vivia luxuosamente e poucos proprietários enriqueciam acumulando posses, entre os camponeses o empobrecimento era desesperador. Em determinados momentos, quem conseguia ao menos uma ocupação arrendando a terra de algum fazendeiro tinha que dar-se por satisfeito, posto que tantos outros camponeses menos afortunados vendiam-se como escravos ou tornavam-se marginais, vendo-se obrigados a recorrer à mendicância ou mesmo ao banditismo, fenômeno que alcançou proporções epidêmicas em certos períodos da dominação romana na região.


Essa exposição sucinta sobre o impacto da dominação romana e de suas cidades administrativas sobre a classe camponesa da Palestina, não foi e nem poderia ser completa. Mas ainda não a concluímos; a partir daqui, continuaremos tratando desse tema juntamente com nossa investigação a respeito da origem do Movimento de Jesus e do primeiro cristianismo, o que ilustrará com um exemplo historicamente marcante o que até então pudemos dizer.


Imposições Urbanas num Cenário Agrícola: o Movimento de Jesus


Diante do que já vimos, imaginamos sob que condições adversas nasceu entre os camponeses da Galiléia o homem Jesus de Nazaré. Uma particularidade a seu respeito que merece consideração é que Jesus desempenhava alguma atividade profissional como artesão, o que não o põe à parte da classe camponesa. No evangelho de Marcos 6.3 ele é descrito pelo termo grego tekton, e em Mateus 13.55 como filho de um tekton. Embora o termo na maioria das vezes seja traduzido por “carpinteiro”, também pode ser uma designação mais genérica para um artífice do setor da construção, que podia trabalhar não só com madeira, mas também com metais ou como pedreiro.


Como camponês/artesão da aldeia de Nazaré (que ficava a aproximadamente uma hora de caminhada de Séforis), não é difícil imaginar que Jesus pudesse estar por algum tempo ligado profissionalmente a Séforis, a primeira capital do governo de Antipas.21 Deveras, boa parte da mão-de-obra para a edificação e manutenção das grandes cidades era fornecida por pessoas como Jesus, saídas das pequenas aldeias ou cidades satélites. Mas, para que não façamos confusões imaginando Jesus como um trabalhador privilegiado, citemos outra vez John D. Crossan, que a partir do trabalho de G. Lenski sobre sociedades agrárias como a do império romano, disse que “Quanto à classe social, os artesãos eram inferiores, não superiores, aos agricultores camponeses”. Em geral, cada família camponesa produzia suas próprias cerâmicas e instrumentos em vez de comprá-las, o que torna o comércio destes produtos nem sempre uma opção lucrativa. Além disso, para um artesão o acesso à comida era indireto, e conseqüentemente passível às imposições de mediadores que podiam encarecer o produto.


A conclusão de Crossan é que o artesanato como meio de sobrevivência só era, em geral, uma opção daqueles aldeões cuja terra não era suficiente, seja pela má qualidade ou pelo crescimento populacional. Exceção a esta regra podem ser os casos em que através da participação de alguém com capital para investir na produção de artesanato transformasse a produção numa verdadeira indústria, o que da mesma forma não implicava em qualquer benefício para a classe camponesa.


Não há motivos para supor que Jesus fosse um camponês privilegiado por sua atividade profissional bem sucedida. Aliás, há um dado histórico que habitualmente não é relacionado à vida de Jesus, mas que pode ser bastante relevante para compreender sua trajetória, principalmente se imaginamos que Jesus manteve alguma relação profissional com Séforis: Herodes Antipas decidiu aumentar seu controle sobre a região da Peréia e mudar sua capital administrativa para Tiberíades, fato que já mencionamos brevemente. Embora Séforis não tenha se mudado ou esvaziado, pode ter acontecido de profissionais como Jesus sofrerem com a queda no volume de negócios, regredindo à marginalidade dos camponeses pauperizados. Este dado histórico pode não ter nenhuma relação com a direção tomada por Jesus, mas coincidentemente, foi nalgum momento após este período de mudança, durante os anos 20, que Jesus deixou a Galiléia em direção à Judéia e aderiu ao movimento do profeta João Batista (Mc 1.9).


Não é possível precisar quanto tempo Jesus esteve na Judéia, mas como se não bastasse tanta desventura, outra vez Herodes Antipas interfere na sua trajetória prendendo João Batista. Lemos nos evangelhos que João foi preso por criticar o casamento de Antipas com Herodíades, que fora sua cunhada (Mc 6.17-18; Mt 14.3-4; Lc 3.19), mas Crossan tem ressaltado o sentido político da crítica do profeta como o fator principal de sua prisão. Ao ver que Antipas pretendia aumentar a popularidade do seu governo por meio do governo com uma rainha de descendências asmonéia como Herodíades, Crossan astutamente vê João Batista interferindo no âmbito político, e não apenas preocupado com o incesto de Antipas. De fato, a ação do tetrarca cala João Batista definitivamente e dispersa seus seguidores, o que leva Jesus a voltar para a sua terra, a Galiléia.


Desta vez Jesus se estabelece em Cafarnaum, aldeia alguns quilômetros acima de Tiberíades, também às margens do lago (Mt 4.12-13). Ali, nas aldeias da região, Jesus dá início ao seu movimento recrutando pessoas que provavelmente eram como ele, vítimas pauperizadas da política agressiva do império romano e da desonestidade da classe sacerdotal judaica. Jesus começa pregando exatamente o que aprendera de João Batista, mas não ficou isolado no deserto na expectativa de uma intervenção apocalíptica de Deus nem chegou ao extremo de organizar um grupo guerrilheiro para tomar à força o controle da situação. Jesus propôs o retorno à Torá, a restauração da dignidade da classe camponesa por meio da solidariedade entre famílias; não se trata aqui de obras de caridade auto-satisfatórias, mas da reestruturação da sociedade igualitária, de redistribuição justa de riquezas.


Jesus aproveitou a desestrutura patente da classe rural para arregimentar pregadores viandantes. Fazendo profetas de camponeses expropriados, ele formou um movimento que dedicava-se às curas, exorcismos, e à proclamação do Reino de Deus, que tinha uma perspectiva escatológica e também presente. Eles diziam que chegavam novos tempos, em que não haveria imperadores, tetrarcas ou centuriões, mas uma grande irmandade aldeã guiada pelo próprio Deus, e onde as injustiças seriam extintas através da perfeita prática da Lei. Também diziam que esse tempo já se aproximou (Lc 11.20), que o tempo já estava cumprido (Mc 1.15), dando sinais disso por meio de curas milagrosas. Quem cresse, deveria começar a experimentar o Reino de Deus imediatamente, fazendo ao próximo o que gostariam que também lhes fizessem (Mt 7.12), e não sujeitando-se a homens que no momento eram os primeiros, mas que logo seriam os últimos (Mc 10.31).


Apenas para ilustrar isso noutras palavras, vamos citar mais algumas linhas de Horsley e Silberman:


“Sob a pressão dos tributos e da expropriação de terras por parte de Herodes, eles haviam se afastado do espírito aldeão tradicional de cooperação mútua: a dissensão e a recriminação mútua precisavam ser apaziguadas [...] Portanto, as curas e os ensinamentos de Jesus precisam ser vistos nesse contexto, não como verdades espirituais abstratas, ditas entre um milagre extraordinário e outro, mas como programa de ação comunitária e resistência prática a um sistema que conseguiu transformar aldeias fechadas em comunidades muito fragmentadas de indivíduos alienados e amedrontados”.


Aproximadamente dois anos após dar vida a um movimento que adaptara a expectativa do Reino de Deus ao cotidiano dos camponeses, Jesus também é condenado como subversivo e assassinado. Independente das interpretações salvíficas ou cristológicas dadas à sua morte, não podemos nos esquecer que ela foi, assim como a do seu predecessor João Batista, um ato de contenção de uma ameaça política real. A igreja cristã nem sempre entende o que o império romano viu de pronto: que o Reino de Deus não era outra coisa senão a proposta de uma teocracia cujo estabelecimento exigia a destruição do império. Mesmo que talvez exagerem a importância da ameaça de Jesus ao poder imperial, Horsley e Silberman deixam claro que esta morte deve ser lida como sugerimos, como ato de importância política: “... o fato de Jesus de Nazaré ter sido crucificado é testemunho tão eloqüente quanto qualquer outro da profundidade e clareza da ameaça que ele representava [...] estavam em jogo o poder da administração romana e a ordem pública de Jerusalém”.


Felizmente, mais uma vez o extermínio violento do líder popular não foi capaz de dar cabo do seu projeto. Tem-se conhecimento de que em diferentes lugares homens e mulheres que haviam sido impactados pela proposta de Jesus dão sequência ao movimento trilhando caminhos diferentes. Na Judéia, parece que desde cedo surgiu a fé em torno do Jesus ressuscitado, formando o que Bruce J. Malina chama de “grupos do Jesus Messias”, que aos poucos transformaram o projeto social de Jesus numa busca pela salvação, ou pelo “... resgate cósmico das pessoas coletivistas do primeiro século do mundo mediterrâneo”. Na Galiléia, os camponeses que ouviram Jesus talvez só souberam de sua morte por ouvir falar, e mantiveram com maior fidelidade as características originais do programa de renovação social da comunidade camponesa por meio da Lei interpretada através do amor ao próximo.


É na Galiléia que o primeiro cristianismo parece mais ligado à atividade dos discípulos itinerantes. Estes itinerantes, porém, “ministros de Jesus” e proclamadores do Reino de Deus entre aldeias, foram aos poucos transformados em “missionários profissionais” arregimentados para a propagação do cristianismo. Estes “profissionais” eram itinerantes que não nasceram da despossessão material como os primeiros seguidores de Jesus, mas de uma vocação que os impulsionava a uma vida sem lar e bens, conforme a distinção que faz Rodney Stark nas palavras que citamos a seguir:


“Nos vinte anos depois da crucificação, o cristianismo foi transformado de uma fé da Galiléia rural em um movimento urbano que ultrapassou os limites da Palestina. No começo ele esteve a cargo de pregadores itinerantes e pelas bases cristãs que dividiam sua fé com seus parente e amigos. Logo eles foram alistados por missionários profissionais como Paulo e seus associados. Assim, enquanto os ministros de Jesus foram primariamente às áreas rurais e arredores das cidades, o movimento de Jesus rapidamente se alastrou para as cidades Greco-romanas”.