segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Bruce J. Malina e o “grupo do Jesus Messias”



Antes de tudo, é importante dizer que neste artigo procuraremos discutir a origem do movimento de Jesus, e não da religião cristã, que surgiu nas décadas que se seguiram à crucificação de Jesus. Essa distinção é importante, pois ao longo das próximas páginas tentaremos demonstrar que o movimento de Jesus pode ser entendido como um fenômeno popular de reação contra a pressão sofrida pelos camponeses da Galiléia do século I por parte do império romano. Embora a religiosidade não possa ser separada de qualquer outra área da vida dos antigos judeus, nós o faremos aqui, simplesmente para que os aspectos políticos e econômicos daquela sociedade que foram preponderantes para a ação de Jesus, não sejam obscurecidos pelos supostos planos divinos como tantas vezes tem acontecido ao longo da história.


Começaremos tratando do império romano e sua forma de governo; do choque cultural e econômico que sua chegara trouxe para a Palestina; e do papel das cidades no sistema administrativo deste império. Deixaremos para a segunda metade do trabalho o movimento de Jesus, quando nos voltaremos para a tradição cristã descrevendo alguns dos eventos que nos conduzirão a uma compreensão do projeto de Jesus e do significado do “Reino de Deus”.


É preciso, dizer que esta pesquisa não traz alguma descoberta revolucionária sobre Jesus. Na verdade, praticamente todos os tópicos aqui abordados estão bem desenvolvidos pela pesquisa de diversos outros pesquisadores. Todavia, esses resultados alcançados após séculos de pesquisa ainda são desconhecidos da maior parte dos interessados no tema, aos quais gostaría de dirigir o presente esforço; e além disso, não se pode dizer que o problema do Jesus Histórico seja um caso esgotado, o que torna necessário a contínua revisão e o aperfeiçoamento dos resultados através de novas tentativas como essa à qual nos propusemos, a fim de que vez ou outra, novos e importantes passos sejam dados.


PALÁCIOS ENTRE FAZENDAS


Sabe-se a princípio, que a agricultura era a base da economia dos povos da antiguidade, o que pode-se tranquilamente aplicar aos moradores da Galiléia, região norte da Palestina, que no primeiro século foi o palco do nascimento do cristianismo. Naturalmente, quando falamos dos galileus dentre os quais nasceu o cristianismo, geralmente nos referimos a camponeses que viviam em aldeias do norte da Palestina de modo bastante tradicional, envolvidos especialmente com a produção de grãos. Porém, esse simplório cenário agrícola não é capaz de explicar a vida das pessoas que escreveram o Novo Testamento. Décadas antes do nascimento de Jesus, toda a Palestina viu-se diante de uma drástica mudança de caráter político que mudaria significativamente a vida de todos daquele lugar, e também determinaria as condições de vida das gerações subseqüentes. Estamos nos referindo ao início da dominação do império romano sobre a Palestina na segunda metade de século I a.C., que impôs à região uma agressiva transformação.


Antes de Roma, a Palestina já conhecera a vida sob a dominação de impérios estrangeiros que usufruíam do trabalho dos seus habitantes principalmente através da extorsão de excedentes agrícolas. Todavia, a comercialização romana era bem mais agressiva. A unidade política do império era mantida pelo controle militar em centros urbanos espalhados pelas províncias (ainda que nas extremidades desse império a fragilidade dessa dominação forçada se deixasse ver por meio de províncias revoltosas), e destes pontos estrategicamente controlados Roma apropriava-se dos camponeses tirando deles não apenas os excedentes agrícolas, mas também a terra e a dignidade.


Ao tratar da antropologia de classe aplicada aos estudos do cristianismo primitivo, John Dominic Crossan aproveita o trabalho do antropólogo John Kautsky para definir o império romano como umimpério agrário mercantil, que se diferencia dos impérios agrários tradicionais que dominaram a Palestina antes de Roma, e ressalta o que temos dito com as seguintes palavras:


“... no império agrário tradicional, a aristocracia toma o produto excedente da classe camponesa; no império agrário mercantil, a aristocracia toma a terra da classe camponesa. O primeiro devora o esforço e o produto dos camponeses, o segundo a própria identidade e dignidade deles [...] No império agrário tradicional, a terra é herança familiar a ser conservada pela classe camponesa. No império agrário mercantil, a terra é mercadoria empresarial a ser explorada pela aristocracia”.


A dominação romana só poderia, portanto, ser recebida pela classe camponesa da Palestina como uma força opressora e “demoníaca”. Forçava-os pela superioridade militar a aceitar um sistema de troca nada recíproco, onde no fim das contas até mesmo o direito a terra, que com base na Lei de Deus era propriedade exclusiva de Javé e herança intransferível dos camponeses, era-lhes negado.


Essa primeira aproximação em relação ao problema da violenta transição pela qual passou a Palestina entre os séculos I a.C. e I d.C. pede que aprofundemos o tema, a fim de que compreendamos melhor como exatamente se dava essa expropriação do fruto do trabalho da classe camponesa, e como tudo isso relaciona-se com o surgimento do cristianismo. A tarefa é extensa, e não temos espaço para tratar dela com todos os detalhes possíveis, motivo pelo qual tentaremos restringir nossas observações sempre à Galiléia, terreno que deu origem aos textos que neste trabalho abordaremos, e às épocas que envolvem suas origens.


Durante a vida de Jesus o domínio romano na Galiléia foi exercido através do tetrarca Herodes Antipas (4 a.C. a 39 d.C.), que tratava de cuidar na região dos interesses próprios e do império. Tão logo assumiu o poder, Antipas investiu na reconstrução da cidade de Séforis (atacada após a morte de seu pai, Herodes Magno) para que servisse como capital da Galiléia, posto de administração e arrecadação tributária, e praça de comando militar. De Séforis eram enviados os cobradores de impostos e os soldados que mantinham por meio da violência a “ordem pública”.


Embora a principal função de cidades como Séforis fosse facilitar o controle sobre os excedentes produzidos nos campos, estas cidades também eram focos da disseminação gradual da cultura helenista, tendo o grego como idioma, cunhando moedas, construindo ginásios e teatros etc. A corte durante os governos de Herodes Magno (rei-cliente de Roma que governou toda a Palestina de 37-4 a.C.) e Herodes Antipas era, culturalmente, um retrato da dominação internacional. O primeiro Herodes era um idumeu que vivera e estudara em Roma por alguns anos, cuja esposa era uma mulher samaritana. Antipas deu seguimento ao caráter gentílico e cosmopolita da elite casando-se primeiro com a filha do rei Aretas da Nabatéia, e depois com uma mulher asmonéia.6 Além de Séforis, também foi Antipas quem também deu início à construção de outra cidade de grandes proporções a trinta quilômetros de Séforis, à beira do lado da Galiléia, para fazê-la sua nova capital. Esta cidade foi concluída entre os anos 18 e 20 d.C. e chamada Tiberíades, em homenagem ao imperador Tibério (14-37 d.C.). O historiador judeu Flávio Josefo escreveu sobre a população original de Tiberíades com evidente desprezo pela gente que Antipas implantou ali, vinda de todas as partes (Ant. 18.36-38).


Deveras, durante a revolta dos judeus contra os romanos em 66-70 d.C., provavelmente era grande o número de gregos que habitavam Tiberíades, e em Séforis Richard Horsley acredita que a maior parte dos habitantes eram não-judeus. Ainda que isso não seja prova da predominância gentílica de Séforis durante a revolta, sabemos que naqueles dias de crise os aristocratas citadinos adotaram uma posição pró-romana, buscando a proteção de Vespasiano contra as ameaças dos revoltosos camponeses galileus, destruindo as próprias defesas para demonstrar que não resistiam à invasão romana. Não por acaso, diferentemente de Jerusalém, a cidade de Séforis sobreviveu à guerra e continuou a ser uma cidade de influência na região por séculos.


Mesmo que as poucas informações compartilhadas acima não sejam suficientes para nos fornecer um retrato completo (se é que isso é possível) da presença citadina na Palestina durante o primeiro século, podemos concluir com certa segurança que as cidades eram edificadas para receber as elites e os sistemas de manutenção do seu poder. Eram núcleos de onde uma minoria controlava e explorava os arredores e a maioria da população. Mas lá também se reunia um grande número de pessoas não tão “nobres” que viviam para satisfazer das mais diferentes maneiras as necessidades da elite. Ekkehard e Wolfgang Stegemann nos dão uma relação breve dos vários tipos de profissionais que constituíam as populações citadinas da seguinte forma:


“Na população da cidade há, entre outros, “funcionários públicos”, sacerdotes, eruditos, escrivães, comerciantes, servos, soldados, artífices, trabalhadores e mendigos. Ao lado destes, existe uma pequena elite que obtém o seu sustento da posse da terra e/ou de cargos políticos”.


Dentre os trabalhadores mencionados, podemos incluir ainda os que trabalhavam com o transporte, alguns professores, artistas, os ocupados com a construção, as prostitutas etc.


Apesar disso tudo, há quem prefira referir-se ao cosmopolitismo das cidades galiléias com maior cautela. Este é o caso de Gerd Theissen, que vê o helenismo das cidades da Galiléia mais como uma expressão de uma forma “moderna” de judaísmo do que como uma invasão generalizada da cultura greco-romana na Palestina. Aqui podemos dizer que além das autoridades nomeadas pelo império para administrar a província, eram moradores das cidades sacerdotes e outros judeus que conseguiram algum poder e status social a partir de suas funções e posses em relação à aristocracia estrangeira. Mark Chancey, a partir de pesquisas arqueológicas, tem demonstrado que mesmo nesses ambientes urbanos ainda havia predominância da cultura judaica. Isso é algo valioso para nós, já que depois da revolta de 66-70 d.C. e da destruição do Templo de Jerusalém, foi nos ambientes citadinos da Galiléia que se deu início a uma coalizão de judeus em busca de unidade religiosa, criando um movimento que hoje muitos chamam de judaísmo formativo. O evangelho citadino de Mateus mostrar-se-á uma evidência disso.


Fiquemos, em relação às cidades de Séforis e Tiberíades, com a imagem de que eram pólos da opressão da elite sobre o campo, e que embora essa elite sirva a Roma e possua um caráter cosmopolita inquestionável, também fazia parte desse grupo opressor a aristocracia judaica. Tentando atender às pesadas exigências tributárias do violento governo herodiano e também às cobranças dos impostos religiosos, os camponeses galileus enredavam-se em empréstimos oferecidos principalmente por funcionários da administração herodiana e aristocratas sacerdotais, dando a própria terra, sua fonte de sobrevivência que devia ser inegociável, como garantia de pagamento. A pesada extorsão de excedentes unida à desonesta comercialização agrária gerou um previsível e gradativo processo de endividamento que conduziu grande parte da classe camponesa à completa miséria. Enquanto a aristocracia vivia luxuosamente e poucos proprietários enriqueciam acumulando posses, entre os camponeses o empobrecimento era desesperador. Em determinados momentos, quem conseguia ao menos uma ocupação arrendando a terra de algum fazendeiro tinha que dar-se por satisfeito, posto que tantos outros camponeses menos afortunados vendiam-se como escravos ou tornavam-se marginais, vendo-se obrigados a recorrer à mendicância ou mesmo ao banditismo, fenômeno que alcançou proporções epidêmicas em certos períodos da dominação romana na região.


Essa exposição sucinta sobre o impacto da dominação romana e de suas cidades administrativas sobre a classe camponesa da Palestina, não foi e nem poderia ser completa. Mas ainda não a concluímos; a partir daqui, continuaremos tratando desse tema juntamente com nossa investigação a respeito da origem do Movimento de Jesus e do primeiro cristianismo, o que ilustrará com um exemplo historicamente marcante o que até então pudemos dizer.


Imposições Urbanas num Cenário Agrícola: o Movimento de Jesus


Diante do que já vimos, imaginamos sob que condições adversas nasceu entre os camponeses da Galiléia o homem Jesus de Nazaré. Uma particularidade a seu respeito que merece consideração é que Jesus desempenhava alguma atividade profissional como artesão, o que não o põe à parte da classe camponesa. No evangelho de Marcos 6.3 ele é descrito pelo termo grego tekton, e em Mateus 13.55 como filho de um tekton. Embora o termo na maioria das vezes seja traduzido por “carpinteiro”, também pode ser uma designação mais genérica para um artífice do setor da construção, que podia trabalhar não só com madeira, mas também com metais ou como pedreiro.


Como camponês/artesão da aldeia de Nazaré (que ficava a aproximadamente uma hora de caminhada de Séforis), não é difícil imaginar que Jesus pudesse estar por algum tempo ligado profissionalmente a Séforis, a primeira capital do governo de Antipas.21 Deveras, boa parte da mão-de-obra para a edificação e manutenção das grandes cidades era fornecida por pessoas como Jesus, saídas das pequenas aldeias ou cidades satélites. Mas, para que não façamos confusões imaginando Jesus como um trabalhador privilegiado, citemos outra vez John D. Crossan, que a partir do trabalho de G. Lenski sobre sociedades agrárias como a do império romano, disse que “Quanto à classe social, os artesãos eram inferiores, não superiores, aos agricultores camponeses”. Em geral, cada família camponesa produzia suas próprias cerâmicas e instrumentos em vez de comprá-las, o que torna o comércio destes produtos nem sempre uma opção lucrativa. Além disso, para um artesão o acesso à comida era indireto, e conseqüentemente passível às imposições de mediadores que podiam encarecer o produto.


A conclusão de Crossan é que o artesanato como meio de sobrevivência só era, em geral, uma opção daqueles aldeões cuja terra não era suficiente, seja pela má qualidade ou pelo crescimento populacional. Exceção a esta regra podem ser os casos em que através da participação de alguém com capital para investir na produção de artesanato transformasse a produção numa verdadeira indústria, o que da mesma forma não implicava em qualquer benefício para a classe camponesa.


Não há motivos para supor que Jesus fosse um camponês privilegiado por sua atividade profissional bem sucedida. Aliás, há um dado histórico que habitualmente não é relacionado à vida de Jesus, mas que pode ser bastante relevante para compreender sua trajetória, principalmente se imaginamos que Jesus manteve alguma relação profissional com Séforis: Herodes Antipas decidiu aumentar seu controle sobre a região da Peréia e mudar sua capital administrativa para Tiberíades, fato que já mencionamos brevemente. Embora Séforis não tenha se mudado ou esvaziado, pode ter acontecido de profissionais como Jesus sofrerem com a queda no volume de negócios, regredindo à marginalidade dos camponeses pauperizados. Este dado histórico pode não ter nenhuma relação com a direção tomada por Jesus, mas coincidentemente, foi nalgum momento após este período de mudança, durante os anos 20, que Jesus deixou a Galiléia em direção à Judéia e aderiu ao movimento do profeta João Batista (Mc 1.9).


Não é possível precisar quanto tempo Jesus esteve na Judéia, mas como se não bastasse tanta desventura, outra vez Herodes Antipas interfere na sua trajetória prendendo João Batista. Lemos nos evangelhos que João foi preso por criticar o casamento de Antipas com Herodíades, que fora sua cunhada (Mc 6.17-18; Mt 14.3-4; Lc 3.19), mas Crossan tem ressaltado o sentido político da crítica do profeta como o fator principal de sua prisão. Ao ver que Antipas pretendia aumentar a popularidade do seu governo por meio do governo com uma rainha de descendências asmonéia como Herodíades, Crossan astutamente vê João Batista interferindo no âmbito político, e não apenas preocupado com o incesto de Antipas. De fato, a ação do tetrarca cala João Batista definitivamente e dispersa seus seguidores, o que leva Jesus a voltar para a sua terra, a Galiléia.


Desta vez Jesus se estabelece em Cafarnaum, aldeia alguns quilômetros acima de Tiberíades, também às margens do lago (Mt 4.12-13). Ali, nas aldeias da região, Jesus dá início ao seu movimento recrutando pessoas que provavelmente eram como ele, vítimas pauperizadas da política agressiva do império romano e da desonestidade da classe sacerdotal judaica. Jesus começa pregando exatamente o que aprendera de João Batista, mas não ficou isolado no deserto na expectativa de uma intervenção apocalíptica de Deus nem chegou ao extremo de organizar um grupo guerrilheiro para tomar à força o controle da situação. Jesus propôs o retorno à Torá, a restauração da dignidade da classe camponesa por meio da solidariedade entre famílias; não se trata aqui de obras de caridade auto-satisfatórias, mas da reestruturação da sociedade igualitária, de redistribuição justa de riquezas.


Jesus aproveitou a desestrutura patente da classe rural para arregimentar pregadores viandantes. Fazendo profetas de camponeses expropriados, ele formou um movimento que dedicava-se às curas, exorcismos, e à proclamação do Reino de Deus, que tinha uma perspectiva escatológica e também presente. Eles diziam que chegavam novos tempos, em que não haveria imperadores, tetrarcas ou centuriões, mas uma grande irmandade aldeã guiada pelo próprio Deus, e onde as injustiças seriam extintas através da perfeita prática da Lei. Também diziam que esse tempo já se aproximou (Lc 11.20), que o tempo já estava cumprido (Mc 1.15), dando sinais disso por meio de curas milagrosas. Quem cresse, deveria começar a experimentar o Reino de Deus imediatamente, fazendo ao próximo o que gostariam que também lhes fizessem (Mt 7.12), e não sujeitando-se a homens que no momento eram os primeiros, mas que logo seriam os últimos (Mc 10.31).


Apenas para ilustrar isso noutras palavras, vamos citar mais algumas linhas de Horsley e Silberman:


“Sob a pressão dos tributos e da expropriação de terras por parte de Herodes, eles haviam se afastado do espírito aldeão tradicional de cooperação mútua: a dissensão e a recriminação mútua precisavam ser apaziguadas [...] Portanto, as curas e os ensinamentos de Jesus precisam ser vistos nesse contexto, não como verdades espirituais abstratas, ditas entre um milagre extraordinário e outro, mas como programa de ação comunitária e resistência prática a um sistema que conseguiu transformar aldeias fechadas em comunidades muito fragmentadas de indivíduos alienados e amedrontados”.


Aproximadamente dois anos após dar vida a um movimento que adaptara a expectativa do Reino de Deus ao cotidiano dos camponeses, Jesus também é condenado como subversivo e assassinado. Independente das interpretações salvíficas ou cristológicas dadas à sua morte, não podemos nos esquecer que ela foi, assim como a do seu predecessor João Batista, um ato de contenção de uma ameaça política real. A igreja cristã nem sempre entende o que o império romano viu de pronto: que o Reino de Deus não era outra coisa senão a proposta de uma teocracia cujo estabelecimento exigia a destruição do império. Mesmo que talvez exagerem a importância da ameaça de Jesus ao poder imperial, Horsley e Silberman deixam claro que esta morte deve ser lida como sugerimos, como ato de importância política: “... o fato de Jesus de Nazaré ter sido crucificado é testemunho tão eloqüente quanto qualquer outro da profundidade e clareza da ameaça que ele representava [...] estavam em jogo o poder da administração romana e a ordem pública de Jerusalém”.


Felizmente, mais uma vez o extermínio violento do líder popular não foi capaz de dar cabo do seu projeto. Tem-se conhecimento de que em diferentes lugares homens e mulheres que haviam sido impactados pela proposta de Jesus dão sequência ao movimento trilhando caminhos diferentes. Na Judéia, parece que desde cedo surgiu a fé em torno do Jesus ressuscitado, formando o que Bruce J. Malina chama de “grupos do Jesus Messias”, que aos poucos transformaram o projeto social de Jesus numa busca pela salvação, ou pelo “... resgate cósmico das pessoas coletivistas do primeiro século do mundo mediterrâneo”. Na Galiléia, os camponeses que ouviram Jesus talvez só souberam de sua morte por ouvir falar, e mantiveram com maior fidelidade as características originais do programa de renovação social da comunidade camponesa por meio da Lei interpretada através do amor ao próximo.


É na Galiléia que o primeiro cristianismo parece mais ligado à atividade dos discípulos itinerantes. Estes itinerantes, porém, “ministros de Jesus” e proclamadores do Reino de Deus entre aldeias, foram aos poucos transformados em “missionários profissionais” arregimentados para a propagação do cristianismo. Estes “profissionais” eram itinerantes que não nasceram da despossessão material como os primeiros seguidores de Jesus, mas de uma vocação que os impulsionava a uma vida sem lar e bens, conforme a distinção que faz Rodney Stark nas palavras que citamos a seguir:


“Nos vinte anos depois da crucificação, o cristianismo foi transformado de uma fé da Galiléia rural em um movimento urbano que ultrapassou os limites da Palestina. No começo ele esteve a cargo de pregadores itinerantes e pelas bases cristãs que dividiam sua fé com seus parente e amigos. Logo eles foram alistados por missionários profissionais como Paulo e seus associados. Assim, enquanto os ministros de Jesus foram primariamente às áreas rurais e arredores das cidades, o movimento de Jesus rapidamente se alastrou para as cidades Greco-romanas”.


Muçulmanos: Allah, Trindade, e Cristianismo e Judaísmo

Alguns dos maiores equívocos que muitos não-muçulmanos cometem sobre o Islã têm a ver com a palavra “Allah.” Por várias razões, muitas pessoas passaram a acreditar que os muçulmanos adoram um Deus diferente dos cristãos e judeus. Isso é totalmente falso, uma vez que “Allah” é simplesmente a palavra árabe para “Deus” – e só existe Um Deus. Para que não haja dúvidas, os muçulmanos adoram o Deus de Noé, Abraão, Moisés, Davi e Jesus – que a paz esteja sobre todos eles. Entretanto, é certamente verdade que os judeus, cristãos e muçulmanos têm conceitos diferentes de Deus Todo-Poderoso. Por exemplo, os muçulmanos – como os judeus - rejeitam as crenças cristãs da Trindade e da Encarnação Divina. Isso, entretanto, não significa que cada uma dessas três religiões adore um Deus diferente - porque, como já dissemos, existe apenas Um Verdadeiro Deus. O Judaísmo, o Cristianismo e o Islã reivindicam ser “Fés Abrâmicas”, e todas elas são classificadas como “monoteístas.” Entretanto, o Islã ensina que outras religiões têm, de um jeito ou de outro, distorcido e anulado uma crença pura e correta em Deus Todo-Poderoso ao negligenciar Seus ensinamentos verdadeiros e misturá-los com idéias feitas pelo homem.

Primeiro, é importante notar que “Allah” é a mesma palavra que os cristãos e judeus que falam árabe usam para Deus. Se você pegar uma Bíblia árabe, você verá a palavra “Allah” sendo usada onde “Deus” é usado em português. Isso é porque “Allah” é a palavra em língua árabe equivalente a palavra em português “Deus” com “D” maiúsculo. Adicionalmente, a palavra “Allah” não pode ter plural, um fato que anda de mãos dadas com o conceito islâmico de Deus.

É interessante notar que a palavra aramaica “El”, que é a palavra para Deus na língua que Jesus falava, é certamente mais semelhante em som à palavra “Allah” do que a palavra em português “Deus.” Isso também é verdadeiro para as várias palavras hebraicas para Deus, que são “El” e “Elah”, e a forma plural ou glorificada “Elohim.” A razão para essas similaridades é que o aramaico, o hebraico e o árabe são todas línguas semitas com origens comuns. Também deve ser notado que ao traduzir a Bíblia para outros idiomas, o palavra hebraica “El” é traduzida de várias formas como “Deus”, “deus” e “anjo”! Essa linguagem imprecisa permite que tradutores diferentes, baseados em suas noções pré-concebidas, traduzam a palavra para adequá-la às suas próprias opiniões. A palavra árabe “Allah” não apresenta essa dificuldade ou ambigüidade, uma vez que é usada somente para Deus Todo-Poderoso. Adicionalmente, em português, a única diferença entre “deus”, significando um deus falso, e “Deus”, significando o Único Verdadeiro Deus, é o “D” maiúsculo. Devido aos fatos mencionados acima, uma tradução mais precisa da palavra “Allah” em português seria “O Único Deus” ou “O Único Verdadeiro Deus.”

O que é mais importante, deve também ser notado que a palavra árabe “Allah” contém uma mensagem religiosa profunda devido à raiz de seu significado e origem. É porque ela deriva do verbo árabe ta’allaha (ou alaha), que significa “ser adorado.” Portanto, em árabe, a palavra “Allah” significa “O Único merecedor de toda adoração.” Isso, em poucas palavras, é a mensagem de Monoteísmo Puro do Islã.

É suficiente dizer que apenas porque alguém clama ser um judeu, cristão ou muçulmano “monoteísta” não o impede de incorrer em crenças corruptas ou práticas idólatras. Muitas pessoas, incluindo alguns muçulmanos, reivindicam crença em “Um Deus” mesmo incorrendo em atos de idolatria. Certamente, muitos protestantes acusam os católicos romanos de práticas idólatras em relação aos santos e à Virgem Maria. Da mesma forma, a Igreja Ortodoxa Grega é considerada “idólatra” por muitos outros cristãos porque em muitas das suas adorações eles usam ícones. Entretanto, se você perguntar a um católico romano ou a um grego ortodoxo se Deus é “Um”, eles invariavelmente responderão: “Sim!.” Essa afirmação, entretanto, não os impede de serem idólatras “adoradores de criaturas”. O mesmo serve para os hindus, que apenas consideram seus deuses como “manifestações” ou “encarnações” do Único Deus Supremo.

Antes de concluir...existem algumas pessoas, que obviamente não estão do lado da verdade, que querem que as pessoas acreditem que “Allah” é algum “deus” árabe, e que o Islã é completamente “outro” – significando que não tem raízes comuns com outras religiões abrâmicas (ou seja, Cristianismo e Judaísmo). Dizer que os muçulmanos adoram um “Deus” diferente porque eles dizem “Allah” é tão ilógico quanto dizer que os franceses adoram outro Deus porque eles usam a palavra “Dieu”, que os que falam espanhol adoram um Deus diferente porque dizem “Dios” ou que os hebreus adoravam um Deus diferente porque às vezes O chamavam “Javé.” Certamente, esse tipo de raciocínio é muito ridículo! Também deve ser mencionado que reivindicar que qualquer idioma usa a única palavra correta para Deus é equivalente a negar a universalidade da mensagem de Deus para a humanidade, que foi para todas as nações, tribos e povos através de vários profetas que falavam línguas diferentes.

A razão é que a Verdade Suprema do Islã se baseia em solo firme e sua crença inabalável na Unicidade de Deus está acima de repreensão. Por essa razão os cristãos não podem criticar suas doutrinas diretamente, e ao invés disso fabricam coisas sobre o Islã que não são verdadeiras para que as pessoas percam o desejo de aprender mais. Se o Islã fosse apresentado da maneira correta para o mundo, certamente poderia fazer muitas pessoas reconsiderarem e reavaliarem suas próprias crenças. É muito provável que quando descobrirem que existe uma religião universal no mundo que ensina às pessoas a adorarem e amarem Deus, enquanto praticam o Monoteísmo Puro, sintam que devam ao menos reexaminar as bases de suas próprias crenças e doutrinas.

É um fato conhecido que todo idioma tem um ou mais termos que são usados para se referir a Deus e às vezes a divindades menores ao mesmo tempo. Esse não é o caso com Deus. Deus é o nome pessoal do Deus Único. Ninguém mais pode ser chamado Deus. O termo não tem plural ou gênero. Isso mostra a sua singularidade quando comparado com a palavra "deus," que pode ser usada no plural, como em "deuses", ou no feminino, como em "deusas." É interessante notar que Allah é o nome pessoal de Deus em aramaico, a língua de Jesus e uma língua irmã do árabe.

O Deus Único é uma reflexão do conceito singular que o Islã associa a Deus. Para um muçulmano, Deus é o Criador Todo-Poderoso e Sustentador do universo, Que não é semelhante a nada e nada é comparável a Ele. O Profeta Muhammad foi perguntado por seus contemporâneos sobre Deus; a resposta veio diretamente do próprio Deus na forma de um capítulo curto do Alcorão, que é considerado a essência da unicidade ou lema do monoteísmo. Esse é o capítulo 112, que diz:

“Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.”

“Dize [Ó Muhammad], Ele é Deus, o Único Deus, o Refúgio Eterno, que não gerou e não foi gerado, e não há ninguém igual a Ele.”

Alguns não-muçulmanos alegam que Deus no Islã é um Deus severo e cruel que exige ser obedecido completamente e, conseqüentemente, não é amoroso ou gentil. Nada poderia ser mais distante da verdade do que essa alegação. É suficiente saber que, com a exceção de um, cada um dos 114 capítulos do Alcorão começa com o versículo, “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.” Em um dos ditos do Profeta Muhammad, que Deus o exalte, nos é dito que:

“Deus é mais amoroso e gentil do que uma mãe para com o seu filho.”

Por outro lado, Deus também é Justo. Portanto, os malfeitores e pecadores devem ter sua parcela de punição, e os virtuosos devem ter a generosidade e favores de Deus. Na verdade, o atributo da Misericórdia de Deus tem manifestação plena em Seu atributo de Justiça. Pessoas que sofrem ao longo de todas as suas vidas em Seu nome não devem receber de seu Senhor o mesmo tratamento que as pessoas que oprimem e exploram outras as suas vidas inteiras. Esperar tratamento semelhante para elas seria equivalente a negar a crença na prestação de contas do homem na Vida Futura e, portanto, negar todos os incentivos para uma vida moral e virtuosa nesse mundo. Os versículos corânicos seguintes são muito claros e diretos a esse respeito.

“Verdadeiramente, para os Virtuosos haverá os jardins de Deleites, na Presença de seu Senhor. Então Nós devemos tratar as pessoas de Fé como as pessoas do Pecado? Que há convosco? Como julgais?” (Alcorão 68:34-36)

O Islã rejeita caracterizar Deus em qualquer forma humana ou descrevê-Lo como favorecendo certos indivíduos ou nações com base em fortuna, poder ou raça. Ele criou os seres humanos como iguais. Eles podem se distingüir e obter Seu favor somente através de virtude e devoção.

Os conceitos, como o de Deus descansar no sétimo dia da criação, Deus lutar com um de Seus soldados, Deus ser um conspirador invejoso contra a humanidade, ou Deus encarnar em qualquer ser humano, são considerados blasfêmia do ponto de vista islâmico.

O uso singular de Deus como um nome pessoal de Deus é uma reflexão da ênfase do Islã na pureza da crença em Deus, que é a essência da mensagem de todos os mensageiros de Deus. Por causa disso, o Islã considera a associação de qualquer deidade ou personalidade com Deus como um pecado mortal que Deus nunca perdoará, apesar do fato de que Ele pode perdoar todos os outros pecados.

O Criador deve ser de uma natureza diferente das coisas criadas porque, se Ele é da mesma natureza que elas, Ele será temporal e, portanto, precisará de um criador. Disso se segue que nada é como Ele. Além disso, se o Criador não é temporal, então Ele deve ser eterno. Se Ele é eterno, entretanto, Ele não pode ser causado, e se nada O trouxe à existência, nada fora Dele faz com que Ele continue a existir, o que significa que Ele é auto-suficiente. E se Ele não depende de nada para a continuação de Sua própria existência, então essa existência não pode ter fim e, portanto, o Criador é eterno e perene. Sendo assim, nós sabemos que Ele é Auto-suficiente ou Auto-subsistente e Eterno ou, para usar um termo corânico, Al-Qayyum: “Ele é o Primeiro e o Último.”

O Criador não cria apenas no sentido de trazer coisas à existência, Ele também as preserva e as tira da existência e é a causa suprema do que quer que lhes aconteça.

“Deus é o Criador de tudo. Ele é o guardião de tudo. A Ele pertencem as chaves dos céus e da terra." (Alcorão 39:62-63)

E Deus diz:

“Nenhuma criatura caminha sobre a terra sem que a sua provisão venha de Deus. Ele conhece a sua morada e seu repositório.” (Alcorão 11:16)

Atributos de Deus

Se o Criador é Eterno e Perene, então Seus atributos também devem ser eternos e perenes. Se for assim, então Seus atributos são absolutos. Pode haver mais de um Criador com tais atributos absolutos? Pode haver, por exemplo, dois Criadores absolutamente poderosos? Uma rápida reflexão mostra que isso não é viável.

O Alcorão resume esse argumento nos seguintes versículos:

“Deus não tomou para Si nenhum filho, nem existe com Ele qualquer deus: porque cada deus teria tomado o que criara e alguns deles teriam sido arrogantes em relação aos outros.” (Alcorão 23:91)

Também,

“E porque, se existissem deuses na terra e no céu além de Deus, eles [céu e terra] certamente se arruinariam.” (Alcorão 21:22)

A Unicidade de Deus

O Alcorão nos relembra da falsidade de todos os alegados deuses. Aos adoradores de objetos feitos pelo homem ele pergunta:

“Adorais o que esculpis?” (Alcorão 37:95)

Também,

“Ou tomais, além Dele, protetores que não trazem, para si mesmos, benefício nem prejuízo?” (Alcorão 13:16)

Aos adoradores de corpos celestiais ele cita a estória de Abraão:

“Quando a noite o envolveu, ele viu uma estrela e disse, ‘Esse é o meu Senhor.’ Mas quando ele se pôs, ele disse, ‘Eu não amo os que se põem.’ Quando ele viu a lua surgindo, ele disse, ‘Esse é meu Senhor.’ Mas quando ela se pôs, ele disse, ‘Se meu Senhor não me orienta, em verdade, estarei entre o povo desencaminhado.’ Quando ele viu o sol surgindo, ele disse, ‘Esse é meu Senhor; esse é maior.’ Mas quando ele se pôs, ele disse, ‘Ó meu povo, certamente eu rompi com o que idolatrais, eu volto a minha face Àquele que originou os céus e a terra; um homem de pura fé, eu não sou um dos idólatras.'" (Alcorão 6:76-79)

A Atitude do Crente

De modo a ser um muçulmano, isto é, se submeter a Deus, é necessário acreditar na unicidade de Deus, no sentido de Ele ser o único Criador, Preservador, Provedor, etc. Mas essa crença não é suficiente. Muitos dos idólatras sabiam e acreditavam que somente o Deus Supremo podia fazer tudo isso. Mas isso não era suficiente para torná-los muçulmanos. Além dessa crença, deve-se reconhecer o fato de que apenas Deus merece ser adorado e, portanto, abster-se da adoração de qualquer outra coisa ou ser.

Ao ter alcançado esse conhecimento do único verdadeiro Deus, o homem deve constantemente ter fé Nele, e não deve permitir que nada o induza a negar a verdade.

Isso significa que se alguém se submete conscientemente a Deus sem reservas, e admite que Ele é o único merecedor de sua adoração, esse alguém conseqüentemente deve adorá-Lo. Isto é, saber que devemos a Ele obediência significa colocar em prática o que nós reconhecemos em nossos corações. Deus pergunta, retoricamente:

“E supusestes que vos criamos sem propósito, e que não seríeis retornados a Nós?” (Alcorão 23:115)

Ele também afirma categoricamente:

“Eu não criei a Humanidade e os Jinns exceto para Me adorarem.” (Alcorão 51:56)

Portanto, quando a fé entra no coração de uma pessoa, ela provoca certos estados mentais que resultam em certas ações. Reunidos, esses estados mentais e ações são a prova de uma fé verdadeira. O Profeta, que Deus o exalte, disse:

“Fé é o que reside firmemente no coração e que é provado pelos atos.”

O mais importante desses estados mentais é o sentimento de gratidão a Deus, que se pode dizer que é a essência da adoração.

O sentimento de gratidão é tão importante que um não-crente é chamado de ‘kafir’, que significa ‘aquele que nega a verdade’ e também ‘aquele que é ingrato.’

Um crente ama, e é grato a Deus pelas graças que recebeu, mas por estar ciente do fato de que seus bons atos, sejam mentais ou físicos, estão longe de se equiparar aos favores Divinos, ele está sempre ansioso pela possibilidade de Deus o punir, aqui ou na Vida Futura. Ele portanto O teme, se submete a Ele e O serve com grande humildade. Não se pode estar em tal estado mental sem estar consciente de Deus praticamente o tempo todo. Relembrar Deus é, portanto, a força vital da fé, sem a qual ela perde o vigor e se esvai.

O Alcorão tenta promover esse sentimento de gratidão pela repetição dos atributos de Deus com muita freqüência. Nós encontramos a maioria desses atributos reunidos nos seguintes versículos do Alcorão:

“Ele é Deus; não existe deus exceto Ele. Ele é o Conhecedor do oculto e do visível; Ele é o Clemente, o Misericordioso. Ele é Deus; não existe deus exceto Ele. Ele é o Rei, O Puro, A Paz, O Confortador, O Preservador, o Todo-Poderoso, o Transcendente, o Sublime. Glorificado seja Deus, acima do que idolatram! Ele é Deus, o Criador, o Iniciador da Criação, o Configurador. A Ele pertencem os Mais Belos Nomes. Tudo que está nos céus e na terra O glorifica; Ele é O Todo-Poderoso, O Sábio.” (Alcorão 59:22-24)

Também,

“Não existe deus exceto Ele, o Vivente, o Eterno. Não O tomam nem sonolência nem sono. A Ele pertence tudo que está nos céus e na terra. Quem intercederá junto a Ele exceto com Sua permissão? Ele sabe o que o seu passado e o seu futuro, e não compreendem nada do Seu conhecimento exceto o que Ele quer. Seu Trono se estende sobre os céus e a terra. Preservá-los não O fadiga; Ele é o Altíssimo, o Glorioso.” (Alcorão 2:255)

Também,

“Povo do Livro, não vos excedais nos limites de vossa religião, e não digais acerca de Deus exceto a verdade. O Messias, Jesus, filho de Maria, era apenas o Mensageiro de Deus, e Seu Verbo que Ele colocou sobre Maria, e um Espírito vindo Dele. Então acredite em Deus e Seus Mensageiros, e não digam “Três”. Abstende-vos; é melhor para vós. Deus é um único Deus. Glorificado seja Ele – [Ele está] acima de ter um filho.” (Alcorão 4:171)

Portanto, nós temos três etapas em nosso reconhecimento de Deus como o Único Verdadeiro Deus. Nós devemos acreditar que Ele é o Criador, Controlador e Juiz supremo do universo e de tudo que ele contém; nós devemos nos abster de adorar qualquer coisa exceto Ele, e então direcionar a nossa adoração a Ele, de fato; e devemos saber que apenas Ele tem todos os atributos e nomes divinos, e não podemos aplicá-los a qualquer outro ser, não importa quem eles sejam. Alguém simplesmente reconhecer verbalmente essas condições, mesmo que se abstenha de aplicá-las a outros deuses, não é suficiente. Elas devem ser sinceramente direcionadas Àquele que as merece.




sábado, 24 de setembro de 2011

Emil Brunner e Karl Barth e suas diferenças sobre a “neo-ortodoxia”.

Karl Barth havia desencadeado uma tremenda revolução com seu comentário aos Romanos, e nos anos que se seguiram, a revolução se ampliou consideravelmente, se avolumando sob a égide de um novo movimento teológico denominado “neo-ortodoxia”. Emil Brunner talvez tenha sido um dos nomes mais conhecidos dessa nova escola, depois, é claro, de Barth.

Brunner foi um teólogo suíço residente nos Estados Unidos que também teve participação importante no desenvolvimento da teologia neo-ortodoxa. Nascido em 1889, estudou em Zurich, Berlim e também no Union Theological Seminary, em Nova Iorque. Tornou-se professor de teologia em Zurich em 1924, e em 1953 deixou a Suíça para tornar-se professor na Universidade Cristã do Japão.

Desde os primeiros anos do comentário aos Romanos, a neo-ortodoxia – às vezes chamada de barthianismo – cruzou muitas fronteiras, tendo exercido influência no oriente. No Japão, por exemplo, apesar da influencia de Brunner, foi Barth quem foi apelidado de “o papa teológico”. Enquanto nos Estados Unidos ele era recebido como um dos mais importantes teólogos, no Japão ele era conhecido como o único teólogo. Essa influência de Barth no Japão, deve-se principalmente aos escritos de Tokutaro Takahura, por volta de 1925. Na verdade, o mundo inteiro sentiu o abalo da teologia barthiana, tanto que ao final da década de cinqüenta, as três principais correntes teológicas já eram mencionadas como sendo a conservadora ou ortodoxa, liberal e neo-ortodoxa.

Temos que reconhecer que existe muita rivalidade no movimento. A ferrenha diferença de opiniões entre Barth e Brunner quanto à realidade do nascimento virginal e da revelação geral, as criticas de Barth à Bultmann e as críticas que Bultmann devolveu à Barth, a discordância de Pannenberg acerca do conceito barthiano de história, são indicativos de que as vozes dentro do movimento neo-ortodoxo nem sempre foram unânimes. Emil Brunner aceita a revelação geral, e a mesma é negada por Barth. Barth aceita o nascimento virginal, conceito que é negado por Brunner. Ele foi duramente criticado por Barth por afirmar que a imagem de Deus se encontra ainda no homem pecador e que Deus se revela na natureza, mas se defendeu argumentando que se o homem pecador não é mais a imagem de Deus e se não há nenhuma revelação de Deus na natureza, então o homem não pode ser responsabilizado pelo pecado que comete.

A teologia de Brunner, assim como a de Barth, é extremamente subjetiva. Buscando inspiração nos escritos dos filósofos Martin Bubber e Soren Kierkgaard, ele define o cristianismo e a teologia em termos mais relacionais que racionais. Ele argumenta que Deus não pode ser tratado como um objeto de estudo, ou um “isso”, mas devemos nos relacionar com ele apenas como um “Tu”. Essa insistência em que Deus é sempre sujeito e nunca objeto será um tema bastante recorrente na teologia contemporânea.

Em um capítulo anterior, indicamos alguns dos pressupostos, bem como a metodologia da estrutura teológica neo-ortodoxa. Agora, cabe a nós destacarmos os temas comuns. O esboço que demonstraremos a seguir está baseado principalmente na obra Dogmática da Igreja, de Barth.

O tema mais debatido pela neo-ortodoxia é o conceito de revelação.

A revelação, segundo Barth, é uma perpendicular que vem de cima, e que por isso não pode se comparar com as melhores intuições humanas. A revelação é um evento no qual Deus toma a iniciativa. Também é dito que a revelação não pode comparar-se com a Bíblia, pois é superior a ela. A Bíblia e suas afirmações são testemunhas, são sinais indicadores da revelação, mas não é a revelação em si. A Escritura não é a Palavra de Deus, e nem as afirmações da Escritura são revelação. Segundo Barth, comparar a Bíblia com a Palavra de Deus é objetivar e materializar a revelação.

Nesse mesmo terreno, Brunner definiu a revelação como sendo uma ocasião de diálogo em que Deus se encontra com o homem. Não se pode dizer que a revelação tenha acontecido, à não ser que ambos os participantes do encontro – a saber, Deus e o homem – se encontrem.

O coração da revelação da Palavra de Deus, segundo a perspectiva neo-ortodoxa, é Jesus Cristo.

De fato, Barth insiste tanto nessa idéia que chega ao ponto de negar a existência de qualquer outra revelação, à parte de Cristo. Para ele, a história da revelação e a história da salvação vêm a ser a mesma coisa. No Cristo de Barth, Deus revelou que não queria deixar o homem existir em pecado. Por isso, Barth insiste em que nunca deveríamos mencionar o pecado, a não ser que agreguemos imediatamente que o pecado foi derrotado, esquecido e vencido por Jesus. A reconciliação entre Deus e o homem se efetua por meio de Cristo. Jesus Cristo é o próprio Deus, isto é, é Deus que se humilha a si mesmo. Em sua liberdade, Deus cruza o abismo aberto e mostra que ele é verdadeiramente Senhor.

Na encarnação, Deus se humilha a si mesmo. Barth não quer admitir a humilhação do homem Jesus. Segundo ele, dizer que a humilhação se refere ao homem é uma mera tautologia. Que sentido haveria em falar de um homem humilhado? A humilhação é algo natural no homem. Porém, dizer que Deus se humilhou a si mesmo, segundo Barth, é entender o verdadeiro significado de Jesus Cristo como Deus. Ele é o Deus que se humilha, que se revela, e é também a própria essência da revelação.

Barth afirma que Cristo, embora haja se humilhado como Deus, foi exaltado como homem.

Ele se nega a admitir a idéia tradicional dos dois estados de Cristo, humilhação e exaltação, referindo-se à totalidade do Deus-homem em ordem cronológica. Para Barth, Deus se humilhou a si mesmo e o homem (a humanidade de Jesus) foi exaltada. Dizer que o estado de exaltação se refere a Deus também é mera tautologia. Que sentido haveria em falar em um Deus exaltado? A exaltação é algo natural em Deus. Segundo Barth, “em Cristo, a humanidade é humanidade exaltada, assim como a divindade é divindade humilhada. E a humanidade é exaltada com a humilhação da Divindade”.

A doutrina de Barth traz implícito o universalismo.

Outro problema bastante polêmico dentro da neo-ortodoxia é a ambigüidade de seus proponentes no que concerne à possibilidade de salvação universal. Barth desde o início repudiou o conceito supralapsariano – que é a dupla predestinação – afirmando que a eleição não diz respeito a pessoas, e sim à Cristo. Ele afirma que a tarefa da igreja é proclamar que os homens já foram eleitos em Cristo, e que portanto, devem viver como escolhidos. Para Barth, a eleição não é um estado que adquirimos em Cristo, e sim uma vida de ação e serviço a Deus.

Esse conceito barthiano implica em universalismo? Barth não afirmou, mas também jamais negou essa hipótese. Em uma de suas últimas conferências sobre a humanidade de Deus, ele disse que “não temos o direito teológico de estabelecer quaisquer limites à misericórdia de Deus que se manifesta em Jesus Cristo”.

Objeções à neo-ortodoxia.

Como se pode observar, muitos pressupostos da neo-ortodoxia são resultantes da influência do liberalismo, o que torna algumas de suas propostas inaceitáveis para os teólogos ortodoxos. Há ainda muita polêmica dentro da neo-ortodoxia, não sendo difícil levantar objeções a essa corrente teológica. O que apresentamos a seguir são algumas objeções mais freqüentes que são levantadas contra a neo-ortodoxia.

Primeiramente, a neo-ortodoxia coloca a experiência subjetiva acima da revelação objetiva. Para a neo-ortodoxia, a revelação não é simplesmente uma declaração de Deus ao homem, e sim um encontro divino-humano, uma confrontação e um diálogo existencial. De acordo com essa premissa, a Bíblia não pode ser a Palavra de Deus. Ela se transforma em Palavra de Deus à medida que Deus fala conosco por meio dela. Reconhece-se nessa premissa a dívida que a neo-ortodoxia tem com a escola de filosofia existencialista.

A neo-ortodoxia conserva a linguagem teológica ortodoxa, porém a reinterpreta, e muitas vezes o resultado desta reinterpretação é tão nocivo quanto veneno no leite. As doutrinas do pecado original, da queda de Adão, da redenção, da ressurreição e da segunda vinda de Cristo são chamadas de mitos por Brunner e de saga por Barth. A interpretação que a neo-ortodoxia dá a essas passagens é acima de tudo existencial, quase nunca literal, sob alegação de que essas doutrinas não descrevem eventos na história, e sim condições históricas sob as quais todos os homens vivem. Gênesis 3, por exemplo, não deve ser tomado como história literal, sendo apenas uma forma simbólica de explicar a realidade do pecado e do orgulho na vida humana. Esse conceito de teologia não deixa nenhuma porta pela qual possa entrar a pregação da vinda do Filho de Deus como evento a ocorrer na história, por exemplo.

A insistência de Barth em Jesus Cristo como o coração da revelação é tão forte que o leva a negar a existência de qualquer outra revelação de Deus. Essa idéia é contrária a Bíblia, pois esta afirma que Deus se revela através da sua criação (Atos 14.17 e Romanos 1.19-20). O conceito barthiano e neo-ortodoxo de revelação também é contrário à doutrina bíblica da inspiração, e acaba por destruir o caráter bíblico de revelação canônica.

Alguns acusam Barth de fazer uma interpretação dualista da encarnação de Cristo, pois ele parece fazer distinção entre as duas naturezas, repudiando por completo o credo da Calcedônia. Ora, Cristo não nos salvou apenas por meio da sua divindade, mas também por meio da sua humanidade. Nós temos paz por meio do sangue da cruz (Colossenses 1.20, Efésios 2.16) e não há nada mais humano que o sangue de uma pessoa.

Ainda que Barth diz que nem afirma e nem nega a teoria da salvação universal, sua idéia de “eleição universal em Cristo” parece uma espécie de neo-universalismo. Além disso, seu repúdio pelas descrições do céu e do inferno parecem um conceito de salvação bem diferente do que é apresentado nas Escrituras. O resultado dessa postura “neo-universalista” é a destruição da gravidade da incredulidade, e deste modo a neo-ortodoxia destrói as advertências bíblicas contra a apostasia, bem como o chamado ao arrependimento e à fé.

Por várias razões, muitos teólogos têm entendido mal a neo-ortodoxia. Essa corrente teológica pretende, entre outras coisas, ser um retorno ao ensino dos reformadores. A razão de ser da neo-ortodoxia é atacar o otimismo do liberalismo clássico e as corrupções da teologia católica romana. É sua intenção por em evidência a centralidade absoluta da pessoa de Cristo, a transcendência de Deus e a necessidade de revelação. Naturalmente, todos esses pontos básicos estão em harmonia com o conceito evangélico. Apesar disso, como se pode observar, a neo-ortodoxia se separa da fé cristã histórica não somente em algumas esferas pouco relevantes, mas também em seus conceitos básicos. Recomendamos as obras de Barth, Bultmann e Brunner – bem como de outros teólogos neo-ortodoxos – por sua influência e contribuição para o cenário teológico contemporâneo, mas a apreciação dessas obras deve ser feita com cautela e com espírito crítico.


Rudolf Bultmann e o seu método crítico

No mesmo ano em que Karl Barth publicou seu comentário aos Romanos, apareceram mais dois livros acerca de temas neotestamentários que anunciavam uma nova mudança nos estudos críticos. O livro Die Formgeschichte des Erxrngeliums, de Martin Dibelius (1883-1947), foi o responsável por popularizar o jargão teológico crítica formal. Outro livro, Der Ráhmen der Geschichte Jesus (1919), de Karl L. Schimidt, pretendia ser o golpe de misericórdia dos liberais contra a confiabilidade do Evangelho de Marcos. Porém, mais que a estes dois nomes, a coluna vertebral dessa nova mudança estaria associada a um outro nome: Rudolf Bultmann. O livro de Bultmann que revolucionou a história dos estudos da Bíblia foi History of the Synoptic Tradition (História da tradição dos Sinóticos), escrito em 1921. A influência de Bultmann no campo da crítica sobrepujou a de Dibelius.

O método crítico de Bultmann é de fato, importante. Até mesmo os seus críticos, tais como Oscar Cullmann e Joachim Jeremias, ao refutar as conclusões de Bultmann, usam uma adaptação do seu método crítico. Aos poucos, Inglaterra e Estados Unidos, bem como outros países com tradição no estudo da teologia, ainda que receosos quanto à nova matéria que estava associada principalmente ao nome de Bultmann, acolheram vários pressupostos da crítica formal.

O método investigativo da crítica formal.

O labor do crítico formal é mostrar que a mensagem de Jesus, tal como temos nos sinóticos, é em grande parte espúria, tendo sofrido acréscimos por parte da comunidade cristã primitiva. Com respeito à confiabilidade da Bíblia, Bultmann vai mais além, e afirma que a Bíblia não é a Palavra inspirada de Deus em nenhum sentido objetivo. Para ele, a Bíblia é o produto de antigas influências históricas e religiosas, e deve ser avaliada como qualquer outra obra literária religiosa antiga.

A premissa fundamental da crítica formal é que os evangelhos são o produto do labor da igreja primitiva. Os autores dos evangelhos procuraram unir várias tradições orais independentes e contraditórias que existiam na igreja antes que fosse escrito o Novo Testamento. Essas tradições orais também não são dignas de confiança, consistindo basicamente de ditos e relatos individuais referentes a Jesus e aos seus discípulos. A igreja ajuntou essas tradições e usou em forma de narrativa, inventando lugares, tempos e enlaces para unir as tradições independentes. Frases como as dos Evangelhos, “em um barco”, “imediatamente”, “no dia seguinte”, “em uma viagem” – são apenas meros recursos literários usados pelos compiladores dos Evangelhos para unir todas as narrativas, inclusive histórias independentes acerca de Jesus. Como disse K.L. Shimidt, um dos pioneiros no campo da crítica, nós “não possuímos a história de Jesus, temos apenas histórias sobre Jesus”.

O propósito da crítica formal é encontrar o Evangelho por detrás dos Evangelhos. Segundo os seus proponentes, os quatro Evangelhos que dispomos servem apenas como “matéria prima” na nossa busca pelo verdadeiro Evangelho, que teria sido anterior aos quatro Evangelhos canônicos e diferente dos mesmos, partindo da premissa de que a igreja primitiva compilou, editou e organizou os livros canônicos de forma artificial, de acordo com seus próprios propósitos apologéticos e evangelísticos. Para dar aos Evangelhos um detalhe harmônico, teriam sido acrescentados detalhes quanto à seqüência, cronologia, lugares, etc. Segundo a crítica formal, tais detalhes não são confiáveis. A Bíblia, tal como a temos hoje seria apenas uma compilação de lendas e ensinos isolados que foram ardilosamente inseridos como sendo parte da história original. Milagres, histórias controvertidas e profecias cumpridas seriam nada mais que uma tradição proveniente de uma fonte tardia e menos confiável.

Por fim, o resultado dessa metodologia é essencialmente anti-sobrenaturalista. Para Bultmann, o que temos nos Evangelhos canônicos são apenas resíduos do Jesus histórico. Não há dúvida que Jesus viveu e realizou muitas das obras que lhe são atribuídas, mas ele se mostra extremamente cético, principalmente quanto à possibilidade do sobrenatural e do chamado “Jesus histórico”. Ele disse: “Creio que não podemos saber quase nada acerca da vida e personalidade de Jesus, já que as fontes cristãs primitivas não se interessam por isso, sendo fragmentadas e lendárias, e não existem outras fontes acerca de Jesus”. É claro que o comentário de Bultmann é preconceituoso e tendencialista, pois há menção da pessoa de Cristo nos escritos dos Pais apostólicos, Flávio Josefo e Tácito, entre outros.

Consenso com os cristãos ortodoxos.

Os cristãos ortodoxos aceitam, de forma quase consensual, alguns dos pontos sustentados pela neo-ortodoxia, e até mesmo com alguns pressupostos de Bultmann.

A crítica formal nos lembra que o evangelho se conservou oralmente durante pelo menos uma geração, antes de adquirir a forma escrita do Novo Testamento. Ela também nos recorda que os Evangelhos não são relatos neutros ou imparciais, sendo antes disso um testemunho da fé dos crentes. Além disso, por maiores que foram os esforços de Bultmann, ele não conseguiu demonstrar objetivamente o Jesus “não-sobrenatural”. Todos os documentos do Novo Testamento, não importa a forma em que a crítica formal os selecione, continuam refletindo o Jesus sobrenatural, filho de Deus.

A crítica formal também nos recorda o caráter ocasional dos Evangelhos. Cada um deles foi escrito com uma idéia, em uma ocasião histórica específica, como por exemplo, Mateus para os judeus, e Marcos e Lucas para os gentios. Como tais, expressam em primeiro lugar uma preocupação vital com a problemática da época. E por último, a crítica formal nos lembra que os Evangelhos não se interessavam grandemente por detalhes geográficos e cronológicos, como a comunidade cristã ortodoxa havia pensado e praticado anteriormente.

Objeções ao método crítico de Rudolf Bultmann.

É claro que esses pontos consensuais são superficiais. Assim como a teologia dialética de Barth, o método crítico de Rudolf Bultmann é demasiadamente injusto com a natureza do Novo Testamento. Há várias objeções que se pode fazer ao criticismo de Bultmann, dentre as quais destacaremos cinco, por considerá-las principais.

A primeira delas está relacionada com a história. Não há embasamento sólido para a teoria da inconfiabilidade histórica dos Evangelhos. Os críticos da tradição de Bultmann argumentam que, por se tratar de uma crônica de contínuos sucessos, eles não podem ser um esquema historicamente confiável sobre a vida de Cristo. O que eles não levam em conta é que dentro dos limites de um esquema histórico amplo, cada evangelista distribuiu seu material histórico de acordo com seus propósitos. Eles também ignoram que o Novo Testamento, a pesar dos muitos sucessos, narra também alguns fatos embaraçosos, como a ausência de sinais de Cristo em sua terra natal (Mateus 13.54-58) e a sua agonia no Getsêmani. Além disso, a crítica de Bultmann é exagerada porque exige dos escritores dos Evangelhos algo que eles não quiseram fazer. Eles eram testemunhas oculares, mas não eram historiadores treinados. Porém, apesar disso, várias vezes eles se mostram cautelosos com os dados históricos, como no prólogo de Lucas (Lucas 1.1-4).

A crítica formal também é injusta com os escritores dos relatos evangélicos. Eles reduzem Mateus, Marcos e Lucas a meros compiladores de documentos, e os Evangelhos a relatos contraditórios. Isso tudo viola injustamente a unidade do relato evangélico. Os Evangelhos possuem uma unidade básica de testemunhos confiáveis de Cristo, e ainda nos apresentam marcos diferentes da vida de Jesus. Na verdade, cada Evangelho é um marco histórico de certos aspectos da vida de Cristo, mas a crítica formal não reconhece a diversidade de transmissão oral dentro da unidade dos relatos evangélicos.

O método crítico de Bultmann separa o cristianismo de Cristo. A grande premissa deste método de estudo é que a comunidade cristã, e não Cristo, exerceu o papel mais importante na produção dos Evangelhos. A verdade, porém, é que a mensagem neotestamentária está centrada na pessoa de Cristo e no que ele fez (2Coríntios 4.5), e não na comunidade cristã. A igreja a qual Paulo e seus companheiros testemunharam não foi criadora (2Coríntios 4.1-2), mas apenas receptora da verdade. Sua maior responsabilidade não foi a criação de novas tradições, e sim a preservação e proclamação das antigas tradições.

Segundo a crítica formal, o cristianismo dos apóstolos não passava de versões falhas sobre Cristo e sua mensagem. Diferente do que dizem estes críticos, os apóstolos eram uma fonte autorizada de informação com respeito dos atos e doutrinas de Cristo. Em Atos 4.1.21-22, está claro que os apóstolos exerciam um controle estratégico da mensagem oficial da igreja durante os anos de transmissão oral. Sua presença tinha como finalidade impedir que surgissem versões deturpadas do Evangelho, e não criar uma versão mitológica e deturpada do Evangelho.

A crítica formal parece esquecer que o lapso de tempo entre os fatos históricos e os documentos escritos é mínimo. Quando Bultmann e outros críticos da Bíblia dizem que a narrativa evangélica está repleta de fábulas que se acumularam durante o período entre a tradição oral e a palavra escrita, eles esquecem que o intervalo entre os fatos acontecidos e o registro desses fatos é muito pequeno. O primeiro relato documental foi feito por Marcos e as evidências demonstram que ele foi escrito cerca de vinte e cinco anos após os eventos por ele narrados. O problema em dizer que o NT está repleto de material lendário é que vinte e cinco anos é muito pouco tempo para se formar uma lenda. Quando as primeiras versões evangélicas começaram a circular, muitas das testemunhas oculares estavam vivas e poderiam facilmente desmascarar os escritores, caso estes fossem impostores e estivessem inserindo mitos na narrativa. O que ocorre, porém, é justamente o contrário: os Evangelhos foram recebidos com muita alegria e divulgados pelas igrejas.

De tudo isso, segue-se irrefragavelmente que a crítica da Bíblia tal como aparece em Rudolf Bultmann, é uma analise preconceituosa do relato evangélico, está demasiadamente comprometida com os pressupostos do liberalismo para que possa ser considerada uma analise imparcial dos fatos, como os críticos desejam que seja. Mas a crítica formal não foi a única contribuição de Bultmann à teologia contemporânea. Outras idéias dele também permearam o cenário teológico do século vinte, entre as quais está a desmitologização.

Karl Barth e seu legado para o Liberalismo Teológico


Em 1919, um jovem pastor de uma pequenina igreja da Suíça escreveu um comentário tão radical que certo escritor disse que Karl Barth pegou uma carta escrita em grego do primeiro século e transformou em uma carta urgente para o homem do século vinte. Um teólogo católico disse que esse comentário aos Romanos foi uma revolução copernicana na teologia protestante que acabou com o predomínio do liberalismo teológico. Ele foi, de fato, uma bomba que Barth lançou no cenário teológico contemporâneo.

Diz-se da segunda versão do comentário aos Romanos, totalmente revisada e publicada em 1921, que ela foi ainda mais revolucionária que a primeira. Porém, de qualquer forma, 1919 tem sido para muitos o ponto de partida da teologia contemporânea.

A influência da obra de Karl Barth nessa nova era da teologia é enorme. Ele transformou a teologia do século vinte em teologia da crise. Foi ele quem dominou o ambiente teológico, formulou os problemas e apresentou as hipóteses de maior relevância, e desde então tem estado no centro da teologia moderna. Não há nenhuma dúvida de que o pensamento de Barth dominou o pensamento teológico do seu tempo. Ele produziu um impacto tão grande na teologia protestante, que todo teólogo do nosso século que quiser estudar teologia a sério, pode se opor à sua teologia ou acolher suas idéias, mas não pode jamais ignorá-la se quiser conhecer a situação teológica contemporânea.

O que havia nesse comentário do pastor Barth que sacudiu os alicerces teológicos do século vinte? Quais foram os princípios que Barth apresentou e que se converteram no legado de uma nova era teológica? Harvie M. Conn, aluno do Dr. Cornelius Van Til, esboça alguns princípios que emanam do comentário de Karl Barth aos Romanos e que parecem ter desempenhado o papel mais influente na formação das novas variantes teológicas. Esses princípios serão abordados nos tópicos a seguir.

A revolta teológica contra o liberalismo teológico foi uma das mais notórias características da teologia barthiana.

Barth havia aprendido teologia aos pés de dois grandes teólogos liberais, à saber: Harnack e Herrmann. O Jesus do mentor de Barth, Harnack, não era o filho de Deus único e sobrenatural, mas a encarnação do amor e dos ideais humanistas. A Bíblia do mentor de Barth, Herrman, não era a Palavra infalível de Deus, e sim um livro extraordinário, ainda que ordinário, cheio de erros e que exigia uma crítica radical para encontrar a verdade. A medida de toda a verdade era a experiência, o sentimento. A teologia desses dois mestres e também a de Barth era o Idealismo teológico, caracterizado por uma profunda veia de pietismo e de preocupação pela prática da experiência religiosa cristã. Em 1919, e com muito mais força em 1921, Barth se encarregou de repudiar grande parte desse liberalismo clássico.

A primeira guerra mundial e seus horrores acabaram por soterrar o idealismo teológico liberal. A culta Alemanha, a liberal Inglaterra e a civilizada França lutavam como animais ferozes. Nesse ínterim, os mestres liberais de Barth se uniram com outros teólogos para declarar seu apoio à Alemanha, o que demonstrou que eles eram mestres de uma religião atada a uma cultura, e não a Deus. O comentário de Barth aos Romanos surgiu então como repúdio de seus antigos mestres liberais. O liberalismo fazia de Deus algo imanente ao mundo; Barth se opôs a isso e apresentou Deus como “Totalmente Outro”. O subjetivismo do liberalismo do século 19 havia colocado o homem no lugar de Deus; Barth exclamou: “Seja Deus, e não o homem!”. O liberalismo havia exaltado o uso aculturado da religião; Bart condenou a religião como o pecado máximo. O liberalismo edificou a teologia sobre a base da ética, Barth quis edificar a ética sobre a base da teologia.

O comentário de 1921 de Barth propôs uma nova idéia de revelação.

Em oposição ao antigo liberalismo, Barth enfatizou a necessidade que o homem tem da revelação, e chamou suas idéias de Teologia da Palavra de Deus. Barth, porém, insistiu na distinção entre a Bíblia e a Palavra de Deus. Este era seu legado kantiano.

Segundo Barth, pode-se ler a Bíblia sem ouvir a Palavra de Deus. A Bíblia é simplesmente um livro, mas, pelo menos, um livro através do qual nos pode chegar a Palavra de Deus. A relação entre Deus e a Bíblia é real, porém indireta. A Bíblia, diz Barth, “é a Palavra de Deus enquanto Deus fala por meio dela [...] a Bíblia se transforma em palavra de Deus nesse momento”. Para ele, até que a Bíblia se torne real para nós, até que ela nos fale da nossa situação existencial, ela não é Palavra de Deus. Esse é o conceito barthiano de revelação.

A dialética de Barth, ou teologia do paradoxo.

O comentário de Barth também introduziu um novo método para explicar a teologia, a dialética. Esse termo ficou rapidamente associado à obra de Barth, ainda que o método tenha sido tomado por empréstimo do teólogo existencialista Soren Kierkgaard. Kierkgaard havia dito que toda afirmação teológica era paradoxal, não podendo ser sintetizada. O homem devia somente conservar ambos os elementos do paradoxo. É esse ato de sustentação do paradoxo que Kierkgaard chama de “salto de fé”.

Tal conceito influenciou muito a teologia barthiana, de maneira que quando preparava o comentário aos Romanos, Barth afirmava que “enquanto estamos na terra, não podemos fazer outra coisa em teologia a não ser utilizar o método de afirmação e contra-afirmação. Não nos atrevemos a pronunciar em forma absoluta a palavra definitiva [...] O paradoxo não é acidental na teologia cristã. Ele pertence, em certo sentido, ao coração do pensamento doutrinário”. A própria natureza da revelação, segundo Barth, é um paradoxo: Deus é o oculto que se revela; conhecemos a Deus e conhecemos o pecado; todo homem é escolhido e também reprovado em Cristo; o homem é justificado por Cristo, mas ainda é pecador. Certo comentarista observou que, segundo a teologia dialética de Barth, a revelação que vem de cima para o homem, ao encontrar a contradição do pecado e finitude humana, só pode ser assimilada pela mente humana como sendo um paradoxo.

O comentário de Barth veio reafirmar a transcendência absoluta de Deus.

Um dos pressupostos de Barth, que também é um legado kantiano, é que Deus é sempre sujeito, nunca objeto. Deus não é simplesmente uma unidade no mundo dos fenômenos; ele é infinito e soberano, “Totalmente Outro”, e só pode ser conhecido quando nos fala. “Ele não pode ser explicado como qualquer outro objeto pode ser, apenas podemos nos dirigir a Ele [...] Por esta razão, não cabe à teologia medí-lo em uma forma de pensamento direto ou unilinear”. Não podemos falar a respeito de Deus. Apenas falamos a Deus. Segundo Barth, a própria natureza de Deus exige que as afirmações que lhe dirigimos sejam revestidas de contradição: “Não podemos considerá-lo perto, a não ser que o consideremos longe”.

Sem dúvida o grande tema de Barth, em oposição declarada ao liberalismo, foi a “infinita diferença qualitativa” entre eternidade e tempo, céu e terra, Deus e o homem. Não se pode identificar Deus com nada no mundo, nem sequer com as palavras da Escritura. Deus chega ao homem como a tangente que toca o círculo, mas na realidade não o toca. Deus fala ao homem como a bomba explode na terra. Depois da explosão, tudo o que resta é uma cratera abrasada no terreno, e essa cratera é a igreja.

O comentário de Barth também demarcou a fronteira entre a história e a teologia.

A teologia do século dezenove se dedicou a procurar o Jesus histórico por detrás do Cristo sobrenatural da Bíblia. Os liberais clássicos como o professor de Barth, Harnack, se dedicaram a buscar nos evangelhos – os quais eles condenavam como não-confiáveis – os fatos históricos sobre Jesus. Barth asseverou que essa busca é um a busca sem importância, pois, segundo ele, a revelação não entra na história, apenas a toca como uma tangente toca um círculo. Segundo Barth, não há nada na história sobre o que possamos basear a fé. A fé é um vazio preenchido não pela história, mas pela revelação.

Profundamente influenciado pelos conceitos de história de Kierkgaard e de Franz Overbeck, Barth dividiu a história em dois níveis: Historie e Geschichte. Ainda que ambos os termos possam ser traduzidos por história, no alemão, a conotação que essas duas palavras têm é bem diferente. Historie é a totalidade dos fatos históricos do passado, podendo ser comprovada objetivamente. Geschichte se ocupa daquilo que une essencialmente, que exige algo de mim e requer meu compromisso. Segundo Barth, a ressurreição de Jesus pertence ao âmbito de Geschichte, não de Historie. Para ele, o âmbito da Historie de nada vale para o crente. Jesus deve ser confrontado no âmbito de Geschichte.

Mais uma vez a influência do pensamento de Immanuel Kant sobre a teologia de Karl Barth, principalmente no que concerne ao mundo dos fenômenos e dos números é muito grande, podendo-se até dizer que a teologia contemporânea tem sua raiz em Konigsberg, na Prússia. Ao longo do desenvolvimento da teologia contemporânea, as idéias kantianas de fenomenal e numenal “volta e meia” reaparecem com uma nova roupagem. Alguns tomam o tema e o ampliam, porém sua influência continua sendo grande a ponto de podermos designar o século dezoito e o pensamento de Kant como protótipo da teologia contemporânea.

Objeções à teologia dialética de Karl Barth.

Há, sem dúvida, algumas críticas que se pode fazer à obra de Barth. Ele mesmo reconheceu alguns de seus excessos e poliu boa parte dos argumentos que enfatizou a princípio, e até certo ponto, pode-se dizer que ele suavizou algumas idéias mais incisivas. O que passo a expor agora, são algumas críticas que se podem fazer ao pensamento de Barth.

Em primeiro lugar, ainda que as idéias de Barth representem uma revolta contra o liberalismo clássico, suas idéias podem ser chamadas de novo liberalismo. Barth não conseguiu se livrar do ponto de vista crítico liberal das Escrituras. Por causa dos seus pressupostos liberais, Barth não aceita a inerrância da Bíblia, chegando mesmo a afirmar que toda a Bíblia é um documento humano falível e que buscar partes infalíveis nas Escrituras é “simples capricho pessoal e desobediência”. A inerrância das escrituras é uma das diferenças cruciais entre o liberalismo e o cristianismo ortodoxo, e o posicionamento de Barth nada mais é que uma opção por ficar em cima do muro.

Sua idéia de revelação, em última instancia, é puramente subjetiva. Para Barth, a diferença entre a Bíblia como meramente um livro e a Bíblia como a Palavra de Deus depende exclusivamente da reação humana frente a este livro. Embora em uma atitude de revolta contra o liberalismo ele tenha exclamado: “Seja Deus e não o homem”, na prática, dentro da sua teologia dialética, o homem é entronizado no centro da experiência religiosa.

O resultado final da dialética de Barth é a destruição da verdade objetiva. Se toda comunicação histórica e toda experiência direta com Deus se encaixa em uma concepção pagã de Deus, como poderemos aproximar-nos da verdade sobre Deus? Também a sua insistência em descrever Deus como “Totalmente Outro” faz de Deus um ser indescritível. Como Deus não é um objeto no tempo e no espaço, e visto que a “inescrutabilidade e recondidez formam parte da natureza de Deus”, o homem não pode conhecê-lo diretamente, afirma ele. A questão é: se Deus é assim tão indescritível e insondável, de que maneira o homem pode conhecê-lo?

A separação que Barth faz da Historie e da Geschichte, traz à tona a problemática concernente à historicidade da obra redentora de Cristo como fundamento do cristianismo. Ela argumenta na tradição de Nietzche e Overbeck, separando o cristianismo da história, e ao fazê-lo, acaba por solapar a base do cristianismo. É claro que o propósito de Barth foi tirar do liberalismo o monopólio quanto ao método de interpretação, mas ao fazê-lo, também privou o cristianismo do seu lugar na história.

Ao que vemos, embora a teologia de Barth tenha sido responsável por uma prática religiosa em que os valores evidenciam a religiosidade do cristão, ele jamais conseguiu se libertar completamente do liberalismo teológico de seus mestres Herrmann e Harnack. Ele revoltou-se contra o liberalismo teológico, argumentou contra ele, mas não pode livrar-se de seus pressupostos. Tal como Kant, Barth confina Deus ao mundo dos números e apresenta a dialética – a teologia do paradoxo – como sendo à única teologia possível. Ele exclui a razão a priori e deixa a porta fechada à percepção humana.

Sua teologia é de suma importância para o século vinte e, de fato, quase todo o pensamento teológico moderno até a década de setenta envolverá a perspectiva de Barth. Podemos aceitar seus pressupostos ou acirrar-nos contra ele, mas nenhum teólogo de nossa época poderá jamais ignorar a teologia dialética de Karl Barth e sua influência no cenário teológico contemporâneo.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Richard Rubenstein: Quando Jesus Se Tornou Deus

Este livro mostra todo o processo de construção da trindade cristã, desde os primeiros momentos do cristianismo até o Concílio de Nicéia. Como o autor é um judeu que queria entender como se deu essa área do Cristianismo que marcou definitivamente a cisão do Judaísmo este livro pode ser considerado neutro no ponto de vista religioso.

De Jesus a Cristo

A divindade de Cristo foi afirmada no Concílio de Nicéia, em 325 d.C., e que a igreja cristã ocidental defendia uma ruptura com a herança judaica.

De fato, o imperador Constantino, que convocou o Concílio de Nicéia e se dizia convertido ao cristianismo, ajudou a introduzir muitos dogmas antibíblicos na Igreja, como a observância do domingo como dia sagrado (321 d.C.) em oposição ao sábado bíblico (Êxodo 20:8-11). Mas a divindade de Jesus certamente não é um desses dogmas e pode ser detectada mesmo no Antigo Testamento.

Textos veterotestamentários como Miquéias 5:2, Isaías 9:6, sem contar a profecia das 2.300 tardes e manhãs de Daniel 8 e 9 e inúmeros outros textos messiânicos, não só estabelecem a preexistência de Jesus, como reafirmam Sua divindade.

A base bíblica da doutrina da Trindade e, conseqüentemente, da divindade de Jesus, antecede ao Concílio de Nicéia. E faz isso recorrendo aos escritos dos primeiros cristãos que viveram entre os séculos II e III, isto é, imediatamente depois do período apostólico e antes do Concílio de Nicéia.

A lógica é simples: “Se o argumento antitrinitário estiver certo, ou seja, se a Trindade é mesmo uma doutrina forjada por Constantino, não encontraremos nesse período inicial nenhuma defesa à idéia de um Deus triúno. Ao contrário, o ensinamento da época deverá ser bem diferente, afirmando que Cristo é apenas um segundo ser gerado do Pai e o Espírito uma emanação impessoal de ambos.”

Antes de citar os chamados “Pais da Igreja”, faz-se necessário uma ressalva: “O proposito deste artigo não é endossar indiscriminadamente toda a doutrina dos Pais da Igreja, mas verificar, pelo seu testemunho, se a Trindade era crida na igreja primitiva ou se, como dizem alguns, seria fruto apenas do Concílio de Nicéia.“

Uma rápida verificação no index geral das obras Ante-Nicene Fathers e da Sources Chrétiennes, que formam a coleção de todos os escritores cristãos mais antigos (inclusive os anteriores a Nicéia), nos mostra que, muito antes do concílio, a crença na Trindade já havia sido sistematizada entre os cristãos. Aliás, o próprio termo “Trindade” foi usado em 212 d.C. por Tertuliano, ou seja, 113 anos antes de Nicéia! Falando da Igreja de Deus, ele menciona o Espírito “no qual está a Trindade de uma Divindade: Pai, Filho e Espírito Santo” (Tertuliano, Sobre a Modéstia, XXI).

“Inácio, o segundo sucessor de Pedro como pastor em Antioquia, também acreditava na doutrina da Trindade”. “Pelo que se sabe, foi martirizado no reinado de Trajano, em 105 d.C. Nessa época de perseguição à Igreja, ele escreveu uma epístola aos cristãos da Trália, dizendo-lhes que, a despeito do sofrimento, continuassem ‘em íntima união com Jesus Cristo, o nosso Deus’ (Inácio, Epístola aos Tralianos, VII [recensão curta]). Em outro manuscrito, onde uma versão mais longa é preservada, o mesmo autor adverte os irmãos contra aqueles que ensinavam doutrinas contrárias à fé dos apóstolos. Entre seus ensinos equivocados, estaria a idéia de que ‘o Espírito Santo não existe’ e que ‘o Pai, o Filho e o Espírito Santo seriam a mesma pessoa’ (Ibidem [recensão longa]).

Justino, cognominado “o Mártir”, foi outro que escreveu várias apologias em favor do Cristianismo e contra a filosofia grega. Num de seus textos, escrito por volta de 160 d.C., ele diz: “Já que somos considerados ateus, admitimos nosso ateísmo em relação a esses [vários] tipos de deuses [do politeísmo]. Mas, no que diz respeito ao verdadeiro Deus, o Pai da justiça e temperança ..., ao Filho, ... e ao Espírito Profético, [saibam que] nós os adoramos e reverenciamos” (Justino, I Apologia, VI).

Atenágoras, também respondendo à acusação de serem os cristãos chamados de ateus por não aceitarem o politeísmo pagão, ele escreveu em 175 d.C.: “Ora, quem não ficaria perplexo em ouvir chamar de ateus pessoas que pregam de Deus o Pai, de Deus o Filho e do Espírito Santo e que declaram serem um no poder, mas distintos na ordem?” (Atenágoras, Súplica pelos Cristãos, X). Continuando com Atenágoras, temos esta elucidativa declaração: “Os cristãos reconhecem a Deus e a Seu Logos. Eles também reconhecem o tipo de unicidade que o Filho tem com o Pai e que tipo de comunhão o Pai tem com o Filho. Ademais, eles sabem o que é o Espírito e que a unidade é [formada] destes três: o Espírito, o Filho e o Pai” (Ibidem, XI). “Nós reconhecemos um Deus, um Filho e um Espírito Santo, os quais são unidos na essência” (Ibidem, XXIII).

Hipólito (c. 205 d.C.), autor do mais antigo comentário de Daniel de que dispomos em nosso tempo, disse que “a Terra é movida por estes três: o Pai, o Filho e o Espírito Santo” (Hipólito: Fragmentos de Comentários, 10 [ANF, vol. 5, pág. 174]). Noutra passagem, depois de citar a fórmula batismal em nome do Pai, do Filho e do Espírito, ele demonstra que já no seu tempo havia os que negavam essa doutrina, pois diz: “Qualquer um que omitir um destes três, falha em glorificar a Deus de um modo perfeito. Pois é através desta triunidade que o Pai é glorificado” (Hipólito, Contra Noeto, 14).

Esses são apenas alguns exemplos de muitos que poderiam ter sido citados. Orígenes, Cipriano, Firmiliano e Dionísio de Alexandria são outros autores que também criam na Trindade muito antes da chegada de Constantino. Ao contrário do que muitos pensam, o próprio imperador não tinha interesse algum em ‘promulgar’ uma doutrina trinitária para a Igreja. Se este fosse o seu intento, ele não precisaria convocar um concílio. Bastava repetir o ato de quatro anos antes, quando promulgou o decreto dominical, e assinar um edito ordenando a todos que adorassem ao Deus triúno. Se quisermos ser honestos com a verdade dos fatos, devemos lembrar que Constantino nem possuía conhecimento bíblico suficiente para se posicionar diante daquela controvérsia. Aliás, a carta por ele enviada através do bispo Hósio de Córdova, dizia que o problema que estavam discutindo acerca da natureza de Cristo era ‘uma questão sem proveito’ (uma reprodução da carta de Constantino pode ser encontrada em Eusébio de Cesaréia, Vida de Constantino, II, 64-72.)”.

Foram os bispos que o convenceram a convocar o Concílio para resolver a questão. "Mas o que poucos sabem é que o partido de Alexandre, o partido trinitariano, era o mais fraco em termos políticos. Foi um verdadeiro milagre que o texto de Nicéia não favorecesse o arianismo. Tanto é que, embora os arianos tivessem sido derrotados no Concílio, os partidários de Eusébio de Nicomédia empreenderam uma verdadeira campanha, após Nicéia, para derrotar Atanásio e restaurar Ário ao poder.”

O mais surpreendente, é que, protegido pelo imperador, Ário começou aos poucos a reconquistar seu poder e a exercer influência em assuntos políticos. Eusébio, por sua vez, convenceu Constantino a enviar Atanásio para o desterro e a recolocar Ário no posto de líder da Igreja – o que, de fato, quase aconteceu, se não fosse o falecimento de Ário na noite anterior à da cerimônia de investidura, em 336 d.C. Assim, o plano era que o imperador convocasse um novo Concílio e desse ganho de causa aos arianos.

Sob tais circunstâncias, a fé trinitária parecia, se não oficialmente renegada, praticamente condenada, principalmente depois que Constantino declarou seu desejo de ser batizado por Eusébio, em um ritual antitrinitariano, evidentemente. A chamada fé nicena só não chegou ao fim porque Constantino acabou morrendo em 22 de maio de 337, poucos dias depois de ser batizado.

“Portanto, vê-se como infundada a declaração de que Constantino seria o pai da doutrina trinitariana usada para atrair o politeísmo para a Igreja”, arremata Rodrigo. “Pelo contrário, Ário e Eusébio é que traziam uma doutrina politeísta, pois apresentavam a Cristo como um ‘segundo’ deus, menor que o Pai, mas igualmente divino e que se assemelhava muito ao chamado ‘Demiurgo’, ou seja, um deus menor que, segundo o gnosticismo do Egito, fora usado pelo deus maior para trazer o mundo à existência. Isto, sim, pode ser classificado de politeísmo. Pena que muitos insistam em não entender!”

JESUS: HOMEM OU ANJO

A idéia de Elaine Pagels, autora de O Evangelho Desconhecido de Tomé, segundo a qual Marcos, Mateus e Lucas consideravam Jesus um ser humano. Mas basta uma consulta a esses evangelhos para se perceber exatamente o contrário. (Lembre-se, por exemplo, que quando Jesus Se apresenta a Tomé, este O chama de “meu Senhor e meu Deus”, e nenhum dos discípulos repreende o colega pela aparente “blasfêmia”.) Ademais, se os discípulos soubessem que Jesus Se tratava apenas de um ser humano, teriam dado a vida por essa ilusão – a de que Jesus era de fato Deus?

Uma coisa é certa: no fim das contas, ou se aceita Jesus como Deus ou como lunático, uma vez que Ele mesmo reclamava para Si a divindade. Com base na Bíblia, não existe outra possibilidade senão a de que “o Verbo era Deus” (João 1:1).