segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Para além do Gnosticismo


Alguns autores fazem uma distinção entre “gnosis” e “gnosticismo”. A gnose seria uma experiência baseada não em conceitos e preceitos, mas na sensibilidade do coração e o gnosticismo, por outro lado, é uma visão de mundo baseada na experiência de Gnose, que tem por origem etimológica o termo grego gnosis, que significa “conhecimento”, mas não um conhecimento racional, científico, filosófico, teórico e empírico a “episteme” dos gregos, mas de caráter intuitivo e transcendental; sabedoria. Sendo usado para designar um conhecimento profundo e superior do mundo e do homem, que dá sentido à vida humana, que a torna plena de significado porque permite o encontro do homem com sua essência eterna, a centelha divina.

O movimento originou-se provavelmente na Ásia Menor, difundindo-se da região do Irã à Gália, exercendo a sua maior influência sobre o cristianismo entre os anos de 135 e 200. Tem como base elementos das filosofias pagãs que floresciam na Babilônia, Antigo Egipto, Síria e Grécia Antiga, combinando elementos da astrologia e mistérios das religiões gregas como os do elêusis, do zoroastrismo, do hermetismo, do sufismo, do judaísmo e do cristianismo.

Num texto hermético lê-se que a gnosis da Mente é a “visão das coisas divinas“. G.R.S.Mead acrescenta que “Gnosis não é conhecimento sobre alguma coisa, mas comunhão, conhecimento de Deus“. Este é o grande objetivo, conhecer “Deus”, a Reali­dade em nós. Não é a crença, a fé ou o simples conhecimento o que importa. O fundamental é a comunhão interior, o religar da Mente individual com a Mente universal, a capacidade do homem “transcender os limites da dualidade que faz dele homem e tornar-se uma consciência divina“.

A posse da Gnosis significa a habilidade para receber e compreender a revelação e o verdadeiro Gnóstico seria aquele que conhece a revelação interior ou oculta desvelada e que também compreende a revelação exterior ou pública velada. Não é alguém que descobriu a verdade a seu respeito por meio de sua própria desamparada reflexão, mas alguém para quem as manifestações do mundo interior são mostradas e tornaram-se inteligíveis.

“Gnosis sobre quem éramos e no que nos tornamos; onde estávamos e onde viemos parar; para onde nos dirigimos e onde somos redimidos; o que é a geração, e o que é a regeneração”. Extratos de Theodotus

Doutrina Gnóstica

O pré-requisito essencial da filosofia gnóstica é o postulado da existência de uma “entidade imortal”, que não é parte deste mundo, que pode ser chamado de Deus interno, Centelha divina, Crístico, divina essência etc, que existe em todos os homens e é a sua única parte imortal. Os gnósticos consideram que o estado do homem neste mundo é “anti-natural”, pois ele está submetido a todo tipo de sofrimentos. Para eles, é necessário que o homem se liberte deste sofrimento, e isto só pode ocorrer pelo conhecimento.

Os gnósticos, de um modo geral, acreditavam que o Universo manifestado principia com emanações do Absoluto, seres finitos chamados de Æons que se reúnem no Pleroma. No princípio tudo era Uno com o Absoluto, então em um determinado momento, emanaram do Absoluto estes éons, formando o pleroma. O pleroma dos gnósticos é um plano arquetípico, abaixo do qual está o plano material, manifestado. Assim, o que antes era Uno, vivia no pleroma, se despedaça em partes, e este gera um estado de infelicidade, pela descida no pleroma (e separação do Todo Uno), é o que ocasiona o sofrimento do homem neste mundo.

Um dos éons, Sophia deu à luz o Demiurgo (artesão em grego), que criou o mundo material “mau”, juntamente com todos os elementos orgânicos e inorgânicos que o constituem. Os gnósticos ensinavam que a salvação vem por meio de um desses éons, geralmente apresentado como o décimo terceiro éon, distinto dos doze éons que regem o mundo decaído. Segundo a doutrina, Cristo se esgueirou através dos poderes das trevas para transmitir o conhecimento secreto (gnosis) e libertar os espíritos da luz, cativos no mundo material terreno, para conduzi-los ao mundo espiritual mais elevado.


Segundo algumas linhas gnósticas, Cristo não veio em carne e nunca assumiu um corpo físico, nem foi sujeito à fraqueza e às emoções humanas, embora parecesse ser um homem, enquanto a principal linha de gnosticismo cristão, a Valentiniana defende a tese próxima do nestorianismo doutrina cristã, nascida no Século V, segundo a qual há em Jesus Cristo duas pessoas distintas, uma humana e outra divina, sendo Cristos (o ungido) o éon celestial que a um tempo se une a Jesus.

Alguns historiadores afirmam que o apóstolo João se refere a esse assunto quando enfatiza que “o Verbo se fez carne” (Jo l .14) e em sua primeira epístola que “todo o espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne não é de Deus…” (l Jo 4.3). Os escritos joaninos são do final do primeiro século, quando nasceu o gnosticismo. No entanto, muitas comunidades gnósticas tinham o Evangelho de João em alta conta.

Dualismo e Monismo

Normalmente, os sistemas gnósticos são vagamente descritos como sendo “dualistas” em natureza, o que significa que tem a visão do mundo constituído ou explicável como duas entidades fundamentais. Hans Jonas escreve: “A característica central do pensamento gnóstico é o radical dualismo que rege a relação de Deus e o mundo e, correspondentemente, do homem e o mundo. “ Dentro desta definição, que funcionam a gama do dualismo radical dos sistemas de maniqueísmo, do dualismo mitigado de alguns movimentos gnósticos; a evolução Valentiniana indiscutivelmente aborda uma forma de monismo, expresso em termos anteriormente utilizados de forma dualista.

O dualismo radical – ou dualismo absoluto que postula duas forças divinas co-iguais. O Maniqueísmo concebe dois reinos anteriormente coexistente da luz e da escuridão que se envolveu em conflito, devido à caótica ações deste último. Posteriormente, alguns elementos da luz tornaram-se aprisionados dentro da escuridão, o propósito da criação material é para decretar o lento processo de extração destes elementos individuais, a fim de que o reino de luz prevalece sobre as trevas.

Esta mitologia dualista do zoroastrismo , no qual o espírito eterno Ahura Mazda é a oposição de sua antítese, Angra Mainyu , os dois estão envolvidos em uma luta cósmica, a conclusão de que será ver Ahura Mazda triunfante. A criação no mito Mandeano, emanações progressivas do Supremo Ser de Luz, com cada emanação provocando uma corrupção progressiva que resulta no aparecimento eventual de Ptahil, o deus das trevas, que teve uma mão na criação de regras e passam a constituir o reino material.

Além disso, o pensamento gnóstico geral, comumente incluíam a crença de que o mundo material corresponde a algum tipo de intoxicação provocada pelo mal os poderes das trevas para manter elementos da luz aprisionada dentro dele, ou, literalmente, para mantê-los no escuro “, ou ignorantes, em um estado de distração bêbado.

Dualismo mitigado – quando um dos dois princípios é, de alguma forma inferiores aos outros. Tais movimentos gnósticos clássicos como o Sethiniano concebeu o mundo material como sendo criado por uma divindade menor do que o verdadeiro Deus, que era o objeto de sua devoção.

O mundo espiritual é concebido como sendo radicalmente diferente do mundo material, co-extensivo com o Deus verdadeiro, é a verdadeira casa de alguns membros iluminados da humanidade, portanto, estes sistemas foram expressivos de um sentimento agudo de alienação do mundo, e seu objetivo era permitir um resultado da alma, para escapar das limitações apresentadas pelo reino físico.

Nesses mitos, a malevolência do demiurgo é mitigada; sua criação de uma materialidade falha não é devido a qualquer falha moral da sua parte, mas devido a sua imperfeição em contraste com as entidades superiores de que ele desconhece.

Para que o homem possa se libertar dos sofrimentos deste mundo, segundo os gnósticos, ele deve retornar ao Todo Uno, por ascensão ao pleroma, e isto só pode ser alcançado pelo Conhecimento Verdadeiro (representado pela Gnose). Este despertar só pode ocorrer se o homem se descobre, “conhecendo-se a si próprio”. Para o Gnosticismo existem três níveis de realização. No nível mais elevado estão aqueles que eram chamados eleitos, ainda que sem um sentido elitista de exclusão. Entre os gnósticos, eles eram conhecidos como pneumáticos, que significa espirituais.O grupo seguinte, os intermediários, são os psíquicos ou religiosos.

E, finalmente, os homens comuns, os muitos, na linguagem de Jesus, eram chamados pelos gnósticos, de ílicos ou materiais, pois aqueles que só estão voltados para os prazeres da vida material imediata, sem nenhum interesse pelo objetivo último da vida. Os textos gnósticos também tratam estes níveis como descendentes de Seth, Abel e Caim.

Assim, o ensinamento do Mestre Jesus, o Cristo – Aeon da Salvação, foi estruturado para atender as necessidades desses três grupos de pessoas. Para o povo em geral, para aqueles que estão voltados exclusivamente para a vida neste mundo, a ênfase eram os ensinamentos sobre a ética e a vida diária. Para os homens intermediários, que os gnósticos chamavam de religiosos, eram ensinamentos mais abrangentes sobre a vida e a prática espiritual, sendo esses ensinamentos encontrados nas escrituras cristãs.

E é interessante lembrar que esse grupo intermediário, eram aqueles que nesta vida, em função de suas decisões, determinações e postura de vida poderiam cair no grupo dos muitos, os materialistas, ou então, elevarem-se e entrar no grupo dos eleitos, daqueles que poderiam vir a ser salvos ou libertos. E, finalmente, para o grupo dos assim chamados espirituais, os poucos, a tradição oferece ensinamentos sobre o caminho acelerado. O caminho acelerado, com suas naturais exigências de purificação e dedicação, só está aberto a poucos.

Assim, os primeiros cristãos sabiam que dois tipos de pessoas se achegariam ao cristianismo, um tipo sem o toque pneumático, e, portanto, incapaz de aproximar-se da salvação pelo conhecimento e pela sabedoria dos Mistérios, mas possuindo apenas capacidade de assimilar pela fé o lado superficial da Lei; o outro tipo, tocado pelo dom pneumático, pela centelha-espírito, que possuiria plena capacidade de assimilar os conhecimentos e a sabedoria dos Mistérios divinos e descer ao nível profundo e espiritual da Lei, podendo gozar de completa iluminação e redenção.” Orígenes ” De Principiis”

Grandes escolas gnósticas e seus textos

As escolas do Gnosticismo podem ser definidas de acordo com um dos sistemas de classificação como membros de duas grandes categorias. São elas as escolas “Orientais/Persas” e as escolas “Siríacas/Egípcias”. As escolas da primeira categoria possuem tendências dualistas mais pronunciadas, refletindo a forte influência das crenças do Zorastrismo Zurvanista persa. Já as escolas síriaco-egípcias e os movimentos que elas deram origem têm tipicamente uma visão mais Monista.

Notáveis exceções existem, incluindo movimentos relativamente modernos, que parecem ter incluído elementos de ambas as categorias, como os cátaros, os bogomilos e os carpocracianos.

Gnosticismo persa

As escolas persas, que apareceram na província da Babilônia e cujos escritos foram produzidos originalmente em dialetos aramaicos falados na região na época, representam o que se acredita serem as formas mais antigas do pensamento gnóstico.

Estes movimentos são considerados pela maioria como religiões por si sós e não seitas emanadas do Cristianismo ou do Judaísmo.

Mandeísmo é ainda praticado por pequenos grupos no sul do Iraque e na província iraniana do Khuzistão. O nome do grupo deriva do termo Mandā d-Heyyi, que significa “Conhecimento da Vida”.

Embora a origem exacta deste movimento não seja conhecida, João Batista eventualmente se tornaria uma figura chave nesta religião, assim como ênfase no batismo se tornou parte do cerne de suas crenças. Assim como no Maniqueísmo, apesar de certos laços com o Cristianismo, os mandeanos não acreditam em Moisés, Jesus ou Maomé. Suas crenças e práticas também tem poucas sobreposições com as religiões fundadas por eles.

Uma quantidade significativa das Escrituras originais Mandeanas sobreviveram até a era moderna. O texto principal é conhecido como Genzā Rabbā e tem trechos identificados pelos estudiosos como tendo sido copiados já no século II dC. Existe também o Qolastā, ou “Livro Canônico de Oração” e o sidra ḏ-iahia, o “Livro de João Batista”.

Maniqueísmo, que representa toda uma tradição religiosa e que agora está quase extinto, foi fundado pelo profeta Mani (216-276 dC).

Embora acredite-se que a maior parte das Escrituras dos maniqueístas tenha se perdido, a descoberta de uma série de documentos originais ajudou a lançar alguma luz sobre o assunto. Preservados agora em Colônia, Alemanha, o Codex Manichaicus Coloniensis contém principalmente informações biográficas sobre o profeta e alguns detalhes sobre seus ensinamentos.

Como disse Mani, “O Deus verdadeiro não tem nada a ver com o mundo material e o cosmos”, e “É o Príncipe das Trevas que falou com Moisés, os judeus e seus sacerdotes. Portanto, cristãos, os judeus e os pagãos estão envolvidos no mesmo erro quando adora este Deus. Pois ele os leva para perdição através dos desejos que lhes ensinou”.

Gnosticismo siríaco-egípcio

A escola siríaca-egípcia deriva muito de sua forma geral das influências platônicas. Tipicamente, ela apresenta a criação numa série de emanações de um fonte primal monádica, finalmente resultando na criação do universo material.

Como consequência, há uma tendência nestas escolas em ver o “mal” (ou a maldade) como a matéria, inferior à bondade, sem inspiração espiritual e sem bondade, ao invés de retratá-lo como uma força igual.

Podemos dizer que estas escolas gnósticas utilizar os termos “bem” e “mal” como sendo termos “relativos”, pois se referem aos relativos apuros da existência humana, aprisionada entre estas realidades e confusa na sua orientação, com o “mal” indicando a distância extremada do princípio e fonte do “bem”, sem necessariamente enfatizar uma negatividade inerente.

Como pode ser visto abaixo, muitos destes movimentos incluíram fontes relacionadas ao Cristianismo, com alguns inclusive se identificando como cristãos (ainda que de forma distintamente diferente das chamadas formas ortodoxas ou católica romana).

Escrituras siríaco-egípcias

A maioria da literatura nesta categoria nos é conhecida ou foi confirmada pela descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi. Obras Setianas, assim chamadas em homenagem ao terceiro filho de Adão e Eva, Sete (ou Seth), que eles acreditavam possuir e ser o disseminador da gnosis. As obras tipicamente setianas são:

  • O Apócrifo de João
  • O Apocalipse de Adão
  • A Hipóstase dos Arcontes, também conhecido por “A Realidade dos Regentes”
  • Trovão, Mente Perfeita
  • Protenóia trimórfica
  • Livro Sagrado do Grande Espírito Invisível também conhecido por “Evangelho Copta dos Egípcios”
  • Zostrianos
  • Alógenes
  • As Três estelas de Sete
  • O Evangelho de Judas
  • Obras Tomistas, assim chamadas por causa da escola de Tomé Apóstolo. Todos são pseudepígrafos. Os textos geralmente atribuídos a ela são:
  • Hino da Pérola, também conhecido como “Hino de Tomé Apóstolo Dídimo no país dos Indianos”
  • Atos de Tomé
  • O Evangelho de Tomé
  • Livro de Tomé o Adversário

Obras Valentianas são assim chamadas em referência ao Bispo e professor Valentim (ca. 153 dC). Ele desenvolveu uma complexa cosmologia fora da tradição setiana. Em certo ponto chegou a estar próximo de ser nomeado o Bispo de Roma, naquela que hoje é a Igreja Católica Romana. As obras geralmente atribuídas a eles estão listadas abaixo, sendo que os fragmentos que podem ser diretamente relacionadas a elas estão marcados com asterisco:

  • A Divina Palavra presente na Criança (Fragmento A) *
  • Sobre as Três Naturezas (Fragmento B) *
  • A Habilidade de falar de Adão (Fragmento C) *
  • Para Agathopous: O Sistema Digestivo de Jesus (Fragmento D) *
  • Aniquilação do Reino da Morte (Fragmento F) *
  • Sobre Amizade: A Fonte da Sabedoria Comum (Fragmento G) *
  • Epístola sobre Conexões Sentimentais (Fragmento H) *
  • Colheita de Verão *
  • Evangelho da Verdade *
  • A versão Ptolemaica do Mito Gnóstico
  • Prece do apóstolo Paulo
  • Epístola de Ptolomeu à Flora
  • Tratado sobre a Ressurreição, ou Epístola a Reginus.
  • Evangelho de Filipe

Obras Basilidianas, assim chamadas por causa do fundador da escola, Basilides (132–? dC). Quase todas as obras são conhecidas por nós principalmente através da crítica de um de seus oponentes, Ireneu de Lyon, no seu livro Adversus Haereses. Outros trechos são conhecidos através das obras de Clemente de Alexandria, principalmente a Stromata:

  • O Octeto das Entidades Subsistentes (Fragmento A)
  • A The Singularidade do Mundo (Fragmento B)
  • Ser Eleito Naturalmente requer Fé e Virtude (Fragmento C)
  • O Estado da Virtude (Fragmento D)
  • Os Eleitos Trascendem o Mundo (Fragmento E)
  • Reincarnação (Fragmento F)
  • O Sofrimento Humano e a Bondade da Providência (Fragmento G)
  • Pecados Perdoáveis (Fragmento H)
  • Gnosticismo posterior e grupos influenciados pelo Gnosticismo

A cruz circular, harmônica era um emblema utilizado pelos cátaros, uma seita medieval relacionada ao Gnosticismo.Simão Mago e Marcião de Sinope: ambos tinham tendências gnósticas, mas as ideias que eles apresentaram estavam ainda em formação; por isso, eles podem ser descritos como pseudo- ou proto-gnósticos.

Ambos desenvolveram um considerável conjunto de seguidores. O pupilo de Simão Mago, Menandro de Antióquia também pode ser incluído neste grupo. Marcião é popularmente identificado como gnóstico, porém a maior parte dos estudiosos não entende assim.
Cerinto (c. 100 dC), o fundador de uma escola herética com elementos gnósticos. Como gnóstico, Cerinto mostrou Cristo como um espírito celeste separado do homem Jesus e citou o Demiurgo como criador do mundo material.

Porém, ao contrário dos gnósticos, Cerinto ensinava os cristãos a observar a lei judaica; seu demiurgo era sagrado e não inferior; e acreditava na Segunda vinda de Cristo. Sua gnosis era um ensinamento secreto atribuído a um apóstolo. Alguns estudiosos acreditam que a Primeira Epístola de João foi escrita em resposta a Cerinto.

Os Ofitas, assim chamados por reverenciarem a serpente do Gênesis como um fonte de conhecimento.

Os Cainitas, que como o nome implica, veneravam Caim, assim como Esaú, Korah e os sodomitas. Há pouca evidência sobre a natureza deste grupo; porém, é possível inferir que eles acreditavam que indulgência no pecado era a chave para a salvação, pois dado que o corpo é intrinsecamente mau, é preciso denegri-lo com atitudes imorais (veja libertinismo). O nome ‘cainita’ não é utilizado aqui no sentido bíblico de “descendentes de Caim” (que segundo a Bíblia foram exterminados no Dilúvio).

Os Carpocracianos, uma seita libertina que acreditava unicamente no Evangelho dos Hebreus.

Os Borboritas, uma seita libertina gnóstica, que acredita-se ser uma derivação dos Nicolaítas

Os Paulicianos, um grupo adocionista, também acusado por fontes medievais como sendo gnóstica e quasi-maniqueísta. Eles floresceram entre 650 e 872 na Armênia e nas províncias (ou temas) orientais do Império Bizantino.

Os Bogomilos, a síntese (no sentido do sincretismo) entre o Paulicianismo Armênio e o movimento reformista da Igreja Ortodoxa Búlgara, que emergiu durante o Primeiro império búlgaro entre 927 e 970, e se espalhou pela Europa.

Os Cátaros (Cathari, Albigenses ou Albigensianos) são tipicamente vistos como imitadores do Gnosticismo. Se os cátaros possuíam ou não uma influência histórica direta do antigo Gnosticismo ainda é tema disputado, embora alguns acreditem que numa transferência de conhecimento dos bogomilos.

Embora as concepções básicas da cosmologia gnóstica possam ser encontradas nas crenças cátaras (principalmente a noção de um deus criador inferior, satânico). Catarismo é a religião do Espírito (do Paracleto). Eles se separaram dos outros gnósticos deixando de lado os éons, os arcontes, os diagramas e os números cabalísticos.

Conceitos e Termos Importantes

Note que o texto a seguir é formado por resumos das várias interpretações gnósticas existentes. Os papéis de alguns seres mais familiares, como Jesus Cristo, Sophia e o Demiurgo geralmente compartilham os temais centrais entre os vários sistemas, mas pode haver algumas diferentes funções ou identidades atribuídos a eles em cada uma.

Æon
Em muitos sistemas gnósticos, os aeons são várias emanações de um deus superior, que também é conhecido por nomes como Mônada, Aion teleos (grego: “O Perfeito Aeon”), Bythos (grego: Βυθος – ‘profundidade’) e muitos outros.

Deste ser inicial, também um Aeon, uma série de diferentes emanações ocorreram, começando em alguns textos gnósticos com o hermafrodita Barbelo de quem sucessivos pares de Aeons emanam, frequentemente em pares masculino-feminino chamados de sizígias; o número destes pares varia de texto para texto, embora alguns identifiquem seu número como sendo trinta.

Os Aeons como uma “totalidade” constituem o Pleroma, a “região de luz”. As regiões mais baixas do Pleroma estão mais perto da escuridão, ou seja, do mundo material.

Dois dos Aeons mais frequentemente emparelhados são Jesus e Sophia (em grego: sabedoria). Ela se refere a Jesus como seu ‘consorte’ em Exposição Valentiana. Sophia, emanando sem o seu parceiro resulta na criação do Demiurgo (em grego: “construtor público”) também chamado de Yaldabaoth (ou variações) em alguns textos.

Esta criatura está escondida fora do Pleroma em isolamento, e acreditando-se sozinha, ela cria a matéria e uma horda de co-atores, referidos como Arcontes. O Demiurgo é reponsável pela criação da humanidade, pois assim ele pode aprisionar as fagulhas do Pleroma roubadas de Sophia em corpos humanos.

Em resposta, o Mônada emana dois Aeons salvadores, ‘Cristo e o Espírito Santo; Cristo então se incorpora na forma de Jesus para poder ensinar aos homens como alcançar a gnosis, pela qual eles poderão retornar ao Pleroma.

Arconte
No final da antiguidade, algumas variantes do Gnosticismo utilizaram o termo “Arconte” para se referir aos diversos servos do Demiurgo. Neste contexto, eles podem ser entendidos como tendo o papel dos anjos e demônios do Antigo Testamento.

De acordo com Contra Celso, de Orígenes, a seita dos Ofitas (veja acima Gnosticismo posterior e grupos influenciados pelo Gnosticismo) propuseram a existência de sete arcontes, começando com o próprio Yaldabaoth, que criou os próximos seis: Iao, Sabaoth, Adonaios, Elaios, Astaphaios e Horaios.

Assim como o Chronos mitráico e o Narasimha védico (uma forma de Vishnu), Yaldabaoth tem a cabeça de um leão (embora tenha o corpo de uma serpente de acordo com o Apócrifo de João).

Demiurgo

Uma divindade com face de leão encontrada numa gema gnóstica em L’antiquité expliquée et représentée en figures de Bernard de Montfaucon pode ser uma representação do Demiurgo; porém, veja também Chronos.

O termo Demiurgo deriva da forma latinizada do termo grego dēmiourgos (δημιουργός), significando literalmente “servidor público ou trabalhador habilidoso” e se refere à uma entidade responsável pela criação do universo e de todo o aspecto físico da humanidade.

O termo dēmiourgos ocorre em diversas outras religiões e sistemas filosóficos, principalmente o Platonismo. Julgamentos morais sobre o demiurgo variam de grupo para grupo dentro da grande categoria do Gnosticismo – estes julgamentos geralmente correspondem ao julgamento de cada grupo sobre o status da materialidade como sendo intrinsecamente má, ou meramente falha e tão boa quanto a passiva matéria que a constitui permite.

Como Platão faz, O Gnosticismo apresenta uma distinção entre uma realidade supranatural, incognoscível e a materialidade sensível, da qual o Demiurgo é o criador.

Porém, em contraste com Platão, os diversos sistemas gnósticos apresentam o demiurgo como um antagonista do Deus Supremo: seu ato de criação, seja ele inconsciente e uma imitação fundamentalmente falha do modelo divino (veja o Mito da Caverna), ou formado com a intenção maligna de aprisionar aspectos do divino “na” materialidade.

Portanto, nestes sistemas, o Demiurgo age como uma solução para o problema do mal. No Apócrifo de João, o Demiurgo – ali chamado de Yaldabaoth – se proclama como Deus:

Agora o arconte que é fraco tem três nomes. O primeiro nome é Yaldabaoth, o segundo é Saclas e o terceiro é Samael. E ele é ímpio em sua arrogância, que está nele. Pois ele disse: ‘Eu sou Deus e não há outro Deus além de mim’, pois ele é ignorante de sua força, do lugar de onde veio.

— Apócrifo de João

“Samael”, na tradição judaico-cristã, se refere ao anjo mau da morte e corresponde ao demônio cristão de mesmo nome, atrás apenas de Satã. Literalmente, pode significar “deus-cego” ou “deus dos cegos” em aramaico ; o outro título, Saclas, aramaico para “tolo”.

No mito de Sophia, sua mãe, Sophia, também um aspecto parcial do Pleroma (ou “Totalidade”), desejava emanar de si algo sem a autoridade do Espírito Supremo. Neste ato abortivo e imperfeito, ela deu à luz ao monstruoso Demiurgo. Envergonhada com seu ato, ela o envolveu numa nuvem com um trono no meio para que os demais Aeons não percebessem.

O Demiurgo então, isolado, sem ver sua mãe e ninguém mais, concluiu que era o único que existia e, ignorante, criou o mundo material, a humanidade e uma hierarquia de “poderes” (Arcontes) para governá-lo.

Os mitos gnósticos descrevendo estes eventos são cheios de nuances intrincadas retratando a declinação de aspectos do divino até a forma humana; este processo acontece através do trabalho do Demiurgo que, tendo roubado um pouco do poder de sua mãe, passa a trabalhar na criação de uma imitação inconsciente do reino superior do Pleroma (como sombras das imagens).

Assim, o poder de Sophia (as “fagulhas” ou “sopro” divino)fica aprisionado dentro das formas materiais da humanidade, também presa dentro do mundo material: o objetivo de todos os movimentos gnósticos era tipicamente acordar esta fagulha, o que permitiria o retorno do indivíduo à realidade superior, não material onde estava a fonte primal.

Alguns filósofos gnósticos identificam o Demiurgo com Yahweh, o Deus do Antigo Testamento, em oposição e contraste ao Deus do Novo Testamento. Ainda outros o igualam com Satã. Os cátaros aparentemente herdaram sua idéia de Satã como o criador do mundo maligno diretamente ou indiretamente do Gnosticismo.

Gnosis (ou Gnose)

Gnosis vem da palavra grega para “conhecimento”, gnosis (γνῶσις). Porém, gnosis em si se refere a uma forma muito especial de conhecimento, derivada tanto do significado exato do termo grego quanto seu uso na filosofia de Platão.

O grego antigo era capaz de discernir entre diversas formas diferentes de “conhecer”.

Essas formas podem ser descritas em língua portuguesa como sendo conhecimento proposicional, indicativo de um conhecimento adquirido “indiretamente” através de reportes de outros ou por inferência (como em “Eu sei que Lisboa está em Portugal”), e o conhecimento conhecimento empírico, adquirido através de “participação direta” (como em “Eu sei que Lisboa está em Portugal pois estive lá”).

Gnosis (γνῶσις) se refere ao conhecimento do segundo tipo. Portanto, em um contexto religioso, ser ‘gnóstico’ deve ser entendido como confiar não em conhecimento no sentido geral, mas como sendo especialmente receptivo às experiências místicas ou esotéricas de participação direta com o divino.

De facto, na maior parte dos sistemas gnósticos, a causa suficiente para salvação é este “conhecimento do” (‘ser familiar com’) divino. Isto é geralmente identificado com o processo de conhecimento interno ou de auto-exploração, comparável com o que foi encorajado por Plotino.

Porém, como se pode ver, o termo ‘gnóstico’ tem um uso precendente em diversas tradições filosóficas que precisa também ser levado em consideração para que seja possível entender as implicações sutis que este epíteto tem para diversos grupos religiosos antigos.

Mônada

Em muitos sistemas gnósticos (e heresiológicos), o Ser Supremo é conhecido como Mônade, o Uno, o Absoluto Aiōn teleos (O Perfeito Aeon, αἰών τέλεος), Bythos (Profundidade, Βυθός), Proarchē (Antes do Início, προαρχή, Hē Archē (O Início, ἡ ἀρχή) e Pai inefável. O Uno é a fonte primal do Pleroma, a região de luz. As várias emanações do Uno são chamados “Aeons”.

A cosmogonia setiana como está no famoso Apócrifo de João (ou Livro Secreto de João) descreve um deus desconhecido, muito similar à Teologia negativa ortodoxa, embora muito diferente dos ensinamentos do credo ortodoxo de que existe um deus assim que também seja o criador do céu e da terra.

Teólogos ortodoxos, quando descrevendo a natureza do deus criador associado aos textos bíblicos, muitas vezes tentam defini-lo através de uma série de afirmações explícitas e positivas (cataphrasis), por si sós universais, e que associadas ao divino se tornam superlativas: ele é onisciente, onipotente e verdadeiramente benevolente.

Já na concepção setiana do deus trascendente e escondido descrita no texto, ele é definido, por contraste, através da teologia negativa (apophasis): ele é imóvel, invisível, intangível e inefável. Geralmente, ‘ele’ é visto como uma sendo hermafrodita, um símbolo potente para um ser, pois ele é o que ‘tudo contém’.

Uma abordagem apofásica na discussão da Divindade pode ser encontrada por todo o Gnosticismo, nos Vedas, nas teologias de Platão e Aristóteles e em algumas fontes judaicas.

Pleroma

Pleroma (em grego: πληρωμα geralmente se refere à totalidade dos poderes de deus. O termino significa “plenitude” e é usado em vários contextos teológicos cristãos: tanto gnósticos em geral, como também no cristianismo (como em «Pois nele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade» (Colossenses 2:9).

O Pleroma celeste é o centro da vida divina, uma região de luz “acima” (o termo não deve ser entendido espacialmente) do nosso mundo, ocupado por seres espirituais como os Aeons e, às vezes, por arcontes.

Jesus é interpretado como sendo um aeon intermediário que foi enviado do Pleroma e cuja ajuda seria fundamental para que a humanidade recupere o conhecimento perdido (ou esquecido) das suas origens divinas. O termo é, portanto, central na cosmologia gnóstica.

Pleroma também é utilizado na língua grega comum e é utilizado pela Igreja Ortodoxa Grega na sua forma geral pois a palavra aparece em Colossenses. Proponentes da visão que Paulo seria na verdade gnóstico, como Elaine Pagels da Universidade de Princeton, enxergam a referência em Colossenses como algo a ser interpretado no sentido gnóstico.

Sophia

Sophia (em grego: Σοφία) é aquilo que detém o “sábio” (em grego: σοφός; “sofós”). Na tradição gnóstica, Sophia é uma figura feminina, análoga à alma humana e simultaneamente um dos aspectos femininos de Deus. Os gnósticos afirmam que ela é a sizígia de Jesus (veja a Noiva de Cristo) e o Espírito Santo da Trindade.

Ocasionalmente é referenciada pelo equivalente hebreu Achamōth (em grego: Ἀχαμώθ) e como Prouneikos (em grego: Προύνικος, “A Libidinosa”). Nos textos da Biblioteca de Nag Hammadi, Sophia é o mais baixo dos Aeons ou a expressão antrópica da emanação da luz de Deus.

Cristãos Gnósticos

Nos séculos I e II o gnosticismo produziu manifestações dentro da cristandade, sobretudo no Egito, onde se destacaram líderes como Carpócrates, Basílides, Isidoro e Valentim, este último fundador de uma importante escola em Roma.

Os Cristãos Gnósticos constituíram, nos primeiros anos dessa nossa era, uma comunidade fechada, iniciática, que guardou os aspectos esotéricos dos evangelhos, principalmente das parábolas do Mestre Jesus, o Cristo, apresentando um cristianismo muito mais profundo e filosófico do que daqueles cristãos que ficaram conhecidos como a ortodoxia.

Dentre os grupos mais activos nos dois primeiros séculos de nossa era destacam-se os naasenos (palavra em aramaico com o mesmo significado de ofitas, de origem grega), perates, sethianos (de orientação judaica) docéticos (que propunham que a natureza exterior do Cristo era ilusória), carpocráticos, basilidianos e valentinianos.

Com o passar do tempo, os herdeiros da tradição gnóstica e maniqueísta foram mudando de nome, podemos indicar o aparecimento dos seguintes grupos: entre os séculos III e IX: Euchites, Magistri Comacini, Artífices Dionisianos, Nestorianos e Eutychianos; no século X: Paulicianos e Bogomilos; no século XI: Cátharos, Patarini, Cavaleiros de Rodes, Cavaleiros de Malta, Místicos Escolásticos; no século XII: Albigenses, Cavaleiros Templários, Hermetistas; no século XIII: a Fraternidade dos Winklers, os Beghards e Beguinen, os Irmãos do Livre Espírito, os Lollards e os Trovadores; no século XIV: os Hesychastas, os Amigos de Deus, os Rosa-cruzes e os Fraticelli; no século XV: os Fraters Lucis, a Academia Platônica, a Sociedade Alquímica, a Sociedade da Trolha e os Irmãos da Boêmia (Unitas Fratrum); no século XVI: a Ordem de Cristo (derivada dos Templários), os Filósofos do Fogo, a Militia Crucífera Evangélica e os Ministérios dos Mestres Herméticos; no século XVII: os Irmãos Asiáticos (Irmãos Iniciados de São João Evangelista da Ásia), a Academia di Secreti e os Quietistas; no século XVIII: os Martinistas; no século XIX: a Sociedade Teosófica.

Os Paulicianos formavam um grupo gnóstico ativo no Império Romano. Se declaravam contra todas hierarquias que exerciam seu poder para combater a iluminação interior. Até o século XI, os paulicianos foram mortos pela igreja romana, assim como o Maniqueísmo antes deles.

Mas o gnosticismo sobreviveu, sua luz e força continuaram a irradiar com os bogomilos…A herança Gnóstica dos séculos XII e XIII, foram transmitidas aos Cátaros, que também foram perseguidos e mortos pela igreja romana. Na Idade Média, o gnosticismo manifestou-se na Ordem dos Templários, foi revivificada pela Rosa-cruz ,pelas mãos de Johannes Valentinus Andreae, mantiveram ligações com a Maçonaria,com a Teosofia e com o Martinismo.

Todos testemunhando o Cristianismo Interior, descrevendo o caminho de retorno a Deus, que foi aberto pelo seu filho, Mestre Jesus, o Cristo.

Fontes

Pouco material chegou até os dias de hoje, a maioria dos personagens e suas doutrinas só puderam ser conhecidos por meio dos críticos do gnosticismo. A maior polêmica contra os gnósticos apareceu no período patrístico, com os escritos apologéticos de Irineu(130-200), Tertuliano (160-225) e Hipólito (170-236).

Por isso a descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi,em 1945, foi de suma importância, visto que seu conteúdo é eminentemente gnóstico. O achado impulsionou as pesquisas sobre o assunto na segunda metade do século XX.

Estes manuscritos totalizavam cinquenta e dois textos, em treze códices de papiro, escritos em copta. Entre as obras aí guardadas encontravam-se diversos tratados gnósticos, três obras pertencentes ao Corpus Hermeticum e uma tradução parcial da República de Platão. Parte deles conhecidos também como Evangelhos gnósticos

Os Manuscritos Pistis Sophia,”Piste Sophiea Cotice” ou “Códice Askew”, atribuidos a Valentim foi adquirido do médico e colecionador de manuscritos antigos Dr. Askew pelo Museu Britânico em 1795 , datam de 250–300 AD, relatam os ensinamentos Gnósticos do Mestre Jesus, o Cristo transfigurado aos apóstolos.

Até a descoberta da biblioteca de Nag Hammadi em 1945, o Códice Askew era um dos três códices que continha quase todos os escritos gnósticos que tinham sobrevivido, sendo os dois outros códices o Códice Bruce e o Códice de Berlim.

Mais recentemente um outro documento gnóstico foi encontrado, gerando diferentes especulações sobre o verdadeiro relacionamento de Jesus Cristo com o seu discípulo Judas, este documento é o Evangelho de Judas que estava desaparecido por mais de 1700 anos, tendo sido encontrado finalmente no Egito.

Elaine Pagels professora de religião na Universidade de Princeton e Ph.D. da Universidade de Harvard.Em Harvard ela fez parte de um grupo que estudou os rolos de Nag Hammadi, dessa experiência resultou a base para o seu primeiro livro Os Evangelhos Gnósticos,

Esse livro é uma introdução aos textos de Nag Hammadi para o público leigo e é, desde o seu lançamento, um best-seller. Nos EUA, ganhou os prêmios National Book Critics Circle Award e National Book Award e foi escolhido pela Modern Library como um dos 100 melhores livros do século XX.

George Robert Stowe Mead (1863 – 1933).Com formação em línguas e filosofia por Oxford, estudioso altamente intuitivo e perspicaz, deve ser considerado como um pioneiro de primeira ordem no domínio dos escritos gnósticos e estudos herméticos, foi autor, editor, tradutor e um influente membro da Sociedade Theosophica.

Seu maior mérito teria sido a sua capacidade de discernir o significado interior e espiritual dos dos escritos, capacidade esta reconhecida por C.G.Jung que fez uma viagem especial a Londres no último período de vida de Mead, para lhe agradecer por seu trabalho brilhante e pioneiro de traduzir e comentar as escrituras gnósticas.

Bentley Layton(1941) é Professor de Estudos Religiosos e Professor do Oriente Próximo Línguas e Civilizações (copta) na Universidade de Yale (desde 1983).Autoridade reconhecida internacionalmente, em literatura gnóstica. Membro do projeto da UNESCO, CAIRO, que publicou a Biblioteca de Nag Hammadi.

Formado em Harvard, “Redescoberta tardia do gnosticismo”, foi o título da conferência internacional que ele apresentou na Universidade de Yale em 1980. Seus interesses encontram-se na história do cristianismo desde suas origens até o surgimento do Islã, os estudos gnósticos e copta . Seu livro mais acessível é “As Escrituras Gnósticas”, que apresenta parte da literatura gnóstica enigmáticos do cristianismo.

Ele apresenta sua seleção de escrituras gnósticas, os escritos de Valentino e seus seguidores, e os escritos relacionados que exibem tendências gnósticas no contexto mais amplo de cristianismo primitivo e do judaísmo helenístico, com introduções generosas e anotações abundantes.

Para os especialistas, a gramática copta de Layton é um texto padrão. Ele catalogou todos os manuscritos coptas na Biblioteca Britânica. Ele é membro do conselho da Harvard Theological Review eo Journal of Studies copta.

James M. Robinson (nascido em 1924) é professor Emérito de religião, na Universidade de Claremont, Califórnia. É o mais proeminente erudito do século 20, da biblioteca de Nag Hammadi.

Stephan A. Hoeller (1931 – ) Ph.D. em filosofia da religião da Universidade de Innsbruck em Áustria, escritor, erudito e líder religioso.

Dr. Marvin Meyer (Ph.D., Claremont Graduate University, M. Div. Calvin Theological Seminary) é professor de Bíblia e Estudos Cristãos e co-presidente do Departamento de Estudos Religiosos, Chapman University. Ele também é diretor do o Albert Schweitzer Chapman University Institute.

Ele é diretor do Projeto dos Textos Mágicos Coptas do Instituto de Antiguidade e Cristianismo, Claremont Graduate University, membro do Seminário Jesus, e um ex-presidente da Society of Biblical Literature (Pacific Coast). Dr. Meyer é o autor de numerosos livros e artigos sobre a civilização greco-romana e religião cristã na antiguidade e da antiguidade tardia, e no Albert Schweitzer é ética de reverência pela vida.

Kurt Rudolph (03 de Abril de 1929) Pesquisador do gnosticismo e Mandeismo.Nascido em Dresden Rudolph estudou teologia protestante, religião , história semitas nas universidades de Greifswald e de Leipzig.

Posteriormente, durante seis anos, ele foi assistente de pesquisa , enquanto ele trabalhava em paralelo para o doutorado em teologia e, assim como a história religiosa. Em 1961 ele recebeu sua habilitação em história da religião e religião comparada.

Durante seu trabalho na Universidade de Leipzig , Chicago e Marburg e Santa Barbara(University of California), ele adquiriu uma reputação internacional como um conhecedor do gnosticismo e maniqueísmo.Além disso, ele também ocupou-se com o Islão e questões metodológicas em estudos religiosos.

Jakob Böhme ou Jacob Boehme, (Alt Seidenberg, 1575 — Görlitz, 17 de Novembro de 1624) foi filósofo e místico cristão alemão,as obras que escreveu são o maior monumento de conhecimentos teogônicos (concernentes ao surgimento dos primeiros princípios em Deus) e cosmogônicos (concernentes à criação do Universo e das criaturas) da história do cristianismo.

Platão Πλάτων, Plátōn. (Atenas, 428/427– Atenas, 348/347 a.C.) foi um filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga, autor de diversos diálogos filosóficos e fundador da Academia em Atenas, a primeira instituição de educação superior do mundo ocidental. Juntamente com seu mentor, Sócrates, e seu pupilo, Aristóteles, Platão ajudou a construir os alicerces da filosofia natural, da ciência e da filosofia ocidental.

Plotino(ca. 205 – 270) O pai do neoplatonismo, natural de Licopólis, Egito, foi discípulo de Amônio Sacas e mestre de Porfírio. A influência de Plotino e dos neoplatônicos sobre o pensamento cristão, islâmico e judaico, bem como sobre os pensadores de proa do Renascimento, foi enorme.

Foram direta ou indiretamente influenciados por ele, Dionísio Pseudo-Areopagita, Alberto Magno, Dante Alighieri, Mestre Eckhart, João da Cruz, Marsílio Ficino, Pico de la Mirandola, Giordano Bruno, Avicena, Ibn Gabirol, Espinosa, Leibniz.

Hermes Trismegistus; em grego Ερμης ο Τρισμεγιστος, “Hermes, o três vezes grande” é o nome dado pelos neoplatônicos, místicos e alquimistas ao deus egípcio Thoth, identificado com o deus grego Hermes. Ambos eram os deuses da escrita e da magia nas respectivas culturas.

Hermes era o autor de um conjunto de textos sagrados, “herméticos”, contendo ensinamentos sobre artes, ciências e religião e filosofia: O Corpus Hermeticum , datado entre o século I ao século III, representou a fonte de inspiração do pensamento hermético e neoplatônico renascentista.

Na época acreditava-se que o texto remontasse à antiguidade egípcia, anterior a Moisés e que nele estivesse contido também o prenúncio do cristianismo. Autor também do Livro dos Mortos, e do mais famoso texto alquímico a “Tábua de Esmeralda”.

Huberto Rohden, São Ludgero, 31 de Dezembro de 1893 foi um filósofo, educador e teólogo catarinense, radicado em São Paulo. escreveu mais de 100 obras (ao final da vida, condensadas em 65 livros), onde franqueou leitura ecumênica de temáticas espirituais e abordagem espiritualista de questões pertinentes à Pedagogia, Ciência e Filosofia, enfatizando o autoconhecimento, auto-educação e a auto-realização.Lecionou na Universidade de Princeton, American University, de Washington D.C.(EUA)

Raul Branco Autor, tradutor é membro da Sociedade Teosófica, economista, mora em Brasília e dedica-se ao estudo da tradição cristã e do gnosticismo. Tradutor para o português de Pistis Sophia – G.R.S. Mead.

Carl Gustav Jung, nasceu a 26 de Julho de 1875, em Kresswil, Basiléia, na Suíça, no seio de uma família voltada para a religião. Seu pai e vários outros parentes eram pastores luteranos, o que explica, em parte, desde a mais tenra idade, o interesse do jovem Carl por filosofia e questões espirituais e o pelo papel da religião no processo de maturação psíquica das pessoas, povos e civilizações.

Criança bastante sensível e introspectiva, desde cedo demonstrou uma inteligência e uma capacidade intelectual notável. Gnóstico assumido, ficou célebre a resposta que Jung deu, em 1959, a um entrevistador da BBC que lhe perguntou: “O senhor acredita em Deus?” A resposta foi: “Não tenho necessidade de crer em Deus.

Eu o conheço” Escreveu o livro Os Sete Sermões aos Mortos, foi amigo, admirador e colaborador de G.R.S.Mead, tradutor dos Manuscritos da Nag Hammadi, particularmente do Códice Jung, trabalho patrocinado pela Fundação Jung.

Fernando Pessoa, 13 de Junho de 1888 nascia em Lisboa, gnóstico possuía ligações com a Tradição, com destaque para a Maçonaria e a Rosa-Cruz, havendo inclusive defendido publicamente as organizações iniciáticas, no Diário de Lisboa de 4 de Fevereiro de 1935, contra ataques por parte da ditadura do Estado Novo. O seu poema hermético mais conhecido e apreciado entre os estudantes de esoterismo intitula-se “No Túmulo de Christian Rosenkreutz”. Deixou escrito o Livro Rosa Cruz.

Paralelos com religiões orientais

O gnosticismo tem alguns elementos em comum com o sufismo, o budismo, o helenismo, o hermetismo, o zoroastrismo e o hinduísmo.

Gnosticismo e psicologia

No século XX, Carl Gustav Jung pesquisou profundamente as doutrinas gnósticas, inclusive ajudando no trabalho de organização da Biblioteca de Nag Hammadi, e fez uma ligação entre os mitos gnósticos e os arquétipos do inconsciente coletivo.

Escreveu o livro “Sete sermões aos mortos”, sob o pseudônimo de Basilides de Alexandria, onde coloca a sua visão gnóstica em sete textos no formato dos evangelhos.

O Concílio de Nicéia e o decreto do Celibato

COMO A IGREJA CATÓLICA MAL INTERPRETOU DE FORMA INTERESSADA O NOVO TESTAMENTO PARA PODER IMPÔR SUA VONTADE ABSOLUTA SOBRE O POVO E O CLERO

A hermenêutica bíblica atual garante absolutamente a tese de que Jesus não instituiu praticamente nada e menos ainda qualquer modelo determinado de Igreja. Pelo contrário, os textos do Novo Testamento oferecem diversas possibilidades na hora de estruturar uma comunidade eclesial e seus ministérios sacramentais1.

Segundo os Evangelhos, Jesus só citou a palavra «igreja» em duas ocasiões e em ambas se referia à comunidade de crentes, jamais a uma instituição atual ou futura. Mas a Igreja Católica empenha-se em manter a falácia de que Cristo foi o instaurador de sua instituição e de preceitos que não são senão necessidades jurídicas e econômicas de uma determinada estrutura social, conformada a golpes de decreto no decorrer dos séculos.

Assim, por exemplo, instituições organizativas como o episcopado, o presbiterado e o diaconato, que começaram a formar-se nos fins do século II, foram defendidas pela Igreja como dadas “por instituição divina” (fundadas por Cristo)2, até que no Concílio de Trento, em meados do século XVI, foi mudada habilmente sua origem e passaram a ser «por disposição divina» (por arranjo, por evolução progressiva inspirada por Deus). E, finalmente, a partir do Concílio Vaticano II (documentos Gaudium et Espes, e Lumen Gentium), na segunda metade do século XX, a estrutura hierárquica da Igreja já não tem suas raízes no divino senão que procede “do antigo” (é uma mera questão estrutural que se tornou costume).

São muitas as interpretações errôneas dos Evangelhos que a Igreja Católica realizou e sustentou veementemente ao longo de toda sua história. Erros que, em geral, devem atribuir-se antes à malícia e ao cinismo e não à ignorância - nada depreciável, por outro lado -, já que, não por acaso, todos eles resultaram imensamente benéficos para a Igreja em seu afã de acumular dinheiro e poder. Mas neste capítulo vamos ocupar-nos só de duas mistificações básicas: a que corresponde ao conceito da figura do sacerdote e a que transformou o celibato numa lei obrigatória para o clero.

Os fiéis católicos levam séculos crendo de olhos fechados na doutrina oficial da Igreja que apresenta o sacerdote como um homem diferente dos outros - e melhor que os laicos -, “especialmente eleito por Deus” através de sua vocação, investido pessoal e permanentemente de sacro e exclusivo poder para oficiar os ritos e sacramentos, e chamado para ser o único mediador possível entre o ser humano e Cristo. Mas esta doutrina, tal como sustentam muitos teólogos, entre eles José Antonio Carmona3, nem é de fé, nem tem suas origens além do século XIII ou finais do XII.

A Epístola aos Hebreus (atribuída tradicionalmente a São Paulo) é o único livro do Novo Testamento no qual se aplica a Cristo o conceito de sacerdote – hiereus -4 , mas se emprega para significar que o modelo de sacerdócio levítico já não faz sentido a partir de então. “Tu [Cristo] és sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec - se diz em Heb 5,6 -, não segundo a ordem de Aarão”.

Outros versículos - Heb 5,9-10 e 7,22-25 - também deixam assentado que Jesus veio a abolir o sacerdócio levítico, que era tribal - e de casta (pessoal sacro), dedicado ao serviço do templo (lugar sacro) para oferecer sacrifícios durante as festas religiosas (tempo sacro) -, para estabelecer uma fraternidade universal que rompesse a linha de poder que separava o sacro do profano5. E em textos como o Apocalipse - Ap 1,6; 5,10; 20,6 -, ou a I Epístola de São Pedro - IPe 2,5 - o conceito de hiereus/sacerdote já se aplica a todos os batizados, a cada um dos membros da comunidade de crentes em Cristo, e não aos ministros sacros de um culto.

A concepção que a primitiva Igreja cristã tinha de si mesma - ser “uma comunidade de Jesus”- foi amplamente ratificada durante os séculos seguintes. Assim, no Concílio de Calcedônia (451), seu cânon6 era taxativo ao estipular que “ninguém pode ser ordenado de maneira absoluta –apolelymenos - nem sacerdote, nem diácono (...) se não lhe foi atribuído claramente uma comunidade local”. Isso significa que cada comunidade cristã elegia um de seus membros para exercer como pastor e só então podia ser ratificado oficialmente mediante a ordenação e imposição de mãos. O contrário, que um sacerdote lhes viesse imposto desde o poder institucional como mediador sacro, é absolutamente herético6 (selo que, estrito sensu, deve ser aplicado hoje às fábricas de curas que são os seminários).

Nos primeiros séculos do cristianismo, a eucaristia, eixo litúrgico central desta fé, podia ser presidida por qualquer varão - e também por mulheres - mas, progressivamente, a partir do século V, o costume foi cedendo a presidência da missa a um ministro profissional, de modo que o ministério sacerdotal começou a crescer sobre a estrutura sócio-administrativa que se denomina a si mesma sucessora dos apóstolos - mas que não se baseia na apostolicidade evangélica e muito menos na que propõe o texto joanino - em lugar de fazê-lo a partir da eucaristia (sacramento religioso). E daquelas poeiras vêm as atuais lamas.

No Concílio III de Latrão (1179), que também pôs os alicerces da Inquisição, o papa Alexandro III forçou uma interpretação restringida do cânon de Calcedônia e mudou o original titulus ecclesiae -ninguém pode ser ordenado se não é para uma igreja concreta que assim o demande previamente - pelo beneficium - ninguém pode ser ordenado sem um benefício (salário da própria Igreja) que garanta seu sustento-. Com este passo, a Igreja traía absolutamente o Evangelho e, ao priorizar os critérios econômicos e jurídicos sobre os teológicos, dava o primeiro passo para assegurar para si a exclusividade na nomeação, formação e controle do clero.

Pouco depois, no Concílio IV de Latrão (1215), o papa Inocêncio III fechou o círculo ao decretar que a eucaristia já não podia ser celebrada por ninguém que não fosse “um sacerdote válida e licitamente ordenado”. Havia nascido os exclusivistas do sacro, e isso incidiu muito negativamente na mentalidade eclesiástica futura que, entre outros despropósitos, coisificou a eucaristia - despojando-a do seu verdadeiro sentido simbólico e comunitário - e acrescentou ao sacerdócio uma enfermiça - ainda que muito útil para o controle social - potestade sacro-mágica, que serviu para enquistar até hoje seu domínio sobre as massas de crentes imaturos e/ou incultos.Tridentium

O famoso Concílio de Trento (1545-1563), profundamente fundamentalista - e por isso tão querido para o papa Wojtyla e seus ideólogos mais expressivos, leia-se Ratzinger e Opus Dei -, em sua seção 23, referendou definitivamente esta mistificação, e a chamada escola francesa de espiritualidade sacerdotal, no século XVII, acabou de criar o conceito de casta do clero atual: sujeitos exclusivamente sacros e forçados a viver segregados do mundo laico.

Este movimento doutrinário, que pretendia lutar contra os vícios do clero de sua época, desenvolveu um tipo de vida sacerdotal similar à monacal (hábitos, horas canônicas, normas de vida estritas, tonsura, segregação, etc.), e fez com que o celibato passasse a ser considerado de direito divino e, portanto, obrigatório, dando o ajuste definitivo ao édito do Concílio III de Latrão, que o considerava uma simples medida disciplinar (passo já muito importante por si porque rompia com a tradição dominante na Igreja do primeiro milênio, que considerava o celibato como uma opção puramente pessoal).

O papa Paulo VI, no Concílio Vaticano II, quis remediar o abuso histórico da apropriação indevida e exclusiva do sacerdócio por parte do clero, quando, na encíclica Lumen Gentium, estabeleceu que “todos os batizados, pela regeneração e unção do Espírito Santo, são consagrados como casa espiritual e sacerdócio santo (...). O sacerdócio comum dos crentes e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, ainda que diferem em essência e não só em grau, no entanto se ordenam um ao outro, pois um e outro participam, cada um a seu modo, do único sacerdócio de Cristo”.

Em síntese - embora seja entrar numa chave teológica muito sutil, mas fundamental para todo católico que queira saber de verdade que posição ocupa dentro desta Igreja autoritária -, o sacerdócio comum (próprio de cada batizado) pertence à koinonía ou comunhão dos fiéis, sendo por isso uma realidade substancial, essencial, da Igreja de Cristo. Enquanto o sacerdócio ministerial, como tal ministério, pertence à diakonía ou serviço da comunidade, não à essência da mesma. Neste sentido, o Vaticano II restabeleceu a essência de que o sacerdócio comum, consubstancial a cada batizado, é o fim, enquanto o sacerdócio ministerial é um meio para o comum. O domínio autoritário do sacerdócio ministerial durante o último milênio, tal como é evidente para qualquer analista, tem sido a base da tirânica deformação dogmática e estrutural da Igreja, da perda do sentido eclesial tanto entre o clero como entre os crentes, e dos intoleráveis abusos que a instituição católica tem exercido sobre o conjunto da sociedade em geral e sobre o próprio clero em particular. Mas, como é evidente, o pontificado de Wojtyla e seus assistentes lutaram mortalmente para ocultar de novo esta proposta e reinstauraram as falácias trentinas que mantêm todo o poder sob as sotainas.

Dada a falta de legitimação que tem o conceito e as funções (exclusivas) do sacerdócio dominante até hoje no seio da Igreja Católica, repassaremos também, brevemente, a absoluta falta de justificativa evangélica que apresenta a lei canônica do celibato obrigatório.

No Concílio Vaticano II, Paulo VI - que não se atreveu a restabelecer a questão do celibato tal como solicitaram muitos membros do sínodo - assumiu a doutrina tradicional da Igreja ao deixar determinado - em (PO 16) - que “exorta também este sagrado Concílio a todos os presbíteros que, confiados na graça de Deus, aceitaram o sagrado celibato por livre vontade a exemplo de Cristo7, a que, abraçando-o magnanimamente e de todo coração e perseverando fielmente neste estado, reconheçam este preclaro dom, que lhes foi feito pelo Pai e tão claramente é exaltado pelo Senhor (Mt 19,11), e tenham também ante os olhos os grandes mistérios que nele se representam e cumprem”.

À primeira vista, na própria redação deste texto reside sua refutação. Se o celibato é um estado tal como se afirma, isto é, uma situação ou condição legal na que se encontra um sujeito, igualmente o será o matrimônio e ambos, quanto a estados, podem e devem ser optados livremente por cada indivíduo, sem imposições nem ingerências externas.

Em segundo lugar, o celibato não pode ser um dom ou carisma, tal como se diz, já que, do ponto de vista teológico, um carisma é dado sempre não para o proveito de quem o recebe mas para o da comunidade a qual este pertence. Assim, os dons bíblicos de cura ou de profecia, por exemplo, eram outorgados para curar ou para guiar a outros, mas não podiam ser aplicados em benefício próprio.

Se o celibato fosse um dom ou carisma, sê-lo-ia para ser dado em benefício de toda a comunidade de crentes e não só para uns quantos privilegiados, e é bem sabido que resulta uma falácia argumentar que o celibatário tem maior disponibilidade para ajudar os outros. O matrimônio, por outro lado, sim que é dado para contribuir ao mútuo benefício da comunidade.

Em todo caso, finalmente, em nenhuma das listas de carismas que transmite o Novo Testamento - Rom 12,6-7; 1 Cor 12,8-10 ou Ef 4,7-11- cita-se o celibato como tal. Logo, não é nenhum dom ou carisma por mais que a Igreja assim pretenda.

A pretendida exaltação do celibato pelo Senhor, citada nos versículos 19,10 do Evangelho de São Mateus, deve-se, com toda probabilidade, a uma exegese errônea dos mesmos, originada em uma tradução incorreta do texto grego (primeira versão que se tem de seu original hebreu), cometida ao fazer sua versão latina Vulgata.

Segundo Mt 19,10 Jesus está respondendo uns fariseus que lhe perguntaram sobre o divórcio, e ele afirma a indissolubilidade do matrimônio (como meta a conseguir, como a perfeição à que deve tender-se, não como mera lei a impor), à qual os fariseus lhe opõem a Lei de Moisés, que permite o divórcio, e ele responde8:

Moisés por causa da dureza de vossos corações vos permitiu repudiar vossas mulheres, mas ao princípio não foi assim. Eu vos digo, porém, que qualquer que repudiar sua mulher, não sendo por causa de prostituição, e casar com outra, comete adultério. Os discípulos lhe replicaram: Se assim é a situação do homem relativamente à mulher, não convém casar. Mas ele lhes disse: Nem todos podem receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido (ou pántes joroúsin ton lógon toúton, all’hois dédotail). Há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe, e há eunucos que foram castrados pelos homens, e há eunucos que se castraram a si mesmos por causa do reino dos céus. Quem pode receber isso, receba-o”.

Neste texto, que aporta matizes fundamentais que não aparecem na clássica Vulgata, quando Jesus afirma que “nem todos podem receber esta palavra” e “quem pode receber isso, receba-o”, está referindo-se ao matrimônio e não ao celibato, tal como tem sustentado até o presente a Igreja. As palavras ton lógon toúton referem-se, em grego, ao que antecede (a dureza do matrimônio indissolúvel, que faz os discípulos expressar que não vale a pena casar-se), não ao que vem depois. O que se afirma como um dom é o matrimônio, não o celibato e, portanto, contrário à crença eclesial mais habitual, não exalta a este sobre aquele, mas o contrário9.

A famosa frase “há os que se castraram a si mesmos por causa do reino dos céus”, tomada pela Igreja como a prova da recomendação ou conselho evangélico do celibato, nunca pode ser interpretada assim por dois motivos: o tempo verbal de um conselho desta natureza, e dado nesse contexto social, sempre deve ser o futuro, não o passado ou presente, e o texto grego está escrito no tempo passado. E, finalmente, dado que toda a frase referida aos eunucos está no mesmo contexto e tom verbal também deveria tomar-se como “conselho evangélico” a castração forçada (“há eunucos que foram castrados pelos homens”), coisa que, evidentemente, seria uma estupidez.

É óbvio, portanto, que não existe a menor base evangélica para impor o celibato obrigatório ao clero. Os primeiros regulamentos que afetam a sexualidade - e subsidiariamente o matrimônio/celibato dos clérigos – foram produzidos quando a Igreja, da mão do imperador Constantino, começa a se organizar como um poder sociopolítico terreno. Quanto mais séculos iam passando e mais se manipulavam os Evangelhos originais, mais força foi cobrando a questão do celibato obrigatório. Uma questão chave, como veremos, para dominar facilmente a massa clerical.

O Concílio de Nicéia

Até o Concílio de Nicéia (325) não houve decreto legal algum em matéria de celibato. No cânon 3 estipulou-se que “o Concílio proíbe, com toda a severidade, os bispos, sacerdotes e diáconos, ou seja, todos os membros do clero, de ter consigo uma pessoa do sexo oposto, a exceção de mãe, irmã ou tia, ou bem de mulheres das que não se possa ter nenhuma suspeita”, mas neste mesmo Concílio não se proibiu que os sacerdotes que já estivessem casados continuassem levando uma vida sexual normal.

Decretos similares foram somando-se ao longo dos séculos - sem conseguir que uma boa parte do clero deixasse de ter concubinas - até chegar a onda repressora dos concílios lateranenses do século XII, destinados a estruturar e fortalecer definitivamente o poder temporário da Igreja. No Concílio I de Latrão (1123), o papa Calixto II condenou novamente a vida em casal dos sacerdotes e avaliou o primeiro decreto explícito obrigando o celibato. Pouco depois, o papa Inocêncio II, nos cânones 6 e 7 do Concílio II de Latrão (1139), incidia na mesma linha - como seu sucessor Alejandro III no Concílio III de Latrão (1179) - e deixava perfilada já definitivamente a norma disciplinar que daria lugar à atual lei canônica do celibato obrigatório... que a maioria dos clérigos, na realidade, continuou sem cumprir.

Tão habitual era que os clérigos tivessem concubinas que os bispos acabaram por instaurar o chamado rendimento de putas, que era uma quantidade de dinheiro que os sacerdotes tinham que pagar para o seu bispo cada vez que transgrediam a lei do celibato. E era tão normal ter amantes que muitos bispos exigiram o rendimento de putas de todos os sacerdotes de sua diocese, sem exceção. E os que defendiam sua pureza foram obrigados a pagar também, já que o bispo afirmava que era impossível não manter relações sexuais de algum tipo.

A esta situação tentou pôr limites o tumultuoso Concílio de Basiléia (1431-1435), que decretou a perda dos rendimentos eclesiásticos aos que não abandonassem suas concubinas após ter recebido uma advertência prévia e de ter sofrido uma retirada momentânea dos benefícios.

Com a celebração do Concílio de Trento (1545-1563), o papa Paulo III - protagonista de uma vida dissoluta, favorecedor do nepotismo em seu próprio pontificado, e pai de vários filhos naturais - implantou definitivamente os éditos disciplinares de Latrão e, além disso, proibiu explicitamente que a Igreja pudesse ordenar varões casados10.

Enfim, anedotas à parte, desde a época dos concílios de Latrão até hoje nada substancial mudou a respeito de uma lei tão injusta e sem fundamento evangélico - e por isso qualificável de herética - como é a que decreta o celibato obrigatório para o clero.

O papa Paulo VI, em sua encíclica Sacerdotalis Coelibatus (1967), não deixou lugar a dúvidas quando assentou doutrina com este teor:

«O sacerdócio cristão, que é novo, não se compreende senão à luz da novidade de Cristo, pontífice supremo e pastor eterno, que instituiu o sacerdócio ministerial como participação real de seu único sacerdócio» (núm. 19)
• “O celibato é também uma manifestação de amor à Igreja” (núm. 26)
• “Desenvolve a capacidade para escutar a palavra de Deus e dispõe à oração. Prepara o homem para celebrar o mistério da eucaristia” (núm. 29)
• “Dá plenitude à vida» (núm. 30)
• «É fonte de fecundidade apostólica” (núm. 31-32).

Com o exposto até aqui, e com o que veremos no resto deste livro, demonstraremos, sem lugar a dúvidas, que todas estas manifestações de Paulo VI, em sua famosa encíclica, não se ajustam em absoluto à realidade na qual vive a imensa maioria do clero católico.

Como sacerdote - explica o teólogo e cura casado Josep Camps11-, tive que viver muito de perto - em alguns casos tendo-as praticamente em minhas mãos - terríveis crises pessoais de muitos colegas e amigos. Um deles, um professor prestigiado de uma ordem religiosa muito destacada, confessou-me que esteve dez anos angustiado antes de se decidir por confessar a si mesmo que desejava abandonar o celibato. No decorrer de uns três anos celebrei as bodas de sete sacerdotes amigos, até chegar no ponto de sentir-me o “casacuras” oficial. E recusei em várias ocasiões propostas para casar “por baixo dos panos” e sem dispensa algum sacerdote que desejava legalizar sua situação e deixar o ministério”.

Simultaneamente, certa aproximação e interesse por temas de psicologia e psiquiatria alertou-me e começou a me preocupar. Não me pesava demasiado um celibato vivido e querido - embora não fosse nada fácil mantê-lo - por uma decisão livre e constantemente renovada, mas comecei a me questionar sua imposição administrativa a uma só categoria de cristãos... porque é sabido que os sacerdotes de ritos orientais católicos podem casar-se, e o mesmo cabe dizer dos ministros das Igrejas surgidas da Reforma protestante”.

“Em pleno fragor do que a Igreja chama de “deserções” de sacerdotes com fins, entre outros, matrimoniais -, apareceu, em 1967, a encíclica de Paulo VI, Sacerdotalis Coelibatus. Havia chegado, para mim, o momento de aclarar todo este assunto do celibato”.

O texto da encíclica é um belo panegírico, sábio e profundo, da virgindade consagrada a Deus, que faz parte dos chamados tradicionalmente “conselhos evangélicos” (por mais que se encontre apenas rastro deles nos evangelhos). Só que ao chegar ao ponto, para mim chave, das razões pelas que se exige o celibato aos sacerdotes seculares, a encíclica perde piso e se afunda estrondosamente: não há verdadeiras razões, só a “secular tradição da Igreja latina”, ou seja, nada. A encíclica matou em mim a idéia do celibato - obrigado, Paulo VI! - e desisti dele. Em teoria, claro, porque não tinha pressas nem especiais urgências, nem tinha aparecido ainda a pessoa com quem estabelecer uma relação profunda e séria.”

A Igreja Católica, ao longo de sua história, falseou em benefício próprio tudo aquilo que lhe interessou. Tem imposto sobre o povo um modelo de sacerdote (e de seu ministério) mistificado e cínico, mas lhe foi de grande utilidade para fortalecer seu domínio sobre as consciências e as carteiras das massas.

E, do mesmo modo, tem imposto sobre seus trabalhadores pesos sacros que não lhes correspondem, e leis injustas e arbitrárias, como a do celibato obrigatório, que servem fundamentalmente para criar, manter e potenciar a submissão, o servilismo e a dependência do clero a respeito da hierarquia.

O celibato dos pastores deve ser opcional - afirma o sacerdote casado Julio Pérez Pinillos -, já que o celibato imposto, além de empobrecer o caráter de “Símbolo”, é um dos pilares que sustenta a organização piramidal da Igreja-aparelho e potencia o binômio clérigos-laicos, tão empobrecedor para os primeiros como humilhante para os segundos”.12

Neste final de século, quando muitíssimos teólogos de prestígio alçaram sua voz contra as interpretações doutrinárias errôneas e as atitudes lesivas que comportam, o papa Wojtyla os calou com a publicação de uma encíclica tão autoritária, sectária e lamentável como é a Veritatis Splendor. Esplendor da verdade? De que verdade? A mentalidade de Latrão e Trento volta a governar a Igreja. Correm maus tempos para o Evangelho cristão.

A LEI DO CELIBATO, OBRIGATÓRIO CATÓLICO: UMA QUESTÃO DE CONTROLE, ABUSO DE PODER E ECONOMIA

Sacerdote Católico- O Celibato

O motivo verdadeiro e profundo do celibato consagrado - deixa estabelecido o Papa Paulo VI, em sua encíclica Sacerdotalis Coelibatus (1967 ) - é a eleição de uma relação pessoal mais íntima e mais completa com o mistério de Cristo e da Igreja, pelo bem de toda a humanidade. Nesta eleição, os valores humanos mais elevados podem certamente encontrar sua mais alta expressão”.

E o artigo 599 do Código de Direito Canônico, com linguagem sibilina, impõe que “o conselho evangélico de castidade assumido pelo Reino dos Céus, enquanto símbolo do mundo futuro e fonte de uma fecundidade mais abundante num coração não dividido, leva consigo a obrigação de observar perfeita continência no celibato”.

No entanto, a Igreja Católica, ao transformar um inexistente “conselho evangélico” em lei canônica obrigatória - que, como já vimos no capítulo anterior, carece de fundamento neotestamentário -, ficou anos-luz de potenciar o que Paulo VI resume como “uma relação pessoal mais íntima e mais completa com o mistério de Cristo e da Igreja, pelo bem de toda a humanidade”.

Pelo contrário, o que sim tem conseguido a Igreja com a imposição da lei do celibato obrigatório é criar um instrumento de controle que lhe permite exercer um poder abusivo e ditatorial sobre seus trabalhadores, e uma estratégia basicamente economicista para baratear os custos de manutenção de sua planilha sacro trabalhista e, também, para incrementar seu patrimônio institucional, pelo que, evidentemente, a única «humanidade» que ganha com este estado de coisas é a própria Igreja Católica.

A lei do celibato obrigatório é uma mais entre as notáveis vulnerações dos direitos humanos que a Igreja Católica vem cometendo desde séculos, por isso, antes de começar a tratar as premissas deste capítulo, será oportuno dar entrada à opinião de Diamantino Garcia, presidente da Associação Pró-Direitos Humanos de Andaluzia, membro destacado do Sindicato de Operários do Campo, sacerdote a vinte e seis anos, e pároco dos povos sevilhanos dos Corrales e de Martín da Jara.
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1. Cfr., por exemplo, os diversos modelos eclesiásticos de Jerusalém, Antioquia, Corinto, Éfeso, Roma, as comunidades Joaninas, as das Cartas Pastorais, Tessalônica, Colossas...

2. Nos três primeiros séculos não são reconhecidas como tais. São Jerônimo, por exemplo, um dos principais padres da Igreja e tradutor da Vulgata (a Bíblia em sua versão em latim), jamais as aceitou como de instituição divina e, com maior razão, nunca se deixou ordenar bispo. Dado que nos Evangelhos só se fala de diaconato e presbiterado, São Jerônimo defendia que ser bispo equivalia a estar fora da Igreja (entendida no seu significado autêntico e original de Eclésia ou assembléia de fiéis).

3. Cfr. Carmona Brea, J.A. (1994). Os sacramentos: símbolos do encontro. Barcelona: Edições Ángelus, capítulo VII.

4. Hiereus é o termo que se empregava no Antigo Testamento para denominar os sacerdotes da tradição e os das culturas não judias. Seu conceito é inseparável das noções de poder e de separação entre o sagrado e o profano (valha como exemplo, para os que desconhecem a história antiga, o modelo dos sacerdotes egípcios ou dos diferentes povos da Mesopotâmia).

5. «Porque o homem é o templo vivo (não há espaço sagrado), para oferecer o sacrifício de sua vida (toda pessoa é sagrada), em oferenda constante ao Pai (não há tempos sagrados)», argumenta o teólogo José Antenio Carmona.

6. E assim o qualificavam padres da Igreja como Santo Agostinho em seus escritos (cfr. Contra Ep. Parmeniani II, 8).

7. Ou “Quem pode receber isto, receba-o”. Na Bíblia católica de Nácar-Colunga, ao contrário se diz: “Disseram-lhe seus discípulos: Se assim é a condição do homem relativamente à mulher, não convém casar. Ele lhes contestou: Nem todos podem receber esta palavra, mas só aqueles a quem foi concedido. Porque há eunucos que assim nasceram do ventre da mãe; e há eunucos que foram castrados pelos homens; e há eunucos que se castraram a si mesmos por causa do reino dos céus. Quem pode receber isto, receba-o”. Existe uma diferença abismal entre o “ser capaz de recebê-lo” do texto original e o “ser capaz de entendê-lo” do falaz texto católico, as implicações teológicas e legislativas que se desprendem de um e outro são também diametralmente opostas.

8. Isto, lógica e indubitavelmente, deve ser assim, já que, do ponto de vista sociocultural, dado que Jesus era um judeu fiel à Lei, tal como já mencionamos, jamais podia antepor o celibato ao matrimônio: a tradição judia obriga todos ao matrimônio, enquanto despreza o celibato.

9. A respeito da castração no âmbito da hierarquia eclesial, convém recordar aqui, por exemplo, que o grande teólogo Orígenes castrou a si mesmo - interpretando de forma patológica a frase de Jesus: “Se tua mão ou teu pé te escandalizar, corta-o e atira-o para longe de ti: melhor te é entrar na vida coxo ou aleijado, do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno” (Mt 18,8) -, talvez porque seu “membro causador de escândalo” lhe

10. A ordenação sacerdotal de varões casados tinha sido uma prática normalizada dentro da Igreja até o concílio de Trento. Atualmente, devido à escassez de vocações, muitos prelados - especialmente do terceiro mundo defendem de novo esta possibilidade e solicitaram repetidamente ao papa Wojtyla que facilite a instituição do viriprobati (homem casado que vive com sua esposa como irmãos) e seu acesso à ordenação. Mas Wojtyla a descartou pública e repetidamente - atribuindo sua petição a uma campanha de “propaganda sistematicamente hostil ao celibato” (Sínodo de Roma, outubro de 1990)-, apesar de que ele mesmo, em segredo, autorizou ordenar varões casados em vários países do terceiro mundo. No mesmo Sínodo citado, Aloísio Lorscheider, cardeal de Fortaleza (Brasil), desvelou o segredo e aportou dados concretos sobre a ordenação de homens casados autorizados por Wojtyla. Causou uma agonia que hoje deve soar muito ridículo ao clero católico, cujo 60% mantêm relações sexuais apesar de seu celibato oficial. Por outra parte, até o século passado, na corte papal se concedia um lugar de privilégio aos famosos castratí, cantores, selecionados entre os coros das igrejas, que foram castrados sendo ainda meninos para que conservassem uma voz com tons e matizes impossíveis para qualquer varão adulto. Esses sim eram autênticos eunucos pelo reino dos céus!

11. Cfr. Santa Sede (194). Código de Direito Canônico. Madri: Biblioteca de Autores Cristãos, PP. 273-275.

12. Segundo os últimos dados oficiais da Igreja, disponíveis em 1990, só houve trinta sacerdotes diocesanos matriculados em faculdades, de estudos civis, isso é um 0,14% do total de sacerdotes. A este respeito, resulta muito ilustrador saber que o Código de Direito Canônico que esteve vigente entre 1917 e 1983 em seu cânon 129 ordenava: “Os clérigos, uma vez ordenados sacerdotes, não devem abandonar os estudos, principalmente os sagrados. E nas disciplinas sagradas seguirão a doutrina sólida recebida dos antepassados e comumente aceita pela Igreja, evitando as profanas novidades de palavras e a falsamente chamada ciência”. Cfr. Rodríguez, P. (1995). Op. cit.,p. 72.

13. Os notáveis problemas psicossociais que padece uma boa parte do clero católico, especialmente do diocesano, não só derivam das carências afetivo-sexuais, embora sendo esta esfera uma parte fundamental para o desenvolvimento, maturação e equilíbrio da personalidade humana. A própria estrutura formativa do clero e algumas dinâmicas vitais forçadas contribuem para gerar problemas psicológicos que têm sido evitados, em grande parte, entre o clero de outras confissões católicas ou cristãs em geral. A este respeito pode consultar-se o capítulo 5 do já citado estudo: A vida sexual do clero e a bibliografia específica que nele se relaciona.

sábado, 15 de outubro de 2011

Raymond Brown, James Charleswort e o estigma da exclusão das Sinagogas


A comunidade joanina nasceu com pessoas que estavam sofrendo com a restauração do judaísmo depois da destruição do Templo (ano 70 d.C.) e o sínodo de Jâmnia (80 d.C.) Este grupo de fariseus/judeus refaz e reconstrói o judaísmo a partir exclusivamente da Lei, em perspectiva farisaica e deuteronomista, negando, portanto, que Jesus seja a “consumação perfeita” messiânica de Deus. Os textos de Jo 9,22; 12,42; 16,2 nos mostram o quanto o Jesus joânico reprova os judeus e seu desconhecimento de Deus (5,37-47; 8,19.55) e o quanto os judeus também tornam evidente sua não-aceitação a Jesus numa atitude agressiva: a exclusão da sinagoga judaica.


Embora os judeus ocupem um lugar de destaque no Quarto Evangelho, o evangelista parece ter uma aversão odiosa sem limites para com eles. Quem são afinal os judeus no Quarto Evangelho? O autor do evangelho era anti-semita? Neste artigo tentaremos distinguir e definir quem são os judeus do Quarto Evangelho e o que foi a exclusão da sinagoga para a comunidade joanina.


É indiscutível que “os judeus” desempenhem um papel importante. Assim o confirma o surpreendente dado estatístico segundo o qual o evangelho menciona “os judeus” em 70 passagens, 33 das quais eles aparecem como os inimigos de Jesus. Este dado é tanto mais chocante quando se tem em conta que esta expressão aparece muito raramente nos Sinóticos: 5 vezes em Mateus, 6 vezes em Marcos e 5 vezes em Lucas. A maior parte dos textos em que se fala dos judeus no Quarto Evangelho é para indicar os opositores de Jesus e seus discípulos. Por outro lado, encontramos textos que falam dos judeus de um modo geral, para se referir aos seus costumes, suas leis ou sua religião.


Tanto os personagens positivos quanto os negativos são judeus. Daí que o termo “judeu” no Quarto Evangelho não designa uma etnia, nem uma cultura, nem um povo. Quando usado por João com conotação adversativa, este termo não indica os judeus em geral – presentes tanto na Judéia como na Galiléia – para falar dos seus costumes, suas leis ou sua religião, mas se refere aos opositores de Jesus e seus discípulos: um grupo especial no ambiente judaico que tem peso político e social e até certo poder de decisão; uma ideologia que está tomando corpo numa estrutura de poder. Ao usar o termo “os judeus” em sentido hostil, o escritor joanino aponta o grupo judaico dominante, quer no tempo de Jesus, quer no tempo das comunidades joaninas (constituídas de judeus e não judeus). O problema é que João não distingue estes dois momentos e projeta anacronicamente a situação ulterior sobre a narrativa do ministério de Jesus. Funde em um só horizonte o ano 30 d.C. e o ano 90 d.C.4 Porém, não há razão para deduzir, do uso deste termo, que o Evangelho de João seja anti-judaico. É que João usa o termo para expressar: o povo judeu, os habitantes da Judéia, as autoridades judaicas; e meio século mais tarde, o novo judaísmo, enquanto oposto aos seguidores de Jesus.


Os textos que mencionam os judeus de forma pejorativa encontram-se, sobretudo, nos capítulos 5-10 e 18-19. As razões desta tomada de posição são claras: a messianidade de Jesus, sua origem, suas pretensões, sua conduta em relação ao sábado e, mais grave, Jesus se apresenta como “Um com o Pai” (8,52; 10,30.31).


Encontramos diversos grupos entre os judeus e dentre estes há um grupo opositor que não crê em Jesus (7,48; 9,39-41; 10,25; 12,37). Portanto, quando se diz que a “luz brilha”, sem que as trevas apreendam, que a luz veio ao mundo, sem que o mundo a conheça, ou que veio entre os seus e os seus não a receberam, está se falando de um grupo que recusa a verdade que Jesus veio proclamar. Embora o autor do evangelho não se refira explicitamente a um grupo concreto no tempo de Jesus, porque às vezes se fala do povo, outras dos judeus, outras dos fariseus e, finalmente, do Sinédrio. Podemos identificar este grupo como sendo o círculo de “judeus” e fariseus que estão em volta do Templo e do culto oficial, ou seja, as autoridades político-religiosas judaicas (1,19; 2,18; 5,10; 5,15; 7,13; 8,22; 8,59; 9,40-41). No fundo, o evangelho nos diz daqueles que levaram Jesus à cruz. Eles são exatamente os seus contemporâneos: os que não aceitam Jesus, os “judeus” de seu tempo, herdeiros do farisaísmo que se impôs depois da queda de Jerusalém, quando se reuniram em Jâmnia.


Com efeito, uma das políticas das lideranças de Jâmnia foi justamente a culpabilização do povo judeu, imperfeito no cumprimento da lei mosaica segundo os mesmos, pela destruição do Templo. A crença na messianidade de Jesus foi interpretada pelos fariseus como infidelidade à lei, como heresia. A reação da comunidade joanina se expressa em termos de desprezo pela autoridade farisaica e de rechaço ao “Judaísmo” por eles apregoado.


Este referencial da sinagoga com poderes políticos sobre a comunidade judaica e com possibilidade de mobilizar poderes civis e militares contra seus dissidentes, real no reinado de Agripa II faz com que o Quarto Evangelho deva ser examinado no contexto cultural – religioso da comunidade judaica siro-palestinense, profundamente marcada pelo trauma da Guerra Judaica, pela fragmentação ideológica, pela pressão do movimento unificador sediado em Jâmnia – enfim, uma coletividade marcada pelo medo.


Isso não implica em dizer que a comunidade joanina hauria todo seu conhecimento do judaísmo, daquilo que era ensinado e praticado nas sinagogas dos anos 80. Ao contrário: se houve conflitos entre ambas as instâncias, o motivo provavelmente terá sido a discordância a respeito da interpretação de pontos específicos da tradição judaica, realizada de forma diferente por judeus da sinagoga e por judeus da comunidade joanina. Deve-se tomar a sinagoga como referencial sócio-político, mas não necessariamente como seu referencial cultural – religioso. O substrato cultural possivelmente seria o mesmo, ou muito próximo, mas cada segmento fez sua leitura particular dos dados recebidos. Afinal, não teria a comunidade joanina compreendido a si mesma como um novo movimento religioso, autônomo tanto em relação à sinagoga quanto a outros grupos cristãos?


Os “judeus” representam, portanto, também a sinagoga judaica que sucedeu ao grupo do Templo. É aqui que se pode compreender a importância do momento histórico em que foi escrito o evangelho. A incredulidade descrita e as discussões de Jesus com os “judeus” estão mais centradas na problemática do tempo do autor do que na do tempo de Jesus.


Segundo J. Louis Martyn, temos que ler o Evangelho de João num nível duplo: o nível da vida de Jesus e o nível da presença poderosa deste Jesus no âmbito de sua comunidade. O Evangelho de João reflete um estágio inicial de banimento no judaísmo formativo. O ponto de partida do trabalho de Martyn é a expulsão dos cristãos da sinagoga, que ele classifica como dado anacrônico, pois esta medida contra os cristãos só foi executada a partir dos anos 90 d.C. Sua aplicação à vida de Jesus é um indício de que outros dados semelhantes podem ser mais um reflexo dos problemas e preocupações da comunidade joanina do que dados históricos sobre Jesus. É preciso ler o Quarto Evangelho à luz de vertentes outras do mundo e da cultura judaica, não representadas pelos fariseus nos anos pós-Guerra Judaica, mas sem deixar de se perguntar sobre a originalidade do cristianismo joanino em relação a estas outras formas culturas religiosas.


Para Klaus Wengst, ainda que o Jesus do Evangelho de João apresente as Escrituras, Moisés e a Lei a seu favor e ainda que o mesmo se qualifique como judeu, fala, no entanto, em “vossa Lei” (8,17; 10,34), como se tampouco ele não fosse judeu. Também chama seus antepassados do deserto de “vossos pais” (6,49). É indiscutível que esta distância que estabelece no evangelho e que apresenta o judaísmo como alheio a Jesus não concorde com a realidade do Jesus terreno. Este tipo de exposição é compreensível, em compensação, como expressão do contraste entre judaísmo e cristianismo da época do evangelista. A mesma distância acontece quando este fala da “páscoa dos judeus” (2,13; 6,4; 11,55), da “festa dos judeus” (5,1; 6,4) e da “purificação dos judeus” (2,6). O julgamento aparece aqui como um coletivo religioso bem definido frente a Jesus – e é, no plano do evangelista, frente à comunidade que aceita e crê – com sua Escritura, festas e costumes.


Para Harold Bloom, entre todos os evangelhos, o de João parece exibir o tom mais angustiado, e a modalidade dessa angústia apresenta uma natureza que ele consideraria tão literária quanto existencial ou espiritual. Sinal dessa angústia para ele é a diferença palpável entre a atitude de Jesus, em relação a si mesmo, no Quarto Evangelho, comparada àquela que observada nos outros três: “O Jesus de João demonstra certa obsessão com a própria glória, de modo especial, com o que deve constituir essa glória no contexto judaico.”


O evangelho, no entanto, não somente marca as distâncias da comunidade cristã frente ao judaísmo, como também fala de uma profunda hostilidade. Essa hostilidade põe em evidência o quanto o Jesus joânico reprova os judeus e seu desconhecimento de Deus (5,37-47; 8,19.55), o quanto os judeus também tornam evidente sua não-aceitação a Jesus com uma atitude agressiva. Por isso, a incredulidade é definida como fazer obras contra luz.


Quer dizer, a incredulidade e a hostilidade dos judeus não são simplesmente um não permitir que a revelação ilumine a vida deles, mas tendem a aniquilar a revelação ou, aniquilar Jesus. Daí a perseguição sistemática a Jesus até sua morte de cruz.


A comunidade joanina viveu forte conflito com o império romano e com as autoridades judaicas. Estes são os representantes supremos da oposição e do ódio contra Jesus. Ao romper com o sistema baseado no cumprimento rigoroso da Lei, ameaça a autoridade dos judeus/fariseus. Então, os cristãos são expulsos da sinagoga e começam a ser perseguidos. A primeira medida que os judeus tomaram em relação aos primeiros seguidores de Jesus parece haver sido a exclusão e a expulsão da sinagoga.


Embora não esteja claro que este seja um acontecimento produzido no tempo de Jesus, indica que aqui aflora um problema crucial que já delineava o tempo de Jesus. A primeira vez em que aparecem as autoridades judaicas excluindo e conseqüentemente expulsando alguém da sinagoga é em 9,22, no contexto da Narrativa da Cura do Cego de Nascença. Primeiro estas autoridades são mencionadas como fariseus e depois como judeus e aparecem ostentando um poder autoritativo. Estes judeus investidos de autoridade chamam a julgamento, segundo 9,18-23, os pais do ex-cego e os interrogam acerca de seu filho que fora curado por Jesus. Perguntam a eles sobre como o filho deles recuperou a visão. Os pais confessam sua ignorância dizendo que ele é maior de idade e pode falar por si mesmo. Os pais falaram assim porque temiam os dirigentes judeus, que já haviam combinado de expulsar da sinagoga quem a Cristo confessasse como o messias. Depois de sua confissão indireta de Jesus em 9,30-33, o cego curado aparece em 9,34 sendo expulso da sinagoga.


Segundo Schnackenburg, a expressão expulsão (9,34) poderia significar simplesmente um afastamento do lugar de reunião, porém, em relação a 9,22, por uma parte, e a confissão explícita posterior do ex-cego, por outra, prova que o evangelista se refere a uma exclusão da sinagoga. Também em 9,22 chama a atenção a frase de que os pais do ex-cego “temiam os judeus”, como se eles mesmos também não fossem judeus. Isto nos mostra por quanto o evangelista não apresenta os pais do ex-cego como seguidores de Jesus. Os judeus aparecem, pois, nesta passagem com poder autoritativo que procede severamente contra os dissidentes de seu próprio campo. Especialmente significativo é o advérbio “já”, que aponta que a pena já era aplicada no tempo de Jesus, porém não há nenhum documento que comprove esta expulsão. Contudo, a sanção era conhecida e aplicada no tempo do evangelista, como indica claramente o advérbio “já”.


Também no capítulo 20,19 se diz que os discípulos reunidos em uma casa ao anoitecer da páscoa tinham as portas fechadas por “medo dos judeus”. Esta frase referindo-se ao contexto histórico dos discípulos de Jesus mostra um resultado muito estranho: parece dizer que estes discípulos não eram judeus. A frase encontra todo o sentido quando se é transferido ao plano histórico do evangelista, se sua comunidade se viu realmente submetida à prepotência de um judaísmo hostil e excludente.


Uma segunda passagem em que encontramos a expressão expulsão é 12,42: “Contudo, muitos chefes creram nele, mas, por causa dos fariseus, não o confessavam, para não serem expulsos da sinagoga.” Neste texto aparecem os fariseus exercendo uma autoridade que não possuíam no tempo de Jesus. Tampouco esta frase é aplicada à época anterior ao ano 70 d.C. Tem sentido, em compensação, quando se aplica ao tempo do evangelista, pois sua comunidade contava com simpatizantes da classe dirigente que evitavam um reconhecimento público por medo dos judeus/fariseus e suas conseqüências.


Temos como exemplos judeus que acreditavam em Jesus (Jo 2,23; 8,31; 12,10-11), porém não têm coragem de manifestar sua fé publicamente por medo dos judeus e também porque não querem abrir mão de seus privilégios e status social. É o caso de Nicodemos e José de Arimatéia, pessoas importantes na comunidade judaica. A fé em Jesus é motivo para que o judaísmo de orientação farisaica decretasse a exclusão da sinagoga.


A terceira passagem é 16,2, uma predição que Jesus tem ao despedir-se de seus discípulos: “Expulsar-vos-ão das sinagogas.” Parece claro que a exclusão da sinagoga não é uma medida que faz referência à época de Jesus. O evangelista tem presente um problema instigado no seu tempo. O contexto o confirma: os versículos 1 e 4 assinalam que Jesus predisse a seus discípulos o ódio que iria desencadear sobre eles e conferem a esta predição um caráter de consolo: “Digo-vos isto para que não vos escandalizeis”. E conclui: “Mas vos digo tais coisas para que, ao chegar a sua hora, vos lembreis de que vô-las disse.” Porém, isto somente pode significar que a comunidade do evangelista seja objeto de ódio por reconhecer a Jesus como o messias e o evangelista trata de consolar-lhes fazendo-os compreender que as tribulações que os afetarão não são o fruto de uma cega fatalidade, mas que já foram preditas e anunciadas por Jesus. E o versículo 3 indica o verdadeiro motivo da conduta de seus perseguidores: “E isso farão porque não reconheceram o Pai nem a mim.” Agora, bem dentro das medidas concretas que afetam aos discípulos de Jesus: “Vos expulsarão da sinagoga.” Por isso, a expulsão da sinagoga é uma experiência dolorosa para a comunidade joanina. E porque a comunidade sofre com esta experiência, o evangelista assinala que Jesus a havia predito.


Além disso, 16,2 assinala outra medida complementar e ainda mais extrema: “virá a hora em que aquele que vos matar julgará realizar ato de culto a Deus.” Deixa claro, pelo contexto, que o evangelista tem presente uma experiência que a sua comunidade está vivendo. Essa experiência consiste em que o evangelista faz referência aos judeus enquanto sujeitos ativos, como, por exemplo, com poder de expulsar alguém da sinagoga. E isto, porque condenar os cristãos à morte pressupõe uma suposta obediência a Deus. Então, também fica claro que as vítimas são judeus cristãos e que a ocasião entendida como obediência a Deus só tem sentido – sob a óptica judaica – tratando-se de judeus renegados.


Na prática, a expressão expulsão deve significar uma excomunhão e ter sido uma medida disciplinar adotada pela sinagoga e que, portanto, tinha um limite temporal. Porém, as passagens do Quarto Evangelho mostram uma medida muito mais rigorosa. Trata-se de uma separação, de uma exclusão total da comunidade de fé judaica, como mostra claramente em 16,2, onde se fala inclusive de sentença de morte.


De acordo com Overmam, no período fluído que deu origem ao judaísmo formativo, uma série de facções competia por influência e controle. A possibilidade de excluir dissidente indica que aqueles que excluem possuem um grau de autoridade no ambiente em que o banimento é aplicado. O grupo que pratica a exclusão também precisa ter uma identidade suficientemente bem definida para poder entrar em um acordo quanto ao que constitui uma violação grave, a ponto de merecer exclusão. Porém, uma série de comunidades sectárias do judaísmo havia atingido claramente este estágio decisivo de definição e organização. Quando o banimento é praticado, significa que a comunidade, de uma forma ou de outra, atingiu um consenso quanto ao que ela é e o que ela representa. O judaísmo formativo desenvolveu a prática institucional do banimento, que protegia o grupo.


Um dos procedimentos adotados e que evoluiu no judaísmo formativo tem referência à recepção da birkat hamminin (a bênção dos hereges), eufemismo para designar a maldição dos dissidentes. Esta representa a décima segunda de dezoito bênçãos pronunciadas na sinagoga, as chamadas Amidah. Teve sua elaboração ligada ao concílio de Jâmnia e vai se consolidando no final do século I, porém sua redação, segundo autores modernos, é do século II. Esta bênção, que tradicionalmente incluía uma maldição dos inimigos de Deus (“que toda maldade pereça, de repente”), teve sua maldição assim reformulada: “Para os apóstatas, que não haja esperança. O domínio da arrogância elimine rapidamente em nossos dias. E deixa os nazarenos e os minim perecer em um momento. Deixa-os ser apagados do livro da vida. E que não sejam escritos junto com os justos”.


Os judeus cristãos, que tinham que ficar em silêncio enquanto a congregação recitava a nova fórmula, foram obrigados a retirarem-se. Não podiam beneficiar-se do “amém” comum da comunidade, ou sequer rezarem esta benção como recitadores nas assembléias da sinagoga. Porém, a remodelação do judaísmo não se inicia com a redação da birkat hamminin, que somente marca uma etapa neste processo. Por isso, as passagens expulsão da sinagoga do Quarto Evangelho se referem provavelmente à estigmatização dos judeus cristãos como hereges pela ortodoxia farisaica em processo de formação; pois esta estigmatização tinha como conseqüência a expulsão da comunidade sinagogal.


O desenvolvimento do judaísmo depois do ano 70 d.C., que atua contra a comunidade joanina e também contra outras correntes, explica a imagem que temos dos judeus no Evangelho de João como uma retrospecção desta época à época de Jesus. A expulsão da sinagoga não tinha somente conseqüências religiosas para os dissidentes, mas também era um ato que alterava substancialmente todas as circunstâncias da vida.


Por esse motivo, a exclusão e a separação do judaísmo era um momento de treva para quem proclamava Jesus como messias. Os dissidentes ficavam sem proteção, sem trabalho, sem relações sociais e comerciais, separados de sua tradição religiosa, dos serviços e ritos religiosos. Portanto, sem a religião judaica farisaica, permitida pela lei do império, os judeus cristãos deveriam assumir outra religião que fosse reconhecida pelos romanos, caso contrário, seriam vistos como inimigos. A situação da comunidade joanina era de muita insegurança. De um lado, as autoridades religiosas e do império mantinham sobre ela uma vigilância continua. De outro lado, a multidão passou a ver os dissidentes cristãos como pessoas suspeitas, gente perigosa.


Quanto à “expulsão dos cristãos joaninos da sinagoga” (9,22; 12,42; 16,2), há muito tratada como causa polêmica anti-judaica, podemos dizer que não temos como datar semelhante “expulsão”, uma vez que as sinagogas já existiam antes do ano 70 a.C. Também aludir à oração das dezoito bênçãos (birkat hamminin), ligada ao sínodo de Jâmnia, com oração aos Minim (cristãos), como é usual fazer, parece-nos não ser o mais correto. Assim sendo, a expressão expulsar da sinagoga dos textos supracitados refere-se possivelmente a um conflito local entre a comunidade joanina e os seus vizinhos judeus. No contexto histórico de Jesus, somente cabe pensar em expulsão simples da sinagoga, que tinha duração de 30 dias. Mas de modo algum se deve compreender como decreto de excomunhão de todo o cristianismo por parte do novo judaísmo de Jâmnia. Assim sendo, o judaísmo não pode ser responsabilizado exclusivamente pela ruptura entre judaísmo e cristianismo. Na compreensão dos textos joaninos anti-judaicos, há que não se confundir entre a intenção do autor e respectivos destinatários reais e implícitos e a compreensão dos mesmos textos ao longo do tempo.