segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Josh McDowell, Thomas Paine, Gleason Archer, e as sólidas credenciais do Messias

O Velho Testamento... contém várias centenas de referências ao Messias. Todas se cumpriram em Cristo e estabelecem uma confirmação sólida das suas credenciais como o Messias.

Josh McDowell (1972), p. 147

Examinei todas as passagens do Novo Testamento que são citações do Velho [Testamento], e as assim chamadas profecias a respeito de Jesus Cristo, e não encontro qualquer profecia a respeito de tal pessoa, e nego que [essas profecias] existam.

Thomas Paine (1925), p. 206

Estas duas citações expressam pontos de vista diametralmente opostos sobre a questão de saber se a vida de Jesus conforme é descrita nos evangelhos do Novo Testamento cumpre profecias do Messias judeu que se encontram nas escrituras hebraicas. O ponto de vista de Josh McDowell é o ponto de vista padrão dos missionários, que encontramos em inúmeras obras apologéticas cristãs. Contudo, o ponto de vista expresso por Thomas Paine é muito menos conhecido. É pena que assim seja, pois Paine está certo. Todo o caso de alegado cumprimento de profecias messiânicas sofre de um dos seguintes defeitos:

(1) a alegada profecia nas Escrituras Hebraicas não é uma profecia messiânica ou nem sequer é uma profecia de todo;

(2) a profecia não foi cumprida por Jesus;

(3) ou a profecia é tão vaga a ponto de não ser convincente na sua aplicação a Jesus.

O Significado das Profecias Messiânicas

Antes de examinar alegações específicas de profecias messiânicas cumpridas, devem ser feitas algumas observações sobre o seu significado. O cumprimento de profecias bíblicas é um pilar central nos argumentos apologéticos missionários que pretendem provar a verdade e a exatidão da Bíblia. A Bíblia contém muitas declarações sobre eventos futuros que pretendem ser proféticos — os livros dos profetas, como os de Isaías e Jeremias, estão cheios desse tipo de declarações, no entanto muitas destas declarações são sobre eventos históricos reais do passado. Tendo em consideração o nosso conhecimento atual da cronologia da escrita da Bíblia, contudo, na maioria dos casos não pode ser demonstrado que as declarações proféticas não são posteriores aos eventos "preditos". No caso das profecias das Escrituras Hebraicas a respeito do Messias, porém, temos documentos (por exemplo, os Rolos do Mar Morto) que realmente são anteriores ao tempo em que se acredita que o Jesus histórico tenha vivido. Se encontrássemos nas Escrituras Hebraicas profecias numerosas e específicas condizentes com a vida do Jesus histórico, isto providenciaria considerável evidência em apoio da fé cristã. É exatamente isto que os missionários tentam fazer.

Por outro lado, se descobrirmos que não existem tais profecias específicas cumpridas por Jesus, ou que existem profecias messiânicas específicas que não foram cumpridas por Jesus, isto seria evidência contra a veracidade do Cristianismo. Como o Cristianismo alega exatidão e verdade tanto das Escrituras Hebraicas como do Novo Testamento, está vinculado aos padrões bíblicos para um profeta verdadeiro de D'us delineados nas escrituras hebraicas. O livro de Deuteronomio apresenta estes padrões quando diz que Moisés, falando em representação de D'us no capítulo 18 versículo 22, proclamou que "Quando um profeta fala no nome do Senhor, se a coisa não suceder nem se realizar, essa é a coisa que o Senhor não falou. O profeta falou-a presunçosamente; não terás medo dele." No versículo 20, ele diz que: "... o profeta que falar presunçosamente em meu nome uma palavra que não lhe ordenei, ou que falar em nome de outros deuses, esse profeta morrerá." Por outras palavras, qualquer profecia de D'us é necessariamente exata, e qualquer profecia que não seja de D'us mas dada em seu nome resultará na morte do profeta.

Embora estes padrões requeiram que profecias de D'us sejam exatas, a verdade de uma profecia não garante que vem de D'us. Deuteronómio 13:1-5 indica que falsos profetas também podem ser exatos, mas profetas verdadeiros nunca desencaminharão os judeus da sua religião, sob pena de morte.

Conforme vamos mostrar, existem profecias messiânicas que não foram cumpridas por Jesus (e que não serão cumpridas no futuro, pois segunda vinda não é um padrão das Escrituras Hebraicas), então estes padrões têm como consequência que ou Jesus não foi o Messias, ou as profecias em questão não foram feitas por um verdadeiro profeta de D'us. Ambos os extremos do dilema têm a consequência de que é falsa qualquer forma de Cristianismo que mantenha a infalibilidade da Bíblia.

Profecias Relacionadas com o Nascimento

Existem várias alegadas profecias messiânicas sobre o nascimento de Jesus: profecias sobre o local, modo e tempo do seu nascimento, sobre a sua genealogia, e sobre eventos que deviam ocorrer no momento do seu nascimento.

Nascido de uma virgem

Provavelmente a profecia mais famosa de entre estas é aquela que diz que Jesus nasceria de uma virgem. Os evangelhos de Mateus (1:18-25) e Lucas (1:26-35) alegam que Jesus nasceu de uma virgem, mas só Mateus (1:23) apela para as escrituras hebraicas como explicação para a razão por que isto devia acontecer. O versículo invocado é Isaías 7:14, que diz: "Por isso, o mesmo Senhor vos dará um sinal: Eis que a Virgem concebeu e dá à luz um filho, e o chama Emanuel." (Bíblia Missionários Capuchinhos)

Existem várias dificuldades nesta passagem. Conforme muitos observaram, a palavra hebraica traduzida por "virgem" neste versículo é "almah", que é traduzida de forma mais exata simplesmente como "jovem mulher". A palavra hebraica "bethulah" significa "virgem". No livro de Isaías, "bethulah" aparece quatro vezes (23:12, 37:22, 47:1, 62:5) sempre dando sentido de "jovem mulher", portanto o autor desse livro conhecia a palavra "almah" e seu significado. Na tradução da Bíblia New American Standard Translation, todas as outras ocorrências de "almah" são traduzidas simplesmente como "moça", "menina" ou "donzela" (a saber, Gênesis 24:43, Êxodo 2:8, Salmos 68:25, Provérbios 30:19, Cântico de Salomão 1:3, 6:8). Assim, o alegado cumprimento acrescenta uma condição biologicamente impossível que nem sequer está presente na profecia original.

Outro problema é que em nenhum lado no Novo Testamento Maria, a mãe de Jesus, se lhe refere como "Emanuel". Portanto não temos evidência de que uma das condições da profecia se tenha alguma vez cumprido.

Mas o problema mais sério desta alegada profecia messiânica é que foi tirada fora do contexto. Analisando por inteiro o sétimo capítulo de Isaías, torna-se claro que a criança em questão nasceria como um sinal para Acaz, Rei de Judá, garantindo que ele não seria derrotado em batalha por Rezim, Rei da Síria, e Peca, filho do Rei de Israel. O nascimento de Jesus não podia ser esse sinal pois veio com sete séculos de atraso. Em Isaías 8:3-4, uma profetisa dá à luz um filho — Maer-Salal-Hás-Baz — que é claramente descrito como o cumprimento da profecia de Isaías 7:14.

J. Edward Barrett (1988, p. 14) apresenta evidência em como os Cristãos primitivos rejeitavam o nascimento virginal. Um elemento da evidência de Barrett é que em 1 Timóteo 1:3-4, o escritor (que pode ou não ter sido o apóstolo Paulo) aconselha a sua audiência a "impedir que certas pessoas ensinassem doutrinas estranhas, e se interessassem por fábulas e genealogias intermináveis que ocasionam disputas em lugar de promoverem a obra de D'us que se baseia na fé." (MC) O evangelho mais antigo, Marcos, não tem um relato do nascimento de Jesus, tal como João, o evangelho mais tardio, também não tem. O nascimento virginal é muito relevante para a genealogia, e tanto Mateus como Lucas apresentam a genealogia de Jesus próxima da história [do nascimento virginal].

Nascimento em Belém

Uma segunda alegada profecia relacionada com o nascimento é que Jesus nasceria na cidade de Belém, citada nos evangelhos de Mateus (2:1-6), Lucas (2:4-7) e João (7:42). Destes, Mateus e João referem-se a uma profecia nas escrituras hebraicas. A passagem mencionada é Miquéias 5:2, que diz: "E tu, Belém Efrata, pequena demais para chegar a estar entre os milhares de Judá, de ti me sairá aquele que há de tornar-se governante em Israel, cuja origem é desde os tempos primitivos, desde os dias do tempo indefinido." (Tradução do Novo Mundo) "Efrata" é o antigo nome de Belém (Gênesis 35:19, Rute 4:11) mas a situação é mais confusa pois "Belém Efrata" também é o nome de uma pessoa: Belém o filho (ou neto) de Efrata (1 Crônicas 4:4, 2:50-51). Portanto esta profecia podia-se referir tanto a um nativo da cidade como a um descendente de uma pessoa. Se for este último caso, Jesus não se qualifica, pois nenhuma das suas alegadas genealogias (informação adicional sobre este assunto será apresentada mais adiante) inclui Belém ou Efrata. Se o primeiro caso for verdadeiro (o que é mais provável, visto que Belém foi o local onde nasceu o Rei Davi, de quem o Messias será descendente), então Jesus qualifica-se por local de nascimento mas falha a verificação da condição de ser "governante em Israel". Os missionários alegam que esta é uma profecia que se cumprirá numa segunda vinda.

Genealogias

Existem várias profecias genealógicas sobre os ancestrais do Messias. As profecias sobre os ancestrais do Messias dizem que ele seria da tribo de Judá (Gênesis 49:10, Miquéias 5:2), da família de Jessé (Isaías 11:1, 10), e da casa de Davi (Jeremias 23:5, 2 Samuel 7:12-16, Salmos 132:11). Algumas destas profecias messiânicas parecem simplesmente referir-se a reis futuros. Todos estes versículos se referem a reis — e por isso nenhum deles foi cumprido por Jesus, que não foi rei de reino algum.

Mas os problemas destas profecias são ainda maiores. Será que Jesus é realmente da tribo de Judá, da família de Jessé, e da casa de Davi? A única evidência para isto são os dois conjuntos de genealogias de Jesus, em Mateus 1:1-17 e Lucas 3:23-38. Ambos traçam a linhagem de Jesus através do seu pai, José. Se a história do nascimento virginal for levada a sério, então Jesus não tem os ancestrais próprios. Por outro lado, se a genealogia de Mateus for levada a sério, então Jesus tem um ancestral chamado Jeconias (Mateus 1:12), sobre o qual o profeta Jeremias disse: "Inscrevei este homem como sem filhos, como varão vigoroso que não terá bom êxito nos seus dias; pois, dentre a sua descendência, nem um único será bem sucedido, sentado no trono de Davi e governando ainda em Judá." (Jeremias 22:30, TNM) A genealogia de Lucas sofre do mesmo problema, pois inclui Sealtiel e Zorobabel, que são descendentes de Jeconias.

Por fim, um problema muitas vezes notado é que as genealogias de Mateus e Lucas se contradizem mutuamente e contradizem as escrituras hebraicas. O avô paterno de Jesus foi Jacó (Mateus 1:16) ou Eli (Lucas 3:23)? O pai de Sealtiel foi Jeconias (1 Crônicas 3:17, Mateus 1:12) ou Néri (Lucas 3:27)? Mateus 1:11 omite Jeoiaquim (que em Jeremias 36:29-30 recebe uma maldição similar à do seu filho Jeconias) entre Josias e Jeconias (1 Crônicas 3:15) e Mateus 1:4 omite Admin entre Rão [ou Arni] e Aminadabe (Lucas 3:33, MC). Finalmente, Mateus 1:13 diz que Abiúde é filho de Zorobabel, Lucas 3:27 diz que Resa é filho de Zorobabel, mas 1 Crônicas 3:19-20 não menciona qualquer deles como sendo filhos de Zorobabel.

A matança das crianças

Outra profecia relacionada com o nascimento de Jesus é a alegação de que o Messias nasceria numa altura em que o Rei Herodes mataria crianças. Só o evangelho de Mateus (2:16-18) alega isso, citando uma profecia de Jeremias (31:15, TNM) que diz que "Ouve-se uma voz em Ramá, lamentação e choro amargo; Raquel chorando por seus filhos. Negou-se a ser consolada por causa dos seus filhos, porque eles já não existem." Existem dois problemas com esta alegada profecia messiânica: não é uma profecia sobre matança de crianças e é duvidoso que alguma vez tenha existido tal matança de inocentes por Herodes. "Raquel chorando por seus filhos" refere-se à mãe de José e Benjamim (e esposa de Jacó) chorando pelos seus filhos levados cativos para o Egito. No contexto, este versículo refere-se ao cativeiro Babilônico, que o seu autor testemunhou. Versículos subsequentes falam do regresso das crianças, e portanto referem-se ao cativeiro em vez de assassinato. A matança feita por Herodes também é duvidosa pois o escritor de Mateus é a única pessoa que menciona esse evento. O historiador Flávio Josefo, que relatou cuidadosamente os abusos de Herodes, não o menciona.

Levado para o Egito

Mateus prossegue dizendo que para fugir aos assassinos de Herodes, Jesus foi levado enquanto criança para o Egito. Isto é feito, segundo Mateus 2:15 (TNM), "para que se cumprisse o que fora falado por Jeová por intermédio do seu profeta, dizendo: Do Egito chamei o meu filho." Isto é uma referência a Oséias 11:1, que não é de modo nenhum uma profecia. É uma referência ao Êxodo dos Judeus do Egito.

"Será chamado Nazareno"

No fim do mesmo capítulo de Mateus (2:23, TNM), o seu autor escreve que Maria, José e a criança Jesus estabeleceram-se em Nazaré "para que se cumprisse o que fora falado por intermédio dos profetas: Ele será chamado Nazareno." Não existe tal profecia nas escrituras Hebraicas, embora alguns aleguem que isto se refere a Juizes 13:5. Este versículo descreve um anjo a falar com a mãe de Sansão, dizendo-lhe que o filho dela "se tornará nazireu". Não só isto não é uma profecia messiânica como também não pode ser aquilo a que Mateus se referia. Um nazireu é muito diferente de um Nazareno. Um Nazareno é um habitante de Nazaré, ao passo que um nazireu é um Judeu que tomou votos especiais para se abster de todo o vinho e uvas, não cortar o cabelo e realizar sacrifícios especiais (veja Levítico 6:1-21). Jesus bebeu vinho (Mateus 26:29, Marcos 14:25, Lucas 22:18), portanto não pode ter sido um nazireu.

Profecias sobre o ministério

Alegadas profecias sobre a vida e o ministério de Jesus dizem que ele seria precedido por um mensageiro (isto é, João Baptista), que ele teria um ministério na Galileia, que ele realizaria milagres, e que teria uma entrada triunfal na cidade de Jerusalém, montado num jumento.

Precedido por um mensageiro

A primeira destas, que ele seria precedido por um mensageiro, refere Isaías 40:3, que reza: "Uma voz grita: Abri no deserto um caminho para o Senhor, aplanai na solidão as veredas para o nosso Deus." (MC) Este versículo não fala de um mensageiro do Messias, fala dos Judeus sendo libertados do cativeiro Babilônico. Outro versículo que se diz apresentar a mesma profecia é Malaquias 3:1, que diz: "Eis que vou mandar o Meu mensageiro, o qual preparará o Meu caminho diante de Mim...." (MC) Esta pode ser tomada plausivelmente como uma profecia messiânica. Mas será que João Baptista realmente 'preparou o caminho' como mensageiro para Jesus? O historiador Flávio Josefo escreve sobre João Baptista mas não relaciona o seu nome com o de Jesus (Antiquities of the Jews 18.5.2; Josefo (1985), p. 382). Os escritos cristãos mais antigos, as cartas de Paulo, não fazem qualquer referência a João Baptista. Os evangelhos (e o livro de Atos, escrito pelo autor de Lucas) são a única evidência real de um elo [entre João Baptista e Jesus]. Mas a evidencia dos evangelhos não é consistente. O evangelho de João mostra João Baptista reconhecendo explicitamente Jesus como o Messias (João 1:25-34) antes de ser lançado na prisão por Herodes (João 3:23-24). Mas os evangelhos de Mateus (11:2-3) e Lucas (7:18-22) descrevem João Baptista, na prisão, enviando os seus discípulos a Jesus para perguntar se ele alega ser o Messias. Se a história de João fosse verdadeira, João Baptista não teria razão para fazer aquela pergunta.

Ministério na Galileia

Missionários alegam que o ministério de Jesus na Galileia é profetizado em Isaías 9:1, que diz: "... no tempo passado humilhou a terra de Zabulon e a terra de Neftali, no futuro cobrirá de glória o caminho do mar, a Transjordânia e a Galileia das nações." (MC) A única coisa que este versículo diz é que D'us fará a área "gloriosa" — não diz nada sobre o ministério do Messias. Os versículos seguintes (Isaías 9:6-7) falam de uma criança que nasceria no futuro e que seria rei, "o qual se chamará Conselheiro admirável, Deus forte, Pai Eterno, Príncipe da Paz." A tradição judaica diz que isto se refere ao Rei Ezequias, não ao Messias (Sigal, 1981, pp. 29-32). Isaías 9:7, se aplicado a Jesus, não se cumpriu, pois fala do seu reino.

Milagres

Profecias sobre as curas milagrosas de Jesus são supostamente encontradas em Isaías 35:5-6 e Isaías 32:3-4. Este texto não menciona curas, mas diz que "Os olhos dos que vêem não se ofuscarão, e os ouvidos dos que ouvem estarão atentos. Os espíritos dos insensatos entenderão a ciência, e a língua dos tartamudos exprimir-se-á com prontidão e clareza." (MC) Diz-se ainda que isto ocorrerá durante o reinado de um rei (Isaías 32:1), o que não ocorreu em Israel durante o ministério de Jesus. O outro texto, por outro lado, descreve pessoas sendo curadas ("Então se abrirão os olhos do cego, e se desimpedirão os ouvidos dos surdos", MC) mas também, nos versículos 7 e 8, descreve a terra como sendo "curada". Não existe aqui qualquer indicação clara de que estas curas tenham algo que ver com o Messias, em vez disso, é o próprio D'us que faz as curas. Os evangelhos não contêm qualquer relato de Jesus curando a terra.

Entrada triunfal em Jerusalém, montado num jumento

Uma última profecia relacionada com a vida e o ministério de Jesus é Zacarias 9:9, que diz: "Eis que o teu Rei vem a ti... humilde, montado num jumento, no potrinho de uma jumenta." (MC) Novamente, Jesus não era rei, portanto esse aspecto da profecia continua sem cumprimento. O alegado cumprimento desta profecia também é problemático. Segundo Marcos (10:11-19), Lucas (19:28-38) e João (12:12-19), Jesus entrou em Jerusalém montado num jumento. Mas Mateus 21:1-11 apresenta Jesus montado tanto num jumento como num potro, o que indica que ele se equivocou com a profecia.

Profecias sobre a traição

Várias das alegadas profecias estão relacionadas com a traição de Jesus por Judas. Estas incluem profecias de que Jesus seria traído por um amigo por trinta moedas de prata e que este dinheiro seria lançado no templo e usado para comprar um campo de um oleiro. Dois versículos que são tomados como profecias de traição por um amigo são Salmos 41:9 e Salmos 55:12-14, o último dos quais diz: "Mesmo o meu amigo próximo, em quem eu confiava, que comia o meu pão, levantou o seu calcanhar contra mim." Ambos são salmos que falam de sentimentos de dor por ter sido traído por um amigo próximo em quem se confiava. Mas Jesus já tinha presciência da sua traição por Judas (João 13:21-26), e por isso não deve ter confiado nele. Quando o evangelho de João (13:18) cita o Salmo 41:9, admite tacitamente este problema ao omitir a expressão "em quem eu confiava". Nenhum destes versículos das escrituras hebraicas dá qualquer indicação de ter sido originalmente escrito com intenções proféticas.

Mateus 26:14-15 declara que foram pagas a Judas Iscariotes trinta moedas de prata pelos sacerdotes Judeus como pagamento pela sua traição. Mateus 27:9-10 alega que isto é feito para cumprir uma profecia de Jeremias:

"Cumpriu-se, assim, o que fora dito pelo profeta Jeremias: Tomaram as trinta moedas de prata, preço em que foi avaliado Aquele que os filhos de Israel avaliaram, e deram-nas pelo campo do oleiro, como o Senhor me havia ordenado."

O problema aqui é que o versículo citado não aparece em nenhuma parte do livro de Jeremias. Existe um versículo que é muito similar no livro de Zacarias, mas ali o profeta Zacarias está a falar de si mesmo e não está envolvida qualquer traição. O missionário Gleason Archer (1982, p. 345) tenta resolver este problema citando vários versículos em Jeremias que se referem ao "profeta comprando um campo em Anatot por um certo número de siclos" (32:6-9), "o profeta vendo um oleiro modelando vasos de barro na sua casa" (18:2), "um oleiro perto do templo" (19:2), e D'us dizendo: "Quebrarei este povo e esta cidade como se parte um vaso de oleiro" (19:11). Porque é que Archer escreve "um certo número de siclos" em vez de dar o número especificado em Jeremias? Porque Jeremias 32:9 diz dezessete siclos, não diz trinta. O que Archer fez aqui foi simplesmente procurar as palavras "oleiro", "siclo" e "campo", numa tentativa de argumentar que Mateus estava realmente a referir-se a Jeremias em vez de Zacarias. Mas realmente não há dúvida que Mateus se queria referir a Zacarias em vez de Jeremias. Compare com Zacarias 11:12-13:

"Eu disse-lhes: Se vos parece bem, dai-me o meu salário; se não, guardai-o. Eles pagaram-me pelo meu salário trinta moedas de prata. O Senhor disse-me: Arroja esse dinheiro no tesouro, essa bela soma pela qual avaliaram os teus serviços. Tomei as trinta moedas de prata e lancei-as no tesouro da casa do Senhor."

Novamente, isto é Zacarias falando da sua própria experiência em vez de ser uma profecia messiânica. Mas Mateus 27:5-7 tenta cumprir esta não-profecia contando uma história de Judas Iscariotes lançando o seu pagamento no templo antes de cometer suicídio, depois do que os sacerdotes usam o dinheiro para comprar um campo de um oleiro. Esta história não aparece nos outros evangelhos (embora Atos 1:18-19 diga que foi o próprio Judas, em vez de serem os sacerdotes, quem comprou o campo com o dinheiro (cuja quantidade não é especificada) ganho com a sua traição.

Outro problema com esta alegada profecia é que os manuscritos mais antigos (Siríaco) de Zacarias versículo 13 nem sequer contêm a palavra "oleiro" — em vez disso, têm "tesouro", que faz mais sentido mas prejudica ainda mais a sua credibilidade como profecia. (A Revised Standard Version apresenta o versículo como "Lancei-o no tesouro", com a tradução "para o oleiro" relegada para uma nota de rodapé.)

Profecias sobre a crucificação

Os missionários talvez estejam muito impressionados com várias alegadas profecias relacionadas com a crucificação de Jesus. Eles alegam que as escrituras hebraicas contêm profecias de que Jesus seria crucificado, que as suas vestimentas seriam divididas através do lançamento de sortes, que lhe dariam vinho misturado com fel ou mirra, que ele gritaria sobre ser abandonado, e que nenhum dos seus ossos se quebraria.

Seria crucificado

Existem vários versículos que são encarados como referindo-se à crucificação: Salmos 22:16, Zacarias 12:10, e Zacarias 13:6 são exemplos típicos. Salmos 22:16 diz: "Sou rodeado pelos cães; envolvido por um bando de malfeitores; trespassaram as minhas mãos e os meus pés". Este é um salmo de Davi que não dá indicação de ser profético e que se descreve a si mesmo sendo caçado e morto em vez de ser crucificado. Gerald Sigal (1981, p. 98) argumenta que a palavra hebraica traduzida aqui por "trespassaram" significa "leão", e portanto uma tradução mais exata seria "como um leão [eles estão a morder] as minhas mãos e os meus pés." [N. do T.: a tradução Missionários Capuchinhos (católica) diz, numa nota de rodapé: "O hebraico] diz: «como um leão, as minhas mãos e os meus pés». O targum explica: «eles morderam como um leão»."] Gleason Archer (1982, p. 37), contudo, argumenta que "eles trespassaram" está correto, baseado na tradução Septuaginta e noutras considerações.

Zacarias 12:10 (MC) diz "... eles voltarão os seus olhos para Mim. Quanto àquele que traspassaram, chorá-lo-ão como se chora um filho único; chorá-lo-ão amargamente como se chora um primogénito." O evangelho de João (19:37) encara isto como sendo uma profecia cumprida na crucificação de Jesus, mas não há indicação de que Zacarias fale de crucificação. Além disso, o 'ele' sendo lamentado não é o 'eu' que está sendo traspassado. A interpretação Judaica deste versículo é que D'us está a falar do povo de Israel sendo "traspassado" ou atacado (Sigal 1981, pp. 80-82).

Zacarias 13:6 (MC) diz: "Que ferimentos são esses nas tuas mãos [a RSV diz "entre os teus braços"]?", referindo-se a alguém que afirma não ser profeta e que foi vendido como escravo na sua juventude (Zacarias 13:5). Ferimentos entre os braços não são característicos de crucificação e Jesus nem foi vendido como escravo nem afirmou que não era profeta.

Lançadas sortes sobre as vestimentas

Apenas o evangelho de João fala das vestimentas de Jesus sendo divididas entre os soldados e o lançamento de sortes sobre a sua túnica (João 19:23-24), e ele cita Salmos 22:18 como a profecia que é cumprida dessa forma. Este último versículo diz: "repartem entre si as minhas vestes e lançam sortes sobre elas." Este versículo conta um evento — roupas sendo divididas através do lançamento de sortes. Mas João transforma-o em dois eventos: primeiro a divisão da roupa de Jesus sem incluir a túnica (João 19:23) e depois o lançamento de sortes sobre a sua túnica (João 19:24). Parece que João criou uma história numa tentativa de providenciar um cumprimento para a sua compreensão equivocada de um versículo que não dá qualquer indicação de ter sido originalmente uma profecia.

Vinho misturado com fel ou mirra para beber

Mateus (27:34) fala de terem dado a beber a Jesus "vinho misturado com fel" e Marcos (15:23) diz que lhe ofereceram "vinho misturado com mirra". Ambos os versículos são encarados como referências a Salmos 69:21, que diz "Por alimento servem-me veneno, por bebida contra a minha sede, dão-me vinagre." A palavra hebraica traduzida aqui por "veneno" é "rosh", que significa veneno ou fel, e refere-se a alguma planta venenosa. O versículo diz que veneno está sendo colocado na comida, o que não se aplica à crucificação. Mirra, que não é venenosa, é referida pela palavra hebraica "mor", que não aparece em Salmos 69:21. Este salmo, que fala repetidamente de águas de uma inundação, não dá qualquer indicação de ser profético nem de se aplicar a Jesus.

"Por que me abandonaste?"

Os evangelhos de Mateus (27:46) e Marcos (15:34) dizem que as últimas palavras de Jesus foram: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?", uma citação do Salmo 22:1. Lucas (23:46) diz que as últimas palavras de Jesus foram "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito", enquanto João (19:30) apresenta Jesus a dizer: "Acabou-se." Só a primeira destas frases é alegadamente um cumprimento de profecia, no entanto dificilmente se poderá dizer que é miraculoso ter Jesus feito tal declaração. Presumivelmente Jesus estava familiarizado com as escrituras hebraicas. Tal observação, contudo, é inconsistente com a teologia cristã. Por que é que Jesus, que é supostamente D'us encarnado, falaria de ser abandonado por si mesmo em qualquer circunstância, quanto mais na culminação do seu plano para a salvação humana? Também não é evidente que Salmos 22 quer seja profético, quer aplicável a Jesus (veja Sigal, 1981, pp. 95-99).

Nenhum dos seus ossos seria quebrado

Uma última profecia que desejo examinar, relacionada com a crucificação de Jesus, é que os ossos dele não seriam quebrados. Só o evangelho de João (19:32-36) afirma isso, dizendo que os soldados quebravam as pernas das vítimas da crucificação para apressar as suas mortes, no entanto pouparam Jesus pois ele já estava morto. João 19:36 cita Salmos 34:20: "Ele guarda cada um dos Seus ossos, nem um só será quebrado", como sendo a profecia que é cumprida dessa forma. Não há qualquer indicação de que Salmos 34 tenha sido escrito com intenções proféticas, nem que se aplique a Jesus. A intenção do evangelho de João é representar Jesus como um sacrifício, correspondendo especificamente ao cordeiro pascal (por exemplo, João 1:29, 36). Um requerimento do cordeiro pascal é que nenhum dos seus ossos seja quebrado (Êxodo 12:46, Números 9:12). Mas esta analogia falha por várias razões: o cordeiro pascal não era para expiação de pecado, e requeria-se que os sacrifícios judeus estivessem completamente sem deformidades físicas, chagas ou ferimentos (Levítico 22:20-25) ao passo que Jesus foi açoitado [chicoteado] e mutilado (João 19:1; Sigal 1981, pp. 265-268).

Conclusões

Vale a pena examinar brevemente algumas conclusões a respeito de profecias messiânicas, que diferem das minhas, apresentadas por Peter Stoner (1952) (e repetidas por McDowell (1972)). Stoner calcula a probabilidade de apenas oito profecias messiânicas serem cumpridas como sendo 1 em 10^21 (McDowell (1972), citando uma edição mais recente do livro de Stoner, apresenta a probabilidade como sendo 1 em 10^17. Jeffrey (1990, pp. 17-20) apresenta uma lista de onze profecias messiânicas7 e uma probabilidade de 1 em 10^19.) Existem vários problemas com os cálculos de Stoner. A probabilidade de cada profecia ser cumprida por acaso foi obtida de uma estimativa feita por "uma classe sobre Evidências Cristãs" em Pasadena City College patrocinada pela Inter-Varsity Christian Fellowship (Stoner 1952, p. 71). [N. do T.: ou seja, fundamentalistas!] Estas estimativas não consideraram nenhuma das acima mencionadas objeções a estas profecias, nem consideraram a possibilidade de cumprimento intencional. (Por exemplo, um pretendente a Messias podia contratar um mensageiro do gênero de João Baptista para o preceder, ou poderia montar um jumento intencionalmente e entrar na cidade de Jerusalém.) Outro problema com esse método [de Stoner] é tais estimativas de probabilidades não serem de confiança. Destes problemas, o mais grave é o fracasso de Stoner em considerar as objeções que apresentei acima, e este fato por si só é suficiente para invalidar os seus cálculos.

Examinei mais de duas dúzias de alegadas profecias messiânicas que os missionários dizem terem sido cumpridas em Jesus. Embora existam muitas outras de tais alegadas profecias (por exemplo, McDowell (1972) enumera 61 com algum detalhe e refere-se a numerosos versículos adicionais sem detalhes), estes são os melhores exemplos, segundo o reconhecimento dos próprios apologistas.9 Este exame mostra que nenhuma delas é uma predição específica, detalhada e exata de um evento que tenha ocorrido na vida de Jesus. Em vez disso, as supostas profecias parecem ser o resultado de tentativas deliberadas por parte dos escritores dos evangelhos para encontrar similaridades post hoc entre eventos descritos no Novo Testamento e nas escrituras hebraicas. As profecias messiânicas, contrariamente ao que os missionários dizem, não fornecem evidência em apoio da fé Cristã.

Tradução Jonas Stefani

Todas as citações da Bíblia, salvo indicação em contrário, são [tradução livre para português] da New American Standard Translation.

Notas

1 - Poderia argumentar-se (e é o que têm feito Judeus desde o terceiro século) que Jesus desencaminhou os Judeus da sua religião e por isso era um falso profeta. Veja Sanhedrin 43a no Talmude Babilônico (Epstein 1935, p. 281).

2 - Deve-se notar que alguns missionários alegam que o sentido pretendido é "virgem" porque os tradutores judeus do Velho Testamento para o grego (a Septuaginta) usaram a palavra grega "parthenos" ("virgem") para "almah" ao traduzirem este versículo. Isto provavelmente indica, em vez disso, que Mateus usou a Septuaginta. Gerald Sigal (1981, p. 24) indica um caso (Gênesis 34:3) em que a Septuaginta usa "parthenos" para a palavra hebraica quando a mulher em questão não é de modo nenhum uma virgem (veja Gênesis 34:2). Nahigian (1993, p. 13) também indica que traduções posteriores de Isaías, por Aquila, Theodocion, Lucian e outros não usaram "parthenos" ao traduzir "almah" em Isaías 7:14.

3 - A resposta missionária usual é invocar a doutrina do "duplo cumprimento" das profecias. Note que isto, combinado com a opinião cristã de que "almah" significa "virgem", implica que o Cristão tem de aceitar dois nascimentos virginais.

4 - O evangelho de João não diz nada sobre Jesus ser de Belém, mas em vez disso diz que ele é de Nazaré, na Galileia. Veja João 1:45-46 e 7:41-42, 52.

5 - Existem duas tentativas que costumam ser feitas para resolver estas contradições. A mais comum entre os missionários é alegar que a genealogia de Lucas é a de Maria, não a de José. Isto não explica a repetida convergência seguida de divergência que notamos à medida que analisamos as duas genealogias. Também não explica por que é que a genealogia de Lucas contém quase duas vezes mais ancestrais do que Mateus no mesmo período de tempo. Ainda outro problema é que essa explicação entra em conflito com a tradição católica que diz que os pais de Maria foram Joaquim e Ana. Uma segunda explicação, preferida pelos católicos, é que cada caso de divergência é o resultado de casamento de Levirato. Isto é, os pais discrepantes são irmãos uns dos outros, e quando um deles morreu, o outro casou com a esposa do seu irmão (veja Deuteronómio 25:5). Esta explicação também não explica a diferença no número de ancestrais.

6 - Miquéias 5:2 (nascido em Belém), Malaquias 3:1 (precedido por um mensageiro), Zacarias 9:9 (entra em Jerusalém montado num jumento), Zacarias 13:6 (traído por um amigo, ferido nas mãos), Zacarias 11:12 (traído por trinta moedas de prata), Zacarias 11:13 (prata lançada no templo e usada para comprar campo de oleiro), Isaías 53:7 (fica silencioso perante acusadores) e Salmos 22:16 (mãos e pés traspassados). Todos estes, exceto o versículo de Isaías, foram examinados acima (veja a [nota 9]).

7 - Jeffrey apresenta as mesmas oito de Stoner e McDowell (substituindo Isaías 40:3 por "precedido por um mensageiro" e Salmos 41:9 por "traído por um amigo") e acrescenta Isaías 53:5 (ferido e chicoteado por inimigos), Isaías 50:6 (cuspido e golpeado), e Isaías 53:12 (crucificado com ladrões). Estes últimos três versículos não são abordados neste artigo, veja a [nota 9].

8 - Veja Kahneman, Slovic e Tversky (1982) e Falk (1982).

9 - Profecias que não abordei incluem os escritos de Isaías sobre o "Servo Sofredor", que são tratados por Sigal (1981, pp. 35-68) e no número 30 (Junho de 1985) da revista Biblical Errancy [Erros Bíblicos].

Referências

  • Archer, Gleason (1982) Encyclopedia of Bible Difficulties. Grand Rapids, Mich.: Zondervan Publishing House.

  • Barrett, J. Edward (1988) "Can Scholars Take the Virgin Birth Seriously?", Bible Review, October, pp. 10-15, 29.

  • Epstein, Rabbi Dr. I., editor (1935) The Babylonian Talmud: Sanhedrin. London: The Soncino Press.

  • Falk, Ruma (1982) "On Coincidences," Skeptical Inquirer 6(Winter 1981-82):18-31.

  • Jeffrey, Grant R. (1990) Armageddon: Appointment with Destiny. N.Y.: Bantam.

  • Josephus, Flavius (1985) The Works of Josephus. Peabody, Mass.: Hendrickson Publishers. Translated by William Whiston.

  • Kahneman, Daniel, Slovic, Paul, and Tversky, Amos (1982) Judgment Under Uncertainty: Heuristics and Biases. Cambridge: Cambridge University Press.

  • McDowell, Josh (1972) Evidence That Demands A Verdict. San Bernardino, Calif.: Here's Life Publishers.

  • Miosi, Frank T. (1993) "Who Was John the Baptist?" Free Inquiry 13(2, Spring):38-45.

  • Nahigian, Kenneth E. (1993) "A Virgin-Birth Prophecy?" The Skeptical Review 4(2, Spring):13-14, 16.

  • Newman, Robert C. (1990) "The Time of the Messiah." In Robert C. Newman, editor, The Evidence of Prophecy, second printing with corrections. Hatfield, Penn.: Interdisciplinary Biblical Research Institute, pp. 111-118.

  • Paine, Thomas (1925) "Examination of the Prophecies." In William M. Van der Weyde, editor, The Life and Works of Thomas Paine, volume IX. New Rochelle, N.Y.: Thomas Paine National Historical Association, pp. 205-292.

  • Sigal, Gerald (1981) The Jew and the Christian Missionary: A Jewish Response To Missionary Christianity. N.Y.: Ktav Publishing House, Inc.

  • Stoner, Peter W. (1952) Science Speaks: An Evaluation of Certain Christian Evidences. Wheaton, Ill.: Van Kampen Press, Inc


terça-feira, 9 de agosto de 2011

A dimensão política de Jesus

A busca pelo Jesus da História

Cristo foi batizado por João Batista no Rio Jordão, escolheu doze discípulos, pregou pela Galiléia durante menos de um ano e foi crucificado. Mas essas poucas certezas sobre sua vida só tornam ainda mais instigante aquilo que não se sabe – e provavelmente nunca se saberá – sobre ele

A fé cristã se fortaleceu no decorrer dos últimos vinte séculos não por se constituir em um impecável museu de relíquias capazes de narrar de forma coerente e incontestável a história de Jesus. A fé cristã se enriqueceu da adversidade e construiu uma vigorosa verdade teológica apesar das falhas gritantes dos registros históricos sobre o homem que mandou o apóstolo Pedro construir a sua Igreja. Sua passagem terrestre, no entanto, deitou sobre o tempo histórico marcas muito tênues. Fora os Evangelhos, textos sagrados do cristianismo, a figura de Jesus aparece citada apenas de forma cifrada ou pouco clara em obras escritas dezenas de anos depois de sua morte. Por essa razão, as raras descobertas arqueológicas que iluminam o período histórico de Jesus na Palestina são recebidas com grande curiosidade pelos estudiosos. Há dois anos, foi encontrada uma urna funerária de pedra gravada com a inscrição em aramaico "Tiago, filho de José, irmão de Jesus". Passada a excitação inicial com o que parecia ser a primeira prova não textual da existência física de Jesus, as dúvidas prevaleceram. O fato de a relíquia ter sido removida há muitos séculos da terra, só agora encontrada e não se poder precisar onde andou por tanto tempo contribuiu para que a descoberta não fosse considerada definitiva. O episódio, porém, encerra a lição de que a força da palavra de Jesus independe das provas históricas. Estas, por sua vez, continuarão a ser buscadas com afinco e precisão crescentes.

AP
A ilustração da aparência provável de Jesus, moreno e de cabelos crespos, é muito diversa da iconografia a seu respeito e também da face que aparece no Santo Sudário. À direita, uma reconstituição da crucificação do jovem judeu Yehohanan, cujo esqueleto é o único encontrado até hoje em Jerusalém de alguém submetido a esse tipo de execução

O Natal é uma data cristã em que a tradição menos se harmoniza com a história. Jesus não nasceu no ano que dá início à sua era, mas sim algo como seis anos antes – culpa de uma confusão entre os calendários romano e cristão. O local de nascimento de Jesus também é fonte de questionamentos. Ignora-se por que seus pais, Maria e José, que moravam em Nazaré, estariam em Belém no momento do parto. A explicação tradicional, de que teriam retornado à cidade natal de José para um censo, esbarra na falta de registros de alguma grande convocação desse tipo nesses anos. Os romanos, que dominavam a região, faziam censos em seu império para recolher tributos – e a lógica sugere que eles registravam seus contribuintes nos locais em que trabalhavam e residiam. Os Evangelhos de Lucas e Mateus, com pequenas discrepâncias, fazem narração semelhante do nascimento. Até o século XVIII, não havia a preocupação de procurar fatos que comprovassem os Evangelhos. Isso mudou. Diz o teólogo espanhol Julián Carrón: "Desde o início, a Igreja Católica acreditou que os Evangelhos tivessem origem na figura histórica de Jesus, e sempre os considerou testemunhos de fatos acontecidos. Apesar disso, a partir do iluminismo alguns estudiosos começaram a achar que os Evangelhos não tinham valor histórico e que era preciso encontrar outro tipo de correspondência entre eles e os fatos".

Os especialistas discutem livremente a função de proselitismo dos Evangelhos. A própria narração do Natal é interpretada como sendo uma espécie de esforço de propaganda. Belém era a cidade do rei Davi, uma ótima maneira de reforçar, a posteriori, a afirmação de que Jesus era o Messias: ele seria, assim, descendente pela linha paterna de um dos fundadores do judaísmo, e teria nascido na mesma cidade que ele. A estrela de Belém, citada apenas por Mateus, é outro mistério. Nascer no leste, aparecer sobre Jerusalém e então virar-se para o sul, na direção de Belém, como descreve o evangelista, é um comportamento no mínimo estranho para uma estrela. O enigma astronômico há séculos intriga os cientistas. Uma primeira resposta foi aventada em 1604, pelo astrônomo alemão Johannes Kepler. Ao observar uma conjunção de Júpiter, Saturno e Marte, ele calculou que o fenômeno teria ocorrido também em 6 a.C. – o possível ano do nascimento de Jesus –, produzindo impressão semelhante àquela descrita por Mateus. Outros estudiosos acreditam que o evangelista ficou tão encantado com a passagem do cometa Halley, em 66 d.C., que o teria incluído em sua narrativa. E há os que acham que a estrela de Belém não passa de um símbolo, lendário do começo ao fim, da chegada de um rei. "Os astrônomos nunca vão encontrar a verdadeira estrela de Belém, porque ela é produto da nossa imaginação: é a luz que brilha sobre o Cristo criança", diz A.N. Wilson, autor de Jesus: A Life. Atribui-se, ainda, à imaginação dos artistas (e ao eurocentrismo) o aspecto físico com que Jesus passou à história. Os longos cabelos castanho-aloirados, os traços esculpidos e os olhos claros são incongruentes com o biotipo de um palestino do século I. O mais provável é que ele fosse moreno, com olhos escuros e cabelos crespos – bem diferente, portanto, não só do Jesus da iconografia, como da imagem impressa no Sudário que está exposto em Turim, na Itália.

A busca pelo Jesus histórico – como de resto da maioria das investigações materiais da Antiguidade – produz mais dúvidas do que respostas. Nem a morte do Nazareno na cruz, uma das poucas certezas da história, deixa de suscitar interrogações. No mundo greco-romano, não havia desonra maior do que a morte sem sepultura. Um corpo exposto ao tempo, aos olhares de estranhos, às feras e às aves era um insulto público, e significava também a destruição da identidade – um fim sem epitáfio e portanto sem posteridade, uma preocupação suprema da Antiguidade. Por isso, para acrescentar injúria à tortura, os romanos crucificavam os escravos desobedientes e os presos políticos. Mesmo após o condenado expirar, os soldados continuavam a montar guarda: baixar um morto da cruz era um privilégio que exigia súplica, influência ou propina, ou todas as três coisas. Não é de estranhar que, dentre os milhares de pessoas que se calcula terem sido crucificadas nos arredores de Jerusalém durante o domínio romano, um único esqueleto tenha sido encontrado – o de um judeu de seus 20 anos de idade chamado Yehohanan, filho de Hagkol, como consta da inscrição em seu ossuário.

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O arqueólogo Shimon Gibson mostra a caverna (abaixo, à esq., sua entrada), localizada num kibutz próximo a Jerusalém, que João Batista pode ter usado para ungir seus seguidores. O óleo e a água do sacramento escorreriam por uma abertura na pedra (à dir., abaixo)
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A análise da ossada de Yehohanan, localizada em 1968, revela que suas mãos não foram pregadas à cruz: provavelmente, seus braços foram amarrados à trave, enquanto seus pés foram dispostos lateralmente à viga e atravessados por trás, na altura do calcanhar, por um pino de ferro. Como o pino entortou, não foi possível despregar o pé direito de Yehohanan, e sua família teve de enterrá-lo com um pedaço da cruz preso ao osso. Na suposição de o jovem judeu preservado no ossuário servir de modelo para a morte de Jesus Cristo – e ele é o único de que se dispõe –, ele levanta duas questões relevantes. A primeira é que é, sim, possível que Jesus tenha ganho uma sepultura, apesar de não ser esse o costume. A outra é que, se as mãos e os pés de Jesus não foram perfurados por cravos, as chagas com que ele é descrito nos Evangelhos e habitualmente representado não correspondem aos seus ferimentos reais. Essas são meras suposições, claro, e é quase certo que nunca será possível prová-las ou desprová-las. Na tentativa de retraçar os passos de Jesus, historiadores e arqueólogos esbarram continuamente em dilemas semelhantes: as evidências concretas são ínfimas, e por isso mesmo nem se pode descartá-las, nem tomá-las como indícios seguros.

A procura por traços concretos da existência de Jesus é relativamente recente. Começou com os movimentos racionalistas da virada do século XVII para o XVIII, quando ganhou força a idéia de que qualquer dúvida ou mistério poderiam ser desfeitos pela ciência – e, no espírito da época, o objetivo era menos verificar a existência de Jesus e mais negá-la como um mito comparável a tantos outros presentes na Bíblia. Hoje, não há mais como pôr em disputa o fato de que Jesus existiu. Ele é citado, ainda que de passagem, por dois cronistas não-cristãos do período, o judeu Josefo e o romano Tácito. As fontes mais aceitas sobre a trajetória de Jesus – os Evangelhos Sinópticos, de Mateus, Lucas e Marcos – são consistentes com o que se sabe sobre a Palestina do século I, de forma que a chance de serem fruto da imaginação de seus autores é desprezível. Muitas informações podem ser tiradas também das Cartas de Paulo (anteriores aos Evangelhos em sua forma escrita), o mais instruído dos discípulos, e de fontes não-canônicas, especialmente do Evangelho de Tomé, cujo texto integral foi descoberto em 1945 e desde então vem sendo objeto de grande atenção. Ainda que os consensos sobre a trajetória de Jesus sejam frágeis, os historiadores acreditam ser fato que ele tenha sido batizado no Rio Jordão pelo profeta João Batista, que tenha escolhido doze apóstolos, que tenha pregado pela Galiléia – talvez numa missão muito curta, de menos de um ano –, e que tenha sido crucificado, muito provavelmente durante uma Páscoa. Essas certezas, porém, só tornam ainda mais instigante aquilo que não se conhece sobre Jesus, e que vai do prosaico, como a sua aparência física, ao absolutamente cifrado – de que forma ele teria passado os anos de sua adolescência e juventude, sobre os quais nenhuma pista confiável sobreviveu.

Mesmo o local mais sagrado da religião a que Jesus deu origem, a Igreja do Santo Sepulcro – erigida sobre a caverna em que o corpo de Jesus teria sido colocado por José de Arimatéia –, não está a salvo de incertezas. A igreja foi consagrada em 335, a mando do imperador Constantino (que instaurou o cristianismo como religião oficial do Império Romano), quando uma tumba que se acredita ser a de Cristo foi descoberta sob um templo pagão. Se sua descrição e localização conferem com os Evangelhos e a crônica do período, não há, por outro lado, provas arqueológicas que confirmem ser essa a sepultura de Jesus. Muito mais tênue ainda é a ligação que se pretende estabelecer entre Jesus e a seita dos essênios, cujos célebres Manuscritos do Mar Morto foram encontrados no fim da década de 40. Praticantes de um judaísmo ascético e radical, os essênios pareciam ter, conforme os documentos que legaram, muito em comum com o pensamento de Jesus – daí a hipótese de que Cristo tenha passado a juventude com eles. A teoria tem muitos adeptos, e outros tantos detratores. Itzhak Magen e Yuval Peleg, dois arqueólogos israelenses ligados aos órgãos históricos de seu país, argumentaram que um exame mais detido das cavernas de Qumran, onde estavam os manuscritos, sugere que elas funcionavam não como um refúgio de ermitãos, mas talvez como olaria, e que os pergaminhos foram simplesmente levados da biblioteca do templo de Jerusalém para lá, para sua proteção. Não seria, portanto, um lugar de estudo onde um jovem fosse se iniciar.

São remotas as chances de que, algum dia, venham a surgir as evidências diretas que tanto se buscam sobre Jesus. A Palestina era uma província menor, que interessava ao Império Romano apenas na medida em que se situava entre o Egito e a Síria. Menos importância equivale a menos documentos e monumentos – a primeira dificuldade no caminho da arqueologia. O ossuário do sumo sacerdote judeu Caifás, que entregou Jesus ao governador romano Pôncio Pilatos e exigiu sua execução, é dado como genuíno. Mas só há poucas décadas se encontrou uma laje com a inscrição do nome de Pôncio Pilatos. Até autenticar-se esse fragmento de pedra, o nome do governador romano existia apenas na literatura. Escavar em Jerusalém e arredores é, além disso, uma proposição delicada. A cidade vive uma divisão conflituosa entre as três religiões para as quais é sagrada – o cristianismo, o judaísmo e o islamismo –, e expedir uma autorização é uma questão que exige sensatez política e diplomática. Em anos recentes, com o recrudescimento das hostilidades entre israelenses e palestinos, a situação se agravou: das quase cinqüenta grandes escavações em andamento em Israel, apenas quatro continuam em atividade. Não há como garantir a segurança das demais. Finalmente, a região é o paraíso dos caçadores de troféus, que retiram peças de seu contexto para vendê-las – e, assim, eliminam quase todo o seu valor científico –, e dos arqueólogos ambiciosos, que anunciam descobertas bombásticas antes que elas possam ser analisadas por seus pares. Em agosto deste ano, por exemplo, o arqueólogo britânico Shimon Gibson anunciou com grande alarde ter encontrado a suposta caverna de João Batista, localizada no que é hoje um pequeno kibutz. Há indícios de que seguidores de João, ao menos, tenham usado o local, que conta com o que se julga ser uma pia batismal por onde escorreriam o óleo e a água empregados na unção. Qualquer outra hipótese, porém – como a de que João ou mesmo Jesus tenham administrado batismos ali, conforme especula Gibson –, é prematura.

A fé, claro, não precisa de provas que a confirmem, ou não levaria o nome de fé. Não precisa, mas, de alguma forma, sempre as deseja. Os Evangelhos descrevem a relutância de Jesus em fazer milagres, mas deixam entrever sua visão de que, ocasionalmente, esses sinais eram necessários. Conta-se também como, após a Ressurreição, Cristo deixou que o incrédulo São Tomé tocasse suas chagas para comprovar que era ele mesmo, o Filho de Deus, quem estava ali. Desde que o cristianismo começou a se espalhar – e ele se alastrou como um rastilho de pólvora pela Palestina e logo também por todo o mundo romano em suas primeiras décadas –, começaram a surgir também as relíquias: fragmentos da Cruz Verdadeira (que, fossem todos eles autênticos, teria dimensões descomunais), ossos de santos, frascos de sangue e toda uma miríade de testemunhos físicos de que Cristo, seus apóstolos e mártires caminharam sobre a Terra, gerando um culto que poderia muito bem ser caracterizado como fetichismo ou superstição. Na Idade Média, a Igreja muitas vezes se valeu da venda de relíquias e de indulgências como fonte de renda – um comércio que, durante uma visita a Roma, horrorizou o padre Martinho Lutero e acabou servindo como um dos estopins para a Reforma Protestante. Hoje o Vaticano desencoraja esse tipo de apego, ou, quando muito, o tolera, e trata as descobertas de possíveis relíquias com o máximo de circunspecção. Mesmo assim, elas ainda pipocam.

Quando se pensa no homem que fundou a maior religião monoteísta do planeta, resistente a 2.000 anos de sismos políticos e sociais, ao crescimento de outras religiões e às cizânias em seu próprio interior, é natural imaginá-lo voltado para nós, transmitindo para as gerações vindouras sua mensagem. Esse Jesus, contudo, é o da teologia. De acordo com a historiadora Paula Fredriksen, professora de escritura da Universidade de Boston, para encontrar o Jesus histórico deve-se visualizá-lo de outra forma: de costas para nós, e voltado para os seus contemporâneos e conterrâneos. O problema imediato de Jesus era fazer-se entender por eles, e foi para pessoas como ele próprio que Cristo elaborou seu discurso, ou que os evangelistas escreveram seus relatos. É preciso, então, primeiro entender a Palestina do século I e, em seguida, contrapor a ela os relatos dos Evangelhos – um exercício que pode render frutos surpreendentes.

Diz a máxima – quase sempre verdadeira – que quem escreve a história são os vencedores. Os Evangelhos, porém, são a mais notável exceção a essa regra. Tudo sugere que os relatos de Mateus, Lucas, Marcos e João começaram a ganhar forma na segunda metade do século I, quando o cristianismo ainda era um movimento marginal, que apenas começava a ensaiar o seu passo decisivo – o de transpor a esfera do judaísmo para conquistar os gentios e se alastrar pelo mundo romano. Os Evangelhos estão carregados de marcas dessa trajetória. Eles assinalam, por exemplo, a relutância do romano Pôncio Pilatos em aceitar as acusações do sacerdote judeu Caifás e condenar Jesus à morte. Nas menções a Pilatos que sobreviveram na crônica política da época, contudo, o governador é retratado como um oficial brutal, que se excedia no zelo com que executava prisioneiros a ponto de incomodar Roma. Esse é um dos pontos em que os estudiosos convergem: a maneira como os Evangelhos mitigam a culpa de Pilatos, transferindo-a quase toda para o clero judaico, é uma herança clara do momento que o cristianismo atravessava por volta dos anos 60 e 70, de tentar seduzir Roma e forjar laços com ela. Do ponto de vista de um historiador, portanto, até em suas omissões ou contradições os Evangelhos são um documento historiográfico riquíssimo, repleto de pistas sobre as intenções de Jesus e sobre as tensões políticas a que ele e seus seguidores estavam submetidos.

Essa tática – a de estudar o que não é dito – é, segundo Paula Fredriksen, útil também no caso do historiador judeu Josefo. O mais ativo cronista da região no século I, Josefo forneceu descrições detalhadas dos acontecimentos políticos e sociais. Mas não menciona fome, impostos escorchantes, violações flagrantes da lei judaica (por parte de Herodes Antipas, rei da Galiléia, ou dos oficiais romanos) nem forte presença de tropas do invasor. Não relata, enfim, turbulências além do normal. O retrato consensual que se tem da região no início do século I é o de uma terra cultivada, muito populosa – outro cronista diz que nunca se andava um dia inteiro sem atravessar uma vila, uma aldeia ou uma cidade –, e que usufruía uma convivência não exatamente harmoniosa, mas também não particularmente tensa, com o poder romano. A Galiléia era já muito romanizada, mas eram os judeus, e não os romanos, que a governavam, frisa Paula Fredriksen. Ou seja, a julgar pelo que narra Josefo, é muito mais lógico que Jesus tenha feito mais oposição a preceitos judaicos do que à dominação romana – o contrário do que dizem, por exemplo, alguns teólogos ligados à Teologia da Libertação, que gostam de ver em Jesus um proto-socialista.

O irlandês radicado nos Estados Unidos John Dominic Crossan, professor de estudos bíblicos da Universidade DePaul de Chicago e talvez o mais influente estudioso da área, vai mais fundo nesse panorama da Palestina. Em O Jesus Histórico, Crossan se vale de numerosos trabalhos de colegas seus para reconstruir um retrato minucioso dessa sociedade. E duas características da Palestina – assim como de toda a bacia do Mediterrâneo – são fundamentais para entender Jesus, diz ele. A primeira delas é o código de honra e vergonha, que assegurava à força a lealdade no interior das comunidades. Nesse sistema, famílias e clãs se tornavam pequenos soberanos, com poder de vida e morte sobre seus membros – e ai de quem transgredisse suas regras. Outro traço muito típico do Mediterrâneo, aponta o historiador, é o costume do apadrinhamento: tudo nesse universo dependia de intercessão, de que se pedisse um favor e alguém o concedesse.

Para as pessoas humildes que viviam espremidas entre os sistemas de honra e apadrinhamento, imagina John Dominic Crossan, o desejo de escapar não devia ser pequeno. Mas como alguém pode se subtrair à sociedade? Os cínicos – e a palavra aqui é derivada do grego para "canino", sem o sentido atual – filosofaram uma resposta a essa pergunta: segundo os partidários dessa espécie de contracultura da Antiguidade (que achavam que se devia "latir" contra as injustiças), a pobreza levava à liberdade, que por sua vez levava à realeza – a um homem que é senhor de si mesmo. Não se tratava apenas de teoria. Os cínicos tinham diretrizes práticas em relação à aparência (cabelo comprido, manto e pés descalços), alimentação (tirada de um alforje) e moradia (proporcionada por quem se dispusesse a dar abrigo ao rebelde itinerante). No tempo de Cristo, os cínicos eram figuras comuns, e facilmente reconhecíveis por suas vestimentas, seu cajado e suas atitudes. Não eram benquistos pelas autoridades romanas, claro, porque enchiam de idéias as classes menos favorecidas. De certa forma, Jesus se encaixaria no papel de um cínico, diz Crossan – exceto pelo fato de que ele foi bem além da proposta do movimento. Jesus não pregava a auto-suficiência, como os cínicos, mas sim a mais absoluta comensalidade, sem distinções entre homens e mulheres, pobres e ricos, gentios ou judeus, poderosos ou párias. Isso não desagradaria só aos romanos. Enfureceria acima de tudo os adeptos da lei judaica, que nesse momento atravessava uma fase de sectarismo pronunciado. E, como arrisca Crossan, mais desmoralizante e subversivo do que combater uma regra é simplesmente ignorá-la.

Muito já se discutiu se Jesus estaria em continuidade com o judaísmo ou em oposição aos padrões sociais e religiosos de sua época. Mas o inglês Christopher Tuckett, professor de estudos do Novo Testamento na Universidade de Oxford, levanta um argumento forte a favor do Jesus radical: o ministério de Cristo se mostrou tão ofensivo para parte de seus contemporâneos que eles o levaram à morte pelo método mais cruel de execução já inventado. Sob essa luz, muito do que Jesus pregou ganha um novo sentido. Tome-se, por exemplo, sua condenação do divórcio. "Todo aquele que se divorciar de sua mulher e desposar outra comete adultério contra a primeira", diz o Evangelho de Marcos. Ora, à primeira vista essa parece ser uma posição conservadora. Mas é preciso reparar que Jesus fala que um homem que toma uma segunda esposa é um adúltero. Na lei judaica, só os homens, e não as mulheres, podiam pedir o divórcio. Nivelando o direito feminino ao masculino, Jesus desfere um golpe contra o androcentrismo, um dos pilares da tradição.

Nesse cenário, até o sacramento do batismo adquire um sentido subversivo. Na época em que Cristo viveu, o único local em que um judeu podia oferecer sacrifícios para purificar-se era o Templo de Jerusalém – caro chegar até lá, caro custear a estada e caro comprar, à entrada do templo, os animais que seriam sacrificados. Na prática, isso equivalia a excluir da redenção, por critérios econômicos, uma parcela da população. O batismo seria, assim, um atalho barato e viável para o poder divino: bastava um banho para limpar-se dos pecados – e bastava esse gesto para minar o monopólio dos sacerdotes sobre a salvação.

Foi isso que o ministério de Jesus fez: solapar de forma sistemática a hierarquia. Quase todas as suas alusões ao Reino de Deus deixam transparecer essa preocupação. Um reino que é das crianças não seria, na Antiguidade, propriamente um reino dos inocentes – e sim daqueles sem poder nem direito de opinião ou escolha. Numa tradução mais correta do grego original, o reino dos pobres viraria o reino dos indigentes, dos indesejados. Nada fala mais alto, entretanto, que a decisão de Jesus de confiar ao seu apóstolo Pedro, e não ao seu irmão Tiago, os rumos de sua Igreja. Num ambiente regrado pelo apadrinhamento, seria natural que os familiares de Jesus se beneficiassem mais de seus dons, sua fama e seu poder crescente. Jesus, porém, preferiu quebrar a espinha aos usos e costumes de seu tempo. Seu reino, de certa forma, não estava no futuro: nesses termos, era já muito presente.

Por mais valioso que seja conhecê-la, a dimensão política de Jesus, entretanto, em nada ajuda a compreender a sua natureza essencial – a divina. É nesse ponto, em que fé e ciência colidem, que começam as questões verdadeiramente insolúveis. A Ressurreição é a passagem mais desafiadora dos Evangelhos para um historiador secular: ela é a chave para o reconhecimento da divindade de Jesus, mas a que menos possibilidade oferece de se encaixar numa perspectiva científica. Francis Watson, professor de exegese do Novo Testamento na Universidade de Aberdeen, na Escócia, argumenta que o problema de não ser possível provar os milagres e a ressurreição de Jesus – nem nunca ter sido possível provar fenômenos semelhantes – não é, em si só, prova em contrário de que tais fatos tenham sucedido. A questão levantada por Francis não é apenas técnica, ou um jogo de palavras. Qualquer tentativa de contar a história de Jesus pondo de lado a confissão de que ele é o Cristo – enfim, o filho de Deus e o próprio Deus – seria equivocada, diz o professor: separar Jesus, a figura histórica, de Cristo, a figura divina, significa desprezar exatamente o fator que confere a ele sua importância absoluta e insuperável. Não importa se se pensa que Jesus é o filho que integra a Santíssima Trindade, que era um profeta como qualquer outro de seu tempo ou que era meramente um lunático que se acreditava o Messias – Jesus será sempre definido como sendo o Cristo ou o não-Cristo. Será sempre definido, em suma, por uma indagação. Assim foi durante sua vida, na Galiléia, quando seus próprios familiares duvidaram de sua origem divina, ou quando os aldeões que o viram expulsar os demônios do corpo de um homem o acusaram de ter esse poder por meio de Belzebu. E assim é hoje: quanto mais se tenta chegar ao Jesus "verdadeiro", mais fé e história se entrelaçam. E mais o mistério se aprofunda. Mistério cuja chave Jesus mesmo produziu, ao afirmar: "Meu reino não é deste mundo".


sábado, 30 de julho de 2011

John P. Meyer, E.P. Sanders, Paula Fredriksen, e os quadros mais diversos sobre o "Filho do Homem"

Saber quem foi Jesus, o que ele fez e qual o significado de sua passagem pelo mundo sempre foi uma espécie de obsessão das pessoas. Além do que está escrito sobre aquele que os cristãos consideram como o Salvador nas páginas da Bíblia, muitos estudiosos têm-se debruçado sobre os registros acerca do homem que viveu na Palestina do século I – alguém tão importante que foi ele mesmo que estabeleceu, com seu advento, essa contagem do tempo. A partir dos anos 1980, o interesse acadêmico sobre o Jesus histórico deu um salto. Na América, pesquisadores como Ben F. Meyer, E. P. Sanders, John Dominic Crossan, Marcus Borg, Paula Fredriksen, e N. T.Wright começaram a traçar quadros os mais diversos do chamado Filho de Deus. Alguns destes estudos pareciam bizarros; outros aproximavam-se um pouco mais da ortodoxia e dos evangelhos canônicos.

Mas a quê a expressão ‘Jesus histórico’ de fato se refere? Para início de conversa, Jesus – o rabi galileu que viveu, respirou, comeu, conversou e chamou discípulos, sendo ao fim de 33 anos crucificado – é um personagem cuja existência gera hoje pouca controvérsia. Mesmo fora do registro bíblico, já há evidências suficientes de sua trajetória: um homem pobre, nascido na Judeia sob a dominação romana, que exerceu ofícios manuais ao lado da família até iniciar seu trabalho de pregador itinerante, por volta dos trinta anos. Através de diversos estudos históricos, esse Jesus tem sido inserido em seu contexto judaico. Podemos chamar esse Jesus de o “Jesus judeu”. Já os quatro evangelistas e outros autores do Novo Testamento, que levam em conta o que está desvendados nas Escrituras, interpretam Jesus com o uso de termos com “Messias”, “Filho de Deus”, e “Filho do Homem”, entendendo-o como o agente da redenção de Deus. Podemos chara esse Jesus de o “Jesus canônico”. Outro aspecto precisa ser observado: a Igreja ampliou seu entendimento de Jesus, uma vez que o interpreta à luz de conceitos teológicos. Esse seria o “Jesus ortodoxo”, a segunda pessoa da Trindade.


Mas o Jesus histórico é alguém ou algo à parte. Ele é o Jesus que os estudiosos reconstruíram com base nos métodos históricos, tanto o Jesus canônico do Novo Testamento como o Jesus ortodoxo da teologia da Igreja. O Jesus histórico parece mais com o Jesus judeu do que com o ortodoxo ou o canônico. Fazer distinções entre estas visões é importante para entender o que acontece no cenário acadêmico. Em primeiro lugar, o Jesus histórico é o Jesus que os acadêmicos reconstruíram com base nos métodos. Visto que os estudiosos são diferentes uns dos outros, suas reconstruções também o são umas das outras. Os métodos também são distintos, o que diferencia ainda mais a reconstrução. A maior parte deles toma os evangelhos como pouco confiáveis – mesmo assim, não os abandonam, tentando ver o que eles dizem. Outros critérios foram desenvolvidos, criticados, rejeitados e modificados, mas todos têm isso em comum: estudiosos do Jesus histórico reconstruíram Jesus com base em seus métodos históricos para, então, determinar o que, nos evangelhos, deve ser crido.

O critério essencial usado, ainda que cheio de falhas, é chamado de dissimilaridade dupla. De acordo com ele, os únicos ensinos ou ações de Jesus que podem receber crédito são os que são dissimilares tanto para o judaísmo dos dias de Jesus quanto para seus primeiros seguidores. Um dos principais exemplos é sua forma característica de chamar Deus de Abba, expressão raramente encontrada no judaísmo ou cristianismo primitivo como referência a Deus e que significa “pai”, ou, ainda, “paizinho”. Em segundo lugar, a palavra reconstruir precisa receber mais atenção. A maioria dos estudiosos do Jesus histórico entende que os evangelhos excederam nas imagens que construíram de Jesus, e que a teologia trinitariana da Igreja maximiza tudo o que Jesus pensou acerca de si mesmo, e tudo no qual os evangelistas acreditavam. Estes estudiosos construíram um Jesus que é diferente daquele ensinado pela Igreja e pelos evangelhos.


Novo Jesus – Não há razão para fazer estudos sobre o Jesus histórico – provar quem ele realmente era – se os evangelhos estão corretos e se as crenças da Igreja são justificáveis. Há apenas duas razões para se engajar na busca do Jesus histórico: a primeira, ver se a Igreja o entendeu de forma correta; e a segunda, caso a igreja não o tenha feito, é a de achar um personagem que seja mais autêntico do que o que a Igreja apresenta. Isso leva à conclusão necessária de que os acadêmicos do Jesus histórico construíram, na verdade, um quinto evangelho. A reconstrução apresenta um Jesus que não é idêntico ao canônico nem ao ortodoxo. Ele é o Jesus reconstruído; isto é, um novo Jesus. E os acadêmicos realmente acreditam no Jesus por eles construído. Durante o que ficou conhecido como a “primeira busca” pelo Jesus histórico, no começo do século 20, Albert Schweitzer entendeu que Jesus era apocalíptico. Nas mais recentes busca, temos diversos perfis: o Jesus de Sander é um profeta escatológico; o de Crosan, um camponês mediterrâneo cínico e cheio de perspicácia; o de Borg é um gênio místico; já Wright o aponta como um profeta messiânico do fim do exílio, que acreditava ser Deus voltando a Sião.

O terceiro ponto, e que precisa ser reforçado nos dias de hoje, é de que os acadêmicos do Jesus histórico construíram um Jesus em contraste com as categorias que os evangelistas e a Igreja primitiva apresentam. Wright é o mais ortodoxo dos conhecidos estudiosos dessa área. Eles partem do princípio que os evangelhos exageraram, e que a Igreja absorveu o profeta galileu nas categorias da filosofia grega. A busca pelo Jesus histórico é uma tentativa de ir além da teologia e estabelecer a fé no Jesus que foi – é preciso dizer desta forma – muito mais do que o Jesus que gostaríamos que ele fosse.


Há quem pense se o que está por trás desse movimento de busca histórica não seja uma descrença, a priori, na ortodoxia, mais do que uma genuína busca histórica ou interesse pelo que aconteceu. As conclusões teológicas daqueles que buscam o Jesus histórico simplesmente correlacionam de forma muito forte com suas próprias predileções teológicas para sugerir o contrário. A pergunta que muitos de nós devemos fazer é a seguinte: podem a teologia, a cristologia ou, até mesmo, a fé, estar conectadas com as vicissitudes da busca histórica e de seus resultados? A academia espera que nós descubramos o Jesus verdadeiro. Um a um, quase todos fomos convencidos de que não importa o quanto tentemos: alcançar o Jesus não interpretado é praticamente impossível. Além disso, um Jesus descoberto é apenas a versão de um pesquisador. E o detalhe é que é incomum que pessoas, que não o próprio estudioso e alguns de seus seguidores, sejam realmente convencidas por suas descobertas.

O teólogo alemão Martin Kähler convenceu sua geração que fé em Jesus não poderia nem deveria estar baseada nas conclusões históricas sobre o que aconteceu ou não. Precisamos, então, nos perguntar: em qual Jesus devemos confiar? Será no dos evangelistas e apóstolos? Será no da Igreja – aquele dos credos? Ou no Jesus ortodoxo? Será na mais recente proposta de um historiador brilhante? Será em nosso próprio consenso baseado nas pesquisas modernas? Ou tudo deve ser somente balizado pela fé?

“Produzimos o que queremos” – Diante de tantos descaminhos, temos presenciado a morte dos últimos estudos sobre o Jesus histórico. Não completa, é verdade, porque alguns ainda estão ocupados tentando reconstruir Jesus para eles mesmos e para os que os ouvirem. Ainda assim, o entusiasmo se foi, e as propostas parecem-se cada vez mais com teses vagas do que com uma esperança de um verdadeiro encontro da história de Jesus. Dois estudiosos recentes leram o obituário dos estudos nessa área. James Dunn argumenta em suas obras que o mais longe que podemos chegar além dos evangelhos é compreender a figura de Jesus com base no que seus primeiros seguidores disseram. Isso é o máximo que podemos fazer. Esse é o Jesus que deu vida à fé cristã, e o Jesus que é digno de ser seguido. Na perspectiva de Dunn, o Jesus relembrado contém a perspectiva de seus discípulos – e além dela não podemos ir.

Dale Allison, um dos mais bem preparados acadêmico do Novo Testamento nos Estados Unidos, é menos sanguíneo e mais cínico que Dunn em seu recente livro. Depois de três décadas de trabalho nessa área, Allison esboça a variedade de percepções sobre o Jesus histórico e a suposta teoria moderna de que, se unirmos nossas mãos, chegaremos a conclusões firmes. Ele apresenta essa conclusão deprimente: “O progresso não abrangeu todos os assuntos, e seja qual for o consenso existente, ele permanecerá excessivamente chato”. Em uma única sentença, ele diz tudo: “Usamos nossos critérios para produzir o que queremos”. E ele admite isso em relação a um de seus próprios livros sobre Jesus: “Abri meus olhos para o óbvio: criei um Jesus à minha própria imagem. Talvez tenhamos transformado a sua biografia em nossa próprio autobiografia”, conclui.

Quando dois estudiosos desse porte, ambos altamente dedicados à busca do Jesus histórico por ângulos distintos, chegam a conclusão similar – a de que não chegaremos ao Jesus original por esses caminhos –, uma mensagem é transmitida. Podemos provar que Jesus morreu e que ele pensou em sua morte como uma expiação. Podemos estabelecer que a tumba estava vazia e que a ressurreição é a melhor explicação para tal fato. Contudo, algo que nossos métodos históricos não podem provar é que Jesus morreu por nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação.


Em um determinado ponto, métodos históricos encontram seus limites. Estudos acadêmicos sobre Jesus não podem nos levar a lugares nos quais o Espírito Santo nos leva. O homem curado por Jesus da cegueira sintetizou tudo magistralmente a dizer que não sabia quem era o homem que o curou; disse apenas: “Sei que outrora estava cego, e que agora posso ver”. De maneira análoga, os métodos históricos, a despeito de seu valor, não são capazes de nos fazer enxergar com clareza o Filho de Deus. A fé não pode ser completamente baseada no que a história é capaz de provar. A busca pelo verdadeiro Jesus, árdua e longa, tem provado exatamente isso.

A busca pelo Jesus Histórico é um empreendimento acadêmico do período moderno e deste nosso tempo que tenta apresentar um Jesus a partir do uso de instrumentos científicos da moderna pesquisa histórica. Desde o século XVIII, o cristianismo e a figura de Jesus Cristo – sua identidade e significado – tem sido desafiados pelas incursões desta busca.

Como a temática é atualíssima, apesar de suas origens serem seculares, resolvemos, a seguir, apresentar, sucintamente, um percurso historiográfico da busca pelo Jesus Histórico. O que é descrito logo a frente está dividido em três períodos chamados de antiga busca do Jesus Histórico, nova busca do Jesus Histórico e terceira busca do Jesus Histórico. Na sequência é destacada, através de uma pequena explanação, à chamada crítica à busca.

Sigamos nosso trajeto.
1. A Antiga Busca do Jesus Histórico (“Old Quest”)

A antiga busca pelo Jesus histórico começou em sua forma clássica com Herman Samuel Reimarus (1694-1768). Reimarus era docente de línguas orientais de Hamburgo e foi durante sua vida um pioneiro literário da religião da razão do deísmo inglês. Ele foi o primeiro a desenvolver uma imagem de Jesus diferente da do Cristo apresentado nos Evangelhos. Ele submeteu a Bíblia aos padrões da crítica racionalista. Raymond Brown (2004) diz que Reimarus via Jesus como um revolucionário que falhou em sua tentativa de estabelecer um reino messiânico na Terra, ao passo que o Cristo não passava de uma projeção fictícia daqueles que teriam roubado o corpo de Jesus e que proclamavam fraudulentamente a sua ressurreição.

A obra de Reimarus, An Apology for the Rational Worshipper of God não fora publicada. Porém, depois de sua morte, esse seu texto caiu nas mãos de Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) que a publicou sem dizer o nome do autor. No conteúdo da obra havia um forte ataque à historicidade da ressurreição de Jesus (MCGRATH, 2007).

Depois de Reimarus vieram outros estudiosos importantes como F. C. Baur (1792-1869), David Friedrich Strauss (1808-1874) e Johannes von Weiss (1863-1914).

As grandes contribuições da “Old Quest” foram:

*a diferenciação entre os sinóticos e João como fontes históricas;
*a escolha de Marcos como o mais antigo evangelho;
*o posicionamento de Jesus dentro do contexto escatológico da sua época.

Esse período encerrou-se no ano de 1953 quando o teólogo luterano Ernst Kasemann (1906-1998) proferiu uma palestra sobre o Jesus Histórico em outubro de 1953. É nesse momento que há a transição da Antiga Busca do Jesus Histórico para a Nova Busca.

2. A Nova Busca do Jesus Histórico (“New Question”)

Essa nova busca distingue-se da antiga. Ao passo que esta última trabalhava para desacreditar a imagem do Cristo do Novo Testamento, dado como uma figura mitológica, a primeira se preocupou em “linkar” a pregação de Jesus Cristo com a pregação dos primeiros cristãos sobre Jesus Cristo. Com isso, a Nova Busca Pelo Jesus Histórico consolidou a imagem neotestamentária. No entanto, é necessário entendermos que não é tudo o que dizem os textos neotestamentários sobre Jesus que não é mitológico. A questão para Kasemann é que existe sim uma relação entre o Jesus da História e o Cristo da Fé e isso é possível de ser constatado a partir do discernimento do que é o kerygma nas ações e na pregação de Jesus, o nazareno.


Kasemann identificou a ligação existente entre o Jesus histórico e o Cristo kerigmático na declaração de ambos da vinda do reino escatológico de Deus. Tanto na pregação de Jesus quanto no kerigma cristão primitivo, o tema da vinda do reino é de suma importância. (MCGRATH, 2007, p. 301)

Nessa nova busca o interesse no Jesus Histórico relaciona-se com a prédica escatológica de Jesus e a cristologia ensinada pela igreja.

A síntese do pensamento de Kasemann é a seguinte:

*Os sinópticos são documentos teológicos;
*Suas declarações teológicas são expressas dentro da forma histórica;
*Os autores dos sinópticos acreditavam ter acesso a informações históricas sobre Jesus;
*Há nos evangelhos sinópticos tanto a narrativa histórica como o kerygma.


Outros teólogos como Joachim Jeremias, Gerhard Ebeling, Gunter Bornkamm trataram do kerygma cristão primitivo a partir de posições distintas.

Superada a Nova Busca Pelo Jesus Histórico, entramos no período chamado de Terceira Busca.

3. Terceira Busca do Jesus Histórico (“Third Question”)

Alguns teóricos como o Dr. Alister Mcgrath, professor de Teologia Histórica na Oxford Univesity, afirmam que esse movimento é deficiente porque os estudiosos envolvidos com ele e suas respectivas obras não possuem elementos em comum em número suficiente para serem categorizados como Terceira Busca, ou seja, sua multiplicidade de hipóteses de trabalho depõe contra. No entanto, eles admitem que tal movimento tem recebido uma aceitação considerável e que o mesmo ainda receberá destaque nas discussões sobre esse assunto importante.

A “Third Question” iniciou-se nos anos 70 e perdura até os dias atuais. Suas principais metas são:
*Examinar fontes arqueológicas, históricas e textuais do primeiro século e aplicar os descobrimentos da sociologia e antropologia a estas fontes para tentar entender a Jesus;
*Enfatizar o judaísmo de Jesus e a necessidade de sua compreensão no contexto do primeiro século.

Alguns nomes de estudiosos de destaque desse movimento são: Burton L. Mack, Marcus L. Borg e John Dominic Crossan. Para esses teóricos – principalmente Crossan – o Jesus Cristo dos Evangelhos é um Jesus mítico. Destacamos o Dr. Crossan porque ele é o representante atual de mais notoriedade, nos meios acadêmicos, do chamado Jesus Seminar. Para ele Jesus era um homem normal que foi mitologizado e divinizado, posteriormente, pelos evangelistas. Ele diz: “Isso tudo diz respeito à mitologia grega e à romana, e o que eu posso fazer? Devo acreditar em todas essas histórias, ou devo dizer que todas elas são mentiras, exceto a nossa história cristã?”

Fazendo um percurso diferente dos estudiosos do Jesus Seminar, mas incluídos na chamada Terceira Busca, temos importantes estudiosos como Geza Vermes, E. P. Sanders, John Paul Meier, Raymond E. Brown, entre outros. As pesquisas sobre o Jesus histórico nesses últimos anos têm recebido diferentes enfoques: o Jesus mestre da sabedoria; o Jesus profeta do cumprimento das expectativas dos últimos tempos; estudos sobre o contexto histórico-social da Palestina do I séc. d.C. – a Galiléia; a guerra judaica; o movimento de Jesus; as influências helênicas no movimento de Jesus, etc.

A relação entre essas buscas é encontrada na crença dos estudiosos de que o Jesus Histórico, por definição, não é um ser sobrenatural. O que os evangelhos apresentam é o Cristo da Fé, um ser mítico. Usando de um tom provocativo, os teóricos do Jesus Seminar afirmam que observar essa distinção é a primeira coluna da sabedoria acadêmica.

4. A Crítica à Busca

Entre os anos de 1890 a 1910 A Crítica à Busca emergiu a partir do pensamento de importantes estudiosos como Albert Schweitzer (1875-1965), William Wrede (1859-1906) e Martin Kahler (1835-19120). Depois, temos o proeminente teólogo alemão Rudolf Bultmann (1884-1976) que considerava essa busca pelo Jesus Histórico um beco sem saída. Reveste-se de grande valor falarmos um pouco sobre Rudolf Bultmann e o seu afastamento da História.


Bultmann era cético quanto a possibilidade de alcançar o Jesus histórico por meio de métodos históricos. Ele também “estava convencido de que o erro destas tentativas anteriores (as buscas pelo Jesus histórico) estava intimamente conectado com suas pressuposições filosóficas, que as levaram a rejeitar a possibilidade de um evento salvador” (GONZALEZ, 2004, p. 450).

Para Bultmann:
"Jesus Cristo vem ao nosso encontro somente no kerigma, da mesma maneira como confrontou o próprio Paulo e o levou a tomar uma decisão. O kerigma não proclama verdades universais ou uma idéia eterna – seja ela uma idéia de Deus ou do redentor – mas um fato histórico… Portanto, o kerigma não é um veículo para idéias eternas nem o mediador de informações históricas; o fato de importância decisiva é este: o kerigma é o “que” de Cristo, seu “aqui e agora”, um “aqui e agora” que se torna presente no próprio discurso. (apud MCGRATH, 2007, p. 299)"

Bom, é preciso explicar algumas coisas. Primeiro: Bultmann considera como fato histórico aquilo que ocorre dentro da história humana. Aqui encontramos a presença do existencialismo do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) que fora colega de Bultmann na Universidade de Marburg.

Segundo Gilbert Durand, as idéias de Bultmann são típicas do círculo em que mergulha todo pensamento que busca um sentido enquanto se satisfaz em dar voltas lineares, prisioneiro da temporalidade histórica; em que a tradição passada remete à existência presente e vice-versa, indefinidamente. (1995, p. 233)

Segundo, a compreensão de Bultmann de que o kerygma não é mediador de informações históricas implica na admissão de que enxergar o que está por detrás do kerygma para reconstruir o Jesus histórico é um erro, pois esse procedimento leva ao não mais existente “Cristo segundo a carne” que em hipótese alguma é o Senhor, diferentemente do Jesus Cristo que é pregado. Dessa perspectiva bultmaniana, duas perguntas emergem:

*Como era possível ter certeza de que a cristologia estava fundamentada corretamente na pessoa e obra de Jesus Cristo?
*Como verificar a cristologia se a história de Jesus era irrelevante?

Em linhas gerais, pode-se dizer que a busca pelo Jesus Histórico foi, e é, até certo ponto, baseada no racionalismo, no naturalismo e criticismo. Dito isso, destacamos a seguinte crítica de Paul Tillich a essas tentativas de busca do Jesus histórico:
Os que nos falam sobre Jesus de Nazaré são os mesmos que nos falam sobre Jesus como o Cristo, ou seja, as pessoas que o receberam como o Cristo. Portanto, se tentarmos encontrar o Jesus real que está por trás da imagem de Jesus como o Cristo, é necessário separar criticamente os elementos que pertencem ao lado factual do evento e os elementos que pertencem à recepção. Ao fazer isso, esboça-se uma “Vida de Jesus” – e fizeram-se muitos desses esboços. Em muitos deles colaboraram a honestidade científica, a devoção amorosa e o interesse teológico. Em outros são visíveis o distanciamento crítico e inclusive a rejeição malévola. Mas nenhum deles pode reivindicar ser uma imagem provável em que tenha desembocado o tremendo esforço científico dedicado a esta tarefa durante 200 anos. No máximo, eles são resultados mais ou menos prováveis, incapazes de fornecer uma base para a aceitação ou para rejeição da fé cristã. (2005, p. 396)

Conclusão:
Terminando essa nossa curta jornada historiográfica, vale ressaltar uma conclusão de John P. Meier, professor da cadeira de Novo Testamento na Universidade Católica da América em Washington, D.C. sobre toda esta tentativa acadêmica de encontrar o Jesus Histórico. Em seu livro Um Judeu Marginal, repensando o Jesus Histórico, vol. 1, página 35, Meier diz:
"Não podemos conhecer o Jesus “real” através da pesquisa histórica [...] No entanto, podemos conhecer o “Jesus histórico” [...] o Jesus da história é uma abstração e constructo modernos [...] O Jesus histórico não é o Jesus real, e vice-versa [...] O Jesus histórico pode nos proporcionar fragmentos do indivíduo “real”, e nada mais. (1992)".




quinta-feira, 28 de julho de 2011

O Bispo John Selby Spong e as narrativas tardias da ressurreição de Cristo

Em seu último livro, “Por que o Cristianismo deve mudar ou morrer: um bispo fala com os crentes no exílio”, o Bispo Spong estabeleceu um programa claro para o futuro da teologia anglicana e da teologia cristã. Ele acredita que o Cristianismo morrerá, a não ser que sejam feitas mudanças radicais que redundem numa nova Reforma.

Se nós devemos reformular uma visão da futura teologia anglicana, como acredito que devemos, cabe a nós faze-lo, em diálogo com o Bispo Spong. O seu desafio merece ser levado a sério e não considerá-lo como disparates violentos de um bispo herege. As questões e os debates que ele coloca são inevitáveis, mas suas respostas são problemáticas para nós que temos feito esforços para combinar, numa síntese aceitável, o tratamento crítico destemido do Novo Testamento com uma adesão fiel à sua mensagem como ela é formulada no quérigma apostólico e resumida nos credos (em outras palavras, uma ortodoxia crítica).

A necessidade dessa abordagem dual foi impressa em mim pelas minhas sucessivas experiências nos estudos do Novo Testamento em Cambridge e em Tubinga, na Alemanha. Em Cambridge aprendi métodos críticos, em Tubinga mergulhei na Igreja da Alemanha e na sua resistência teologicamente fundamentada aos desafios do Socialismo Nacional, um desafio que pode ser enfrentado por uma adesão fiel à palavra de Deus testemunhada nas Santas Escrituras. Em lealdade a essa dupla inspiração que entro aqui no exame da chamada para a mudança feita pelo Bispo Spong.

Teísmo

O Bispo Spong argumenta que, se o Cristianismo deseja ter o futuro, devemos abandonar o que ele denomina de “teísmo”. Por essa afirmação ele não quer dizer que todos nós devamos ser “ateus”, mas devemos abandonar uma espécie particular de teísmo, a visão de Deus como “uma divindade personalista”, localizada num lugar externo, “lá em cima”. Tal Deus foi pensado como Deus que intervém no processo cósmico e na história humana. É o argumento do Bispo Spong de que a visão do mundo sucessiva e cumulativamente moldada por Copérnico, Galileu, Newton, Darwin, Freud e Einstein não podem possivelmente acomodar a visão tradicional da divindade. Em lugar do “teísmo” assim entendido, o Bispo Spong propõe que o substitua com a idéia tillichiana de Deus como “fundamento do Ser”.

Todavia, aqui se recomenda certo cuidado. A visão do mundo como um sistema fechado de causa e efeito não é quase tão seguro hoje como tem sido desde o Iluminismo. Há uma crescente abertura para a possibilidade de dimensões da realidade não suscetíveis à observação científica. Marcus Borg chama a atenção para isso, quando ele diz que “a visão do mundo que rejeita ou ignora o mundo do Espírito é não só relativa, mas está em processo de ser rejeitada. Não há nenhuma razão intelectual para supor que essa segunda ordem da realidade seja irreal e há muitas evidências experimentais para sugerir a realidade do Espírito.” Borg não está falando de um outro mundo lá em cima, mas de uma dimensão ou profundidade da realidade observável, que transcende à observação científica e que é perceptível somente a uma visão espiritual.

Muito do que o Bispo Spong trata como teísmo tradicional é denominado de “mitologia” por Rudolph Bultmann. Isso é verdade, por exemplo, com o conceito “Deus lá em cima” e “Deus que desce lá de cima”. Tal linguagem mitológica deve ser, certamente, “demitologizada”. Por essa operação, Bultmann quis dizer que essa linguagem não deve ser interpretada literalmente nem ser eliminada, mas antes interpretada existencialmente. Embora questionemos a adequação da interpretação existencial de Bultmann da mitologia bíblica, concordaríamos inteiramente que quando a Bíblia diz Deus está “lá em cima” e “está descendo”, não faríamos nem uma interpretação literal nem sua eliminação, porque essa linguagem estaria dizendo alguma coisa de muita importância sobre Deus. Ela está atentando uma experiência de Deus como uma realidade que transcende o nível ordinário da realidade. Os textos bíblicos tais como esses dão testemunho disso: “Assim diz o Alto e Sublime que vive para sempre, e cujo nome é santo: Habito num lugar alto e santo, mas habito também com o contrito e humilde de espírito, para dar novo ânimo ao espírito humilde...” (Is 57.15). A passagem fala no mundo do Espírito como a dimensão do ser de Deus. Ela se refere a uma outra dimensão da realidade não acessível à observação científica. Não fala na localização de Deus, mas da qualidade do ser de Deus.


A Bíblia fala por meio da linguagem mitológica sobre o “Deus que desce”, especialmente em um ponto crucial na história de Israel, o Êxodo: “De fato tenho visto a opressão sobre o meu povo no Egito, tenho escutado o seu clamor, por causa dos seus feitores, e sei quanto eles estão sofrendo. Por isso desci para livra-los das mãos dos egípcios e tira-los daqui para uma terra boa e vasta, onde manam leite e mel” (Ex 3.7-8).

Noutra vez, no retorno do Exílio: “Ah! Se rompesses os céus e descesses!” (64.1); no evento de Cristo: “Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima de todos os céus” (Ef 4.10), ou “Aquele que vem do Alto está acima de todos” (Jo 3.31).

A linguagem da “descida” é indispensável para a visão bíblica de Deus. Esta linguagem não deve ser tomada literalmente, mas ela fala da condescendência divina, o que Lutero denominou de Herablassung, a permissão divina de se humilhar. Nesses eventos cruciais da história da salvação, Deus se envolveu graciosamente com o sofrimento do seu povo. Rejeitando isso, rejeita-se o que a Bíblia quer dizer quando ela declara que, em última instância, Deus é amor. Certamente, o Bispo Spong não deseja negar isso.

Quanto à linguagem tillichiana de Deus como o fundamento do Ser, tal conceito é bom até certo ponto. Mas é precisamente a divindade transcendente – o Deus que está “acima de todos os céus”, o qual “desce” no êxodo e se revela no evento de Cristo – que é o fundamento de nosso Ser. É uma questão de isto e aquilo mantido em tensão paradoxal, e não de Deus só lá em cima ou Deus ou só Deus nas profundezas de nosso ser. Em síntese, o teísmo não deve ser abandonado, se devemos ser fiéis à mensagem bíblica, mas deve ser expandido para incluir tanto o “hiper-panteismo” e o “panteísmo” (Deus acima de todas as coisas e em todas as coisas).

Denominamos este Deus de Deus pessoal, não porque Deus é uma pessoa como nós, mas porque o Deus bíblico volta-se para as pessoas em sua Palavra. Por essa palavra, Deus nos chama numa relação de “eu e tu” com Deus. O conceito da Palavra de Deus, tão central através da Bíblia, nos proíbe negar a imagística da pessoa atribuída a Deus como o Bispo Spong negaria.

Porém pode esta alegação de que Deus interferiu na história do seu povo, Israel, ser sustentada, diante de uma visão do mundo como um sistema fechado de causa e efeito? Alguns argumentam hoje em dia que a concepção moderna do mundo foi modificada pela descoberta de um fator de indeterminação no processo cósmico e alguns apologistas cristãos não se têm mostrado vagarosos em explorar essa revisão. Entretanto, essa indeterminação parece estar confinada ao nível das partículas subatômicas e devemos fazer uso disso com cautela antes de aplicar a possibilidade de indeterminação aos eventos históricos. Seria mais proveitoso ao teólogo apelar a dois níveis de realidade já mencionados. Em nível de observação histórica-crítica, todos os eventos históricos são, em princípio, explicáveis em termos de causa e efeito. Isto é verdade mesmo a respeito dos eventos bíblicos centrais. Porém esses eventos podem ser vistos de uma perspectiva diferente, num nível diferente. Os grandes eventos bíblicos são acompanhados de declarações proféticas. Moisés afirma ser o Êxodo uma intervenção de Deus; o deutero-Isaias afirma que o retorno é um ato de Deus e os apóstolos dão testemunho de Jesus Cristo como ato redentor de Deus. Em cada caso, a Palavra é proclamada e recebida em fé ou rejeitada em desconfiança. É a Palavra e a fé que possibilitam à teologia cristã falar dos atos de Deus, da intervenção divina na história, nos eventos que, ao nível ordinário, são entendidos em termos de causa e efeito.

Pecado humano e a Lei

Está correto o Bispo Spong ao rejeitar como um todo o conceito da condição humana pecaminosa, que a teologia tradicional tem denominado de “pecado original”? É verdade como argumenta o bispo, que a nossa visão da conduta humana é muito diferente do que a de cinqüenta anos atrás, para não dizer nada sobre o Novo Testamento? Entendemos muito mais sobre a conduta humana desde Marx, Freud e Jung, entretanto os seres humanos ainda exploram e matam uns aos outros.

Essas considerações trazem questões sobre a Lei. Naturalmente, a estória de Moisés, que sobe à montanha para receber o Decálogo nas tábuas de pedra é um mito, como o bispo reconhece corretamente. Como todos os grandes mitos bíblicos, este expressa uma verdade importante. Os seres humanos têm, geralmente, alguma espécie do senso do certo e errado. Eles sentem, no geral, estar debaixo do que Kant denominou de “imperativo categórico”. Esse senso do certo e errado foi moldado pela experiência de Deus por parte de Israel. Eles reconheciam ser responsáveis a Yahweh e que tinham de prestar contas de sua conduta. Eles compreenderam que o senso deles sobre o certo e o errado não era sua imaginação. Naturalmente, suas formulações dos Mandamentos foram culturalmente condicionadas, como o bispo bem ressalta. Isso foi verdade com respeito ao mandamento que ordena a observação do sábado. Também, é verdade que a proibição do adultério tinha muito mais a ver com o direito da propriedade do que com a moralidade sexual. Porém devemos interpretar os Dez Mandamentos (ou, pelo menos, a segunda tábua) nos termos da radicalização que Jesus fez deles no Sermão do Monte, e nos termos do mandamento duplo do amor. Mesmo o quarto (ou terceiro) mandamento não é inteiramente irrelevante: o sábado encontra sua realização escatológica na vinda do Reino de Deus e celebramos a vinda do Reino e nela participamos na observância semanal do Dia do Senhor. Por conseguinte, para os cristãos o domingo não é o sábado, mas sua realização escatológica.

Há uma outra razão para insistir na origem divina do imperativo moral: o pecado é visto como pecado só à luz da exigência divina. Paulo percebeu isso quando se referiu à lei como convocação para o arrependimento (Rm 7.7-25). Só se for a transgressão de um imperativo divino será exposta como pecado, isto é, rebelião contra Deus e perversão de nossa relação com Deus. Até que isso aconteça, não será percebida a necessidade da libertação que vem de Deus. É em resposta a essa situação que o ato redentor em Jesus Cristo aconteceu. Para isso voltemos a nossa atenção.

Evento de Cristo

Podemos concordar com o Bispo Spong que partes da estória de Jesus nos evangelhos não devem ser tomadas literalmente. Isto é verdadeiro, especialmente, com respeito às narrativas da infância e às narrativas da ressurreição.

Tenho argumentado alhures que as estórias de nascimento em Mateus e Lucas são essencialmente expressões narrativas de Cristologia e que a crença cristã significa a aceitação da cristologia que elas expressam. O bispo está no caminho certo quando ele as trata como “midrash”, embora midrash – que, no geral, é entendido como interpretação expandida de um texto do Antigo Testamento – provavelmente não seja um termo técnico correto nesta conexão. Talvez as estórias do nascimento contenham um pouco mais de história factual do que o bispo está pronto a admitir. Certos pontos de concordância entre Mateus e Lucas esclarecem que alguma coisa das tradições factuais entesouradas nas estórias são de origem pré-evangelho e podem, de fato, ser históricas. Tais itens incluem os nomes de Maria e José, a alegação de que José é de origem davídica e a datação do nascimento de Jesus pelo fim do período do reinado de Herodes e, talvez, o curioso timing da concepção e a localização do nascimento em Belém. Ao ler essas estórias, devemos, todavia, ouvir a proclamação que elas entesouram – que Jesus Cristo é a intervenção de Deus, cumprimento da esperança da restauração de Israel.

O Bispo John Spong tem alergia em alto grau para com a “teologia do sangue”, isto é, a interpretação da morte de Jesus como sacrifício. (É irônico que esteja enfastiado com este tópico, considerando que este século pode ser o mais sanguinolento da história humana!) Podemos concordar com ele que a linguagem do sacrifício que ocorre no culto não tem sentido na cultura contemporânea. Entretanto os seguintes pontos devem ser considerados:

1. O sacrifício no culto se supre de apenas uma de várias imagens com que o Novo Testamento apresenta o sentido da morte de Cristo. Para Paulo, essa imagem tem apenas um papel menor e nas citações das tradicionais fórmulas de hinos outras importantes imagens são tomadas das relações pessoais e internacionais (reconciliação), tribunal (justificação) e campo de batalha (vitória sobre os poderes cósmicos do mal).

2. A Cruz é central para a mensagem cristã, o coração do ato de Deus em Jesus Cristo. Os teólogos não devem abandoná-la como incompreensível, mas devem descobrir uma imagística adequada para a sua compreensão contemporânea.

3. “Sangue” no pensamento hebraico significa, não simplesmente uma realidade física, mas a própria vida, especialmente, a vida entregue à morte.

4. A idéia do amor doador, derramado até a morte, não é certamente estranha para a nossa cultura ou para qualquer outra cultura. Podemos apreciar o sentido paulino quando ele se refere a Cristo, que “me amou e deu a si mesmo por mim” (Gl 2.20).

Estórias (narrativas) da Páscoa

A proclamação da Páscoa resumida em 1Coríntios 15.3-8 é, geralmente, reconhecida pelos estudiosos como sendo pré-paulina e, provavelmente, seja uma tradição muito antiga. As pessoas constantes da lista nessa formulação tiveram experiências visionárias que podem ser suscetíveis à explicação psicológica, num certo nível. Entretanto, no nível da proclamação e da fé, o Novo Testamento afirma que elas são encontros de revelação. Por meio dessas revelações os receptores vieram a crer que Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos e o exaltou ao modo transcendente de ser Deus. As narrativas de aparição no fim dos evangelhos são, no entanto, tardias. Em analogia com as estórias de nascimento, elas são expressões narrativas da mensagem da Páscoa entesouradas na tradição mais antiga. Elas põem ao público o caráter revelador das aparições e suas implicações: a inauguração da quérigma, a fundação da Igreja e sua missão e a origem do batismo cristão e alguns aspectos da eucaristia.

Muito mais está em debate a estória do túmulo vazio. Muitos estudiosos concordariam com o Bispo Spong e, na esteira de R.Bultmann, a abandonam como uma “lenda tardia”. Eles podem estar certos. Todavia tenho dito alhures que há um núcleo histórico da estória, a partir do qual a “lenda posterior” se desenvolveu. Este é o fato de que Maria Madalena, talvez, com outras mulheres, descobriram o túmulo, no qual Jesus foi sepultado, inexplicavelmente vazio. Como todos os outros fatos históricos é suscetível de explicações naturais e um certo número dessas possibilidades é mencionado ou sugerido nos evangelhos. Por exemplo, Marcos se esforça em ressaltar que as mulheres anotaram o local do túmulo na tarde da Sexta-feira, portanto, elas foram ao túmulo errado na manhã da Páscoa. Mateus fala no rumor de que os discípulos roubaram o corpo. João sugere que alguma outra pessoa (um jardineiro, por exemplo) removeu o corpo. Não há dúvida que há outras explicações naturais possíveis, mas as narrativas dos sinóticos oferecem expedientes literários de um anjo que faz a interpretação. Aqui aparece a comunidade da fé propiciando uma categoria de interpretação da revelação a um fato histórico. Um outro argumento mencionado, freqüentemente, contra a historicidade do túmulo vazio é sua ausência no quérigma pré-paulino de 1 Coríntios 15.3-8, e no debate subseqüente de Paulo nesse capítulo. Entretanto, é não só defensável que a seqüência “foi sepultado – foi ressuscitado” implica na inversão do sepultamento, porém, mais importante é o argumento subseqüente de Paulo de que a ressurreição dos fiéis implica numa ressurreição do corpo. A ressurreição de Jesus e a ressurreição geral dos fiéis envolvem a transformação do corpo. Naturalmente, isso não significa – como se insiste freqüentemente hoje em dia – a ressuscitação do cadáver, mas a transformação do físico. A tradição do túmulo vazio é um lembrete de que o cristão deve abraçar a glorificação da matérias do cosmos.

Ascensão

A ascensão é contada apenas duas vezes no Novo Testamento e só nos escritos de Lucas 24.50-51 (texto mais longo) e Atos 1.6-11. A segunda versão é claramente o que o Bispo Spong chamaria de midrash baseada numa estória semelhante acerca de Elias em 2 Reis 2.1-12. Ela coloca na forma de estória uma crença que foi, geralmente, mantida na Igreja primitiva, isto é, que – sendo ressuscitado dentre os mortos – é agora exaltado ao modo transcendente do ser de Deus. O bispo, na minha opinião, está muito certo em insistir que a estória não deve ser tomada literalmente. Porém não deve ser eliminada a verdade que ela enuncia. A “ascensão” é uma linguagem mitológica para a verdade-fé essencial de que Jesus é Senhor, removido das restrições do espaço e tempo e constantemente acessível e presente na Palavra e sacramento.

Parusia

Do mesmo modo, a parusia não deve ser considera como evento literal, no qual Cristo desce com seus anjos sobre nuvens do céu no fim da história. É uma expressão simbólica do que Teilhard de Chardin denominou de “ponto ômega”, o alvo da história humana e do processo cósmico. Mais uma vez, o Bispo Spong é correto em insistir que esse evento não pode ser tomado literalmente. Entretanto, mais uma vez, deve ser interpretado e não eliminado.

Jesus como pessoa de Espírito


O bispo tomou de Marcus Borg a descrição de Jesus de Nazaré como “pessoa do Espírito”. Esta idéia tem sua atração, certamente. Jesus pode ser apresentado inteligivelmente ao mundo contemporâneo como uma figura de uma classe de gente que teve uma experiência fora do comum daquelas dimensões elevadas da realidade, do sagrado, do mundo do Espírito. Porém essa compreensão não consegue captar o que é único sobre Jesus. É como a descrição dele como mestre e profeta, o que é verdade.

É interessante que, em apoio a essa visão sobre Jesus como pessoa do Espírito, Marcus Borg cita a versão de Lucas do discurso inaugural de Jesus na sinagoga de Nazaré, (Lc 4.18-19), no qual Jesus menciona Isaías 61. Tão impressionado, por ser tão oportuna essa citação para a situação, Borg está tentado a aceitar a sua autenticidade, a despeito de ser uma expansão de Marcos 6.1 por parte de Lucas e, portanto, provavelmente seja mais redacional, (isto é, aditamento editorial). Seja como for, há outras passagens para apoiar a noção de que Jesus é a figura plena de Espírito, por exemplo, Marcos 3.28-29; Lucas 7.22, que ressoam Isaias 61. Há passagens cuja autenticidade está menos aberta à dúvida do que a versão de Lucas do sermão em Nazaré. Por conseguinte, podemos concordar que Jesus entendeu a si mesmo como estando habilitado para a sua missão pelo Espírito e neste contexto, há algo mais preciso: o poder escatológico de Deus que vem de um modo único sobre seu único agente escatológico. Aqui, na interpretação que Jesus faz de si mesmo, encontramos a gênese pré-Pascal da cristologia pós-pascal, pós-ressurreição.

Conclusão

A teologia anglicana tem sempre se esforçado em ser fiel ao quérigma e ao credo, e aberta aos novos conhecimentos. Alcançar tal síntese é uma tarefa árdua e um constante desafio. É sempre mais fácil aderir rigidamente ao sentido literal da Bíblia e rejeitar qualquer novo conhecimento. É igualmente mais fácil se capitular sem reserva ao pensamento contemporâneo e comprometer a verdade do evangelho. Porém, desde a publicação de Lux Mundi, o anglicanismo tem demonstrado a preferência por “isto e aquilo”, ao invés de “ou isto ou aquilo” – tanto a fidelidade para com a revelação quanto para com a abertura para novas descobertas da verdade. Continuar nesse caminho será o desafio para a teologia anglicana no terceiro milênio.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

De pregador itinerante a Filho de Deus

O general romano Hermógenes estava estacionado com seus soldados em frente aos muros de Constantinopla, então a capital do império. Sentia-se preocupado. Fora incumbido pessoalmente pelo imperador Constâncio de prender um líder rebelde local, mas encontrara a cidade tomada por lutas de rua e parcialmente em chamas. Hermógenes decidiu pernoitar fora de Constantinopla para preparar seus próximos movimentos. Durante a noite, porém, a casa em que dormia foi descoberta por populares. Eles a incendiaram e arrastaram o militar para as ruas, onde foi surrado até morrer.

A morte de Hermógenes, ocorrida em 342, mostra o grau de enfrentamento e divisão que varreu o Império Romano durante o ciclo que entrou para a história como a controvérsia ariana. O que começou como um erudito debate teológico sobre Jesus se transformou numa questão de estado que durou cerca de 70 anos, rachou a sociedade da época e quase a arrastou para a guerra civil. O conflito só terminou quando um dos dois lados conseguiu empurrar o outro para a ilegalidade e a lata de lixo da história. A vitória teve um alcance que extrapolou, em muito, o próprio Império Romano. Pois foi durante aquele redemoinho histórico que se estabeleceu, na Igreja antiga, o dogma da identidade entre o carpinteiro Jesus de Nazaré e o Deus a quem ele chamava de Pai.

A controvérsia ariana é um drama, cheio de conspiração e de viradas inesperadas (veja arte ao longo do texto). Mas suas origens estão, na verdade, na pluralidade de pensamento que caracterizou o início do cristianismo, quatro séculos antes.

Após a morte de Jesus, seus seguidores espalharam-se pelo mundo. As primeiras comunidades cristãs surgiriam em cidades da Palestina, da Síria, da Ásia menor, da Grécia e até em Roma. "Devido à própria diversidade geográfica, esse grupos entraram em contato com diferentes idéias religiosas já existentes: alguns sofreram influências do judaísmo, outros do mundo grego".

Na segunda metade do século 1, algumas comunidades escreveram suas memórias da vida e dos ensinos de Jesus, criando os primeiros evangelhos. Os evangelhos atribuídos a Marcos, Mateus, Lucas e João serão depois considerados inspirados, e incorporados à Bíblia, enquanto outros, como o de Tomé, serão rejeitados. Neles já se refletem as diferenças entre as comunidades. "No evangelho de Marcos a narrativa só começa quando Jesus é reconhecido como filho de Deus, no batismo. Um outro grupo, porém, vai descrever sua infância, para afirmar que ele já era especial desde o nascimento. Não é que um texto queira negar o outro, mas sim ir além".

Ele conta que entre as idéias dos primeiros seguidores de Jesus estava a de que ele seria um profeta e libertador escatológico. Ou um enviado de Deus e, portanto, seu filho. "As pessoas exploravam diferentes maneiras de compreendê-lo", diz a americana Elaine Pagels, professora da Universidade Princeton, especialista no cristianismo primitivo e autora de "O Evangelho Desconhecido de Tomé".

Pagels diz que Marcos, Mateus e Lucas consideravam Jesus um ser humano com uma missão especial. "Eles o vêem como um messias, ou um rei enviado por Deus. Mas o rei Davi fora chamado de messias também. Só as cartas de Paulo e o evangelho de João é que falam diretamente sobre a divindade de Jesus", afirma.

Como alguém podia ser um cristão devoto e pensar que Jesus não é Deus? Uma possibilidade vem se revelando por meio da pesquisa dos manuscritos do Mar Morto, descobertos em 1947. No livro "Rei e Messias", o estudioso inglês Cristopher Rowland, de Oxford, explica que muitos viam Jesus como um "mediador angélico". Para esses cristãos Jesus era "aquele que, como o anjo de Deus no Antigo Testamento, foi enviado para revelar e cumprir a vontade de Deus, que está no céu".

O debate sobre a Bíblia

A disputa entre as diferentes visões sobre Jesus se refletiu também na discussão sobre a formação do livro sagrado dos cristãos
• 30 d.C.

Crucificação de Jesus

• Década de 50

Escritos do apóstolo Paulo

• 50-70

Escrita do evangelho de Tomé

• 70-90

Escrita dos evangelhos das comunidades de Marcos, Mateus e Lucas

• 90-100

Escrita do evangelho da comunidade de João

• Século 2

O número de evangelhos escritos por diferentes comunidades cristãs chega às dezenas. Irineu, bispo de Lião, denuncia boa parte desses grupos e seus textos como heréticos

• 144

Marcião, importante líder cristão, propõe um cânone bíblico composto por apenas um evangelho e as cartas de Paulo. Ele é denunciado como herege

• 170

Taciano escreve uma versão condensada dos evangelhos, que é recusada

• Século 3

Intenso debate teológico sobre a figura de Jesus

• 318

Início da controvérsia ariana

• 325

Reunidos no concílio de Nicéia, bispos escolhem uma fórmula que é contrária ao arianismo

• 367

Em seu esforço para combater o arianismo, o bispo Atanásio faz a primeira lista dos textos que compõem o novo testamento

• 381

Concílio de Constantinopla, convocado pelo imperador Teodoro, bane os bispos arianos

• 382

Concílio em Roma confirma a lista de Atanásio

Outros acreditavam que Jesus tivesse se tornado angelical ao ser elevado aos céus. Paulo Nogueira explica que "na tradição apocalíptica judaica, quando um homem subia aos céus, tinha que se transformar em anjo ou seria fulminado". Mas o caso de Jesus é diferente. "Ele seria maior do que os anjos, pois sobe aos céus para morar com Deus e governar o universo com ele, tornando-se um vice-regente ", diz.

E a diversidade de pontos de vista sobre Jesus só aumentaria com o tempo. A região do Mediterrâneo Oriental era um cadinho de povos e idéias. A cultura mais influente era a grega, com sua tradição de racionalismo e filosofia. À medida que o cristianismo penetrava nesse mundo, o encontro entre o pensamento grego e as escrituras da nova religião dava origem a formas mais sofisticadas de teologia cristã. "As discussões especulativas, que eram próprias das escolas filosóficas, foram transferidas para a teologia cristã". As escolas de teologia de certa forma foram sucessoras das academias filosóficas".

No início do século 4, as cidades de Antioquia e de Alexandria haviam se firmado como os dois grandes centros teológicos da cristandade, mas com diferentes tradições intelectuais. Em Antioquia era forte a influência aristotélica, e privilegiava-se uma leitura mais literal da Bíblia. Em Alexandria predominava uma releitura de Platão. E tendia-se a interpretar os textos bíblicos como alegorias.

A polêmica ariana teve início em 312 quando Ário, um popular padre de Alexandria, começou a pregar que Jesus não era igual a Deus, mas sim criado por ele e subordinado a ele. Alexandre, o bispo de Alexandria, considerou essa posição herética e em 318 puniu-o com o exílio. Mas o padre não era propriamente o autor de tais idéias; ele as absorvera em parte durante seus anos como estudante de teologia em Antioquia. E de maneira geral, a doutrina da subordinação de Jesus ao Pai era uma crença forte na parte oriental do Império Romano. "Não estava claro que a doutrina de subordinação fosse herética", explica Richard Rubenstein, autor de "Quando Jesus se Tornou Deus", o livro que inspirou esta reportagem. "Esse foi um dos fatores que fez com que a luta durasse tanto."

Ário partiu para a cidade de Nicomédia para receber o apoio de Eusébio, um antigo colega de estudos em Antioquia que se tornara bispo influente da igreja oriental. Começava a disputa entre arianos e antiarianos.

Uma divisão na Igreja era tudo o que o então imperador Constantino não queria. Ao contrário, seu objetivo era restaurar os dias de paz e grandeza do império, que se ressentia dos momentos difíceis do século anterior.

No início dos anos 220, tribos germânicas e soldados persas haviam invadido as fronteiras da Europa e da Ásia, e imposto aos legionários derrotas sem precedentes. Para sustentar o exército romano, os impostos foram duplicados sucessivas vezes, o preço dos alimentos subiu e a inflação explodiu. Em 70 anos, 17 generais diferentes tomaram o poder. O povo era impelido em massa para a escravidão e o banditismo assolava o império. Por volta de 290, porém, a crise parecia superada, ou superável. O imperador Diocleciano se propõe a trazer de volta a grandeza de Roma, e decreta a partir de 303 uma perseguição ampla, mas malsucedida, aos cristãos.

Diocleciano morre e em 312 o poder vai parar nas mãos de Constantino. Mesmo sem se batizar, Constantino é um cristão convicto. Cessa as perseguições, restitui à Igreja os bens confiscados, e abre a ela os cofres públicos. Constantino queria transformar o cristianismo numa ideologia oficial, capaz de trazer unidade a um império marcado pelo medo da dissolução e pelas diferenças regionais, especialmente entre a porção ocidental, que falava latim, e a oriental, que falava grego.

Buscando conciliação, ele convocou em 325 um concílio de bispos na cidade de Nicéia, o qual presidiu pessoalmente. Os bispos aprovaram uma fórmula conhecida como credo de Nicéia, que afirmava explicitamente que Jesus e Deus compartilhavam a "mesma essência". Foi uma derrota dos arianos.

Após o concílio, o bispo Eusébio de Nicomédia caiu nas graças de Constantino, que também se aproximou de Ário. As idéias de Ário foram declaradas corretas em concílios posteriores, e ele morreu bem no dia em que seria formalmente reintegrado à Igreja por ordem expressa do imperador. Sua morte não terminou o conflito, pois suas idéias eram apoiadas pela maior parte dos bispos da região de fala grega do império, enquanto seus adversários (o bispo Alexandre e seu discípulo e sucessor, Atanásio) tinham o apoio da parte latina da Igreja.

Rubenstein explica que a divisão era um reflexo das diferenças culturais. "A igreja do Oriente ainda se via, em alguma medida, como uma continuação do judaísmo e da cultura grega. Já a visão do grupo niceno era mais radical, e defendia uma ruptura com as heranças grega e judaica."

Na tela, um homem de muitas faces

Durante o século 20 o cinema mostrou várias versões sobre a personalidade do carpinteiro de Nazaré. Inicialmente com uma reverência que parecia beirar o temor. "Nos primeiros filmes Jesus era mostrado só de longe, não se via seu rosto", explica o professor de literatura Antônio Carlos Fester, que dá palestras em que analisa as diferentes formas como Cristo foi retratado na telona. "Isso só acontece, no cinema americano, com o 'Rei dos Reis', em 1927.

"Ex-membro da comissão de justiça e paz de São Paulo - sobre a qual está lançando um livro -, Fester é um católico cinéfilo, e criou, em meio a sua coleção de centenas de DVDs, uma sessão com dúzias de filmes onde Cristo é retratado como personagem principal ou coadjuvante. A partir da coleção, conseguiu detectar alguns padrões. "Existe um Jesus no cinema que é uma figura convencional, quase acadêmica." É o caso de filmes como o "Jesus de Nazaré", de Franco Zefirelli. "Os padres gostam muito desse filme porque é muito completo do ponto de vista biográfico. Embora seja preciso lembrar que os evangelhos não foram escritos como biografias", ressalta. Nestas obras é comum vê-lo como um homem de gestos pausados, bastante sério e com alguma pompa. Ao mesmo tempo há bastante ênfase nos milagres, recriados de forma impactante. É como se a parte divina do personagem fosse a sua totalidade.

Com o tempo, surgiu um Jesus mais pessoal. Em "A Maior História de Todos os Tempos", de George Stevens (onde o papel fica a cargo de Max von Sidow), ressalta-se a sua identidade como judeu praticante. Em "O Evangelho Segundo São Mateus", de Pasolini (que foi elogiado pelo Vaticano), mostra-se um cristo atuante, confrontando as autoridades temporais e religiosas da sua época. "A Última Tentação de Cristo", de Martin Scorsese, mostra uma progressiva descoberta de sua tarefa messiânica, intermeada com sentimentos de paixão amorosa, medo, dúvida. "Essa linha de filmes causa estranhamento e faz pensar sobre quem foi esse homem e qual sua mensagem", diz.

Essas diferenças sobressaíam-se na maneira como viam Jesus. "Os arianos tinham uma visão mais otimista da natureza humana, e viam Jesus como um exemplo moral. Tendiam a ressaltar seus aspectos de Filho, que o mostravam mais como um irmão mais velho do que uma figura paterna." Já os nicenos eram mais pessimistas quanto ao caráter pecador da humanidade, e consideravam que só um Jesus que estivesse no mesmo nível de Deus poderia vencer o pecado e a morte. Também viam a Igreja como o elemento mais importante de salvação, uma instituição que deveria resistir até mesmo ao fim do Império Romano - o que acabou acontecendo.

Por duas vezes, durante a controvérsia, o poder imperial esteve nas mãos dos arianos (um deles o Constâncio que enviou seu general Hermógenes para morrer nas mãos do povo de Constantinopla). Mas o bispo Atanásio de Alexandria revelou-se um adversário à altura. Durante quatro décadas, atazanou sem parar seus inimigos, recorrendo até mesmo à violência. Morreu em 373, pouco antes de a maré virar a seu favor. Em 378, as legiões romanas, sob o comando do imperador ariano Valente, foram arrasadas pelos godos na batalha de Adrianópolis. O império, mais uma vez, estava no fundo do poço. Ambrósio, bispo antiariano de Milão, fez um comentário severo: "Esse é o julgamento de Deus sobre os arianos". Teodósio I, o sucessor de Valente, conseguiu afastar por algum tempo o perigo das invasões . Durante uma viagem à Itália, aproximou-se dos bispos da igreja latina, e em fevereiro de 380 publicou um edito que promulgava a ortodoxia nicena como lei. A seguir, proibiu que os arianos celebrassem cultos em qualquer igreja e removeu-os dos bispados mais importantes.

Teodósio convocou um concílio em Constantinopla, em 381, que reafirmou o credo niceno, com algumas variações. Por fim veio a ordem para queimar os documentos arianos, cuja posse era crime mortal. "Depois de 70 anos de lutas internas que culminaram com o desastre de Adrianópolis, Teodósio apareceu num estágio histórico semelhante a Napoleão ou Stalin: uma figura autoritária cuja missão era consolidar a revolução cristã, preservar e adaptar a religião às realidades sociais existentes e, ao mesmo tempo, incorporá-la à estrutura do poder governamental", escreve Rubenstein.

Mas não foi o fim dos debates sobre a natureza de Cristo. No século 5 começou a impor-se nas igrejas da Síria Ocidental, Armênia, Egito e Etiópia a corrente monofisista, que privilegiava seu aspecto divino. No Ocidente subsistiu uma visão que afirmava a plena humanidade de Jesus. Mas sem torná-lo menos divino, pois o concílio de Constantinopla afirmou a crença num Deus trinitário, composto de três pessoas que partilhavam uma só substância divina. E Jesus, identificado com a segunda pessoa da trindade, foi reconhecido como Deus encarnado.

1 - Em Alexandria, o padre Ário afirma em seus sermões que Jesus é subordinado a Deus, e não o próprio Deus. Bom pregador e poeta, Ário torna-se uma figura popular.
2 - Alexandre, o bispo de Alexandria, convoca Ário para explicar suas idéias, as quais julga incorretas. Ele o excomunga e bane de Alexandria.
3 - Ário foge para Antioquia onde o bispo local, Eusébio, é seu amigo e figura poderosa na região oriental do império. Eusébio convoca um concílio, uma reunião de bispos para debater a doutrina, o qual conclui que as idéias de Ário não são heréticas.
4 - Preocupado com a divisão entre adeptos e adversários de Ário, o imperador Constantino convoca um concílio na cidade de Nicéia. Alexandre comparece levando seu pupilo Atanásio, que será o grande adversário dos arianos. O líder dos arianos é Eusébio. Os participantes criam um credo que condena indiretamente as idéias arianas. Ário se recusa a validar o credo e é expulso. Eusébio pouco depois será exilado.
5 - Numa reviravolta, Constantino chama Eusébio de volta do exílio e o nomeia seu conselheiro particular. Sob o patrocínio de Eusébio é convocado um novo concílio que considera as idéias de Ário corretas. Constantino exige que o bispo Alexandre readmita Ário a sua igreja em Alexandria.
6 - Alexandre se recusa terminantemente a readmitir Ário e morre pouco depois. Atanásio se torna bispo de Alexandria. Ele organiza uma resistência por vezes violenta contra os partidários de Ário.
7 - O imperador funda uma nova capital, Constantinopla. Atanásio é furiosamente perseguido e acusado de organizar o espancamento de cristãos arianos. Ele não nega as acusações, mas vai até Constantinopla falar com o imperador, a quem consegue impressionar favoravelmente.
8 - Ário escreve a Constantino reclamando que ainda não foi reintegrado à sua igreja. Constantino se sente ofendido pelo tom da carta e responde chamando-o de inimigo da religião. Ário vai a Constantinopla e se reaproxima de Constantino, que se dispõe a ajudá-lo diretamente a voltar para Alexandria.
9 - Os arianos organizam um concílio na cidade de Tiro, que condena Atanásio. Mas ele foge do Egito e é exonerado de seu posto e excomungado.
10 - Num concílio em Constantinopla, Ário apresenta sua própria versão do credo que, embora diferente do credo aprovado em Nicena, é julgado ortodoxo. O concílio ordena que ele receba a comunhão na principal igreja de Constantinopla, como forma de abrir o caminho à sua volta para Alexandria. Mas ele morre subitamente poucas horas antes da missa. Constantino também morre e o império é dividido entre seus filhos. Constante, que defende os antiarianos, fica com a Itália, e Constâncio, que protegerá os arianos, com a parte oriental do império.
11 - Ocorrem lutas violentas entre adeptos das duas correntes por todo o Mediterrâneo oriental. Tropas do exército desembarcam em Alexandria para prender Atanásio, mas ele foge para Roma. Eusébio, no auge do poder, se torna bispo de Constantinopla.
12 - Eusébio morre. Os adeptos de Atanásio tentam entronizar como novo bispo um dos seus, Paulo. Isso gera lutas violentas em Constantinopla, inclusive incêndios. Constâncio envia um general para prender Paulo, mas o militar morre espancado por uma multidão. As metades oriental e ocidental do império estão cindidas. Constante ameaça Constâncio com o uso da força para defender Atanásio. Risco de uma guerra civil entre Constante e seu irmão.
13 - Constâncio se torna o único líder do império e vê os adeptos de Atanásio como uma ameaça à estabilidade. Ele força a convocação de um outro concílio que adota um credo para subsitituir o de Nicéia. Mas ele morre pouco depois.
14 - O trono romano passa por vários ocupantes em poucos anos, enquanto o império sofre fortes reveses militares. Um general, Teodósio, consegue estabilizar a situação.
15 - Teodósio se aproxima dos bispos do ocidente e publica um edito defendendo o credo niceno. Ele ordena a perseguição dos arianos e consolida o cristianismo como religião oficial do império. É a vitória dos ortodoxos.
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Para ler:

• "Quando Jesus se tornou Deus", Richard Rubenstein. Fisus Editora, 2001.

• "Além de Toda Crença - O Evangelho Desconhecido de Tomé", Elaine Pagels. Objetiva, 2003.

• "História do Movimento Cristão Mundial", Dale Irvin. Paulus, 2004.

• "Rei e Messias", John Day (org.). Paulinas, 2005

• "O Nascimento do Cristianismo", John Dominic Crossan. Paulinas, 2005