terça-feira, 26 de abril de 2011

Marcos (5,1-20) e o Enigmático Tema do Edemoninhado de Gadara

Empreender um estudo sócio-teológico sobre possessão e exorcismo é uma tarefa árdua e desafiadora, principalmente para um leigo (não formado na matéria de Sociologia, mas versado em Filosofia e Teologia). Sair do lugar comum e expor os conflitos de uma interpretação bíblica mais humana e intencional não tem sido considerado pela maioria dos eruditos. Por um lado, haverá aqueles que dirão não ser possível estudar sociologicamente o “mundo espiritual”. Outros dirão que humanizar o sagrado é correr o risco de banalizar a fé. A proposta de uma interpretação sociológica, uma nova leitura, é necessária porque não se pode desvincular a Bíblia do ser humano e este, do mundo em que vive.

O que tem a dizer, então, a História, a Tradição, o mundo bíblico do 1º e 2º Testamento, a Razão e a Ciência, sobre a possessão? Pode-se vincular possessão e alienação, possessão e opressão, possessão e doença? A partir desse ponto de vista, quê demônios atinge e penetra no ser humano e o aliena e o possui, tirando-lhe a liberdade?

Onde, nesse processo, se encaixa o preconceito religioso - contra negros p. ex. – com seus deuses demonizados? E o preconceito de gênero – contra as mulheres – que, acredita-se, é portadora e responsável pelo pecado original e por isso mais suscetíveis aos “encantos da serpente?” E o preconceito social – contra os pobres – onde este é considerado maldito e incapaz de mudar sua própria sorte, livrar-se de suas doenças, crescerem na vida?

Por quem ou pelo quê são possuídos?
Quais demônios sociais e políticos niilistas são introduzidos à força em seu viver frágil?

Sugerir respostas que gerem reflexões é a intenção desta obra. Porém, não foi possível incluir os conceitos de Paul Tillich (o demônico), e também, da mesma forma injusta, foi deixado à margem Rudolf Otto (o sagrado). Não seria possível abarcar todos esses conceitos, mas eles se encontram nas entrelinhas. A música como forma de exorcismo também não encontrou um espaço coerente para análise. Entre outros, foram considerados aspectos mais relevantes dentro da possessão: a política, o preconceito religioso, a medicina (doença), a comunicação (linguagem), a possessão cristã (pelo espírito de Deus), entre outros.

I. PARTE
1. INTRODUÇÃO

A perícope de Marcos (5,1-20) permite que o leitor da Bíblia a utilize além dos objetivos marcanos. Além da mensagem e da prática de Jesus, o leitor/intérprete poderá tirar práticas diversas sobre demonologia, exorcismo, palavras de ordem, diálogo, batalha espiritual, corporal e geográfica. Mas se o texto for analisado dentro de um contexto de opressão social e militar, o texto se revela pleno de sentidos reais e simbólicos. Embora seja um texto milenar em sua composição e originalidade, supõe-se uma narrativa realista que “requer simultaneamente a autonomia da literatura e a plausibilidade da redação histórica; ela é ao mesmo tempo contemporânea e afastada do leitor. Autonomia literária significar a liberdade criativa do autor para usar a ‘licença poética’ ao narrar situações, caracterizações e trama. O Evangelho não pretende ser relato ‘jornalístico’ de eventos; Marcos livremente interpreta e editorializa as tradições em que se inspira.” Marcos escreve a partir de um momento histórico e ninguém pode se apropriar do texto para criar uma teologia própria.

Esses aspectos do mundo narrativo de Marcos só podem ser vistos como reflexo direto de sua realidade social. A deterioração econômica e política, especialmente na década anterior aos levantes da guerra romano-judaica, deixou em extrema pobreza partes significativas da população palestinense, principalmente nas áreas rurais densamente populosas da Galiléia. A doença e a incapacidade física constituíam parte inseparável do ciclo de pobreza (fenômeno ainda verdadeiro nos dias de hoje, apesar do advento da medicina moderna). Para o trabalhador diarista, a enfermidade significava desemprego e empobrecimento imediato, As “multidões” (ochlos) servem de pano de fundo para a narrativa e representam um dos grandes aspectos de sua localização social.

Essa “apropriação” do texto para fins diversos pode ser literal, espiritual, ideológica ou sociológica. Mas sempre há uma intencionalidade no texto marcano, um conflito latente que se expande à medida que o texto vai sendo desvendado.

Um texto sempre é escrito a partir de um lugar social. Nele estão codificados elementos de política, econômica, ideologia e relações sociais que permitem identificar o leque das relações sociais e suas contradições, mesmo que tenha sido escrito a partir do horizonte de compreensão da classe dominante.

“A apropriação é algo mais do que a simples compreensão de um texto, não sendo apenas assimilação. Aqui, trata-se do mecanismo por meio do quais grupos ou classes sociais tentam tornar ‘seus’ o texto bíblico. Desse modo, tenta-se utilizar ideologicamente o texto bíblico como justificativa de uma determinada prática.” Fica claro que esse exemplo (do geraseno/gadareno) sempre será lembrado como o que mais causa impacto como prática exorcística. Para Marcos toda a prática de Jesus deriva desse conflito.

Para Marcos, toda prática de Jesus em seu ministério na Galiléia é caracterizada pela atividade de expulsar demônios. Desde a tentação no deserto (1,12-13) e o exorcismo inaugural (1,21-28), o evangelista caracteriza a prática de Jesus como expulsão de demônios.

2. O EVANGELHO DE MARCOS

O evangelho de Marcos deve ter sido escrito, de acordo com a maioria dos exegetas, por volta do ano 70. Marcos é considerado o mais antigo dos Evangelhos. Foi escrito em língua grega koiné, com hebraismos evidentes. Na história redacional, Marcos é tido como o redator final do texto recolhidos dos dados da tradição. O mais importante para o redator é o assunto e não a seqüência cronológica do relato. Marcos tem uma intenção querigmática ou “segunda intenção” na redação do texto.

Embora não se dê nenhuma importância à exatidão da sucessão histórica dos acontecimentos, a sua disposição dos diversos trechos, um ao lado do outro, não é arbitrária. É a intenção querigmática que dirige o seu trabalho de redator.

Marcos trouxe para o seu escrito tradições mais antigas que, na forma original, ainda não tinham sido propostas e transmitidas como “Evangelho”. Por ser a fonte mais antiga serviu de base para os demais evangelhos sinóticos, que têm como base também, a fonte “Q”.

É um relato em forma literária fantástica e original (não serão analisadas as variantes constantes nos demais evangelhos sobre esse episódio, como por exemplo, Mateus, que cita dois endemoninhados). Percebe-se essa estrutura literária intencional em Marcos.

Neste relato [Mc 5,1-20], muito elaborado a partir do ponto de vista literário, vão se alternando o registro narrativo... Jesus chega pela primeira vez a um território pagão (v. 1); a tomada de iniciativa contra o mal é o que desencadeia toda ação. O endemoninhado está situado no campo da impureza e da morte (vv. 2-5), simboliza o homem dominado e escravizado; nesse contexto, o diálogo com o demônio tem conotações políticas (Legião = Exército romano = demônios = porcos) e apresenta seu final violento no mar-morte. Porém deve-se ter em conta o que o “ corpo” significa na antropologia judaica: é o que dá presença operante ao espírito no mundo. Se são expulsos do homem, os demônios não poderão seguir atuando naquela região, a não ser em “outro corpo”; daí a importância do pedido (v. 10). Porém no consentimento de Jesus aparece a ironia: a porcaria, os porcos são lugar demônios-Legião romana. A concessão de Jesus é só aparente: quando os porcos se jogam no mar, os demônios ficam “sem corpo”, com o que a expulsão chega ao seu final. Não houve pacto.

Dessas conclusões estruturais se deduz a intencionalidade do momento histórico. Torna-se ainda mais fantástico porque, de acordo com alguns exegetas, Paulo já exercia seu apostolado nessa época. Pode-se ter uma idéia do contexto histórico do relato.

A interpretação do evangelho de Marcos pode ajudar-nos a descobrir, se não com exatidão, pelo menos aproximadamente, a sua situação histórica. Quando Marcos escreveu o seu evangelho, a missão entre os pagãos, que supõe a pregação de Paulo, já era incontestável.

(Há divergência entre os eruditos se há cinco, seis ou sete, relatos de exorcismo no 2º Testamento. Para o teólogo PE. Luís Schiavo existe seis). Não se chegou ainda à conclusão se o exorcismo é uma fórmula (ou forma) literária.

Tem-se discutido muito se o exorcismo seria uma forma literária. Existe também a preocupação em se definir uma coleção de milagres onde o exorcismo faça parte. Pelas características da prática exorcística do Jesus de Marcos é possível perceber uma estrutura bem definida, como atesta outras fontes e tradições. Encontramos muitos exemplos de histórias de expulsão e de envio de demônios ao mar na antigüidade. O mar sempre foi um lugar de destruição, do desconhecido, para o homem primitivo.

3. EXORCISMO COMO MILAGRE

Quase todos os cristãos acreditam em milagres, sem o qual a vida do homem religioso não teria sentido. “Todos acreditam em milagres, pelo menos os que acontecem no Antigo Testamento, nos tempo de Cristo e em Atos dos Apóstolos. Ele é o aviso mais visível e o mais acreditado entre os poderes do sobrenatural. Se, à sua maneira, ele serve para medir a crença comunitária no vigor de Deus e na verdade da fé, nada é mais forte do que as religiões dos fracos.” O milagre é o estímulo e o conforto de todo sofredor, oprimido, que acredita que um dia Deus irá salvá-lo e pode, por vezes, parece ser uma troca.

... o milagre popular é a mostra de efeitos simples de trocas de fidelidades mútuas entre o sujeito e a divindade, com a ajuda ou não de uma igreja e de mediadores humanos ou sobrenaturais.

Os milagres são acontecimentos estranhos, que o crente entende como sinais da ação salvadora de Deus. A narração dos milagres ocupa bastante espaço, com 156 versículos contra 119 da história da paixão e não se sucedem por ordem natural ou histórica. E todas essas narrativas de milagres tem como única e exclusiva intenção apresentar Jesus. E apesar de todas as controvérsias, o povo da Bíblia não questionava os milagres, visto não possuírem outra explicação para estranhos fenômenos.

Na opinião de SCHREINER, J. e DAUTZENGER, G., as narrativas de milagres, no Evangelho de Marcos, desenrolam-se de forma diferente que nos sinóticos e em João, e salientam a intenção querigmática de evangelista.

Muito diferente, no evangelho de Marcos foi o desenvolvimento das narrações dos milagres. Certamente elas foram determinadas desde o princípio pela primitiva profissão de fé em Jesus. É o que já se vê no uso freqüente de títulos cristológicos como “kyrios” (5,19; 7,28), “mestre” (3,1; 5,7), “o santo de Deus” (1,24), “Filho do homem” (2,10). As próprias aclamações que fecham as narrações dos milagres servem, direta ou indiretamente, à profissão de fé em Jesus, p. ex., em Marcos não têm, porém, uma característica única, como a sua história da paixão. Os seus modelos se encontram tanto no Antigo Testamento (p.ex., a ressurreição de mortos por Elias e Eliseu), como, principalmente, no ambiente helenístico do cristianismo primitivo. É possível descobrir entre as histórias prodigiosas helenísticas e cristãs primitivas não só motivos paralelos formais como também amplas concordâncias de estilo e de construção narrativa.

Ao apresentar Jesus como libertador e Messias, Marcos pretende mostrar que “em suma, os atos simbólicos de Jesus eram poderosos não porque desafiassem as leis na natureza [como milagre], e sim porque desafiavam as próprias estruturas da existência social. (...) sua cura e seu exorcismo funcionavam para ‘elaborar’ a ordem simbólica dominante, desmascarando a maneira como esta atuava para legitimar relacionamentos sociais concretos. À medida que essa ordem desumanizava a vida, Jesus desafiava, bem como desafiava suas estruturas: eis porque seus “milagres” não eram universalmente aceitos. Dependendo do status da pessoa na ordem dominante, cada um os encarava como desvios sociais (maus, heréticos) ou libertadores. Este ainda é um desafio para o século XXI: colocar em práticas os exemplo e ações de Jesus libertador.

John D. Crossan, citando o estudioso e erudito Haroldo Remus, esclarece ainda que o mesmo milagre que ocorre no interior de um grupo não tem o mesmo nome que em grupos rivais. Realidade sociológica que divide os povos. Mas o exorcismo é um milagre e existe sempre uma ligação entre os milagres apresentados pelos evangelistas e a mensagem e a pessoa de Jesus. Pode ser chamado de “milagre querigmático”.

3.1. A estrutura do milagre de exorcismo

Da cultura greco-romana, o judaísmo e cristianismo herdaram, entre outras coisas, o modo estrutural de pensamento, tanto expositivo como sistemático. Baseados em histórias de exorcismos desse sincretismo cultural, pode-se observar a seguinte estrutura de um milagre – de forma geral - de exorcismo:

Estrutura

1. Indicação da situação e descrição do estado do possesso
2. Encontro do exorcista com o possesso
3. Tentativa de defesa por parte do demônio
4. Ordem dada pelo exorcista para que saia do possesso
5. Saída acompanhada de demonstração
6. Reação dos espectadores

Os seguintes elementos estruturais típicos fazem parte da tópica:

1. Indicação do quadro mórbido
2. Tentativa de defesa por parte dos demônios
3. Pergunta pelo nome e indicação do nome
4. Ordem dada pelo exorcista ao demônio para que saia do possesso; fórmulas e práticas de esconjuros que ele usa
5. Saída acompanha de demonstração
6. Reação dos espectadores

Para não ficar apenas em um exemplo estrutural, citando J. Greimas, Ched Myers define cinco elementos essenciais das narrativas de exorcismo:

(1) mandato ou mandamento;
(2) aceitação ou rejeição do mandato;
(3) confronto;
(4) sucesso ou insucesso;
(5) conseqüência ou atribuição.

Entre outra característica dos milagres de exorcismo está o fato de que “no ritual das histórias extrabíblicas de expulsão de demônios encontram-se também ordens de silêncio.” No caso de Marcos, Jesus impede que os demônios revelem quem ele é, mas ao mesmo tempo, como um xamã, exige o nome do (s) demônios. Somente conhecendo o nome dos demônios, um exorcista poderia expulsá-lo.

4. A “LIBERTAÇÃO”

A opção narrativa de Marcos contém elementos de duplicidade, no qual ele repete os acontecimentos em seqüência a fim de enfatizá-los, ou chamar a atenção do leitor.
...certos elementos ocorrem duas vezes, a intervalo de apenas um versículo. Assim, p. ex., descrevem-se duas vezes: o encontro de Jesus com o possesso (vv. 2.6); a permanência do possesso os túmulos (vv. 3.5); o pedido de garantia dos demônios (vv. 10.12), e o relato das testemunhas oculares a outras pessoas (vv. 14.16). Estas duplicatas, ao que parece, querem reforçar a impressão que o relato deve provar no ouvinte e no leitor. E nisto elas se aproximam de um outro fenômeno que nos chama a atenção, ou seja: a indomabilidade do possesso, o comportamento totalmente oposto deste homem depois de curado, o grande número de demônios, etc.

Paul Tournier já expressava há algumas décadas que “os gritos são a arma dos fracos. O endemoninhado que grita está apenas expressando sua fraqueza diante de uma dominação reinante. A dialética existente entre a vontade do indivíduo e a vontade de dominar está implícita nas narrativas de exorcismo de Marcos. É visível, a partir daí, a relação antropológica e sociológica da possessão.

Se o exorcismo é um milagre, é um milagre de cura, de libertação do indivíduo alienado dentro de uma sociedade. A narrativa do gadareno pode incluir elementos simbólicos, porque o possesso está “cheio” de demônio (s) poderoso (s). Libertá-lo é inseri-lo na sociedade a fim de desenvolver plenamente o seu papel. O pedido para que Jesus vá embora da cidade deriva do medo que o milagre seja interpretado pelos romanos como um evento revolucionário. O medo torna-se maior que o milagre. O indivíduo está livre, mas a sociedade não. Na opinião de J. D. Crossan, toda sociedade oprimida desenvolve a crença em que os opressores são os demônios possuidores e a cura se dá através de um movimento de libertação ou ação religiosa que possibilite uma sublimação. Como exemplo ele cita uma história africana. Pode-se compara esse exemplo ao demônio-Legião, ou seja, o estrangeiro opressor.

A existência de uma dialética política entre o indivíduo possuído e a sociedade (...), ou seja, entre o microcosmo e o macrocosmo demoníaco – é confirmada pelo meu segundo exemplo, desta vez retirada de um caso moderno. Segundo Barrie Reynolds, nas tribos lunda-luvale dos barotse, que habitavam a região conhecida como Rodésia do Norte, havia uma enfermidade tradicional chamada mahamba, que era causada “por uma possessão pelos espíritos dos ancestrais”. Mais tarde, no entanto, acabou se desenvolvendo uma versão moderna dessa doença, chamada bindele; ela era “provocada pela possessão por outros espíritos [o que] pode ser considerado um reflexo da tensão entre a sociedade da vítima e o grupo representado pelo espírito. Acredita-se que aqueles que sofrem de bindele (palavra em luvale que significa ‘europeus’) estão possuídos pelo espírito de um europeu” (133). Reynolds ainda conta que em 1944 um exorcista chamado Rice Kamanga, que mais tarde adotaria o nome Chana I, fundou uma igreja dedicada à cura da bindele, “um processo demorado, que pode levar uma a cinco meses (135). Legião estava para a Palestina romana assim como bindele estava para a Rodésia colonizada pelos europeus.

O colonizador representa o demônio que possui geográfica e fisicamente o oprimido, gerando religiosas de fuga e subversão a fim de exorcizar aquilo que o dominador representa.

5. ONDE ACONTECEU O EXORCISMO DO GADARENO

Não há consenso sobre o local do exorcismo na opinião de vários autores. Henry H. Halley alega que Gerasa é a atual Querza, sendo que Gadara ficava mais ao sul, onde existem colinas caindo para o mar. Alfons Weise informa que não havia nenhum lago na região de Gerasa.

A expulsão do demônio teria acontecido na região das gerasenos, ou seja, nas vizinhanças da cidade de Gerasa, que ficava na Jordânia oriental, cerca de 55 km ao sul do lago de Genesaré. Fora fundada pelos gregos, no século IV a.C. Hoje se chama Dsherash. As difuculdades do texto de Marcos começam com essa indicação topográfica, pois não havia nenhum lago na região de Gerasa, nem esta região ficava perto do lago de Genesaré, de sorte que os animais pudessem se precipitar “pelo despenhadeiro”.

Os evangelistas e não somente os teólogos divergem sobre o local do exorcismo, como é caso de Mateus.

Mateus sentiu esta dificuldade e mudou a indicação do lugar, transferindo o acontecimento para Gadara, situado mais ou menos a 10 km do lago. Mas esta distância é também muito grande ainda. Orígenes, um dos Padres da Igreja, introduziu uma variante, por volta de 200 d.C. segundo a qual o acontecimento se deu perto de Gergesa, lugar situado junto ao lago. Com isto ele aplaina as dificuldades, mas ao preço de grave mudança no texto original, o que não representa nenhuma solução. Todos os três topônimos quadram com a região conhecida como Decápole – distrito das dez cidades – situada na Jordânia helenística oriental. Talvez a prolixa indicação topográfica de Marcos seja indício de que a narrativa a tenha passado por um processo de crescimento e de que em seu estado fundamental, ou seja, no estágio anterior à Marcos, ainda não continha a história da passagem de Jesus pelo lago e dos animais que se precipitaram nas águas. É bem possível que a sua introdução começasse mais ou menos com estas palavras: Ele chegou a região dos gerasenos.

Champlin, citando os pais da Igreja, também vê dificuldades em apresentar o lugar.

Gerasa era uma cidade de Decápolis (moderna Jeras, na Transjordânia), localizada a mais de 50 km a suleste do mar da Galiléia e, conforme Orígenes (Comentário sobre João V, 41 m(24), esse é o menos provável dos três lugares. Outra área dacapolitana era Gadara, acerca de 8 km a suleste do mar da Galiléia (moderna Um Queis). Embora Orígenes também fizesse objeção a Gadara (o que, segundo ele afirmou, aparece em alguns poucos manuscritos) porque ali não havia nem lago e nem precipício, Josefo (vida IX, 42) refere-se a Gadara como cidade que tinha um território “que jazia nas fronteiras de Tiberias” (= o mas da Galiléia). Que esse território chegava até ao mar pode-se inferir da fato que antigas moedas que trazem o nome de Gadara com freqüência retratam um barco. Orígenes preferia Gersesa, não porque ocorre nos manuscritos – ele faz silêncio sobre isso – mas por causa da base dúbia da tradição local (é o lugar “de onde, conforme se frisa, os porcos foram lançados precipício abaixo pelos demônios”, e, por causa da base ainda mais duvidosa da etimologia (“o significado de Gergesa é “habitação dos que foram expulsos”, e. desse modo, o nome “contém uma alusão profética à conduta mostrada pelos habitantes daqueles lugares ao Salvador , ‘os quais rogaram-lhe que se afastasse do território deles’”.

Embora haja uma inclinação a favor de Gerasa, a composição narrativa de Marcos faz supor que havia uma intenção em localizar Gerasa na Decápolis com a finalidade de enfatizar o espaço sócio-simbólico gentílico.

6. LEGIÃO-DEMÔNIOS

A quantidade de soldados de uma Legião coincide com o número de porcos em Marcos. Este chama o conjunto dos porcos da “manada” com 2.000 porcos. Após vários incidentes na Palestina, as legiões destacadas para essa região eram das mais ferozes. Tinham a finalidade de debelar qualquer insurreição violentamente. O teólogo Luigi Schiavo, na tese de mestrado (UMESP) “2000 demônios da Decápole” (vide bibliografia), relata:

O momento histórico era de grande presença militar na Palestina. A Legião VI Ferrata estava estacionada na Galiléia e a X Fretensis, na Síria, com provavelmente, uma guarnição de 2 mil homens em Gerasa. Por outro lado, aumentavam os levantes populares armados com o objetivo de “lançar ao mar” todos os opressores.

Essa designação de “lançar ao mar” tem paralelo na história de Israel, a começar com Faraó do Egito (o êxodo) e também com Jonas (a fuga). O mar é grande símbolo de destruição total, punição, esquecimento. Atualmente, os árabes se apossaram desse slogan, imagens militares de aniquilação.

“Legião” é um termo, alguns chamam de latinismo (C. Myers e G. Thiessen), que possuía sentido no mundo social de Marcos. Quando uma pessoa ouvia falar de “legião”, sua mente remetia ao grupo de soldados do império romano. O texto está, assim, empregnado, implicitamente de imagens militares. Decorre dessa situação de dominação a alienação do gadareno.

G. Theissen observa com acerto que qualquer pessoa naquela época, ao ouvir esse nome, não poderia deixar de fazer a associação com as legiões romanas. A dimensão política está presente nesse exorcismo pelo valor simbólico do nome do demônio (“Legião”). (...)... A presença do imperialismo romano significava que, no nível social, o povo de Deus estava sendo possuído por demônios. Repare, aliás, nas implicações esquizofrênicas do controle demoníaco: ele aponta para a existência de um poder mais forte do que o indivíduo, um poder que está “dentro” dele, mas que é visto como algo maléfico, afastando, portanto, qualquer possibilidade de conluio ou cooperação.

A título de uma irônica curiosidade, Halley aponta que os porcos entraram em pânico quando perceberam os demônios dentro de si e por isso, perderam o domínio de si mesmos e precipitaram-se no mar...

7. EXORCISMO, MAGIA E RELIGIÃO

Crossan analisando a vida de um camponês do mediterrâneo (conforme livro de mesmo título na bibliografia), conclui que esse camponês vinculava religião e magia e Jesus, nesse contexto, era visto como um mago ou xamã, pois curava e expulsava demônios, possuía contato direto com a divindade, e só um mago ou xamã poderia fazer isso. Na Palestina do tempo de Jesus, as pessoas que praticavam o exorcismo, ou a expulsão de demônios, estavam exercendo uma profissão reconhecida e de reputação. Nesse ponto de vista, Jesus é um mago, pois o povo assim o vê e vai atrás dele, para ver se lhe sobra uma pouco desse poder. Está claro, também, que por suas atividades como curandeiro, milagreiro e exorcista (título do livro de Luigi Schiavo – vide bibliografia), convocando discípulos e atraindo multidões, ao entrar em Jerusalém, já prenuncia sua morte. As autoridades não deixarão de agir a fim de debelar qualquer tipo de insurreição. Outros já haviam promovido revoltas semelhanças. Não havia interesse que um “profeta do povo” agitasse Jerusalém da festa da Páscoa, momento crucial para demonstrações de violência, poder e força. Os videntes, ou nabis, cuja tradição João Batista concluíra, deviam ser perseguidos e mortos, como reza a tradição. O mago e o bandido tinham a mesma sorte.

... a magia está para a religião assim como o banditismo está para a política. Enquanto o banditismo contesta a legitimidade do poder político, a magia contesta a do poder espiritual. Tanto no mundo antigo quanto no moderno, pode-se fazer uma distinção entre magia e religião através de definições prescritivas e políticas, mas não através de descrições neutras e objetivas. A religião é magia oficial e aprovada; a magia é uma religião extra-oficial e censurada. Ou, em termos mais simples: “nós” praticamos religião, “eles” praticam magia. Não importa se os magos são a favor ou contra a religião oficial. A sua própria existência, independente de suas intenções, já constitui uma ameaça para a validade e a exclusividade da religião. É por isso que grandes magos judeus, como Honi, o Criador-de-círculos, e Hanina ben Dosa, tiveram que ser purificados em termos de oração e estudo para serem aceitos dentro da crescente hegemonia da tradição rabínica.

Apesar da existência de alguns exorcistas, xamãs ou magos conhecidos (deve-se lembrar que alguns magos do oriente viram a estrela de Belém e foram visitar o menino Jesus). Alguns exemplos de exorcistas famosos da antigüidade: Elias e Eliseu, Honi e Hanina eram magos, assim como Jesus de Nazaré, Salomão, Eleazar, Apolônio de Tiana e Hanina Ben Dosa (este dois últimos praticaram exorcismos parecidos com o de Jesus, mas antes dele). Os exorcistas eram personagens normais da sociedade antiga. Deles se esperava que comunicasse as palavras e os atos divinos aos pobres mortais.

Portanto,
1. há uma forte conexão entre exorcismo e magia e/ou religião ...
2. há pouquíssima narrativas de exorcismos.
3. pouquíssimas figuras exorcistas...
4. a única figura exorcista na literatura disponível a quem um número razoável de exorcismos é atribuído, e relatado em detalhe, é Jesus de Nazaré.

8. A PRÁTICA DE JESUS, EXORCISTA

“Jesus é o profeta da inclusão.” Como profeta da inclusão, as evidências estão claras a seu favor, quando desobstrui o caminhos dos pobres e oprimidos a fim de que, como gente, participem da sociedade como iguais. Em que se caracteriza a prática de Jesus?

Chamamos práticas ao conjunto de ações pelas quais um sujeito busca incidir na transformação da realidade e nas quais realiza seu projeto e sua utopia. Nenhuma prática se dá como algo isolado, porque não existe o “sujeito puro”; dado o caráter dialogal da existência humana, toda ação é ação-resposta, que nasce de uma interpretação e provoca outras ações, seja de colaboradores (projetos semelhantes ou complementares), seja de oposição (quando se trata de projetos contrários). Portanto, para compreender o sentido de uma prática, deve-se situar as ações que a compõem dentro de um duplo contexto:

• o contexto interno, dentro da prática homogênea de um sujeito, em que se vão dando mudanças que respondem a uma lógica interna nascida da coerência com determinados valores e projetos;
• o contexto externo, constituído pelas outras práticas com as quais entra em relação, e com as circunstâncias nas quais elas se realizam.

Prática e valores estão intimamente relacionados, pois deles brota a prática e a partir deles analisa e valoriza outras práticas como similares ou contrárias. Assim, pois, pela análise das práticas podemos conhecer os valores e os projetos subjacentes a elas. Porém, para descobrir no relato de Marcos essa prática de Jesus processual e situada necessitamos de “chaves de leitura”, porque não se expressa de maneira direta, explícita, mas por insinuações, implícitas. Todo texto tem esses dois níveis de mensagem: o direto, que se descobre à primeira vista, e o indireto, que está nas entrelinhas e que, com freqüência, é o mais importante. Quando não se chega a esse nível de significado, corre-se o risco de se ficar numa leitura fundamentalista.

Jesus realizou seu projeto e sua utopia para transformar a realidade sem empregar um padrão rígido de procedimento. Geralmente, Jesus nunca tocava em indivíduos possuídos por demônios, mas, por outro lado, costumava tocar em enfermos e doentes; “o uso de uma palavra de comando talvez fosse a técnica mais comum que empregava para realizar suas curas e exorcismos.” Jesus exorcizava preferencialmente pessoas pobres e indivíduos, intervindo profundamente na realidade social deles.

Porém, somente a presença de Jesus já era suficiente para mostrar o mal que agia na vida das pessoas. A presença do mal era definitivamente erradicada da vida da pessoa. A ação de Jesus era a favor da vida abundante e impedia que “outros” falassem por eles.

A prática de Jesus anula a ação do demônio no gadareno. Este se endireita e fala livremente. Antes, um demônio (a presença física dos violentos legionários) o possuía, falava por ele e o dominava. A ação de Jesus torna esse homem livre para falar o que realmente pensa livre de opressões de qualquer tipo. Por isso, os seus conterrâneos querem que Jesus saia da cidade na mesma hora, mas por causa do medo da liberdade de expressão de um homem são e livre. O endemoninhado representa ansiedade coletiva em face do imperialismo romano. Jesus reata o caminho da comunicação perdida. O gadareno não podia impedir que falassem por ele, “sua voz era a expressão da ideologia daqueles que tem poder.” Não tinha nem vez, nem voz, nem identidade pessoal.

Jesus nunca se interessou por demônios, mas antes pelas pessoas possuídas. Como o método de Jesus não era extático, também não pode sacramentar métodos de exorcismo como os atuais. Para Neuza Itioka, apesar do seu preconceito religioso, “não existe nenhum método seguro prescrito de expulsar demônios.” É preciso avaliar aquilo que realmente possui as pessoas nesta época e procurar dar as respostas baseadas em uma prática evangélica, não extática, que permita ao indivíduo a liberdade de crer por si mesmo, apesar do sistema de poder que querem manipulá-lo sem a menor culpa.

II. PARTE
1. Evolução da crença

É sabido que “desde os tempos mais remotos do pensamento humano, existem formas diferenciadas de possessão (possessão demoníaca). Paralelamente, existiram também, desde os tempos imemoriais, mecanismos de defesa contra a possessão, entre eles o exorcismo.” Dessa forma, o conceito de possessão e exorcismo sempre estiveram atrelados à religião. A crença em espíritos que podem penetrar no ser humano, seja como forma de vingança ou de poder, é originária da história das religiões.

O demônio e seu mundo não só constituem um aspecto da teologia ou da doutrina cristã, mas também povoam o universo cultural que se desenvolveu nos dois últimos milênios de nossa história.

Atualmente o tema ganha relevo em meios pentecostais e neopentecostais, onde o demônio ocupa, no culto e na vida, lugar central. A centralidade nos demônios desloca o verdadeiro sentido do culto a Javé. Já em tempos pós-modernos “o sagrado reaparece em formas primitivas e selvagens...” Nas palavras do historiador João Gonzaga “no final do século XII surgiu notável eclosão de espiritualidade popular... Acima de tudo fortificou-se a convicção de que Deus, os santos e, também, o demônio estão sempre presentes neste mundo, imiscuindo-se materialmente nos negócios humanos”. E tal como um paradoxo acredita-se que o mesmo ato que serve como prova de alguma influência maligna, também serve como sinal de divindade.

Para os estudiosos, principalmente antropólogos, está claro que:
A crença em espíritos é encontrada em todas, ou quase todas, as sociedades humanas. Ela assume formas variadas, mas um espírito parece ser um agente invisível, quase humano, que é imediata, e quase instintivamente, postulado como sendo a causa de um acontecimento repentino, estranho e inesperado.

Após o advento do Iluminismo, a tentativa de transformar a ciência em dogma ou a tentativa de transformar a religião em ciência, derrotou o espírito de interação entre uma e outra. Anteriormente, o Escolasticismo já prenunciava a ruptura. O mundo da razão não consegue perceber que o mito faz parte do sentido de mundo do crente. Contudo, também não se consegue explicar Deus. Vê-se, assim, que se alternam durante a história humana a interpretações das crenças. Há aqueles que querem o retorno aos fundamentos e ao literalismo bíblico, e há aqueles que preferem uma abertura para compreender melhor a vida e qualquer outra dimensão inexplicável, concluindo que o finito não pode compreender o Infinito nem o relativo atingir o Absoluto. Torna-se necessário buscar explicações no passado e no presente para julgar convenientemente o que é possessão.

Assim, por volta do século IX o diabo começava a ocupar uma posição central na crença dos cristãos ocidentais. A teologia ortodoxa do Oriente dava pouca atenção às doutrinas a respeito do Maligno. Os Padres bizantinos enfatizavam de maneira mais específica a transcendente unidade de Deus; todas as coisas, independentemente de parecerem boas ou más, vinham de Suas mãos. Tudo procedia de Deus e tudo estava destinado a retornar a Ele.

Neste caso, o passado demonstra que nem sempre a preocupação se centraliza no demônio. Esta deveria ser a tônica da religião (ou das Religiões). Quando tudo procede de Deus não há lugar para o Mal.

2. DEFINIÇÕES E EXPLICAÇÕES
2.1. O que é possessão demoníaca?

Existe uma série de definições e explicações para o que é possessão demoníaca. Desde o conceito dos Evangelhos, elaboraram-se várias teologias que resumiram-se na chamada Demonologia. Para os cristãos ocidentais a possessão é sempre negativa, ou seja, atribuída a um mau espírito vindo da parte de Satan/Diabo/Lúcifer. Os pentecostais e neopentecostais têm sua própria cosmologia demoníaca de onde derivam os estados de possessão. Dentro dessas duas vertentes cristãs a cura evidencia-se pelo ato de “exorcismo”, comumente chamado de “expulsão”. Expulsar é ordenar em voz audível com bastante ênfase, em nome de Jesus, para que o demônio/espírito do mau, saia “de dentro” do indivíduo. Para isso, utilizam-se das fórmulas literais também presentes nos Evangelhos.

Como exemplo, pode-se citar um item do Manual da Igreja Universal do Reino de Deus: possessão “é a habitação de um ou mais demônios no corpo de uma pessoa, exercendo-lhe controle e influência, com prejuízo para as funções mentais e físicas. Nesse caso, os demônios agem no interior da pessoa, de dentro para fora”. Neuza Itioka, conhecida “batalhadora” espiritual, utiliza o conceito de possessão de acordo com a ciência, Antropologia e a Sociologia, e que deve ser entendida como “invasão de espíritos”, que podem ser “voluntárias ou involuntárias”, “induzidas ou espontâneas”, “violentas ou calmas’. Para ela, porém, a possessão não se limita a pessoas, mas também a matéria sem vida e à natureza em geral.

A necessidade de compreender melhor esse problema sociologicamente permite uma abordagem mais global da possessão ou endemoninhamento.

O que é endemoninhamento ou possessão?
Qual a sua origem?

Para algumas pessoas, pastores, teólogos e estudantes pareceriam óbvio. No entanto, é causa de grande sensacionalismo entre os cristãos em geral. Muitas vezes por desconhecimento do assunto ou por falsas e curiosas “revelações”.Existem divergências entre os teólogos quanto às definições ou origem, mas em geral, são semelhantes. Torna-se necessário resumir a idéia de alguns autores como tentativa de consenso mais amplo. Ainda do ponto de vista de Neuza Itioka, endemoninhamento é... é a invasão de um espírito com personalidade penetrando na vida de uma outra pessoa, tentando expressar-se ou manifestar-se, e muitas vezes controla-la, suprimindo a primeira.

Na opinião de Pe Gustavo Solimeo, o endemoninhamento/possessão consiste...em um domínio que o demônio exerce diretamente sobre o corpo e indiretamente sobre a alma de uma pessoa. Esta se converte em um instrumento cego, dócil, fatalmente obediente ao poder perverso e despótico do demônio.

Outros se exprimem em categorias de possessão diabólica:
Por possessão diabólica se entende a posse de uma pessoa humana por um espírito do mal de maneira tal que o espírito assume a personalidade do ser humano e controla todos os seus movimentos físicos, inclusive a fala.

Maior divergência existe quanto às origens da possessão. Como já foi citado anteriormente, a possessão por espíritos maus considerada negativa prevalece sobre a possessão positiva, sinal do divino. Os cristãos ocidentais em geral consideram a possessão negativa muito mais que a positiva. Crêem que a origem da possessão está nos demônios e espíritos maus vindo do inferno. Uma minoria acredita na possessão por entes queridos que morreram (Neuza Itioka).

Para verificar a origem da possessão é preciso considerar a crença nos demônios, suas formas de agir, modo, natureza, etc. “O vocábulo ‘demônio’, nesse caso, conforme sua origem (...) não se refere especificamente ao diabo, mas a criaturas sobrenaturais, espírito supra-humano e abaixo de deus (théos), compreendendo quer entidade malfazeja, como o diabo, quer benfazeja, como os anjos.”

2.2. Os demônios

Os demônios em suas diversas formas são considerados os responsáveis pela possessão. A fim de buscar um início comum, verifica-se que em todas as culturas existe um princípio comum. Fora do judaísmo e do cristianismo também existem fontes e referências para identificar o que são “demônios”.

O judaísmo incorporou diversas característica da região em que se desenvolveu (Mesopotâmia). Acredita-se que somente após a saída do Egito eles passaram a acreditar no demônio. “Mas o nome demónio não era por eles [judeus] atribuídos (como acontecia com os gregos) aos espíritos bons e maus, mas somente aos maus. E aos bons demônios deram o nome de Espírito de Deus, e acreditavam que aqueles cujos corpos entravam eram profetas. Em suma, todas a singularidades, quando boas, eram atribuídas ao Espírito de Deus, e as más a algum demónio, mas a um, um mau demónio, isto é, um diabo.

E portanto chamavam demoníacos, isto é, possuídos pelo diabo aqueles que denominamos loucos ou lunáticos, ou aqueles que tinham a doença de cair, ou que diziam qualquer coisa que eles, por não a compreenderem, consideravam absurda.” O termo “daimon” era empregado no gr. clássico, às vezes como um sinônimo de theos (deus). Entre os gregos, o demônio podia ser um “poder” ou até mesmo a psiquê. Para os estóicos a alma do morto pode se tornar um demônio (daí a crença da possessão pelos parentes mortos ter origem na mitologia). Para Heráclito, “o caráter é o espírito que habita em um homem, e não uma entidade separada.”

Na cultura brasileira, mais especificamente de origem africana, os demônios são representados pelo Exús, e demais orixás do Candomblé.

2.3. Etimologia.

Palavra de formação erudita, do gr. daímon, -onos, ‘divindade, gênio, espírito supra-humano, mas infradivino, depois, em linguagem eclesiástica, ‘espírito mau, gênio desfavorável’, representado no lat. daemon, onis, e a base grega –logía, ‘ tratado, ciência, discurso’. O ing. demonology e o fr. démonologie são do séc. XVI, o port. it. demonologia, esp. demonología aparecem no séc. XVIII-XIX.

Dentro da cultura mesopotâmica todos os demônios tinham nomes. O bruxo ou xamã deveria conhecer o nome do demônio. Somente assim poderia expulsá-lo. No 1º Testamento não existe ainda essa crença. “Nada de realmente certo se encontra sobre a origem dos demônios, nas páginas da Bíblia, ainda que muitos creiam que sejam os anjos caídos que seguiram a Satanás.”

Champlin continua dizendo:

Muitas coisas são indiscutíveis sobre esse assunto: a primeira, nem os hebreus e nem os cristãos criaram as elaboradas demonologias e angelologias que, finalmente, vieram a ser aceitas. Segunda, apesar das elaborações, exageros e elementos místicos que entraram no pensamento hebreu e cristão, no tocante aos demônios, essas noções são corretas quanto à temível realidade dos demônios e sua capacidade de influenciar e de apossar-se de pessoas.

Referindo-se a Tertuliano, Champlin considera ainda:

As próprias Escrituras nada nos informam acerca dos demônios, pelo menos em termos bem definidos; por isso mesmo, a sua identificação com os anjos caídos pode representar ou não a verdade. Se isso representa a verdade, mesmo assim, pode não representar a verdade inteira sobre a questão. Muitos casos de possessão demoníaca parecem demonstrar que alguns demônios, pelo menos, são de fato entidades que antes eram seres humanos comuns.

O positivista Aldous Huxley, criticando com dureza o processo inquisitivo de Loudun (França), discorreu sobre o demônio com importante papel a desempenhar no mundo religioso como personalidade ativa, não restando ao homem somente o recurso da oração.

Os demônios desempenharam até pouco tempo atrás um papel muito importante na religião cristã – e isso desde seus primórdios. Porque, como observou o Padre A Lefèvre, S. J., “o Diabo ocupa uma posição muito irrelevante no Velho Testamento; seu poder supremo ainda não se revelara. O Novo Testamento o mostra como o chefe das forças coligadas do mal”. Nas atuais traduções do pai-nosso, pedimos para sermos livres do mal. Mas será que o apo tou ponerou é neutro, em vez de masculino? Não está implícito na própria estrutura da oração que a palavra se refere a uma pessoa? “Não nos deixes cair em tentação, mas (pelo contrário) livrai-nos do Diabo, do Tentador.” O crescimento da ênfase nos demônios é muito grande. Há grupos que estabelecem relação de determinados demônios com certos problemas: demônio da bebida, do machismo, da pobreza, etc. Numa espécie de neo-maniqueísmo o mundo é dividido entre Deus e Satanás (e seus anjos maus), e quase todo conflito é visto em função dessa pretensa atuação demoníaca.

Para verificar a progressão do conceito dos demônios é preciso ver os dados bíblicos disponíveis, ou seja, o Primeiro e o Segundo Testamento.

3. 1º TESTAMENTO

Não se encontra possessão demoníaca no Primeiro Testamento, a não ser a possessão de Saul (1 Sm 16,14-23). Essa possível “possessão” vem de Deus, ou seja, de um espírito vindo diretamente de Javé. Um estudo mais detalhado indica que a demonologia judaica tem origens externas (outras religiões). Mesmo Davi é chamado de Satã (adversário), cf. 1 Sm 29,4. Conclui-se que originalmente Satanás é um ser humano. Em Jó, Satanás faz parte da corte celestial, chamado de filho de Deus (ben-elohim). Em Tobias 6,7 (livro considerado apócrifo ou deutero-canônico) há uma fórmula de exorcismo primitiva: oração e ritual (além de se queimar um fígado de peixe- para a cultura celta o salmão é um peixe sábio). Para as tribos de Javé, porém, não havia “necessidade de corporificar uma entidade maligna. Para eles, Jahveh, era um deus tribal e, como tal, superior aos deuses das tribos vizinhas, que se colocavam, assim, como seus adversários e como expressões naturais da maldade, tornando supérfluas qualquer encarnação suplementar do Mal. Mas é óbvio que a crença deveria crescer e solidificar-se, tal como atesta Weise.

Mais tarde a concepção de Israel a respeito de Deus modifica-se já sob vários aspectos: ao lado de Iahweh, ou em seu lugar, aparece o mensageiro de Deus, para comunicar a vontade divina aos homens (Ex 3). A partir dos dois últimos séculos antes de Cristo, Deus é representado como o absolutamente transcendente, inatingível. O grande vazio entre ele e os homens é ocupado, então, cada vez mais, de acordo com as concepções religiosas de Israel, por seres intermediários, aos anjos. São estes seres que agora estabelecem o contato entre Deus e o homem. Esta evolução é importante também no que respeita ao aparecimento da idéia de um poder mau personificado. O ponto de partida desta idéia é o problema relativo à origem da culpa, das doenças, da morte e, por fim, também do mal. A resposta mais antiga a esta questão é a narrativa do pecado original (Gn 3): o mal não vem de Deus, mas é causado pela vontade do homem. Aqui ainda não se fala do diabo, mas somente da serpente que seduz o homem, enquanto símbolo de um poder astuto e misterioso, porém inteiramente submetido a Deus. É da época igualmente antiga que provém a frase: “Iahweh instigou Davi” a fazer o recenseamento do povo, recenseamento que, em verdade, não agradou a Deus (2Sm 24). Mais ou menos 600 anos depois, a mesma cena é expressa nesses termos: “E Satanás instigou a Davi (1Cr 21; cerca de 300 a.C.). O que aconteceu nesse intervalo de tempo? Já não se suportava a idéia de que Deus tentasse o homem e, sob influência do meio ambiente em que vivia Israel, adotaram-se então certa concepções a respeito de seres sobrenaturais que, embora submetidos a Deus, eram adversários do homem. Por isto, já por volta de 400 a.C., afirma-se no livro de Jó que Satanás acusa os homens perante o tribunal de Deus, como um dos “filhos de Deus” e membros da corte divina. Em alguns círculos de Israel desenvolveu-se paralelamente uma autêntica demonologia na qual Satanás, de membro que era da corte celeste, foi progressivamente se transformando em um ser dependente, desligado de Deus, tendo sua morada no inferno [mundo subterrâneo] e uma corte de espíritos malignos.

A Bíblia, procura desvincular Deus da origem do Mal, da origem do Diabo, a fim de isentá-lo e, num curto espaço de tempo, personificou outro ser, independente e antagônico. Esse ser era responsável pelo mal que escolhera para si mesmo e para o mundo. Em futuro distante lutaria pela posse de todos os seres. O Diabo se fez a si mesmo.

4. 2º TESTAMENTO

“Jesus é o personagem da Antigüidade do qual o maior números de exorcismos é narrado.” Na Palestina do tempo de Jesus, as pessoas que praticavam o exorcismo, ou a expulsão de demônios, estavam exercendo uma profissão reconhecida e de reputação. Eram magos ou xãmas.

O discurso de Jesus faz do poder do exorcismo um motivo teológico de certa importância. As desordens que se manifestam nos endemoninhados são conseqüências do reino do pecado no homem; os poderes do mal se apoderam da sua liberdade de tal maneira que o homem se tornou vítima indefesa, até no santuário íntimo de sua pessoa.

Seguindo a mesma linha de raciocínio anterior, “... o nome demónio não era por eles [judeus] atribuídos (como acontecia com os gregos) aos espíritos bons e maus, mas somente aos maus. E aos bons demônios deram o nome de Espírito de Deus, e acreditavam que aqueles cujos corpos entravam eram profetas. Em suma, todas as singularidades, quando boas, eram atribuídas ao Espírito de Deus, e as más a algum demónio, mas a um, um mau demónio, isto é, um diabo. E, portanto chamavam demoníacos, isto é, possuídos pelo diabo aqueles que denominamos loucos ou lunáticos, ou aqueles que tinham a doença de cair, ou que diziam qualquer coisa que eles, por não a compreenderem, consideravam absurda.”

Dentro, portanto da cultura semítica, mesopotâmica ou judaica, a presença do Mal eqüivalia à criação de seres responsáveis por ele. Não difere em muito das demais culturas consideradas primitivas das demais sociedades humanas. Sempre há um princípio do Bem e um princípio do Mal, qualquer que seja o nome que lhe for dado. No Brasil, por exemplo, não é diferente. O exemplo da cultura indígena também se pode verificar na cultura de origem africana os mesmo princípios.

Outro aspecto a ser explorado era a forma como a Tradição patrística compreendia os demônios e a possessão. Dentro da patrística é possível perceber, como era esperado, o papel negativo, destrutivo, dos demônios. A crença ainda incipiente, herdada do 2º Testamento, contribui em progresso crescente com relação à demonologia. Mas ainda é possível perceber a presença do elemento mítico. Agostinho foi o que melhor expressou teologicamente, ou formulou uma demonologia com cores e matizes, ainda que medievais.

5. OS PAIS DA IGREJA

Dizem que Santo Agostinho ficava irritado com os demônios. Ele cria que aS bruxas eram fruto do relacionamentos de um demônio com uma mulher. Os demônios juntavam sêmen de homens e injetavam nas mulheres, já que eles não têm como produzi-los. Daí nasciam bruxas. Sua obra Cidade de Deus resumiria sua crença de um mundo bom e um mundo mal. Esses demônios eram chamados de íncubos, e conhecidos também por silvanos e faunos. Íncubos eram demônios que possuíam mulheres. São Clemente acreditava que os demônios, por não terem órgãos, possuíam os humanos a fim de utilizá-los. E todos eram unânimes em concordar que o demônio, em qualquer caso ou situação, não deveria ser levado em conta. Deveria até ser desacreditado. Havia desentendimento e contra senso.

Ele cita o pensamento pagão prevalecente na sua época: “Os deuses ocupam as regiões mais elevadas, os homens as mais baixas, os demônios a região intermediária... Eles têm a imortalidade do corpo, mas as paixões da mente em comum com os homens”. No livro VIII de A Cidade de Deus (iniciado em 413), Agostinho assimila essa antiga tradição, substitui os deuses por Deus, e converte os demônios em diabos – afirmando que eles são, sem exceção, malignos. (...) Ele os chama de “animais aéreos”...

6. CARACTERÍSTICAS DA POSSESSÃO DEMONÍACA

As perguntas: como distinguir a possessão genuína da fraude? ou como saber se realmente é possessão? São relevantes. Existem muitas formas, sintomas e sinais para saber “diagnosticar” esse estado. Estão, de modo geral, de acordo com a Igreja, de acordo com a tradição, de acordo com os teólogos, desde as mais “óbvias” até as mais curiosas e ridículas.

Os testes mais simples é a evidência de falar em uma língua diferente, mas esse teste pressupõe também uma possessão cristã, visto que como sinal de Pentecostes o povo fala em outras línguas. Em acréscimo a esse sinal estão a força física descomunal, a levitação e a clarividência.

6.1. Formas de possessão

Na época da Inquisição, quando o mundo era povoado por demônios, o interesse e a curiosidade pelo assunto beiravam à loucura e à ingenuidade, ao mesmo tempo. À loucura porque satisfazia os desejos secretos dos inquisidores, segundo alguns críticos.

A curiosidade da época descia a detalhes para responder: Como entra um espírito mau no homem? De várias maneiras, explicava-se: com a comida que a pessoa ingere; ou passando por um lugar onde existe determinado espírito; ou com um rito para se obter um espírito; ou por espírito ter se sentido ofendido etc. Sabia-se que eles eram mais ativos à noite. Para alcançar a posse de uma pessoa, o Demônio se instala nas mais variadas formas, suscetíveis de permitirem o ingresso no corpo da vítima. Assim, sabe-se, através de confirmações feitas por Diabos em pessoa, durante exorcismos, que eles penetram através da boca, do ânus, dos órgãos sexuais, e de outras vias não esclarecidas. Afinal, os demônios não eram obrigados a revelar todos os seus segredos.

Nesse ponto é necessário um esclarecimento. Na antropologia judaica é o corpo que possibilita a atuação dos maus espíritos no mundo. Sem corpo, eles não conseguem atuar. O mesmo vale para locais geográficos. Exemplos dessa visão podem ser encontrados na Bíblia, no livro de Daniel e nos livros considerados apócrifos (ou deutero-canônicos).

6.2. Sintomas

Quais são os sintomas de uma possessão demoníaca? Para Edir Macedo é “tudo aquilo que foge ao normal, sem que tenha uma causa plausível.” Podemos resumir em:
a. Doenças e enfermidades físicas
b. Doenças mentais
c. Constantes dores de cabeça ou dores localizadas em outras partes do corpo, não diagnosticadas pela Medicina
d. Insônia
e. Medos e fobias
f. Desejos de suicídios
g. Vícios
h. Nervosismo
i. Depressão
j. Visões de vultos e audições inexplicáveis

Champlin elabora outra lista semelhante, ao que ele chama de sinais de possessão.

a) Fenômenos psíquicos
b) Enfermidades em geral
c) Personalidade múltipla
d) Crenças errôneas (heresias)
e) Agitação interior (falta de paz)
f) Falta de controle sobre os vícios
g) Perversões sexuais
h) Malignidade de toda sorte (violência)
i) Atitudes e Atos anti-sociais
j) Ódio
k) Espíritos que atacam e se retiram (tática de guerrilha)
l) Espíritos malignos difíceis
m) Variedade de espíritos possuidores
n) Comportamento ameaçador
o) Limites impostos aos espíritos
p) Contorções faciais típicas
q) Vozes (interiores)
r) Melancolia

6.3. As manifestações do endemoninhamento violento

(1) Mudança da personalidade, afetando a inteligência

(2) Mudança física, afetando a voz, etc

(3) Mudança mental (conhecimentos ocultos)

(4) Mudança espiritual (contra Deus)

“Aliando-se aos doutores da Igreja, os médicos medievais acrescentaram outras dezessete evidências, das quais citaremos apenas algumas mais pitorescas que denunciam um universo preso a uma obsessão demoníaca”:

- quando a doença fosse tal que os médicos não conseguissem descobri-la nem conhece-la;

- quando, sob a ação de todos os tratamentos possíveis, em vez de se apaziguar, a doença se agravasse;

- quando o mal se revestisse, logo de início, de grandes sintomas e dores, ao contrário das doenças comuns que aumentam pouco a pouco;

- quando a pessoa soltasse suspiros tristes e lamentosos sem nenhuma causa legítima;

- quando perdesse o apetite e vomitasse a carne ingerida;

- quando se tornasse impotente ao mister de Vênus (relações sexuais);

- quando se mostrasse perturbado, assustado, ou fosse tocado de alguma mudança notável, ao penetrar no recinto onde se encontrasse a pessoa suspeita de lhe haver feito mal;

- finalmente, quando, no intuito de sanar o mal, o padre houvesse aplicado unções sagradas nos olhos, nos ouvidos, na testa e em outras partes do corpo, e essas partes viessem a eliminar suor ou apresentassem alguma outra modificações.

6.4. Causas

As causas do endemoninhamento dentro do levantamento histórico efetuado também contemplam a opinião de diversos autores, alguns já citados. A grande maioria está relacionada à ausência da proteção divina derivada da prática constante de algum pecado (segundo a crença evangélica). Além disso, existem outras práticas (ou predisposições que facilitam a entrada de um demônio em uma pessoa). Segundo Neuza Itioka e R. Champlin, as causas da possessão podem ser, respectivamente:

(1) Quando as leis de Deus são quebradas

(2) Reações a desastres e calamidades

(3) Músicas com determinados ritmos

(4) As drogas

(5) A embriaguês através de bebidas fortes

(6) A manipulação dos poderes assim chamados parapsicológicos

(7) O exercício da passividade

(8) Culto aos ancestrais

(9) Pecados de imoralidade


6.4.1. Predisposições que encorajam a possessão demoníaca

a) Uma vida de dissipações

b) Freqüentar lugares de má fama

c) Participação em ritos onde baixam “espíritos’

d) Vida vazia

(e) Música sensual

f) Vícios

g) Pactos

h) Misticismo

i) Ocultismo

j) Crianças suscetíveis aos espíritos dos mortos


No Tratado Sacerdotal Sammarinus, documento antigo, existe dezessete formas de um sacerdote reconhecer a possessão demoníaca.

COMO RECONHECER A POSSESSÃO (segundo o Tratado Sacerdotal Sammarinus)

1 – Quando o suspeito não consegue comer carne de cabra no espaço de trinta dias. Entretanto, esse sinal se refere mais provavelmente aos epiléticos;

2 – Quando o indivíduo apresenta fisionomia assustada, olhar espantado e aspecto hediondo;

3 – Quando simula estar louco, crescendo continuamente o volume do seu corpo e sua força;

4 – Quando não consegue pronunciar o Santo Nome de Jesus ou de qualquer outro santo, nem cantar os Salmos “Miserere meu Deus”, ou “Qui habitat”, o Evangelho de São João, que começa com “no princípio era o Verbo”, e outras coisas do gênero;

5 – Quando se exprime em grego, latim ou outro idioma que jamais haja aprendido, ou lê, escreve, canta musicalmente e realiza outras coisas que não lhe foram ensinadas;

6 – Quando se torna mudo, surdo, lunático, cego, que são sinais assinalados pela Sagrada Escritura;

7 – Quando, ao ser exorcizado, sente descabidamente um vento frio ou quente na cabeça, nos ombros e nos rins, e se transforma, se aflige a blasfema;

8 – Quando experimenta dores e sintomas extraordinários, como violentas cólicas nas entranhas e partes internas, sensações como vermes, formigas, rãs, a correrem desde a cabeça até o resto do corpo, até os artelhos, quando o ventre se dilata, ou o pescoço, ou a língua, ou quando se reconhece exaltado no seu estado de ânimo;

9 – Quando, por alguma razão secreta, deixa de assisti ao Serviço Divino, de fazer orações de acordo com o seu hábito, de tomar água benta, de ouvir a palavra de Deus;

10 – Quando se mostra vexado ou encolerizado ao aplicar-lhe o padre as relíquias dos Santos, os Agnus Dei, ou quando, nas preces, o sacerdote recorre ao Sinal-da-Cruz, às coisas bentas e, principalmente, ao Santo Sacramento do Altar;

11 – Quando se eleva e logo desaparece uma bolha na sua língua. Quando se elevam diversas bolhas, semelhantes a pequenos grãos, trata-se de sinal mais digno de nota, concluindo-se, à vista das bolhas, qual o número de Demônios alojados no corpo do indivíduo;

12 – Quando o indivíduo se revela presa de constante inquietação, andando para cá e para lá, principalmente em busca de lugares solitários e desertos;

13 – Quando está tolhido em todos os seus membros, mantendo-se sempre adormecido como morto;

14 – Quando não consegue suportar o aroma das rosas ou outros determinados perfumes;

15 – Quando revela fatos absolutamente secretos e os denuncia manifestando desprezo por Deus e dirigindo injúrias aos vizinhos;

16 – Quando se torce ao ser exorcizado, faz meneios, se curva e contorce o corpo e os membros de maneira imprevista e inadmissível numa criatura;

17 – Finalmente, quando o Demônio, seja de que forma for, lhe apareceu antes que tivesse noção de estar possesso.


Para Macedo a manifestação da possessão demoníaca é bem simples. Basta o indivíduo ouvir a pregação do Evangelho.


6.5. Tipos de possessão/endemoninhamento

A terminologia demoníaca, ou seja, a terminologia dos tipos de possessão não é uniforme. Alguns falam de possessão propriamente dita, endemoninhamento, invasão, obsessão, tormento por espectros e até circumissessão. A presença do demônio da vítima se dá por período de crise ou permanentemente. No caso do endemonhiado gadareno, ele estava atormentado por vários demônios ao mesmo tempo. “No Malleus maleficarum [manual do inquisidores], com base na melhor autoridade possível, declara-se que os demônios não possuem vontade e compreensão, mas somente o corpo e as faculdades mentais mais estreitamente ligadas a este. Em muitos casos, os demônios nem possuem o corpo inteiro do endemoninhado, mas uma pequena parte dele – um único órgão, alguns músculos ou ossos.” Da mesma forma que os demônios eram considerados (referentes à sua natureza) ígneos, aéreos, terrestres, aquáticos, subterrâneos e lucífugos , também as formas e os tipo variavam. Alguns chegavam a se disfarçar de alimento para entrar na vítima.

Quando deseja penetrar, de qualquer forma, disfarça-se até de pedra, pássaros, insetos em geral (nunca se sabe quando o mosquito que zumbe à noite é um demônio... cuidado, portanto, ó mortais), animais domésticos, etc.

Portanto, o coração humano não está livre das possessões, na opinião do crítico de Loudun (Aldous Huxley), mesmo o “coração permanentemente vigiado e controlado torna-se receptivo a todas as graças, e finalmente é ‘possuído e governado pelo Espírito Santo’. .. Mas, durante o percurso para esse fim desejado, pode haver possessões de espécies muito diferentes. Pois de forma alguma todas as inspirações são divinas, ou mesmo edificantes ou convenientes. Como poderemos distinguir entre as orientações do não-Eu que é o Espírito Santo, e daquele outro não-Eu que é algumas vezes um tolo, ou um louco, ou mesmo um criminoso malévolo?”

No início dos tempos moderno, apesar de um reavivamento do “sagrado selvagem”, ainda não se pode ver nenhum esclarecimento do aspecto social da possessão. Como foi visto acima, na Idade Média, o Escolasticismo, cria-se em um mundo de três andares: inferno abaixo, terra no meio e céu acima. Com o Iluminismo e a progressão científica muitas situações que poderiam ser creditas ao diabo, agora têm explicações racionais e razoáveis, principalmente no que se refere às doenças.

7. DOENÇAS
7.1. A doença e a possessão

Tem sido cada vez mais apregoado pelos meios de comunicação, rádio e tv, por igrejas neopentecostais, que todo o mal, incluindo a doença, vem do diabo. Revive-se, assim, a crença primitiva de que aquilo que não é bom para o corpo vem do mal. Na Mesopotâmia existiam demônios para cada doença e para órgão do corpo (todos esses demônios tinham nome). Para a febre existia, por exemplo, um demônio específico.

As causas que associavam doenças a demônios vinham de longe, com raízes na Babilônia e no Egito. De fato, na Mesopotâmia as doenças foram atribuídas aos demônios, aos monstros e outros seres maus. A cura era baseada por meio de orações e textos de encantamento. Portanto medicina estava entrelaçada com religião e magia, fé e crença em forças ocultas.

Em geral, a religião não permitia desde essa época que o fiel consultasse qualquer tipo de médico. No 1º Testamento, a figura do sacerdote reunia as qualidades de curandeiro e o homem de ligação com Javé. Procurar um médico e não utilizar o recurso da oração consistia em falha grave. Comparavam-se os médicos aos embalsamadores egípcios. Por volta do século II já se admitia a consulta a um médico (p. ex. Lucas), mas somente depois de se ter ido ao Templo.

Para doenças vistas como conseqüência do pecado deveria haver um remédio religioso, uma mágica, um ritual. O medico se utilizava, então, do método do exorcismo como forma de cura. A doença também era considera impureza, o que impedia o acesso do doente ao Templo, tendo que adquirir alguns passaportes para esse fim (comprar animais para o sacrifício).

No manual de doutrinas da IURD, Macedo diz que todas as enfermidades têm uma origem em comum, i.e., que são causadas por um espírito de enfermidade ou uma bactéria demoníaca. Por isso, em muitos casos, dar-se ordem aos loucos e lunáticos para que todo mal saía do corpo do homem “possuído”.

Retornando à interpretação do mundo grego, a doença era sinal de possessão.

Outras interpretações é a de que a doença era um sinal de que o demônio tomou posse da pessoa. Muitos povos primitivos, particularmente os gregos, responsabilizavam os deuses pelas doenças; assim, por exemplo, a palavra “influenza”, que significa gripe, originalmente significava que alguém está sob a influência maligna dos astros – os deuses podiam curar desde que lhes fossem oferecidos um sacrifício apropriado.

Da mesma forma que na Mesopotâmia as doenças eram e atribuídas aos demônios e, no judaísmo as doenças psíquicas eram consideradas como diabólica, no Brasil, semelhantemente os Exús e outros deuses de origem africana, são responsáveis pelas doenças: credita-se a Exú as doenças das vias bucais. Há referências aos demônios das dores de cabeça nas tabuinhas cuneiformes da Babilônia. O processo de cura para as “doenças de possessão’ se daria através do ritual de “exorcismo”. O exorcismo é a prática mais comum para qualquer caso de possessão.

7.2. Exorcismo e cura

Dentro do processo de formação da crença em espíritos possuidores, da explicação sobrenatural daquilo que não se compreende ou não se aceita, foi necessário descobrir como curar ou “extrair” o espírito de dentro da pessoa. De forma primitiva, dentro da crença das várias épocas, destacam-se alguns métodos: processos eméticos, processos purgantes, processos de sangria e processos a quente (nos primeiros casos fazia-se o possesso vomitar até perder a alma). Utilizava-se também do calor , colocando-se a cabeça do possesso dentro de um forno, como forma de expelir o demônio.

Esperava-se que o demônio saísse desta forma. Se não saía pela “porta da frente”, tentava-se fazê-lo sair pela retaguarda, empregando purgantes com vontade. Persistindo a ação demoníaca, os “médicos” aplicavam sangria, na vã tentativa de expulsar o Diabo de dentro do corpo da vítima.

A possessão e exorcismo poderiam, talvez, ser considerado fenômenos culturais por serem encontrados em quase todas as culturas. Sempre existe alguma forma de possessão e alguma forma de exorcismo. Analisando a cultura geral de povo pode-se perceber qual o seu grau de compreensão e interação com essa questão. A cultura indígena brasileira e a cultura africana permitem, com certa liberdade, uma reflexão mais correta.

Para os cristãos a cura está em Jesus Cristo, Deus.

8. CULTURA
8.1. Indígena brasileira

Outras culturas têm explicações diferentes para a presença do Bem e do Mal no seus meio, diferentes do dualismo ocidental. Dentro da cultura latina, os colonizadores “demonizaram” as crenças das terras conquistadas. Aquilo que acreditavam ser diferente era anticristão. Ao realizarem a primeira missa na Terra de Santa Cruz, crucificaram os índios como hereges. Esse primeiro ritual cristão de posse desfigurou o verdadeiro sentido da cruz. Mas também os mataram, que mesmo depois de mil anos não ressuscitarão. Contarão em suas lendas como foram possuídos pelo homem branco sem cura ou exorcismo.

Entre os índios o exorcismo era conhecido.

Entre os índios do Brasil a possessão pelos espíritos é um fenômeno mais do que conhecido. O ciclo de lendas do Jurupari, relacionado com herói civilizador que trouxe a organização patriarcal, inclui o fenômeno de possessão como algo bastante comum. O espírito do herói pode ser incorporado mediante técnicas especiais, em cerimônias secretas, a que só podem comparecer os homens. Por vezes, espíritos contrários tomam conta de alguns membros da tribu e são esconjurados, por meio de invocações e furmigações. Para os índios avás-canoeiros, de Goiás, não existe o mal como força eterna e absoluta. A força cósmica é sempre boa, positiva. Por isso eles riem dos brancos que vivem num dilema constante entre um deus bom e um deus agressivo. Esses povos admitem o mal na terra, por exemplo, na cobra, mas este depende totalmente da experiência humana. A cobra só faz mal se alguém mexer com ela. A culpa não será da cobra, mas sim de quem vai provocá-la.

A teologia indígena, portanto, já elaborava de forma bem avançada a reflexão sobre o bem e o mal, não necessitando de teólogos oficiais e demonstrando sabedoria.

8.2. Africanos

Os africanos também foram demonizados em seus costumes, cultura e religião. Assim, obrigatoriamente foram aceitando certa superioridade da cultura do exílio, relacionando–a a um fator sócio-econômico. Verifica-se o preconceito religioso.

O próprio negro brasileiro, ao estudar a religiões africanas de seu país, aceita o ponto de vista do branco, o da superioridade da civilização ocidental. Tende-se inconscientemente a admitir que o candomblé não pode fundamentar ou postular uma filosofia do universo e uma concepção do homem, diferentes sem dúvida das nossas, mas tão ricas e complexas quanto estas, a pretexto de que o fiéis dessas religiões pertencem em geral às camadas mais baixas da população – empregadas, lavadeiras, proletários.

Na opinião de Neusa Itioka, “os negros teriam todas as razões para confundir os santos católicos com os orixás do seu animismo ou fetichismo.” [Itálicos deste autor]. Essa afirmação demonstra como ao demais estudiosos evangélicos, o preconceito sobre aquilo que desconhecem, além de tratar-se de uma afirmação racista ao creditar ao negro a impossibilidade de reflexão, o que poderia ser sintetizado nas palavras do sociólogo Roger Bastide. Ele considera que “... é preciso demonstrar que esses cultos não são um tecido de superstições, que, pelo contrário, subtendem uma cosmologia, uma psicologia e uma teodicéia; enfim, que o pensamento africano é um pensamento culto.”

Além disso, torna-se necessário reagir imediatamente contra um preconceito pejorativo que ameaça desnaturar a descrição dos fatos etnográficos; que impedia, na realidade, a compreensão do verdadeiro significado das cerimônias e dos gestos, apresentando-os antes como uma espécie da caricatura ou de degradação.

Ainda, na opinião de Bastide, o candomblé é uma imagem de sociedade divina. Portanto, ao citar a possessão (ou êxtase – como chama Bastide) é falar de uma possessão divina, dentro da concepção africana. Os evangelicais ocidentais vão “discernir” que o que os possui nos seus domínios (nos seus terreiros) são demônios. É a demonização em curso histórico.

(Haveria ainda espaço para falar de outras religiões, por exemplo, o Hinduísmo, onde Brahma é neutro. Nele não há maldade nem bondade).

Caminhando ao lado do preconceito cultural (demonização da cultura), ainda existe o preconceito de gênero (demonização da mulher), “como parte mais fraca”.

8.3. Preconceito de gênero: a mulher

Dentro da maioria das religiões a mulher ainda é a maioria, porém a mais discriminada. Torna-se a “mais possuída” em todos os sentidos. Ainda que seja por mais vezes objeto do divino, também foi por muitas vezes instrumento do Mal. À mulher coube a culpa histórica de introduzir no mundo o pecado.

Crossan, citando Ioan Lewis, comparou opressão com possessão:
Ioan Lewis chamou atenção para a conexão existente entre possessão e a opressão, quer esta tome a forma de sujeição sexual e familial das mulheres aos homens, ou da racial e imperial de um povo a outro. No primeiro caso “os cultos de possessão feminina são (...) movimentos de protesto quase explícitos contra o sexo dominante (...) Dentro da sua função social a possessão por espíritos estrangeiros surge como uma estratégia agressiva oblíqua” (31,32). No segundo caso, as sociedades em que persistem cultos de possessão centrais geralmente são compostas por pequenas unidades sociais fluidas, expostas a condições ambientais particularmente rigorosas, ou comunidades conquistadas que vivem sob o domínio da opressão estrangeira” (35).

Dentro desse aspecto social, a mais penalizada será a mulher, uma vítima por excelência.

Incorporando, pois, todas as crenças da Antiguidade, amplificado pelo discurso da Igreja, o Diabo preside a vida comunitária cristã. Em toda parte se vê o diabólico, o mundo inteiro é por ele invadido. E sua vítima é, por excelência a mulher. Porque a mulher está mais predestinada ao Mal que o homem, segundo os textos bíblicos – “Toda a malícia é leve, comparada com a malícia de uma mulher; que a sorte dos pecadores caia sobre essa!” (Eclesiástico 25:26) – e os primeiros teólogos cristãos.

“Desde o princípio, foi a mulher que Deus nomeou como antagonista do espírito do mal (Gn 3,15).” Essa interpretação ainda está vigente no meio evangelical. Mas essa nomeação não a exclui de ser portadora do mesmo mal que antagoniza e às vezes personifica.

Também não havia clemência na opinião dos padres da igreja sobre as mulheres e o diabo.

Mas, de acordo com os textos dos Padres da Igreja, nos primeiros séculos, havia ao mesmo tempo uma visão teológica contrária em relação ao papel das mulheres. Elas é que eram consideradas as tentações dos homens, que procuravam levar o homem à queda. Em alguns desses textos, parecia que as mulheres não tinham papel algum a desempenhar na criação, exceto como instrumentos do Diabo e como tentações a serem vencidas. Em muitos casos os textos bíblicos, com suas formulações, serviram como fonte de opressão, sobretudo das mulheres. Em outros casos, eles trazem a luta de muitas mulheres que não se conformaram com a triste realidade à qual eram submetidas. O texto bíblico também é produto de uma determinada cultura histórica, muitas vezes androcêntrica e patriarcal. Resgatar isso nos possibilita uma leitura libertadora, não só em relação à mulher, como também ao homem. Também nos oferece pistas de como velhos paradigmas, que só serviam para legitimar o poder de uns em cima de outros, podem ser superados, em favor da busca e da construção de novas relações de gênero entre mulher e homem.

A dominação da mulher por círculos de poder poderia ser chamada de possessão. Os círculos de poder (pode-se chamar de demônios) podem ser a igreja, os homens, os códigos culturais, etc. Por mais incrível que pareça, a sexualidade é o maior campo de possessão, tanto feminina como masculina. “É a descoberta da sexualidade como reciprocidade, mas também como fator de dominação. A serpente é um símbolo de dominação: seu culto era bastante difuso no norte do Estado de Israel. (...) Cobrir as genitálias, as dores de parto, o desejo que leva à dominação, a hostilidade da mulher com a serpente (Gn 3,15-16): tudo isso é confirmação do projeto de dominação que a serpente representa. Ela é astuta (é símbolo também de sabedoria), e pode enganar. Pela sexualidade pode-se enganar, também! E a mulher, não por ser mais fraca, mas por estar mais ligada à geração da vida, é mais exposta que o homem a este engano. (...) devemos pensar no sistema de dominação patriarcal, cujo símbolo é a serpente, reafirmado e reforçado pelo cristianismo posterior.” O papa Gregório Magno, em seus Diálogos, conta que uma pobre freira, tendo entrado na horta do convento para colher alfaces e comido, sem a oração devida, um pé de alface no qual um diabo se escondia, ficou por isso endemoniada.

Curiosamente, tanto havia demônios-machos (súcubos) como demônio fêmea (íncubus). De duas formas a mulher era possuída. Deitam-se com as mulheres ou as corrompem, pois são fracas e culpadas.

Os súcubos (“os que deitam por baixo”) eram demônios fêmeos que assaltavam os homens adormecidos, sob o aspecto de mulheres formosas, às vezes virgens, impelindo-os a quebrarem os votos de castidade ou, no caso de homens casados, a cometerem adultério. (...) Os íncubos (“os que se deitam por cima”) representavam a contrapartida masculina, buscando corromper a mulher, deflorando-a, se fosse virgem, ou arrastando as esposas ao adultério.

Para a mulher não havia fuga possível. Ou era possuída pelo mal ou era geradora dele. A sexualidade é uma das maiores formas de possessão de gênero.

III. PARTE
1. Em nossos dias...

Dizem que o “Deus e o Diabo dos brancos chegaram ao nordeste [do Brasil] nas caravelas de Pedro Alvares Cabral”. Provérbios e contradições à parte, toda conquista diviniza ou demoniza, a exemplo dos conflitos que envolvem árabes e norte-americanos neste tempo (século XXI). Não poderia deixar de ser diferente no tempo de Jesus, com a conquista romana, onde a população sofria forte pressão de ambos os lados. Nesse contexto a explicação da possessão como fator social fica ainda mais evidente. Seria uma espécie de protesto.

Na antropologia e nas demais ciências sociais “pode-se observar um interesse pelo ambiente social em que o indivíduo está inserido; o problema é visto já dentro do campo de interação entre o indivíduo e o grupo social”. Deve-se, portanto analisar que relação existe entre grupo social e possessão demoníaca. Dessa interação derivam os “demônios” que o invadem sem permissão. Entre tornar-se possesso e ser possesso existe uma grande diferença, pois tornar-se implica no resultado de um processo externo e ser implica em um processo interno. Tanto o oprimido como o opressor podem tornar-se ou ser.

O historiador Joseph Campbell exemplifica melhor essa tese:
“Um professor”,escreveu Leo Froebius em um famoso ensaio sobre a força do mundo demoníaco (daimoniacós) na infância, “está escrevendo em sua mesa de trabalho e sua filha de quatro anos está correndo pela sala. Ela não tem nada para fazer e o está perturbando. Então, ele dá a ela três palitos de fósforos queimados, dizendo: ‘Olhe, brinque com isto’, e ela senta-se no tapete e começa a representar com os fósforos, Joãozinho, Mariazinha e a bruxa. Assim passa um bocado de tempo, durante o qual o professor se concentra em seu trabalho sem ser interrompido. Até que, de repente, a menina grita aterrorizada. O pai corre, perguntando: ‘O que é? O que aconteceu?’ A menina corre para ele, mostrando todos os sinais de pânico. ‘Papai, papai’, ela grita, ‘tire a bruxa daqui! Não suporto mais a bruxa!” “Uma explosão emocional”, observa Froebius, é uma característica de uma mudança espontânea de idéia, do nível dos sentimentos (Gemut) para o da consciência sensorial (sinnliches Bewusstsein). Além do mais, o surgimento de tal explosão obviamente significa que determinado processo espiritual se completou. O palito de fósforo não é uma bruxa; tampouco o era para a menina no início da brincadeira. O processo, portanto, está no fato de o fósforo ter-se transformado numa bruxa no nível dos sentimentos e conclusão do processo coincide com a transferência dessa idéia para o plano da consciência. A observação do processo escapa à avaliação do pensamento consciente, pois ela entra na consciência apenas após ou no momento da conclusão. Entretanto, desde que a idéia é, ela deve ter-se tornado. O processo é criativo, no melhor sentido da palavra; pois, como vimos, para uma criança um palito de fósforo pode tornar-se uma bruxa. Concluindo: a fase do tornar-se ocorre no nível dos sentimentos, enquanto a do ser está no plano consciente.

O escritor russo Dostoievski, na sua obra Os Demônios, onde nenhum personagem é um espírito mal – todos são humanos, transmite a mensagem de que o mal “tem realidade na medida em que o demônio faz de uma criatura um possesso”. Está implícito o processo de tornar-se.

Seria incorreto, então, concluir que no “seio da própria igreja há uma atividade demoníaca” , na medida em que os demônios são invocados para depois serem rechaçados sob o poder de Deus? Filosoficamente o ser torna-se não-ser para depois de “liberto” retornar a ser o que era antes. É um paradoxo de transformação invocar – fazer se manifestar - para depois expulsar. Quais serão as alterações físicas e emocionais por quais passará o indivíduo nesse processo de “possível” cura (exorcismo)?

Na verdade, dentro de um ambiente social de opressão política, religiosa e econômica o indivíduo passa por um processo religioso de cura/exorcismo, quando essa pretensa cura é apenas um paliativo para a doença que reside em outro lugar. A tentativa de esclarecer o verdadeiro lugar da doença continua.

2. O AMBIENTE SOCIAL

O mundo ainda vive o conflito dualista entre o bem e o mal.

As forças destruidoras da vida ainda estão entre nós: doença, alienação, pobreza, miséria, exclusão, preconceito, desemprego, violências, poluição, destruição do meio ambiente, corrupção, drogas, vícios etc. São os demônios e os espíritos maus de hoje.

A sociedade é culpada por causar distúrbios nos indivíduos. Os comportamentos estranhos são uma forma de protesto, de reação, p. ex., a possessão. Ou seja, procurar a causa apenas no indivíduo não é o melhor caminho a percorrer, embora o individualismo concorra com um mal solitário deste século. O evangelicalismos e o fundamentalismo focalizam o problema apenas no indivíduo que não se integra, responsabilizando-o inteiramente pelo mal que o possui. Daí resultam os adjetivos de que é cunhado: pobre e maldito, impossibilitado de se comunicar com Deus.

O possesso geraseno representa ...a exclusão social com todas as suas conseqüências: “desajustamento social”, enfermidades psíquicas, redução da pessoa ao nível vegetativo, sem capacidade de comunicação.

No ambiente social onde estes fenômenos ocorrem, atualmente, não foi possível perceber ainda uma prática inclusiva, a prática de Jesus, que interferisse no processo de exorcismo sem deslocar o foco da questão. Segundo Émile Durkheim, sociólogo, deve-se afastar “sistematicamente todas as prenoções”, pois é a base de um método confiável de investigação e estudo. As prenoções são como dogmas milenares do cristianismo e da cultura.

3. SOCIEDADE E EXORCISMO SOCIAL

A sociedade atual precisa de exorcismo, mas a religiosidade cristã por vezes atrapalha, como bem expressa Bráulia Ribeiro, missionária da Jocum na Região Norte do Brasil. Perdeu-se o foco da libertação.

A nossa religiosidade rasa às vezes nos leva a exorcizar pessoas, e não demônios. Um verdadeiro ato de amor a Deus e aos pobres exorciza os demônios que habitam nossa consciência social e atrai aqueles a quem Deus ama para libertá-los.

O teólogo Irineu J. Rabuske afirma que espírito e demônios tem papéis baseados naquilo que cada sociedade lhe atribui de bom ou mal. Isso é significativo porque é ideologicamente concebido, intencionalmente explorado. Mas, por outro lado, estão claros os componentes que contribuem para a ideologia da possessão. O papel do cristianismo contemporâneo reside na verificação correta do mal e no remédio apropriado.

Muito do que os exorcistas da Igreja antiga conseguiram por meio de esconjuro, hoje deve ser alcançados mediante médicos e cientistas, economistas e políticos. Os exorcistas cristãos primitivos compartilhavam um movimento amplo e excedente ao próprio âmbito das comunidades, do qual (o movimento) o mundo daquele tempo esperava alívio para os seus males. Se o cristianismo atual quiser assumir parte desta preocupação dos antigos exorcistas, então necessita percorrer os caminhos que hoje para isso são necessários, isto é, deve realizar exorcismos mediante a razão e o esclarecimento.

4. CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS

A possessão demoníaca contém o germe da violência porque o indivíduo alienado não consegue distinguir a causa de seus atos, nem o que seus atos significam. Isto acontece porque aquilo que o possui pensa e dirige as cenas da sua vida. Ao se tornar violento, ele representa a sociedade. O mal que ela lhe causa retorna para ela mesma. Visto que as sociedades são violentas por natureza, surge a necessidade de sublimação, compensação, o que indica logo seguir, a criação de um bode expiatório, sintetizado na figura do demônio.

O autor [R. Girardi] recorre ao princípio do bode expiatório, isto é, a violência expulsa a violência, como base da organização das sociedades. Alicerçadas nesse princípio, as sociedades são violentas por natureza e, como tal, necessariamente sucumbem pelo princípio de divisão interna.

Assim, ao nascimento de um indivíduo, de acordo com Durkheim, a sociedade já o aguarda com seus códigos e seus intérpretes autorizados, fórmulas prontas, que existem fora de si mesmos. Portanto, o indivíduo possuído com o germe da violência traz dentro de si a compensação de um bode expiatório, porque a sociedade já definiu isso antes dele nascer. Então, se outro “ser” o comanda, questiona-se se esse homem é culpado.

Não é possível esquecer os demônios - os outros demônios - contemporâneos semelhantes aos da violência. A questão econômica de uma nação pode sofrer o males do “demônio da inflação”, por exemplo. Esse esquema, ou sistema negro de anulação pessoal exige prática igual à de Jesus Exorcista, a fim de esboçar, mesmo que, timidamente, um exorcismo social, ou seja, exorcizar a sociedade, exorcizar as entidades e instituições demoníacas, quer cidades, estados, governos ou igrejas.

Têm-nos temidos, como coisas [os demônios] de um poder desconhecido, isto é, um poder ilimitado para fazer o bem e o mal, e consequentemente, têm dado ocasião aos governantes dos Estados gentios para controlarem assim seu receio, estabelecendo aquela demonologia (na qual os poetas, como sacerdotes principais da religião pagã, eram especialmente empregados, ou respeitados) necessária para a paz pública e para a obediência dos súditos, e para tornarem algum deles bons demónios, e outros maus, uns como esporas para a violência, os outros como rédeas para impedi-los de violar as leis.

Os grupos que se fecham a uma explicação razoável ou racional, mesmo sendo parte da solução e vêem nesses fenômenos de possessão algo de outro mundo são grupos fundamentalistas, que fizeram uma opção ideológica bastante clara e pragmática. Demonizam aquilo que não entendem ou não consegue explicar racionalmente.

4.1. Sociedade possuída

O mundo político do tempo de Jesus expressava essa “demonologia” na violenta dominação romana. Não era uma dominação legítima em termos modernos. Para responder de acordos com as suas forças, o povo elabora suas explicações, visões e cosmologia. É a religião popular produzindo válvulas de escape por meio de mundo sobrenatural. O gadareno está vivendo sob o governo de Roma e poderosas legiões. Quando liberto por Jesus, senta-se como um homem normal, vestido, que articula bem as palavras e expressa, além de tudo, seu desejo de seguir o Mestre. Sua classificação muda de uma hora para outra. Há um nexo entre doença e possessão e classes sociais. O gadareno, por assim dizer, muda de classe social.

A religião popular de uma sociedade – não a de uma igreja na sociedade – prescreve palavras de ordem que apenas recobrem, com os termos do sagrado, o código de trocas das classes de que é parte, ocupando um dos seus setores de produção simbólica de serviços e significados e respondendo por funções de atribuição de legitimidade, não apenas de uma ordem dominante de relações, como se afirma com freqüência, mas principalmente de modos subalternos de vida no interior dessa ordem, ocupando-se muito mais em estabelecer preceitos de trocas entre os seus próprios sujeitos, do que entre eles e qualquer instituição religiosa.

Ter vez é voz na sociedade somente é possível após um ato de libertação divina. A restauração da comunicação do homem alienado e Deus são possíveis. Chama-se religação, religare, um ato cristão por excelência. Não é possível fazer religação através da batalha espiritual ou quebra de maldições. Se o homem é exorcizado do demônio da pobreza para, assim, se tornar rico, possuidor das riquezas deste mundo, outro demônio o possui: o demônio da riqueza. Há apenas uma troca. A casa vazia permite a entradas de demônios piores. Ou então, Jesus é expulso como foi expulso da Decápolis.

A atitude dos que pedem para Jesus ir embora é a mesma de uma sociedade que valoriza mais as posses dos bens do que a libertação dos alienados e escravizados. Em primeiro lugar, Deus quer que o homem viva. A sociedade que põe qualquer coisa acima da vida humana é sociedade que rejeita Jesus.

A visão de um homem adentrando o tempo do capitalismo (Shopping), consumindo (prestando culto ao deus mercado), lhe dá uma sensação de poder (de compra) que não tem. Ele já possuído pelo espírito do capitalismo e a ética protestante (atual) não lhe permite refletir sozinho. O exorcismo (com x) tornar-se “esorcismo” (com s). Ainda sobre a batalha espiritual são verdadeiras são as palavras de Bráulia Ribeiro na Revista Ultimado:

Senti-me desnudada em minhas motivações. Demônios me atraem, crianças sofrendo, não. Antros de trevas e agentes sobrenaturais de repente se tornaram minha motivação e a da igreja, envolvidos nesse video game gigante, brincando de evangelho. Um evangelho-viagem, cósmico, que vai se distanciando sutilmente do evangelho-terra, evangelho-gente, evangelho-amor, evangelho dos pobres e de Jesus.

(...) A batalha espiritual que não gera transformação de consciência social, transformação ética e moral, que não quebra a nossa hipócrita indiferença de classe média brasileira em relação aos pobres, que não cura nossa sociedade aleijada, não passa de animismo, de feitiçaria. (...) A nossa religiosidade rasa às vezes nos leva a exorcizar pessoas, e não demônios. Um verdadeiro ato de amor a Deus e aos pobres exorciza os demônios que habitam nossa consciência social e atrai aqueles a quem Deus ama para libertá-los.

Há um mal cultural inerente às sociedades humanas. Esse mal cultural rompe o equilíbrio social e religioso. As respostas do homem atual são (e serão) as mesmas do homem antigo. Escapará para o mundo cósmico, onde as potestades e principados guerrearão uma guerra acima dos homens mortais. Isto soa muito homérico, mitológico.

No entanto, qualquer que seja o mal, qualquer interpretação que se lhes dê (está claro que o Mal existe sempre personificado), desestabiliza e desequilibra a vida, trazendo o caos para tudo e para todos. A “fuga para o céu” onde tudo se realiza não é mais platônico (a) porque a filosofia na era do evangelicalismo, de modo geral, é incipiente e não comportaria uma reflexão dessa magnitude. Mas poderia se dizer que tudo ocorre no “mundo das idéias”.

A existência do mal dentro de um grupo social característico torna esse grupo impotente, por um tempo breve ou paralisa a revolta dos excluídos?

No interior de um sistema popular de crenças, onde todos o seres agem como os da Terra e têm, portanto, interesses políticos, a existência do Mal demonstra o seu poder sempre provisório, mas sempre renovado, de romper as normas do equilíbrio da vida, da sociedade e da natureza e introduzir sobre todas as coisas um estado transitório de desordem.

Dentro dessa perspectiva, “a ciência moderna funcionou como uma espécie de exorcista enquanto superou em grande parte as concepções ingênuas antigas, apresentando explicações razoáveis para fenômenos antes atribuídos somente a causas metafísicas”. E ainda assim o homem busca explicações (no sentido de cura e salvação), das mais variadas.

“O homem pode buscar a salvação diante de várias concepções do mal – ansiedade, doença, sensação de inferioridade, dor, medo da morte, preocupação com a ordem social. Ele procura, então, soluções de ordens diferentes: uma cura; a eliminação de agentes maléficos; a sensação de que tem acesso ao poder; uma melhoria da sua posição social; maior prosperidade; a promessa de vida após a morte, de reencarnação, de uma ressurreição do túmulo, ou de uma fama que possa perdurar para a posteridade; a transformação da ordem social (incluindo a restauração de uma ordem social do passado, real ou imaginária). (...) Das várias teodicéias que organizam as diversas promessas e atividades apropriadas para lidar com essas percepções específicas do mal, duas reações são bastante comuns entre os povos menos desenvolvidos: a taumatúrgica e a revolucionária” (492).

Esse paralelismo do exorcismo com a revolução tem sentido. Se o dominador é o demônio em pessoa, a salvação virá apenas pela revolução política e social. A tomada do poder é a vitória sobre o poder das trevas.

4.2. Exorcismo social

Desde que a possessão pode ser social, política, econômica e psicológica, torna-se necessário usar a palavra como forma de comunicação, pois o “demônio fala e ouve” e tem um nome pelo qual é reconhecida sua atuação, como faziam os xamãs mesopotâmicos.

Para dominar nossos maus espíritos/demônios interiores/complexos/pensamentos obsessivos, devemos usar palavras mais fortes para quebrá-los, derrotá-los, sujeitá-los. Acima de tudo, devemos dar um nome a eles. Enquanto continuamos como uma legião anônima que não podemos discernir com clareza, eles são muito assustadores. Mas quando recebem um nome, ou são interpretados pelo analista, eles perdem o poder. Ficam desmistificados.

O reconhecimento daquilo que oprime e possui o ser humano contra sua vontade já possibilita experimentar um antídoto, porque ao serem desmistificados perdem a aura de poder que tanto assusta e se tornam “velhos conhecidos”. Ao utilizar a palavra como meio de exorcismo social, está-se utilizando da linguagem comum, ou então não haveria palavras de ordem em nome de Jesus. A bem da verdade, segundo algumas opiniões, um demônio somente pode ser expulso e repreendido se receber uma ordem para sair em voz audível.

Don Cupitt, teólogo anglicano, afirma com todas as letras que as próprias palavras são demônios e fica a pergunta se um reinado pode sobreviver com divisões internas. Nesse ponto ele concorda com Rubem Alves. Cuppit afirma ainda:

Por conseguinte, os espíritos desmitologizados tornam-se palavras gerais e o enorme poder do mundo espiritual sobre os mundos das experiências sensorial passa a ser o enorme poder que a linguagem tem de formar, ordenar e classificar a realidade. As palavras são demônios que podem com tanta facilidade escorregar direto do mundo externo para os seus pensamentos mais íntimos e deixá-lo profundamente perturbado, e elas são os mensageiros alados que você envia para realizar os mais variados propósitos. Palavras são objetos públicos invisíveis, pairando ao meu redor. Enquanto escrevo, em multidão, como um enxame de espíritos. A linguagem é o poder sobrenatural que nos fez sair do estado natural.

“Somos morada de palavras, possessões demoníacas ou o vento indomável do Espírito Santo.”

5. EXCLUSÃO DE GÊNERO: A DIMENSÃO FEMININA DA POSSESSÃO

De acordo com a afirmação do teólogo Irineu J. Rabuske, “a interpretação religiosa da possessão não é mais possível” . A ênfase numa visão social permite diferenciar os tipos, formas e gêneros de possessão e a conseqüente interação com as demais ciências.

Uma forma de preconceito de gênero, desde a Idade Média, foi feita contra as mulheres. O medo do poder do feminino invadia as mentes masculinas religiosas ao ponto de criarem todo um aparato contra as chamadas “bruxas” e que se chamou de Inquisição.

Outros estudiosos já verificaram a conexão entre possessão e gênero feminino.

Ioan Lewis chamou atenção para a conexão existente entre possessão e a opressão, quer esta tome a forma de sujeição sexual e familial das mulheres aos homens, ou da racial e imperial de um povo a outro. No primeiro caso “os cultos de possessão feminina são (...) movimentos de protesto quase explícitos contra o sexo dominante (... Dentro da sua função social a possessão por espíritos estrangeiros surge como uma estratégia agressiva oblíqua” (31,32). N segundo caso, as sociedades em que persistem cultos de possessão centrais geralmente são compostas por pequenas unidades sociais fluidas, expostas a condições ambientais particularmente rigorosas, ou comunidades conquistadas que vivem sob o domínio da opressão estrangeira”.

O que também é a constatação de Rabuske quando cita Katharina Elliger.

Ao longo da história do cristianismo, na maior parte dos casos de possessão trata-se de mulheres. Katharina Elliger observa que, nesses relatos, as vítimas são, na maioria, mulheres humildes, sem instrução e pertencentes às classes mais baixas da sociedade. Tendo presente a histórica opressão da mulher na sociedade ocidental, é plenamente válido supor que estamos diante de uma categoria social oprimida, de acordo com a já citada tese de Gerd Theissen, segundo a qual as narrativas de possessão do NT são, em grande parte, expressão das classes oprimidas. A pesquisa antropológica tem constatado que, nas diversas religiões, possessão pode ser um recurso mediante o qual mulheres e grupos de pessoas oprimidas e carentes de atenção procuram se fazer valer diante de seus maridos ou superiores.

A melhor de chamar a atenção é a possessão. Todas as atenções se voltam para esse fenômeno extraordinário.

6. O PODER DA LINGUAGEM COMO LIBERTAÇÃO

Aldous Huxley sintetizou o resultado da linguagem na formação do mundo e das ideías de forma brilhante. Nada escapa ao poder da palavra bem dita.

A linguagem é o instrumento do progresso humano para além da animalidade, e a linguagem é a causa do desvio do homem, a partir da inocência animal e de sua conformidade à natureza das coisas, para a loucura e as crenças nos demônios. As palavras são ao mesmo tempo indispensáveis e fatais. Tratadas como hipóteses de trabalho, as proposições acerca do mundo são instrumentos para podermos entendê-lo cada vez mais. Tratadas como verdades absolutas, como dogmas que devem ser assimilado, como ídolos que devem ser adorados, as proposições sobre o mundo distorcem nossa visão da realidade e nos conduzem a todo tipo de conduta imprópria.

Traugot Constantin Osterreich, professor, antropólogo, teólogo alemão, descreve o caminho da linguagem desde a filosofia grega, de acordo com Don Cuppit

.... no decorrer da história do pensamento o mundo arcaico dos espíritos foi transformado por Platão em seu Mundo Inteligível de idéias gerais ou Formas. Mais tarde, de novo, o mundo superior de Platão foi transformado por Kant numa ordem de conceitos mentais, e essa, por sua vez, se transformou na filosofia moderna (na década de 1930) no vocabulário de nossa linguagem. Condensando todo esse longo e complexo processo, vemos hoje, do nosso ponto de vista, que o mundo sobrenatural da religião foi, o tempo todo, uma representação mítica do mundo da linguagem.

A obsessão pelo domínio da linguagem, a descoberta de que linguagem pode introjetar quaisquer idéias nas pessoas mediante técnicas apuradas de neurolinguística (para usar somente este exemplo), transformaram alguns seres humanos em demônios, que visam o tempo todo possuir almas e mentes desavisadas para seus mais perversos fins. Nisto a possessão nada tem de sobrenatural, porque parte diretamente do mundo terrestre onde homens se confundem com demônios mediante uma só palavra.

Aldous Haxley, o homem que pesquisou os eventos de Loudun concluiu a mesma coisa. Ele comenta:
A possessão é mais mundana do que sobrenatural. Os homens deixam-se obcecar por pensamentos sobre uma pessoa, uma classe, uma raça ou uma nação, à qual odeiam. Atualmente, os destinos do mundo estão nas mãos de endemoninhados – homens que se deixam possuir pelo mal que escolheram descobrir nos outros. Eles não acreditam no Diabo; mas fizeram todas as tentativas possíveis para serem possuídos – e obtiveram sucesso. E, uma vez que acreditam ainda menos em Deus que no Demônio, parece bastante improvável que consigam se curar da possessão.

Não existe exorcismo para o homem que procura o mal. Este o consome por inteiro.

7. CONCLUSÃO

A presença do Mal na vida humana é inquestionável. A despeito de a Bíblia trazer uma visão de mundo que não coincide com a visão do século XXI, ainda assim, não se pode negar essa presença nefasta. Muito mais importante do que isso é atitude de Jesus frente ao fenômeno. Jesus, como um exorcista do seu tempo, provou que é possível a libertação do ser humano de qualquer opressão que o aliene. Bastam apenas algumas considerações finais a respeito da perícope de Marcos 5,1-20, a começar pelas questões textuais até a análise teológica.

Conhecendo agora textos que nos mostram Jesus como exorcista. Duas são a provas que eles nos fornecem, a saber: (1) a de que Jesus libertava os homens de determinados males que os seus contemporâneos consideravam como possessões diabólicas; (2) a de que os próprios textos não foram redigidos à maneira dos fatos, como os concebe a moderna historiografia. Ele contém um grande número de elementos formais daquela época, além de uma mensagem bastante explícita. Eles estão a serviço da proclamação da palavra da salvação. Temos aí uma questão, por não tratada, mas que se coloca para o homem de nossa época a respeito deste gênero de narrativa: eram forças realmente pessoais, eram demônios que Jesus expulsava das pessoas? Ou os possessos sofriam de doenças que somente em razão dos conhecimentos insuficientes daquela época e de uma concepção superada do mundo, que acreditava na existência de espíritos bons e espíritos maus, eram considerados possessões diabólicas? Esse tipo de pergunta não dirige apenas ao passado. Elas desembocam, sobretudo na questão absolutamente atual de saber como os cristãos, em nossos dias, devem continuar a obra exorcística de Jesus: procurando o diabo em pessoa para torná-lo inofensivo, ou procurando conhecer a forças que ameaçam a existência, represá-las e vencê-las por um engajamento multiforme, mediante a prática do bem?

O mal, como afirma Weise, “é sempre pessoal”. Sempre necessita de alguém para se expressar, sempre um ser humano será o vetor principal da manifestação demoníaca. E um agrupamento de pessoas poderão se tornar em uma instituição possessa, cega para as verdadeiras necessidades de outros irmãos, opressora e detentora de todas as verdades.

Os homens criados à semelhança de Deus precisam vê-lo mais nas pessoas do que oter olhos apenas para o Inimigo.

A possessão existe em quase todas as culturas “primitivas”. A interpretação de como isso se dá é diferente de uma cultura para outra. Para uns a possessão é divina, para outros é diabólica. Para os cristãos ocidentais qualquer possessão que não seja divina (pelo Espírito Santo) é negativa.

Ficar doente é estar possuído, porque a impossibilidade de cura antigamente era computada aos deuses e somente um ritual de exorcismo curaria o doente/possesso. O Primeiro Testamento não crê nos demônios e o Segundo Testamento já aparece com a ação demoníaca. Acredita-se que essa crença é externa ao judaísmo. Para os Pais da Igreja o mundo era tridimensional.

Para os indígenas brasileiros o mal existem para quem provocá-lo. Para os africanos exilados à força, ser possuído é ser visitado por deuses da terra natal.

Às mulheres, após a Queda, é reservada a imagem da culpa pelo Mal que entra no mundo. São dominadas (possuídas) de muitas formas: socialmente, sexualmente. Até chega-se ao ponto do Apóstolo Paulo dizer que serão salvas ao dar à luz. É o direito de salvação reservado à procriação. Sem falar na gestação de um possível anticristo (acredita-se que uma das novidades do fim do mundo seria a imitação que o diabo faria para gerar o anticristo à semelhança de Maria, sem contato humano).

Historicamente, portanto, a possessão demoníaca e seus agentes, os demônios, estão vinculados a uma terrível pressão social, em que os menores indivíduos de uma sociedade são os maiores culpados.

Alguns evangelicais brasileiros ainda mantêm uma atitude de abertura frente ao mundo teológico, o que não quer dizer que acreditem ou desacreditem, concordem ou discordem. Assim ainda é possível ler algumas opiniões muito bem consistentes. Basta citar dois exemplos. Um descreve o diabo como “ninguém” (baseado no poeta Baudelaire) e, portanto, não possui poder que não lhe seja dado.

Enquanto Deus afirma: “Eu sou o que sou” (Êx. 3.14), Satanás declara, segundo o poeta francês Baudelaire: “O meu nome é Ninguém. Não há ninguém: de quem deveis ter medo? Ides tremer diante do Não-existente?”

A outra é a consciente missionária da Jocum, Bráulia Ribeiro.

A batalha espiritual que não gera transformação de consciência social, transformação ética e moral, que não quebra a nossa hipócrita indiferença de classe média brasileira em relação aos pobres, que não cura nossa sociedade aleijada, não passa de animismo, de feitiçaria.

Ambos estão de acordo em não dar atenção a quem, ou o quê, não merece atenção. Antes, deve-se focalizar no ser humano e suas necessidades. Suas necessidades sociais, físicas, emocionais dependem de um correto discernimento do mal que os aflige sem piedade. São demônios, são “flores do mal”, são feiticeiros modernos e não menos sedentos de sangue. Leonardo Boff transforma o diabólico e lhe dá um novo significado.

Dia-bólico provém de dia-bállein. Literalmente significa: lançar coisas para longe, de forma desagregada e sem direção; jogar fora de qualquer jeito. Dia-bólico, como se vê, é o oposto do sim-bólico. È tudo o que desconcentra, desune, separa e opõe.

Ao que se pode deduzir que os homens podem dar significados diferentes à mesma coisa, objeto ou crença. Os demônios, responsáveis pelo mal, foram bodes expiatórios das civilizações. Atualmente, o retorno do “sagrado selvagem” pinta o mundo de outras formas. Porém, menos agressivas na aparência e, no entanto, causadoras do mesmo mal. Não se pode dar mais atenção ao mal do que ao bem, mas pode-se transforma-lo, através de ações que possibilitem a libertação do indivíduo em sociedade. Quem centra sua batalha no mal não consegue mudar o mundo para melhor, se violência gera violência.

Os teólogos, torno a repetir, acautelaram-se ao máximo contra o dualismo maniqueísta, mas em todas as épocas, grande número de cristãos procedeu como se o Diabo fosse o Princípio Fundamental, nivelando-se a Deus. Deram mais atenção ao mal e ao problema de sua erradicação, do que ao bem e às atitudes que contribuíam para o aumento da virtude. Os efeitos provocados pela obsessão do mal são sempre desastrosos. Aqueles que empreendem uma cruzada, não para se encontrarem com Deus, mas para combater o Diabo nos outros, nunca conseguem tornar o mundo melhor, mas o deixam como está ou algumas vezes um tanto pior do que estava ante do início da cruzada. Pensando principalmente na mal, tendemos, por melhores que sejam nossas intenções, a criar ensejo para que o mal se manifeste.

Jesus Cristo Exorcista é o centro da libertação. Quando o possuído é libertado daquilo que o paralisa, aliena e destroi, denuncia a sociedade excludente, que busca mais o mal do que o bem. É o princípio da cura.
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domingo, 24 de abril de 2011

Livros proféticos do Antigo Testamento

Os Livros Proféticos do Antigo Testamento subdividem em dois grupos na Bíblia cristã, o dos primeiros profetas (maiores) e o dos profetas menores.

Em graus diversos e sob formas variadas, as grandes religiões da antiguidade tiveram pessoas inspiradas que pretendiam falar em nome de seu deus. O sentido original da palavra profeta (nabî) em hebraico deriva de uma raiz que significa "Chamar, anunciar", portanto, o profeta seria aquele que é chamado ou que anuncia, um mensageiro e um intérprete da palavra divina, conforme se pode verificar em (Jr 1,9).

Pela sua coragem de questionar a situação presente e vislumbrar um futuro diferente para o seu povo, os profetas sempre exerceram atração fascinante. Muitos chegam até a confundir profeta com adivinhador do futuro. Outros chegam a pensar que eles ensinavam coisas absolutamente novas. O verdadeiro profeta, no entanto, é aquele que preserva a tradição autêntica do seu povo, perdida ou deformada em meio a tantas tradições criadas para defender interesses, legitimar poderes e sustentar sistemas.

O núcleo central da tradição autêntica é a lembrança da libertação contada no Livro do Êxodo, ou seja, o reencontro com o verdadeiro Deus revelado a Moisés: Eu sou Javé seu Deus, que fiz você sair da terra do Egito, da casa da escravidão (Ex 20,2; Dt 5,6). Portanto, profeta é aquele que se inspira na ação libertadora do Deus do Êxodo e, a partir daí, analisa a situação presente e mostra o projeto de Deus para o futuro do seu povo.

As atividades do profeta variam de acordo com seus ouvintes e com o momento histórico em que ele vive. Cada profeta tem o seu estilo próprio, e pronuncia anúncios e denúncias diante de situações bem determinadas. No entanto, podemos perceber duas grandes vertentes na atividade dos profetas:
● Exigência de conversão, para mudar o sistema social, a fim de que o julgamento de Deus não recaia sobre o povo. Esse tema é predominante nos profetas que exerceram sua atividade antes do exílio na Babilônia.
● Anúncio de esperança, para encorajar e estimular o povo, que tinha perdido sua terra e corria o perigo de perder a própria identidade. Esse anúncio fazia retomar a caminhada da reconstrução, recuperando a fé em Javé e os valores históricos alcançados em nome dessa mesma fé.

Os livros proféticos testemunham a vida e atividade de homens que possuem fé profunda e vigorosa; homens que procuram levar o povo a um relacionamento sempre renovado e responsável com o Deus que julga e salva.

A literatura profética pode ser dividida de várias maneiras. A mais tradicional e comum, entre os cristãos, é a divisão em profetas maiores e profetas menores. Não porque uns sejam mais importantes que outros, mas simplesmente pela extensão de seus escritos. Os profetas maiores são quatro: Isaías, Jeremias (que também teria escrito Lamentações), Ezequiel, Daniel.
Os menores são doze: Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias, cabendo observar que o Livro de Baruc, que consta na Septuaginta e nas Bíblias adotadas pela Igreja Católica e pelas Igrejas Ortodoxas, próximo ao Livro de Jeremias, é Deuterocanônico, ou seja, não consta na Bíblia Hebraica e não é aceito pelas Igrejas que adotam a Bíblia proposta por Lutero.

Por sua vez, a Bíblia Hebraica agrupa os livros de Isaías, Jeremias, Ezequiel e os dos doze profetas sob o título de "Profetas Posteriores" e os coloca após os "Profetas Anteriores": (Josué, Juízes, I Samuel, II Samuel, I Reis, II Reis), enquanto que a Septuaginta (tradução do Antigo Testamento para o Grego Koiné, cuja a estrutura é utilizada por maior parte das Igrejas Cristãs) apresenta os livros proféticos depois dos Livros Históricos, destacando-se que a Bíblia Hebraica não incluí o Lamentações e Daniel entre os "Profetas Posteriores", mas entre os "Escritos" (Kethuvim) – (escritos).

NOTA: A consideração de um livro como apócrifo varia de acordo com a religião. Por exemplo, alguns livros considerados canônicos pelos católicos são considerados apócrifos pelos judeus e pelos evangélicos (protestantes). Alguns destes livros são os inclusos na Septuaginta por razões históricas ou religiosas. A terminologia teológica católica romana/ortodoxa para os mesmos é deuterocanônicos, isto é, os livros que foram reconhecidos como canônicos em um segundo momento (do grego, deutero significando "outro"). Destes fazem parte os livros de Tobias, Judite, I e II Macabeus, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico (também chamado Sirácide ou Ben Sirá), Baruc (ou Baruque) e também as adições em Ester e em Daniel - nomeadamente os episódios da História de Susana e de Bel e o dragão.

Cronologia dos Profetas de Israel

Profetas Narrativos: Elias (de 870 a 845) – reino do norte: Eliseu (de 850 a 800) – reino do norte

Profetas Pré-Exílicos (de 760 a 586)

Jonas ( 760 - provavelmente pós-exílico) – reino do norte

Amós (de 770 a 750) – reino do norte

Oséias (de 750 a 722) – reino do norte

Isaías (de 740 a 690) – reino do sul

Miquéias (de 740 a 685)- reino do sul

Sofonias (de 635 a 620) – reino do sul

Jeremias (de 626 a 586) – reino do sul

Habacuque (de 615 a 590) – reino do sul

Naum ( de 663 a 612 ) – reino do sul

Obadias (de 605 a 590) – reino do sul


Profetas Exílicos (586 a 538)

Ezequiel (de 593 a 571) – reino do sul

Daniel (século VI) – reino do sul


Profetas Pós-Exílicos (de 548 a 440)

Ageu (520) – reino do sul

Zacarias (de 520 a 518) – reino do sul

Malaquias ( de 450 a 400 ) – reino do sul

Joel ( ?) - reino do sul

1- Reino Dividido (933-587 AC)

O Reino de Israel, no tempo do rei Roboão, se divide, formando dois reinos: Israel, ao Norte, tendo como cidade principal Samaria, formado por 10 das 12 tribos; e forma-se ao sul o reino de Judá, tendo Jerusalém como centro político e religioso, formado pelas tribos de Judá/ Simeão e Benjamim. Após essa divisão ocorrem diversas investidas na região por parte do Egito, Assíria e Babilônia, que ao dominarem as regiões, tributavam-nas. As 10 tribos do Norte são tomadas pelos Assírios no séc. VIII a. C. e o reino do sul sofre com os egípcios tributando-os e no séc. VII e no séc. VI a. C. com os babilônicos.

Conseqüências da Queda:
a. Divisão causada pelo pecado de Salomão e pela dureza de Roboão, seu filho e herdeiro, na questão dos impostos.
b. Reino do Norte (Israel) começa com Jeroboão I (filho de Nebate) e todos os reis seguem seu exemplo de idolatria.
c. Reino do Sul (Judá) começa com Roboão, filho de Salomão (Roboão foi idólatra), mas o Reino do Sul teve alguns bons reis: Asa, Jeosafá, Joás, Jotão, Ezequias, Josias.

2- Dois Reinos: Norte e Sul (933-721 AC)

Livros sobre o período: I e II Reis, II Crônicas

Profetas do Reino do Norte: Elias, Eliseu, Jonas, Amós, Oséias

Profetas do Reino do Sul: Micaías, Joel, Isaías, Miquéias, Jeremias, Habacuque

3- IMPÉRIO ASSÍRIO – (880 a 612 a.C.)

Declínio E Queda Do Reinado

1. Queda do Reino do Norte e cativeiro israelita sob os assírios (722/721 AC) - ISRAEL

Profeta do período: Oséias

Livro sobre o período: II Reis

Cativos não mais voltam à sua terra.

Em 722 a.C. o RN é levado cativo pelos Assírios

2. Reino do Sul sozinho (721-587 AC) - JUDÁ

Profetas do período: Isaías, Miquéias, Jeremias, Sofonias, Habacuque

Livros sobre o perído: II Reis, II Crônicas

O Império Assírio durou até que Assur caiu em poder dos medos em 614 a.C. e Nínive foi destruída pelos medos e babilônicos em 612 a.C.

4. IMPÉRIO BABILÔNICO – (614 a.C. a 559/538 a.C.)

Queda e Cativeiro do Reino do Sul (606 AC em diante)

Profetas do período da Queda e Cativeiro: Jeremias, Habacuque, Daniel, Ezequiel, Obadias

Profetas em Babilônia, no cativeiro: Daniel, Ezequiel

Livros sobre o período: II Reis, II Crônicas, Daniel, Ezequiel
Reino do Sul (Judá) vencido pela Babilônia (Nabucodonosor): início do cativeiro de Judá (606 AC).

É nesse período que Nabucodonosor rei da Babilônia, por motivo de uma rebelião por parte dos judeus contra seu domínio tributário, em 605 a. C., leva cativo o rei de Judá e parte do povo da terra. Em uma segunda rebelião, Jerusalém é cercada por dois anos e num segundo cativeiro são levados mais de 10.000 habitantes. Uma terceira rebelião faz com que Jerusalém seja totalmente destruída, os muros são derrubados, o Templo destruído e seus tesouros roubados (que segundo relatos bíblicos eram muitos).

Jovens, donzelas, velhos, crianças são mortos pela fome dos cercos e tomadas da cidade. A tomada e a destruição de Jerusalém são detalhadamente contadas no final do segundo Livro dos Reis.[7]

5 - POR QUÊ O EXÍLIO? – PROPÓSITOS - 70 ANOS!

(Muito mais um Exílio que um cativeiro – foi um tempo de renovação e purificação do povo de Deus)Pela desobediência do povo. Moisés já havia advertido o povo sobre isto (Dt 28.15-68)

Cativeiro do Norte – Desobediência e idolatria (2 Re 17.6-20)

v.6-7 ARA No ano nono de Oséias, o rei da Assíria tomou a Samaria e transportou a Israel para a Assíria; e os fez habitar em Hala, junto a Habor e ao rio Gozã, e nas cidades dos medos. Tal sucedeu porque os filhos de Israel pecaram contra o SENHOR, seu Deus, que os fizera subir da terra do Egito, de debaixo da mão de Faraó, rei do Egito; e temeram a outros deuses.

Cativeiro do Sul – Desobediência e idolatria (Jr 25.7)

v. 7 ARA Todavia, não me destes ouvidos, diz o SENHOR, mas me provocastes à ira com as obras de vossas mãos, para o vosso próprio mal.(Ver também Ez 8-11)
Pelo não cumprimento da lei do sábado (Ano do Jubileu – Lv 25.2-7) Esta causa é narrada pelo cronista (2 Cr 36.21)
O povo precisava saber que só Yavé é Yavé (Ez 35.9,15; 38.23; 39.6).

Terra, Templo e Trono. Deus estava demonstrando que Ele não requeria a posse física da terra, o culto no templo de Jerusalém e um trono físico em Jerusalém. O exílio era, portanto, uma lição objetiva para a era do NT. A Terra, o Templo e o Trono, eram sombra de realidade que estavam por vir.

6 - Reis de Israel:
1- Jeroboão I (937 aC) 1Rs 11.282- Nadabe (915 aC) 1Rs 14.203- Baasa ( 914 aC) 1Rs 15.164- Elá (891 aC) 1Rs 16.85- Zinri (890 aC) 1Rs 16.156- Onri (890 aC) 1Rs 16.167- Acabe (876 aC) 1Rs 16.298- Acazias (856 aC) 1Rs 22.409- Jeorão ou Jorão (854 aC) 2Rs 1.1710- Jeú (842 aC) 1Rs 19.1611- Joacaz (814 aC) 2Rs 10.3512- Joás (797 aC) 2Rs 13.1013- Jeroboão II (781 aC) 2Rs 14.2314- Zacarias (741 aC) 2Rs 14.2915- Salum (741 aC) 2Rs 15.1016- Manaém (740 aC) 2Rs 15.1417- Pecalias (737 aC) 2Rs 15.2318- Peca (736 aC) 2Rs 15.2519- Oséias (730 aC) 2Rs 15.307 -
Reis de Judá:

1- Reoboão (937 aC) 1Rs 11.432- Abias (920 aC) 1Rs 14.313- Asa (917 aC) 1Rs 15.84- Josafá (878 aC) 1Rs 15.245- Jeorão (851 aC) 2Cr 21.16- Acazias (843 aC) 2Rs 8.257- Atalias (rainha) (842 aC) 2Rs 8.268- Joás (836 aC) 2Rs 11.29- Amazias (796 aC) 2Rs 14.110- Uzias ou Azarias (777 aC) 2Rs 14.2111- Jotão (750 aC) 2Rs 15.512- Acaz (734 aC) 2Rs 15.3813- Ezequias (727 aC) 2Rs 16.2014- Manasses (697 aC) 2Rs 21.115- Amon (642 aC) 2Rs 21.1916- Josias (640 aC) 1Rs 13.217- Joacaz ou Salum (608 aC) 2Rs 23.3018- Joaquim (608 aC) 2Rs 23.3419- Jeoaquim ou Jeconias (598 aC) 2Rs 24.620- Zedequias ou Matanias ( 598 aC) 2 Rs 24.17

●O Reino do Norte (Reino de Israel) foi levado cativo pela Assíria de 724 até 722 a.C. Houve 3 anos de cerco até o desfecho final. A duração do cativeiro foi de 150 anos. Seu último rei foi Oséias. Teve seus povos espalhados entre as nações e povos mistos passaram habitar Israel, daí, o surgimento da cisma contra os Samaritanos (povos misturados). Tiveram 9 dinastias e 19 reis, a duração do reino do Norte foi de 220 anos até o cativeiro. Sua capital política era Samaria e como capitais religiosas tinha Betel e Dã, assim como, dois templos com 2 bezerros para adoração construídos pelo rei Jeroboão.

●O Reino do Sul (Reino de Judá) foi levado cativo pela Babilônia em 586 a.c, foram deportados apenas os intelectuais, membros de família real, e deixados os pobres. Seu último rei foi Joaquim. A deportação para o cativeiro foi realizado em etapas. A duração do cativeiro foi de 70 anos. Tinha em Jerusalém sua capital religiosa e política. Teve apenas 1 dinastia (davídica) e 20 reis, a duração do reino do Sul foi de 350 anos, 130 anos a mais do que o reino do Norte.
PROFECIA PRÉ-CLÁSSICA

Podemos observar várias fases no desenvolvimento da instituição profética em Israel. No início da história israelita, os profetas, freqüentemente detinham a liderança. Moisés é o melhor exemplo disso; ele era qualificado para liderar o povo em virtude do ofício profético. Débora foi juíza em Israel por ter se destacado como profetisa. Depois de Moisés, o melhor exemplo de profeta anterior a monarquia é Samuel. O texto de 1 Samuel, capítulo 3 descreve o estabelecimento das credenciais proféticas de Samuel. Ele foi o grande líder na transição do período dos juízes para a monarquia.

A profecia pré-monárquica foi apenas um dos estágios da denominada profecia pré-clássica israelita. Quando Samuel ungiu Saul, o papel de profeta se tornou de conselheiro do rei. Esse tipo de profeta se assemelhava ao tipo predominante no Antigo Oriente Médio. Não existem livros que reúnam as profecias do período pré-clássico, mas oráculos dispersos surgem nos livros históricos. O serviço de Samuel para Saul é documentado no livro de 1Samuel, e o profeta Natã conselheiro oficial do rei Davi é evidente em 2Samuel. Embora não possamos considerar Elias um conselheiro do rei Acabe, ele serviu de porta-voz do Senhor no período desse rei.

Como o público do profeta pré-clássico era o rei, as mensagens eram adaptadas as circunstâncias da corte. Por isso as profecias consistiam na maioria dos casos em palavras de incentivo ou advertência ao rei.

O MINISTÉRIO PROFÉTICO DE ELIAS E ELISEU

Os relatos dos ministérios de Elias e Eliseu são importantes não só como biografias representantes do movimento profético pré-clássico, mas também como tratados de fé que celebram personagens centrais do drama religioso de Israel. Elias e Eliseu representam monumentos de fé inabalável em Javé como Deus dos israelitas. Eles serviram de testemunho vivo da fidelidade de Deus a Israel e a sua supremacia sobre o deus cananeu Baal.

O PROFETA ELIAS


Elias, o tesbita, era de Tisbe, na região de Gileade. O nome Elias significa “Jeová é meu Deus” e adaptava-se perfeitamente a ele. Foi o mais notável dos profetas.

Acabe, rei de Israel, casou com a princesa de Sidom, Jezabel. Seu reinado foi marcado pelas loucuras de sua esposa e pela adoração a Baal. Surgindo inesperadamente do deserto e pondo-se diante do rei corrupto, no esplendor de sua corte, o severo profeta falou-lhe ousadamente: “Tão certo como vive o Senhor, Deus de Israel em cuja presença estou, nem orvalho nem chuva haverá nestes anos, segundo a minha palavra” (1Rs 17.1). Fora-lhe dado por Deus poder para fechar os céus de tal modo que não chovesse durante três anos e meio. Ele também pediu que descesse fogo do céu diante dos profetas de Baal no monte Carmelo. Elias foi o grande evangelista do seu tempo, trazendo duras advertências aquele povo idólatra.

Segundo a pregação de Elias, apenas por intermédio de Deus viria a fertilidade da terra. Em tempos de seca e flagelos agrários, o povo era tentado a olhar para Baal, o deus da fertilidade cananita, e buscar socorro. Elias é veemente na sua mensagem contra essa crendice do povo, mostrando que só Deus pode socorrer.

Afora sua pregação principal, os textos conservados sobre Elias relatam uma batalha entre ele e os profetas de Baal (1Rs 18), a predição da seca (1Rs 17.1), as ações milagrosas de provisão e ressurreição (1Rs 17.2-24), sua fuga para a região de Berseba (1Rs 19). Também pregou contra a apropriação indevida de terras pelo rei Acabe (1Rs 21).
Elias foi arrebatado aos céus num redemoinho, diante de seu moço, Eliseu (2Rs 2.1-11).

O PROFETA ELISEU

Eliseu, filho de Safate. Era agricultor. O nome Eliseu significa "Deus é Salvação" ou "Deus salva". Ele foi o sucessor de Elias, seu ministério durou cinqüenta anos. Atou na política bem mais que seu mestre Elias. Foi Eliseu que ungiu Jeú, e mandou que ele exterminasse a família de Acabe. Eliseu, assim como, o seu mestre Elias mostrou-se zeloso pela adoração a Javé e foi contra o sincretismo religioso. Como Elias também realizou milagres, inclusive ressurreição (2Rs 4.32-36).
A maior parte de seus milagres foram atos de bondade e misericórdia. Teve grande influência sobre os reis de seus dias e, embora desaprovasse os atos deles, vinha sempre em seu socorro.

Eliseu apresentou acentuado contraste com Elias:
Elias foi profeta do julgamento, da lei, da severidade.
Eliseu foi profeta da graça, do amor, da ternura.

A PROFECIA CLÁSSICA

A fase mais conhecida da profecia israelita é denominada profecia clássica. Os livros proféticos da Bíblia são todos coleções de oráculos dos profetas clássicos. A profecia clássica começou no século VIII, durante a liderança de Jeroboão II, no Reino do Norte, Israel. Amós e Oséias foram os primeiros exemplos no Norte, e Miquéias e Isaías foram os primeiros profetas clássicos conhecidos no Reino do Sul, Judá. Apesar de muitos profetas clássicos continuarem a se dirigir ao rei e lhe transmitirem mensagens específicas, a maioria dos oráculos era dirigida ao povo. Os profetas pré-clássicos anunciaram o “programa divino” para o rei, os profetas clássicos anunciavam as intenções divinas para o povo. Os profetas clássicos tornaram-se críticos espirituais e sociais dos reis e povo da época, o que os profetas pré-clássicos jamais foram.
A mensagem ou discurso do profeta clássico iniciava sempre com a expressão: “Assim diz o Senhor” ou “Assim diz o Senhor dos Exércitos”.

OS PRINCIPAIS PROFETAS CLÁSSICOS

NO SÉCULO VIII


Os profetas do século VIII a.C. acompanharam os acontecimentos do Reino do Norte e os primeiros sinais de crise do Reino do Sul. Para eles era notório que tais fatos pudessem acontecer e ser explicados devido ao ressentimento de Deus com relação ao seu povo, que realizava práticas idólatras. A idéia de que Ele controlava a História colocava não só Israel, mas todo o Universo, submetido à sua vontade e autoridade. Esses profetas foram os primeiros a conceber tal conceito, que se tornou a base de sua religião.

Nesse período foram quatro os representantes proféticos, tendo dois atuado no Reino do Norte e dois no Reino do Sul.

AMÓS (760-750 a.C.) - sua ação se deu durante o reinado de Jeroboão II (783-743 a.C.). Suas palavras foram anunciadas contra o Reino de Israel devido ao desprezo pelo direito da justiça, ignorados pelos líderes, cujas atitudes atingiram diretamente a população mais fraca e mais frágil da sociedade. Além disso, o profeta denunciava as atitudes hipócritas de culto a Deus, não havendo mais tempo para uma remissão do povo, uma vez que a paciência de Deus se esgotara e o castigo breve viria.

OSÉIAS (750 a.C.) - seu trabalho profético também se deu durante o reinado de Jeroboão II, pouco depois de Amós. Sua missão desenvolveu-se a partir de ameaças e julgamentos seguidos de promessas. Criticou as influências dos cultos cananeus que interferiram no culto a Deus, levando o povo ao sincretismo religioso.

ISAÍAS (740-701 a.C.) - atuou no Reino do Sul e foi o terceiro a falar nesse século. Ele pregou o julgamento de Jerusalém, criticando a hipocrisia no culto, assim como Amós. Sob o reinado de Acaz, rei de Judá, o profeta se colocou contra a aliança feita por esse monarca com o rei da Assíria, Tiglate-Pileser, defendendo a crença incondicional em Deus. Por não ter sido ouvido ele se afastou da vida pública, tendo seu retiro terminado quando foi realizado durante o governo de Ezequias, uma coalizão patrocinada por Azoto, cidade filistéia, inspirada pelo Egito, cujo resultado foi a tomada da cidade e deportação de sua população. Sua posição contrária à política nacionalista ezequiana colocou-o em conflito com o governo. As críticas a política nacionalista continuaram, lembrando ao rei que Senaqueribe (704-681 a.C.), rei da Assíria, era um instrumento nas mãos de Deus para o exercício da vontade divina.

MIQUEIAS (740 a.C.) – foi outro profeta que atuou no Reino do Sul. Foi contemporâneo do profeta Isaías. Sua profecia condenava as atitudes sociais dos governantes contra o povo e anunciava o julgamento sobre Samaria e Jerusalém, capitais do Reino do Norte e do Sul, respectivamente. Semelhantemente a Amós, ele criticou a iniqüidade que estava instaurada no meio do povo e o fato de os governantes desprezarem a justiça, levando o país ao caos. Foram anunciadas medidas a serem tomadas por Jeová contra seu povo.

NO SÉCULO VII

Sobre os profetas do século VII a.C., eles viram a crise pelo qual passara o Reino do Sul, herdeiro legítimo do Reino do Norte, uma vez que este desaparecera. Dentre eles a figura mais importante foi a do profeta Jeremias. Além dele outros três profetas se destacaram: Naum, Sofonias e Habacuque.

NAUM (612 a.C.) - a atuação dele ocorreu durante o reinado de Manassés, rei de Judá. Seu texto se diferenciou dos outros profetas á medida que anunciava a felicidade de Judá. Segundo ele, uma vez que o reino pagava altos tributos à Assíria, seus pecados já estavam “pagos”, de tal modo que Deus não permitiria que seu povo passasse por mais humilhações. A Assíria era vista como instrumento de Deus, porém como teria passado dos limites quando de sua atuação com o Reino do Norte, essa nação deveria ser castigada. Sua missão foi marcada pela pouca fé do povo, uma vez que este estava sob o jugo assírio e assim não confiava em seu Deus, entregando-se à idolatria.

SOFONIAS (630 a.C.) - deve ter atuado durante o reinado de Josias. Suas palavras eram contra todas as práticas sincréticas, fornecendo provavelmente as bases para a reforma religiosa que viria a ocorrer. Essa reforma promovida por esse monarca não conseguiu extirpar a idolatria instaurada durante o reinado de Manassés, motivo pelos quais os profetas continuaram a anunciar o castigo divino. O profeta também atacou o domínio assírio, porém de modo mais tênue que Naum.
Uma de suas mensagens defendia a idéia de que como Deus morava em Jerusalém, apesar de todas as iniqüidades ela seria libertada do pecado. Uma parte da população de Judá sobreviveria e seria purificada. Sofonias também abriu a possibilidade para que outros povos do mundo tivessem felicidade futura, anunciando a vinda desse grupo para Sião.

HABACUQUE (605-601 a.C.) - foi o terceiro profeta desse período. Sua obra pode ser colocada no período do domínio babilônico em Judá. Foi composta por um conjunto de queixas para com seu Deus sobre as atitudes do seu povo, seguidas de respostas divinas. Em sua principal lamentação ele afirmou que Deus era puro demais e por essa razão não poderia ver o mal que havia em Judá. A resposta de Deus foi que Ele se utilizaria de uma nação para a realização de seus desígnios, fato já mencionado anteriormente pelo profeta Isaías, Outro oráculo anunciava um princípio onde o justo viveria por sua fidelidade a Deus. Assim, a visão do profeta mudou o que refletiu em seu cântico final, afirmando a fidelidade a Deus, mesmo sem compreendê-la.

JEREMIAS (626-586 a.C.) - sobre o profeta Jeremias, principal expoente da profecia desse século, suas primeiras pregações foram apelos para o retorno do povo do Reino do Norte para Jerusalém, à Casa de Davi, além de denunciar o pecado local e anunciar as condições necessárias para o estabelecimento de uma nova Aliança com Deus. Ocorreu então a reforma promovida por Josias.

O rei Jeoaquim teve o profeta Jeremias como opositor devido a sua política pró-Egito. Suas profecias passaram a ser ditadas a seu amanuense Baruque, incumbido de lê-las no templo, uma vez que a entrada de Jeremias havia sido proibida. O rei numa dessas leituras, tentou anular a Palavra de Deus, provocando a fuga de Jeremias e de Baruque que tiveram de se esconder.

A atuação de Jeremias ficou mais fácil quando subiu ao trono Zedequias, que confiava plenamente no profeta. Por volta de 594 a.C., revoltas da Babilônia eclodiram, além de um novo faraó no Egito, despertando a esperança de uma solução breve para o problema dos exilados de 597 a.C. O pseudo-profeta Hananias, de Gibeão, previu o retorno da população deportada dentro de dois anos (Jeremias 28.1-10), porém o profeta Jeremias se colocou contra tal discurso, afirmando que o retorno, apesar de ser uma vontade divina, não era para tão cedo e ordenou através de uma carta aos exilados, que se instalassem no país para onde foram enviados. Jeremias aconselhou Zedequias a ser submisso à Babilônia.

Porém, em 588 a.C. Nabucodonosor sitiou Jerusalém, que resistiu por um ano e meio. A cidade não suportou tal pressão e caiu em 586 a.C., e o profeta Jeremias foi protegido pelas autoridades babilônicas. A destruição foi anunciada por Jeremias, justificada pelas atitudes iníquas do povo, que não soube manter a aliança com o seu Deus. Nesse caso o profeta incluiu os homens que ocupavam desde os mais altos postos no Reino até o povo mais simples. Ninguém escapou. As maiores críticas foram aos que mais conhecimento possuíam, pois deveriam guiar o povo e não o fizeram. O exemplo retirado da destruição do Reino de Israel simbolizava um retorno ao caos, devido ao pecado cultivado no meio de toda a população.

NO SÉCULO VI
No século VI a.C. Daniel e Ezequiel foram os profetas da esperança. Daniel foi deportado muito jovem para a Babilônia, exatamente no ano 605 a.C., onde viveu mais de sessenta anos, servindo a seus governantes babilônios e dois persas. Ele e seus companheiros eram de linhagem real e pertenciam à nobreza de Judá. Já Ezequiel (593-571 a.C.) foi um mestre espiritual no exílio, e a partir dele uma nova concepção sobre as relações entre Israel e Deus se impuseram.
Não sabemos exatamente quando se iniciou seu chamado profético, entretanto sua voz se fez ouvir desde a Babilônia. O profeta anunciou o término do tempo da responsabilidade coletiva e de que cada um deveria responder por si a Deus.
A partir de todos esses acontecimentos o profeta Ezequiel os viu como provas de que o povo de Deus deveria viver isoladamente e marginalizado, pois como Ele é real e santo, deveria permanecer afastado de tudo comunicando-se apenas com algo que Ele tivesse santificado: o templo, Jerusalém, o território e o povo, sendo todo o restante considerado profano.

O privilégio do povo de Israel deveria ser manifestado através da obediência, uma vez que foi na ausência dela que o povo pecou e por isso foi castigado. Assim como muitos profetas anteriores, Ezequiel sempre relembrou os momentos de desobediência e as suas conseqüências.

CONCLUSÃO
Cada uma das mensagens tem relevância para o público do profeta e para nós, não tanto pela informação oferecida sobre o presente ou futuro, mas pela revelação a respeito de Deus. Devemos lembrar que a profecia fazia parte da auto-revelação divina. Encontra-se na mensagem do profeta, a proclamação do “programa” de Deus.

1. ADIVINHAÇÃO E PROFECIA
1.1. Os deuses e a adivinhação.
1.2. Adivinhação e magia.
1.3. As formas de adivinhação.

2. A COMPLEXA IMAGEM DO PROFETA
2.1. Diferenças entre os profetas.
2.2. Diversas imagens do profeta.
2.3. Os traços essenciais do profeta.

3. A PALAVRA PROFÉTICA
3.1. Força e fraqueza da palavra profética.
3.2. Os gêneros literários.

4. OS LIVROS PROFÉTICOS
4.1. Os livros proféticos.
4.2. A formação dos livros.
4.3. A palavra original do profeta.
4.4. A obra dos discípulos e seguidores.
4.5. As adições posteriores.

ADIVINHAÇÃO E PROFECIA - Há uma coisa que é comum aos jornais e revistas das ideologias mais díspares: o horóscopo. Em doze constelações e quatro segmentos (amor, trabalho, saúde, dinheiro) esboça-se o futuro imediato dos pobres mortais. Quase nada se acredita do horóscopo. Mas muitos o lêem. Porque aborda uma das coisas mais apaixonantes para o ser humano: seu futuro, esse futuro feito de sonhos e de incertezas, de planos grandiosos ou pequenas esperanças e projetos. Que é que nos reserva a complexa trama da vida? Quem conhece o nosso destino?

Também o presente às vezes nos angústia com a sua insegurança e com os problemas que nos apresenta. O que será o mais adequado no momento presente? Que devo fazer? Em uma época como a nossa se aceita a ignorância e a dúvida; ou, então se recorre, quando possível, a soluções lógicas e técnicas. Os generais romanos examinavam as vísceras das vítimas antes de iniciar uma batalha.

Para o desembarque na Normandia, os “adivinhos” da época foram os “meteorologistas”. Da informação deles dependia a escolha do momento. Saul foi eleito rei segundo uma tradição tirando-lhe a sorte. Atualmente elegem-se presidentes de governo depositando cédulas nas urnas. As terras de Israel foram distribuídas entre as tribos por sorteio.

Nosso mundo e nossa cultura têm mudado profundamente nos últimos séculos. Mas isto não deve impedir-nos de compreender a mentalidade do homem antigo, ainda bastante parecida à de alguns contemporâneos nossos. Muita gente não é capaz de encarar as incertezas da vida com atitude lógica e científica. Busca-se ajuda em um mundo diferente, o dos deuses, dos espíritos, dos astros, ou do destino. No mundo que cercava o Israel antigo, as religiões já estavam bem organizadas e difundidas naquela época, e, embora por vezes se recorra aos espíritos dos antepassados, acredita-se que são os deuses que podem transmitir a informação desejada. Todavia, estarão eles dispostos a revelar os seus conhecimentos?

1.1. Os deuses e a adivinhação – a maioria dos antigos endossaria as palavras que Heródoto coloca na boca de Ciro: “Os deuses velam por mim e me predizem tudo o que se trama contra mim”. Ou, como parece pensar o mesmo Heródoto: “Há que deduzir que, quando sobre uma cidade ou uma nação estão por abater grandes calamidades, a divindade costuma profetizá-las com antecedência”. No fundo está idéia nada difere do que o próprio Deus comenta antes de destruir Sodoma e Gomorra: “Posso ocultar a Abraão o que tenho em mente fazer? (Gn. 18,17). Ou o que se indica de passagem no livro de Amós: “O Senhor não fará nada sem revelar seu plano a seus servos os profetas” (Am 3,7). A vida pode apresentar-nos muitos sofrimentos e lágrimas, mas os deuses, sabem tudo, estão dispostos a evitar maiores males para nós se nos preocuparmos em consultá-los, sendo até possível que se adiantem em fazê-lo.

Inclusive em uma mentalidade como a grega, em que Zeus sempre tem ciúmes dos homens, haverá pelo menos outro deus disposto a conceder aos mortais o dom da adivinhação. Está é a idéia formulada genialmente por Ésquilo (Ésquilo foi um dramaturgo da Grécia Antiga. É reconhecido frequentemente como o pai da tragédia) em uma passagem do Prometeu acorrentado, ao qual constitui ao mesmo tempo uma curiosa enumeração das mais diversas práticas de adivinhação. Entre os dons que o deus se gloria de haver concedido aos homens, depois da medicina, se encontram: “Classifiquei as muitas formas de adivinhação e fui o primeiro a discernir a parte de cada sonho há de ocorrer na realidade. Dei-lhes a conhecer os sons que encerram presságios de difícil interpretação e os prognósticos contidos nos encontros pelos caminhos. Defini com exatidão o vôo das aves vorazes, quais são favoráveis por natureza e quais sinistros, que classe de vida cada uma tem, quais são os seus ódios, seus amores e companhias, a claridade das suas entranhas e que cor deve ter a bílis para ser agradável aos deuses, e a variegada beleza do glóbulo hepático. Encaminhei os mortais para uma arte na qual é difícil formular presságios, quando coloquei ao fogo os membros cobertos de gordura e o grande lombo. Fiz com que vissem com clareza os sinais que as chamas encerram, chamas essas que antes estavam sem luz para eles. Esta foi a minha obra”.

O que precede é formulação poética e mítica do dom divino da adivinhação. Há lugar para uma outra apresentação mais filosófica e cotidiana, talvez compartilhada por maior número de pessoas. Na Antiguidade, quem melhor formulou este ponto de vista foram os estóicos. O estoicismo é uma doutrina filosófica fundada por Zenão de Cítio, que afirma que todo o universo é corpóreo e governado por um Logos divino (noção que os estóicos tomam de Heráclito e desenvolvem). A alma está identificada com este princípio divino, como parte de um todo ao qual pertence. Este lógos (ou razão universal) ordena todas as coisas: tudo surge a partir dele e de acordo com ele, graças a ele o mundo é um kosmos (termo que em grego significa "harmonia"). Cícero expõe a mentalidade deles da seguinte maneira: “Se existem deuses e estes não dão a conhecer o futuro aos homens, ou não amam os homens, ou eles mesmos desconhecem o futuro, ou consideram que o conhecimento do futuro não nos interessa, ou pensam não ser próprio da majestade divina anunciar-nos as coisas que irão acontecer, ou, em último caso, os próprios deuses não podem comunicar-nos este conhecimento.

Mas nos amam, são benéficos e generosos conosco, não podem desconhecer o que está decretado segundo os seus próprios desígnios, sabem que nos interessa o futuro, e que a nossa prudência aumenta na proporção deste conhecimento, não podem considerar essas advertências impróprias da sua majestade, porque nada existe superior à benevolência, nem tampouco podem desconhecer o futuro. Se não existem deuses, não há sinais do futuro: mas existem deuses, portanto, nos instruem sobre o futuro”.

O próprio Cícero encarrega-se de refutar a teoria estóica. Para ele “é duvidoso e discutível” que os deuses se preocupem com os homens e sejam benévolos para com eles, por outro lado, muitas pessoas negam que os deuses imortais tenham estabelecido tudo e que possam modificá-lo segundo a convêniencia do homem.

Todavia, por mais que Cícero tenha razão, muita gente, na Antiguidade e desde tempos ancestrais, estava convencida de que os deuses ou os espíritos estão dispostos a revelar-nos o futuro ou resolver os nossos problemas presentes.

1.2. Adivinhação e magia – surge então uma das atividades mais antigas e misteriosas: a adivinhação, que no seu início estava intimamente ligada à magia. Efetivamente, o importante não era só conhecer o futuro, mas também modificá-lo em caso de necessidade. Quando o rei Ocozias de Israel, manda consultar o deus Belzebu de Ecron, não lhe interessa obter um simples diagnóstico médico, no fundo da consulta esconde-se o desejo de que o deus cananeu lhe conceda a saúde. Esta relação entre a adivinhação e magia é formulada muito bem por Luciano na petição que coloca na boca de Sexto, filho de Pompeu, quando vai consultar a necromante: “ Tu que podes desvendar aos povos os seus destinos e desviar do seu curso os acontecimentos do futuro...” O que ela possui não é só conhecimento do futuro, mas também poder de mudá-lo. Por isso, termina pedindo-lhe: “arranca à sorte o direito de abater-se sobre mim súbita e imprevisivelmente”. Episódios como estes, dos quais há numerosos paralelos, demonstram a estreita relação entre adivinhação e magia. O mago e o adivinho, eram um mesmo personagem na Antiguidade. Mesmo em tempos posteriores, o profeta hebreu revelará às vezes características mágicas evidentes.

1.3. As formas de adivinhação – a palavra latina “divinatio” (adivinhação) faz referência ao mundo sublime do “divino”. O termo equivalente grego, “mantiké”, é mais neutro. Há pouco mais de vinte séculos, Cícero distinguia duas fórmulas de adivinhação, a artificial e a natural. No final do século passado, passou-se a usar uma terminologia diferente, distinguindo entre a adivinhação indutiva ou técnica e a intuitiva ou natural.

A Adivinhação Indutiva: Ela utiliza uma grande variedade de recursos, que podemos catalogar da seguinte maneira:

A) A partir da observação da natureza: A observação dos corpos celestes (astrologia) e dos fenômenos atmosféricos (aeromancia) figura entre os procedimentos mais conhecidos em todas as culturas para adivinhar o futuro. Baseia-se na estreita relação que imagina existir entre o céu e a terra, o que acontece na terra é pressagiado no céu. Mt. 16:1 Então chegaram a ele os fariseus e os saduceus e, para o experimentarem, pediram-lhe que lhes mostrasse algum sinal do céu. 16:2 Mas ele respondeu, e disse-lhes: Ao cair da tarde, dizeis: Haverá bom tempo, porque o céu está rubro. 16:3 E pela manhã: Hoje haverá tempestade, porque o céu está de um vermelho sombrio. Ora, sabeis discernir o aspecto do céu, e não podeis discernir os sinais dos tempos?

Entre os corpos celestes, o que mais atrai a atenção é a lua, entre outras coisas, por ser mais fácil de examinar. O Antigo Testamento fala desses astrólogos babilônicos. Em Is 47,13, quando o poeta anuncia a grande catástrofe que se aproxima sobre a Babilônia, diz-lhe com ironia: “...que se levantem e te salvem os que estudam o céu, os que observam as estrelas, os que cada mês prognosticam o que vai suceder”.

Existe outra forma menos conhecida de investigar o futuro através da natureza. Refiro-me ao murmúrio na copa das árvores. Em 2Sm 5,24 encontramos essa curiosa tradição. Davi, antes de uma das suas batalhas com os filisteus, consulta a Deus, que lhe responde: “Não ataques. Cerca-os por trás, e logo os atacarás em frente às amoreiras. Quando ouvires ruído de passos na copa das amoreiras, lança-te para o ataque, pois então o Senhor sairá à tua frente para derrotar o exército filisteu.

Não fica claro se ouve um ruído, gritos, passos ou alguém que se aproxima. O importante é que algo se revela na copa das árvores, e é possível conhecê-lo ouvindo o seu ruído.

B) A partir da observação dos animais: o comportamento ou os movimentos dos animais também são usados com freqüencia para adivinhar. Em 1 Sm 6 narra-se um episódio curioso neste sentido. Depois de se terem apoderado da arca, os filisteus não sabem o que fazer com ela. Ela não cessa de provocar-lhes desgraças e epidemias. Os sacerdotes e adivinhos suspeitam que o culpado de tudo é Jave, o deus dos hebreus, a quem pretence a arca. Mas, não têm certeza. E aconselham o seguinte: “Fazei um carro novo, tomai duas vacas com cria, sobre as quais ainda não tenha sido posta canga, atrelai as vacas ao carro, e mandai os bezerros de volta ao estábulo. Depois tomai a arca de Deus e colocai-a no carro. Observai bem: se tomar o caminho da sua terra por Bet-Sames, foi este Deus que nos causou essa terrível calamidade, em caso contrário, saberemos que não foi a mão dele que nos feriu, senão que foi um acidente”.

Dentro dessa adivinhação do futuro através da observação dos animais, ocupa lugar especial o estudo dos pássaros (ornitomancia). O vôo deles, o aparecimento deles pela direita ou pela esquerda, os gritos que lançam, são considerados meios adequados de revelação. Na Mesopotâmia encontramos a seguinte oração: “Samas, senhor do juízo, Acad, senhor da adivinhação...para que N.N., filho de N.N., possa realizar com êxito o seu propósito, fazei com que este pássaro ou aquele outro voe do meu lado direito e (passe) para o meu lado esquerdo”.
Dentro do Antigo Testamento, houve quem quisesse relacionar com esta técnica o que se conta de Abraão no momento em que está oferecendo um sacrifício: “As aves de rapina desciam sobre os cadáveres e Abraão as espantava” (Gn 15,11). A fuga dos pássaros seria um indício de que Deus aceita a oferta dele e estabelacerá aliança com ele. Mas é preciso muita imaginação para ver no gesto do personagem um ato de adivinhação.

C) A partir dos sacrifícios: muito relacionada com o item anterior está a observação dos animais sacrificados. Alguns histioriadores acreditam que a função originária do sacerdote não era oferecer sacrifícios, mas observar e interpretar os possíveis sinais divinos através desses sacrifícios.

A forma principal de adivinhação nesta linha é o estudo das vísceras da vítima (aruspicação). Segundo a mentalidade popular, os deuses escreviam nelas a sua mensagem. Um hino ao deus Samas afirma: “Nas vísceras do cordeiro tu escreves o oráculo”. E diz, uma inscrição de Nabônides: “Fiz um ato de adivinhação, e Samas e Adad me respnderam com um “sim” seguro, colocando sobre as vísceras do meu cordeiro um sinal favorável a propósito da fundação deste templo de Eulmas”.

Nesta linha, a técnica mais desenvolvida e valorizada era a observação do fígado (hepatoscopia). Segundo Platão, é como um espelho no qual se refletem os pensamentos dos deuses. A hepatoscopia só se menciona na Bíblia como costume babilônico. em Ez 21,21.

Mas os sacrifícios prestam-se também para observar a chama, a forma como sobe a fumaça, a sua cor, (capnomancia). Ás vezes oferece-se incenso exclusivamente com esta intenção (libanomancia). É uma prática sobre a qual possuímos poucos dados. Dentro do Antigo Testamento, indica-se como exemplo Jz 13,19-23, pensando que a mãe de Sansão deduz, da forma como sobe a fumaça do sacrifício, que Deus será benévolo com eles e não morrerão. Mas esta interpretação parece rebuscada e desnecesária.

D) A partir da observação de alguns líquidos: em quase todos os povos antigos considera-se a água como elemento gerador e revelador. É possível que da simples observação das ondas formadas por uma pedra atirada a um lago ou ao mar certos adivinhos tentassem obter informação sobre o futuro. Esta técnica se desenvolverá em múltiplas possibilidades.

A mais simples consiste no uso de um só líquido, a água (hidromancia), em um recipiente ou um alguidar com água jogam-se pedrinhas, pedaços de metal ou de madeira, a fim de observar os círculos que se formam, ou os ruídos que tais objetos produzem. No Antigo Testamento, é possível que se relacione com ela o que se narra a propósito de José (Gn 44,5), e que vamos considerar no item que segue.

Uma técnica mais refinada consiste no uso de diversos líquidos, geralmente água e azeite (lecanomancia). Na Mesopotâmia costumava-se derramar umas gotas de água em azeite, ou uma gotas de azeite em água. Partindo dos círculos que se formam, do lugar do recipiente ou da taça em que se concentram etc., os adivinhos (barû) pretendem obter uma informação dos deuses. A técnica era usada em assuntos do Estado, nas consultas do rei e dos altos personagens, e também nos assuntos privados dos cidadãos.

E) Mediante diversos instrumentos: Taça (Gn 44,5); Flechas (Ez 21,26); (2Rs 13,14-19); Bastão (Os 4,12); Dados (Js 7,17-18); (1 Sm 10,19-21); (Js 14,2; 18,1 – 21,40).

A Adivinhação Intuitiva: três são as formas principais: a interpretação dos sonhos (oniromancia), a consulta aos mortos (necromancia) e a comunicação divina através de oráculos (cresmologia). Das três, a mais importante do ponto de vista bíblico é a terceira. Por outro lado, a Grécia contribui com um material bem abundante que ajuda a compreender algumas reações humanas diante das profecias. Por isso, a parte dos oráculos será muito mais desenvoldida do que as anteriores.

A) Oniromancia: “Tu fostes o primeiro a dar valor ao sinal divino encerrado em meu sonho”, diz a rainha ao Coro em Os Persas de Ésquilo. Efetivamente, desde tempos antigos se considerou que os sonhos encerram um sinal dos deuses.

No poema de Gilgamesh, uma das criações literárias mais poderosas e antigas da humanidade, é através de um sonho que Enkidu fica sabendo da sua morte iminente. Falando com Gilgamesh, diz-lhe:
“Ouve, amigo meu, o sonho que vi esta noite.
Os céus rugiam e a terra lhe respondia.
No meio estava eu, aí.
Havia um homem de rosto sombrio (...).
Pegou-me pela ponta dos cabelos, dominou-me.
Eu tentava golpeá-lo, mas ele pulava como uma corda(...).
Pegou-me e arrastou-me para a casa das trevas,
a morada de Irkalla, para a casa de se entrar e não sair,
para o caminho de ir e não voltar,
para a casa cujo os moradores estão privados da luz,
onde se alimentam de pó,
e o único alimento deles é o barro...

Dentro do Antigo Testamento o material é abundantíssimo, começando pelo Gênesis. Curiosamente, o primeiro caso que se registra não é de um sonho patriarca e sim o de Abimelec, o rei de Gerara, ao qual Deus avisa em sonho que deixe Sara (Gn 20,3). Um sonho levará Jacó, segundo a tradição, a fundar o santuário de Betel (Gn 28,11-16). E os sonhos de vários personagens ponteiam a história de José: os dele mesmo, que profetizam a superioridade dele sobre os irmãos (Gn 37), os do copeiro e do padeiro (Gn 40) e do Faraó (Gn 41).

Ver ainda, os casos de (Jz7,10); (Dn 2 e 4 e 7). Dentro do Antigo Testamento, o caso mais claro seria o de Salomão no começo do seu reinado. Quando este acode à ermida de Gabaão para oferecer sacrifícios, o Senhor aparece-lhe naquela noite em sonhos (1Rs 3,5).

B) Necromancia: A consulta aos mortos para obter deles a informação desejada é um fenômeno bastante difundido no mundo antigo. Segundo o testemunho da Bíblia, ela encontra-se entre os cananeus (1Sm 28,3-25; 2Rs 21,8; Is 8,19; 65,4). Encontra-se também entre os babilônicos, persas, gregos, romanos, e outros povos. Talvez essa prática se deva à crença popular de que os mortos não somente sobrevivem depois de mortos, senão que, também têm poderes sobrenaturais de conhecimento. Um dos exemplos mais célebres é o da consulta de Saul à pitonisa de Endor, para que evoque o espírito de Samuel. A batalha com os filisteus é iminente. Saul consultou a Deus por meio de sonhos, do Urim e de profetas. Nenhum dos três procedimentos serviu para obter resposta. Como último recurso, acode à necromancia, embora ele mesmo tivesse proibido essa prática anteriormente (1Sm 28,3).

C) Oráculos: Embora na Mesopotâmia se recorra habitualmente à adivinhação indutiva, que é de longe a mais estimada, em Israel e na Grécia as formas mais frequentes e dignas de conhecer a vontade divina é consultar o oráculo, onde sinais e portentos são substituídos pela palavra, sem dúvida às vezes enigmática, mas afinal de contas palavra, como a dos homens. Eis, algumas circunstâncias onde se consultava o oráculo:

●A eleição do chefe ou do monarca: Quando o povo de Israel deseja instaurar a monarquia, acode ao profeta Samuel para que escolha, em nome de Deus, a pessoa adequada, que será Saul.

●A guerra: Naturalmente, não em tempos de Moisés, de Josué e dos Juízes, pois estes tinham linha direta com Deus e não precisavam consultar ninguém. Mas os reis pertencem a uma época diferente, mais profana, de segunda categoria. Antes da batalha é preciso saber se Deus o permite. “Posso atacar os filisteus? Tu mos entregarás? (2Sm 5,19).

●Saúde e doença: Um rei de Israel, Ocozias, manda consultar Baal Zebub, deus pagão de Ecron (2Rs 1). E um pagão, o rei Benadad da Síria, manda consultar Javé através de Eliseu (2Rs 8,7).

●Outras desgraças: Muito relacionado com o tema da doença está o das outras desgraças que podem abater-se sobre os indivíduos ou sobre o povo. A mentalidade oficial é que elas se devem a alguma falta cometida. O problema é saber de que falta se trata, e como ela pode ser reparada. É aqui que intervém o oráculo. Na Bíblia nos deparamos com este caso. No reinado de Davi houve três anos de fome consecutivos. Isto não era raro naqueles tempos, por causa das típicas secas mediterrâneas. Mas este é o nosso ponto de vista moderno. Davi pensa que a causa pode ser algum pecado, e decide consultar o Senhor. A resposta não se faz esperar: “Saul e sua família ainda estão manchados de sangue por haver morto os gabaonitas” (2Sm 21,1). Um antigo pecado de Saul justifica a desgraça presente. A solução é ressarcir os prejudicados. E a indenização será sangrenta, pois os gabaonitas afirmam sem rodeios: “Um homem quis exterminar-nos, e pensou destruir-nos e expulsar-nos do território de Israel. Que nos entreguem sete de seus filhos varões e os penduraremos em honra de Javé, em Gabaão, na montanha do Senhor” (2Sm 21,5-6). Assim se fez, e “Deus se aplacou com o país” (2Sm 21,14).

Em outra ocasião, Davi teve uma idéia infeliz. De acordo com o segundo livro de Samuel, foi Deus quem lhe inspirou (2Sm 24,1). Segundo Crônicas, foi Satanás que lhe inspirou (1Cr 21,1). A idéia foi realizar um censo de todo o povo, para saber de quantos soldados podia dispor. Como conseqüência deste pecado de orgulho, o povo passa a ser vítima de uma epidemia de peste, que provoca a morte de 70 mil homens. Davi suplica que a mortandade acabe.

É então que fala Deus através do profeta Gad, ordenando ao rei que compre a eira de Areúna e construa ali um altar. Enquanto se oferecem nele holocaustos e sacrifícios de comunhão, “o Senhor se aplacou com o país e cessou a mortandade em Israel” (2Sm 24,25).

2. A COMPLEXA IMAGEM DO PROFETA _ Por mais que pareça estranho, não é fácil definir ou descrever um profeta. E a dificuldade provém das mesmas tradições bíblicas e dos dados que nos oferecem os livros proféticos. Não se tratam de pessoas talhadas pelo mesmo padrão, uniformes em todos os aspectos de sua personalidade, sua atividade ou sua mensagem.

2.1. Diferenças entre os profetas _ Chamaram profetas a Isaías, Jeremias, Eliseu, Obadias, Naum, entre outros. Mas existem notáveis diferenças entre eles. E, ainda que não sejam suficientes para negar os vínculos que os unem, é conveniente tê-las presentes para captar a complexidade da tarefa. Tais diferenças aparecem, sobretudo:

_ No tempo que dedicavam à atividade profética. A de Isaías durou muito provavelmente uns 40 anos, e, mesmo que em alguns momentos nada saibamos do que fez, podemos dizer que durante toda a sua vida exerceu o “ofício” de profeta. Algo parecido acontece com Jeremias e Ezequiel. Obadias está no extremo oposto: são lhe atribuídos 21 versículos (e os três últimos provavelmente não são seus). Para compor e proclamar esta breve mensagem basta algumas horas.

_ No modo de entrar em contato com Deus. Muita gente imagina que o profeta estabeleça essa relação de forma íntima, como sugerem algumas passagens de Jeremias, ou mediante manifestações surpreendentes da divindade, como acontece no capítulo 6 de Isaías. “Visões” e “Audições” são os termos mais freqüentes utilizados pelos profetas para se referirem aos canais de comunicação com o Senhor. Mas existe outro meio bem diferente, pelo menos nos tempos antigos: o transe, provocado pela música e pela dança (1SM. 10,10); 19,23-24).
Nossa sensibilidade aceita facilmente que o Espírito Santo venha sobre Zacarias e o faça profetizar, mas nos desconcerta que o mesmo espírito de Deus invada Saul e o ponha a dançar, chegando até a despir-se e atirar-se por terra, totalmente nu.

_ No modo de transmitir a mensagem. O modo mais comum é a palavra, utilizada nos mais diversos gêneros da sabedoria tribal e familiar, do culto, do âmbito judicial, da vida quotidiana. Em certas épocas
adquirem grande importância as ações simbólicas, que tornam a mensagem acessível aos olhos. Mas o mais surpreendente é que alguns profetas se expressam com tremenda sobriedade, sem concessões ao auditório nem a eles mesmos, enquanto outros parecem atores de teatro, compenetrados de seu papel, que usam os gestos mais desconcertantes. Ezequiel, protótipo desta forma de atuar, bate palmas e dança ao mesmo tempo que fala (Ez. 6.11), recordando o transe dos antigos grupos proféticos.

_ Na função que desempenham na sociedade. Os estudos mais recentes sobre o profetismo se concentraram no aspecto sociológico deste movimento, distinguindo dois tipos principais: o profetismo central e o periférico. Esta distinção, sobre a qual falaremos daqui a pouco, tem seu fundamento na tradição bíblica e é muito importante para se perceber as diferenças existentes entre os profetas.

O que hoje dizemos com um só termo “profeta” (de origem grega), os antigos designavam com vários títulos: homem de Deus, vidente, visionário, profeta. Esta diferença terminológica revela algo mais sério do que se pode parecer à primeira vista: diferentes concepções de profetismo, conforme o papel desempenhado pelo protagonista dentro da sociedade.

2.2. Diversas imagens do profeta _ Estas diferenças inegáveis não anulam a unidade do movimento profético, mas destroem uma concepção monolítica, que não leve em consideração as nuanças. E assim se explica por que, ao longo da história das investigações, se tenham proposto diferentes imagens do profeta que, sem serem falsas, provocam uma visão limitada e unilateral quando pretendem exclusividade. Essas imagens seriam a do adivinho, do anunciador do Messias, do solitário, do reformador social, do funcionário.

Para a maioria das pessoas, o profeta é um homem que “prediz” o futuro, uma espécie de adivinho.
Esta difundida concepção tem dois fundamentos: um falso, de tipo etimológico; outro, parcialmente justificado, de caráter histórico. No sentido etimológico o erro, basicamente, consiste em interpretar a partícula “pro” em sentido temporal (o que prediz). Na realidade deve interpretar-se em sentido local (o que fala em público). Quanto ao segundo, não resta dúvida de que certos relatos bíblicos apresentam o profeta como um homem capacitado para reconhecer coisas ocultas e adivinhar o futuro: Samuel consegue encontrar as jumentas que o pai de Saul havia perdido (1 SM 9,6 -7,20); Aías, já cego, sabe que a mulher que o vai visitar disfarçada é a esposa do rei Jeroboão, e prediz o futuro de seu filho enfermo (1 Rs 14,1-6); Elias anuncia a morte iminente de Ocozias (2 Rs 1,16-17); Eliseu sabe que seu criado, Geazi, ocultamente aceitou dinheiro de Naamã (2 Rs 5,20-27), indica ao rei o lugar do acampamento dos arameus (2 Rs 6,8), etc.

Inclusive nos tempos do Novo Testamento perdurava esta idéia, como o demonstra o diálogo de Jesus com a samaritana. Quando lhe diz que tinha cinco maridos, e que o atual não era o seu, a mulher reage espontaneamente: “Senhor, vejo que és profeta”.

2.3. Os traços essenciais do profeta _ É possível detectar um fundamento comum, que se possa aplicar a todos os profetas? Se por comum entendermos algo que apareça de forma indiscutível em todos eles, a resposta é “não”. As tradições sobre alguns profetas são tão escassas e limitadas, que não permitem afirmações de nenhum tipo. Mas, aplicando a alguns como hipótese o que em outros é plena certeza, podemos falar de umas linhas de força comuns ao movimento profético. Esta linha as resumiria nos seguintes pontos:

O profeta é um homem inspirado. No sentido mais estrito da palavra. Ninguém em Israel teve uma consciência tão clara de que era Deus quem lhe falava e de ser porta voz do Senhor como o profeta. E esta inspiração lhe vem de um contato pessoal com ele, que começa no momento da vocação. Por isso, quando fala ou escreve, o profeta não recorre a arquivos e documentos como os historiadores, tampouco, se baseiam na experiência humana geral, como os sábios de Israel. Seu único ponto de apoio, sua força e sua fraqueza, é a palavra que o Senhor lhe comunica pessoalmente, quando quer, sem que ele possa negar a proclamá-la. Palavra que às vezes se assemelha ao rugido de um leão (Am 1,2), e em outras ocasiões é “gozo” e alegria íntima” (Jr 15,16).

O profeta é um homem publico. Seu dever de transmitir a palavra de Deus o coloca em contato com os demais. Não pode retirar-se para um lugar sossegado de estudo ou reflexão, nem limitar-se ao espaço reduzido do templo. Seu lugar é a rua e a praça pública, lá onde o povo se reúne, onde a mensagem é mais necessária e a problemática mais aguda. O profeta se acha em contato direto com o mundo que o rodeia, conhece as maquinações dos políticos, as intenções do rei, o descontentamento dos camponeses pobres, o luxo dos poderosos, a despreocupação de muitos sacerdotes. Nenhum setor lhe é indiferente nada é indiferente para Deus.

Contudo, estas afirmações, por mais corretas que pareçam, precisam de precaução. Poderiam causar a impressão de que todos os profetas estão em contato com todos os problemas e grupos sociais, desde o rei até o último peão, das alianças políticas às rogações ou ladainhas pela chuva ou contra a praga de gafanhotos. Somente uma personalidade excepcionalmente rica (Jeremias, Isaías) poderia transitar por tantos ambientes e interessar-se por tal diversidade de questões. E, isto, não é a norma. Prova disto, é que se distinguem quatro tipos de profetas no Antigo Israel: profetas xamãs* (Samuel, Elias, Eliseu); profetas cultuais e do templo; profetas da corte (Gad, Natã); profetas livres.

Nota: O xamanismo é um termo genericamente usado em referência a práticas etnomédicas, mágicas, religiosas (animista, primitiva) e filosóficas (metafísica), envolvendo cura, transe, metamorfose e contato direto entre corpos e espíritos de outros xamãs, de seres míticos, de animais, dos mortos, etc.

O profeta é um homem ameaçado. Muitas vezes sentirão que Deus disse a Ezequiel:
“Dirigem-se a ti, em bando, sentam-se na tua presença e ouvem tua palavra, mas não a põem em prática. Tu és para eles como uma canção suave, bem cantada ao som de instrumentos de corda: eles ouvem as tuas palavras, mas não as praticam”. (EZ 33,31-33).

É a ameaça do fracasso apostólico, de perder-se numa causa que não encontra eco nos ouvintes. Mas isto é o mínimo que lhes pode acontecer. Há situações muito mais duras. Oséias é chamado de “louco”, “néscio”, Jeremias é acusado de traidor da pátria. E se chega também a perseguição, ao cárcere, e a morte. (Elias deve fugir do rei em muitas ocasiões, Miquéias termina na prisão, Amós é expulso do Reino do Norte, Jeremias passa na prisão vários meses de sua vida, Urias é apedrejado e jogado na fossa comum (Jr 26,20-23). Estas perseguições não vêm somente de reis e poderosos, mas também de sacerdotes e falsos profetas. E até o povo se volta contra eles, os critica, despreza e persegue.

No destino dos profetas fica prefigurado o de Jesus de Nazaré.

Silenciaríamos um detalhe importante se não disséssemos que a ameaça vem de Deus também. Muda-lhes a orientação da vida, arranca-os de sua atividade normal, como acontece com Amós (7,14) ou com Eliseu (1Rs 19,19-21), pede-lhes uma mensagem muito dura, quase inumana algumas vezes, tendo em conta a idade e as circunstâncias em que se encontram. É o caso de Samuel. Ainda menino, deve transmitir ao sacerdote Eli, que o tinha criado desde pequeno, sua condenação pessoal e a de seus filhos (1Sm 3). Com razão diz o narrador que, na manhã seguinte, Samuel “não se atrevia a contar a Eli sua visão” (v 16). Ou o caso de Ezequiel, que nem sequer no momento da morte da sua esposa a pode chorar tranqüilamente, mais importante que sua dor é a palavra de Deus, que o força a transmiti-la por meio de uma dolorosa ação simbólica (Ez 24,15-25).

Estes exemplos, que poderíamos multiplicar, bastam para demonstrar que a existência do profeta não é ameaçada apenas por seus contemporâneos, mas até por Deus. Não nos admira que alguns deles, como Jeremias, chegaram a rebelar-se contra esta coação em determinados momentos.

3. A PALAVRA PROFÉTICA
3.1. Força e fraqueza da palavra profética – os livros proféticos são talvez os mais difíceis de todo o Antigo Testamento. Para compreender uma mensagem tão encarnada na realidade de seu tempo é preciso conhecer as circunstâncias históricas, culturais, políticas e econômicas em que tais palavras foram pronunciadas. Os profetas, além disso, usam com freqüência uma linguagem poética, e todos sabemos que a poesia é mais densa e mais difícil que a prosa.

Deste modo, intervenções que em seu tempo provocaram calafrios, de tão blasfemas, hoje parecem insignificantes, para muitos leitores. E palavras de profunda significação humana e religiosa passam despercebidas para muitos cristãos. Imagino como soariam interessantes estes textos em nossos ouvidos, se os antigos profetas ressuscitassem. Com esta intenção, ofereço algumas adaptações de textos proféticos. Podem suscitar escândalo e mal-estar, parecer estúpidas e utópicas. Mas têm duas vantagens: podem ajudar-nos a entender a forma em que se expressam e os motivos por que foram perseguidos ou passaram por iludidos.

Comecemos com um pequeno e simples texto de Amós:

“Entrai em Betel e pecai!
Em Guilgal, e multiplicai os pecados!
Oferecei, pela manhã, os vossos sacrifícios,
e ao terceiro dia os vossos dízimos!
Queimai pão fermentado como sacrifício de louvor,
proclamai vossas oferendas voluntárias,
porque assim é que gostais, filhos de Israel,
Oráculo do Senhor ”(Am 4,4-5).

Se lermos este texto numa eucaristia Eucaristia (Eucaristia: do grego εὐχαριστία, cujo significado é "reconhecimento", "ação de graças") é uma celebração em memória da morte e ressurreição de Jesus Cristo. Também é denominada "comunhão", "ceia do Senhor", "primeira comunhão", "santa ceia", "refeição noturna do Senhor") ou num ato penitencial, quase ninguém entenderá seu conteúdo. A maioria das pessoas não sabe o que é Betel, muito menos Guilgal, desconhecem a expressão “oferecer sacrifício” (só ouviram falar de “sacrificar-se” ou “mortificar-se”), ignoram o que são ázimos e os dons voluntários, e quanto ao dízimo, talvez lembrem que um antigo catecismo mandava “pagar dízimos segundo o costume”.

3.2. Os gêneros literários – muitos poderão pensar que os profetas comunicam sua mensagem mediante um discurso ou sermão, que são os gêneros mais habituais entre os oradores sacros do nosso tempo. Às vezes o fazem, mas geralmente empregam uma grande variedade de gêneros literários, extraídos de ambientes os mais diversos. Elenco aqui alguns exemplos, para que o aluno faça uma idéia da riqueza e da vitalidade da pregação profética.

3.2.1. Gêneros derivados da sabedoria tribal e familiar – desde tempos muito antigos, a família, o clã, a tribo empregaram os recursos mais variados para inculcar o bom comportamento, para refletir sobre a realidade que rodeia as crianças e adultos: exortação, interrogação, parábola, alegoria, benção e maldições, comparações. De todos eles há exemplos nos profetas.

Quando Natã vai denunciar o rei Davi pelo adultério com Betseba e o assassinato de Urias, não aborda o tema diretamente, começa com uma parábola (2Sm 12,1-7). Quando Ezequiel acusa o rei de Judá porque, depois de ter prometido fidelidade ao rei da Babilônia, violou o juramento e procurou aliança com os egípcios, o faz mediante uma alegoria (Ez 17,1-9). Ao ambiente sapiencial pertencem também a benção e a maldição que encontramos em (Jr 17,5-8). Outro gênero freqüente entre os sábios, a comparação, aparece em (Jr 17,11). A pergunta é uma forma de questionar, refletir e inculcar uma conclusão inevitável; Amós a emprega em 3,3-6.

3.2.2. Gêneros derivados do culto – podemos classificar aqui: hinos, orações, instruções e, talvez, os oráculos de salvação.

Em Amós nos deparamos com um fato curioso. Ao longo do livro há sinais do que nos parecem fragmentos de um hino ao poder de Deus (4,13; 5,8-9; 9,5-6). É possível que não tenha sido composto por Amós, mas por ele utilizado e distribuído ao longo do livro, em momentos – chaves, para sublinhar a onipotência divina. Em Isaías encontramos um hino de primeira mão, composto pelo profeta ou pelo redator do livro (Is 12).

A instrução é um gênero típico do culto. É usada pelo sacerdote para solucionar problemas concretos apresentados pelos fiéis. Os profetas também a utilizam, ainda que, como no caso de Amós, o façam com intenções distintas, em tom irônico (Am 4,4-5).

Como exemplo de oração citarei o de Jeremias, quando compra o campo de seu primo Hanameel. Em momentos difíceis, quando Jerusalém é assediada pelo exército babilônico, o profeta compreende que está compra absurda, o pior investimento econômico, é vontade de Deus. Depois de assinar o contrato, reza ao Senhor pedindo-lhe explicação do mistério (Jr 32,16-25). A resposta de Deus vem mais adiante (32,43).

Mais discutível é o oráculo de salvação, que alguns não consideram próprio do culto, mas de um contexto de guerra, quando um sacerdote ou profeta anunciava a vitória em nome de Deus e injetava animo e coragem nas tropas. Este gênero é muito usado pelo Dêutero-Isaías, (por exemplo, Is 41,8-16).

3.2.3. Gêneros derivados do ambiente judicial – Às vezes os profetas empregam o discurso acusatório, a formulação casuística, ou alguns elementos destes gêneros, para inseri-los num contexto mais amplo. Por exemplo, Ez 22,1-16 contém as acusações típicas do fiscal num processo.

Neste contexto judicial se situa também a enumeração de uma séria de comportamentos justos, que termina com a declaração da inocência de quem vive de acordo com eles (Ez 18,5-9). E este espírito jurídico, tão acentuado em Ezequiel, é o que o leva a outros exemplos de formulações casuísticas (Ez 18,10-17).

Entre os gêneros tomados do âmbito judicial, um dos que mais interessou os comentaristas é o do requisitório profético (Ez 18,10-17).

3.2.4. Gêneros derivados da vida diária – incluo aqui uma série de cantos que surgem nas mais diversas situações da vida: amor, trabalho, morte. O famoso “Cântico da vinha” de Isaías é uma canção de amor (Is 5,1-7). Ezequiel oferece um exemplo de canção do trabalho doméstico, realizado por uma dona de casa, que lhe servirá para comparar com o futuro de Jerusalém (Ez 24,3—5.9-10). Em outra ocasião pronuncia um oráculo que pode se chamar de canto da espada (Ez 21,13-21).

Entre estes cantos que surgem em diferentes momentos da vida, o mais importante e mais freqüente é a elegia, composta por ocasião da morte de um ente querido, e que os profetas utilizam para descrever a trágica situação do povo no presente ou no futuro. A mais antiga e concisa está em Amós (5,2-3). Elementos elegíacos e alegóricos se unem um no outro texto de Ezequiel para falar da situação dos últimos reis judeus (Ez 19,1-9).

Muitos relacionados com a elegia são os “ais. “Ai! “Ai!” são os gritos preferidos pelas carpideiras no acompanhamento de cortejos fúnebres. Os profetas os utilizam para indicar que determinadas pessoas ou grupos se encontram às portas da morte, por causa de seus pecados (Is 5,7 – 10.20; Hab 2,7-8).

3.2.5. Gêneros estritamente proféticos – dois casos merecem especial atenção: o oráculo de condenação dirigido a um indivíduo e o oráculo de condenação contra uma coletividade. Ambos constam de diversos elementos, mas são essenciais a denúncia do pecado e o anúncio do castigo.
Nas tradições de Elias há exemplos significativos do oráculo de condenação contra um indivíduo. Quando o rei Acab se apodera da vinha de Nabot, depois de assassiná-lo, o profeta vai ao seu encontro e o interpela:
“Mataste e ainda por cima roubas! Por isso, diz o Senhor: no mesmo lugar em que os cães lamberam o sangue de Nabot, os cães lamberão também o teu”. (1Rs 21,19).

Noutra ocasião, o rei Ocozias, enfermo, manda consultar um deus pagão. Elias intervém de novo:
“porventura não há um Deus em Israel, para mandares consultar a Baal Zebub? Por isso, diz o
“Senhor: não descerás do leito ao qual subiste, mas com certeza morrerás” (2Rs 1,3-4).

Esta formulação tão sucinta a encontramos também em Amós, quando enfrenta o sumo sacerdote de Betel, Amasias: “Tu dizes: “Não profetizarás contra Israel!”Por isso, assim diz o Senhor: Tua mulher se prostituirá na cidade, teus filhos e tuas filhas cairão pela espada, e tua terra será dividida com a trena e tu morrerás em terra pagã” (Am 7,16-17).

Nestes casos, embora as situações sejam distintas, se usa sempre a mesma estrutura. Denúncia (“assassinar e roubar”, “consultar Baal Zebub”, proibir profetizar”)e o anúncio do castigo (que sempre é a pena de morte), precedido pela chamada fórmula do mensageiro (“assim diz o Senhor”).

Do que se disse até aqui não se pode deduzir que o profeta, ao condenar um indivíduo, siga sempre este esquema, sem variantes. Às vezes ocorre a metáforas para anunciar o castigo, como faz Isaías em seu oráculo contra o mordomo do palácio Sobna (Is 22,15-18).
O oráculo de condenação individual é breve, direto e pronunciado na presença do interessado. O oráculo de condenação contra uma coletividade se dirige a todo o povo, ou a um grupo, ou ainda às nações estrangeiras, e se desenvolve como o anterior, apenas com um horizonte mais amplo.

A acusação abrange um grande número ou uma série de faltas. Geralmente consta de dois membros: primeiro a denúncia de forma geral, o segundo ataca um pecado concreto. Por exemplo:
“Por três crimes de Damasco, e por quatro, não a perdoarei; porque esmagou Galaad com debulhadoras de ferro” (Am 1,3).

O anúncio do castigo também tem duas partes: intervenção de Deus e conseqüências. No exemplo seguinte, os três primeiros versículos descrevem a ação de Deus; o último, as conseqüências:
“Quebrarei os ferrolhos de Damasco,
exterminarei os habitantes do Val-delitos
e o chefe da Casa do Prazer,
e o povo sírio será desterrado para Quir” (Am 1,5)

O oráculo individual é vivo, imediato, o coletivo se torna mais literário, extenso e livre. A criatividade do poeta produz mudanças na estrutura fundamental. Por exemplo, não é raro que inverta a ordem dos elementos, situando o anúncio do castigo antes da acusação, ou as conseqüências antes da intervenção de Deus. Esta mesma criatividade leva o profeta a ampliar o esquema primitivo, a tal ponto que em Jeremias e Ezequiel, às vezes, fica quase irreconhecível.

4. OS LIVROS PROFÉTICOS
4.1. Os livros proféticos - A Bíblia Hebraica inclui neste bloco os livros de Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze (Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias).

A tradução grega dos Setenta (LXX) traz algumas mudanças na ordem dos Doze e os colocam antes de Isaías. Por outro lado, depois de Jeremias introduz Baruc, Lamentações e Carta de Jeremias. Estes acréscimos são compreensíveis: Baruc foi secretário de Jeremias, as Lamentações são atribuídas pelos LXX a este grande profeta. Não é raro que ambas as obras sejam colocadas depois de seu livro. Na realidade, o livro de Baruc não foi escrito pelo discípulo de Jeremias, e as Lamentações não são suas. Mas estes detalhes não eram conhecidos em séculos passados.

Nossas edições costumam incluir também entre outros livros proféticos Daniel, embora os judeus o coloquem entre os “outros escritos” (Ketubîm). A decisão atual parece certa, já que Daniel é, ao menos em parte, o representante mais genuíno da literatura apocalíptica, filha espiritual da profecia.

O principal problema que estes livros nos oferecem é o de sua formação. A questão é tão complexa, que cada livro mereceria muitas páginas. Para maior clareza, começarei resumindo de uma forma simples os diversos passos deste processo. E depois alguns dados mais detalhados sobre certos livros.

4.2. A formação dos livros – nós nos acostumamos a atribuir a um só autor uma determinada obra literária, sobretudo se no princípio nos dá seu nome, como ocorre com os livros proféticos. Neste caso, porém, não quer dizer que todo o livro proceda da mesma pessoa. Podemos começar recordando o exemplo mais simples: Obadias. Este profeta não escreveu um livro nem um folheto. Uma só página com vinte e um versículos resume toda a sua pregação. O normal seria que todas estas linhas lhe fossem atribuídas. Não obstante, os comentaristas coincidem em dizer que os versículos 19-21, escritos em prosa, foram adicionados posteriormente, o estilo e a temática os diferenciam dos anteriores. Quem enxertou estas palavras? Não sabemos. Talvez um leitor que viveu vários séculos depois de Obadias.

Se a mensagem mais curta de toda a Bíblia traz problemas insolúveis, imaginem a paciência de que vamos precisar para estudar os 66 capítulos de Isaías, os 52 de Jeremias, ou os 48 de Ezequiel. Limitando-nos a idéias gerais, e simplificando muito, podemos indicar as seguintes etapas na formação dos livros proféticos.

4.3. A palavra original do profeta – normalmente, o primeiro seria a palavra falada, proferida diretamente diante do público, e que depois seria documentada por escrito. Às vezes, entre a proclamação da mensagem e sua redação podem ter passado vários anos, como indica o cap. 36 de Jeremias, o mais sugestivo sobre os primeiros passos na formação de um livro profético. Depois de situar-nos no ano 605 a.C no ano quarto de Joaquim, filho de Josias, rei de Judá, nos diz que o profeta recebeu a seguinte ordem do Senhor:
“Toma um rolo e escreve nele todas as palavras que te dirigi a respeito de Israel, Judá e todas as nações, desde o dia em que comecei a falar-te, no tempo de Josias, até hoje (...). Então Jeremias chamou Baruc, filho de Nerias, que escreveu num rolo, conforme o ditado de Jeremias, todas as palavras que Javé lhe dirigira”. (Jr 36,1-4)

O homem moderno pode estranhar que se deixe passar tanto tempo entre a pregação e a redação. Se Jeremias recebeu sua vocação no ano de 627, como parece o mais provável, é curioso que só receba ordem de escrever o conteúdo essencial de sua mensagem vinte e dois anos mais tarde. A mentalidade da época era bem diferente. Jesus, séculos mais tarde, por exemplo, não deixará uma só palavra escrita.

Voltando a Jeremias, o volume redigido tem um destino fatal. Depois de ser lido na presença de todo o povo e de altos dignitários, termina jogado ao fogo pelo rei Joaquim. Deus não se dá por vencido e ordena ao profeta:

“Toma um rolo, escreve nele todas as palavras que estavam no primeiro rolo, que Joaquim, rei de Judá, queimou” (v28).
O capítulo termina com este dado interessante:
“Jeremias tomou outro rolo e deu ao escriba Baruc, filho de Nerias, que nele escreveu, ditadas por Jeremias, todas as palavras do livro que Joaquim, rei de Judá, tinha queimado. E ainda foram acrescentadas muitas palavras com estas” (v32).

Entre o primeiro volume e o segundo já existe uma diferença. O segundo é mais extenso. Contém o núcleo básico do futuro livro de Jeremias. Os comentaristas tentaram de todos os modos saber quais dos capítulos atuais se encontravam naquele volume primitivo. Não existe acordo entre eles, e não faz sentido, agora, perder-se em hipóteses. O importante é perceber que o livro de Jeremias é fruto de uma atividade pessoal do profeta. Algo parecido deve ter ocorrido com Isaías, Amós, Oséias, etc. É provável que a palavra falada desse lugar a uma série de folhas soltas.

4.4. A obra dos discípulos e seguidores – o seguinte passo será dado por um grupo muito complexo que, na falta de um termo mais preciso, chamaremos de discípulos e seguidores. Estamos acostumados a uma relação muito direta entre o mestre e o discípulo: contato físico, anos de companhia e aprendizagem.

Esta relação direta entre mestre e discípulo pode ter havido, talvez, com alguns profetas. Mas, na redação dos livros, intervirão não só este tipo de discípulos, como também pessoas muito afastadas temporalmente do profeta, embora dentro de sua influência espiritual.

Discípulos e seguidores contribuíram especialmente em três direções: 1) redigindo textos biográficos sobre o mestre; 2) reelaborando alguns de seus oráculos; 3) criando novos oráculos. Oráculos são seres humanos que fazem predições ou oferecem inspirações baseados em uma conexão com os deuses. No mundo antigo, locais que ganharam reputação por distribuir a sabedoria oracular também se tornaram conhecidos como "oráculos", além das predições em si mesmas.

1) Do primeiro temos um exemplo notável no episódio do conflito de Amós com o sumo sacerdote de Betel, Amasias (Am 7,10-17), o relato não foi escrito pelo profeta, já que se fala dele na terceira pessoa. O caso mais importante e extenso, porém, é o dos capítulos 34-35 de Jeremias, procedem ou não de seu secretário Baruc.
2) O segundo caso – reelaboração de antigos oráculos – pode acontecer em épocas muito distintas, até a séculos de distância do profeta primitivo. Às vezes basta uma pequena glosa final para que um antigo oráculo de condenação adquira um matiz de esperança e consolo.

Um exemplo iluminará este procedimento. Lá pelo ano de 725 a.C, o Reino do Norte (Israel) decidiu rebelar-se contra a Assíria. Para Isaías se trata de uma loucura que custará caro ao povo. Assim diz em 28,1-4. “A capital do norte, Samaria, é descrita pelo profeta como uma “coroa orgulhosa”, “flor caduca dos bêbados de Efraim”, que a estão levando à ruína. Ainda que o texto não fale expressamente de rebeliões nem de revoltas, dá a entender que o imperador assírio (“um homem forte e vigoroso”) acabará com o esplendor da cidade:

“Ele os atira ao solo com a sua mão, a orgulhosa coroa dos bêbados de Efraim será calcada aos pés”.

E assim aconteceu. No ano 725 Samaria foi assediada, conquistada em 722, deportada em 720. Com isso se cumpriu a palavra profética. Mas esta não era a última palavra de Deus, que permanece fiel ao seu povo. E um discípulo adiciona mais tarde dois versículos (5-6) recorrendo às metáforas da coroa e da flor, embora lhes dê um novo sentido:
“Naquele dia, o Senhor dos exércitos é que será uma coroa de esplendor e uma grinalda magnífica para o resto do seu povo, e um espírito de justiça para aquele que exerce o julgamento, e a força daqueles que repelem o ataque na porta”.

Agora dirige aos israelitas do norte uma palavra de consolo. O texto já não fala de “embriagados de vinho”, mas de homens responsáveis, capazes de julgar e defender seu povo. E seu timbre de glória não é uma cidade, mas o próprio Senhor, “coroa de esplendor e grinalda magnífica”.

Neste exemplo, a reelaboração não afetou diretamente o texto primitivo. Respeita-o em sua literalidade, ainda que o acréscimo modifique ou complete seu sentido. Em outras ocasiões, essas glosas têm uma intenção mais profunda. Como exemplo o discutido caso de Is 7,15. O profeta falando do rei Acaz, dá-lhe o famoso sinal do nascimento do Emanuel:

“Eis que a jovem concebeu e dará luz um filho
e pôr-lhe-á o nome de Emanuel.
Ele se alimentará de coalhada e de mel
até que saiba rejeitar o mal e escolher o bem.
Antes que o menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem,
a terra, por cujos dois reis tu te apavoras, ficará reduzida a
um ermo” (Is 7,14-16).

Prescindindo de alguns intricados problemas de tradução na última frase, há algo que chama a atenção nesse texto. Os temas que se desenvolvem são os seguintes: nascimento e imposição do nome (v14), dieta do menino (v15), explicação do nome (v16). Parece claro que as frases relativas à dieta do menino (v15) interrompem a seqüência lógica e foram acrescentadas mais tarde. Ao menos, assim pensam muitos comentaristas. Quando nos deparamos com casos como este, não basta detectar a glosa, (Diz-se de um texto, em geral de poucas palavras, que não pertence à obra original do autor, mas foi acrescentado por outros (glosadores). A finalidade de uma glosa é explicar o texto existente. Inicialmente as glosas eram escritas à margem do texto. Mais tarde os copistas as introduziram no próprio texto. As modernas edições críticas dos textos originais, que são a base para as traduções vernáculas modernas, procuram eliminar tais glosas)é preciso descobrir seu sentido. Neste exemplo concreto, parece que pretende sublinhar as características portentosas do menino, já que se alimentará com uma dieta paradisíaca.

Rastrear as numerosas reelaborações do texto é uma tarefa interminável, que infelizmente se presta a muito subjetivismo. É fácil atribuir a um autor posterior o que na realidade procede do primeiro profeta.

4.5. As adições posteriores – ainda depois das etapas que temos descrito, os livros proféticos continuaram abertos a retoques, acréscimos e inserções. Tomando como exemplo Isaías, é possível que, depois de estar estruturado em seu bloco inicial, se tenham acrescentado os capítulos 40-66. Para alguns, inclusive, o último a entrar no texto de Isaías foi a “Escatologia” (24-27). Este processo se repete no livro de Zacarias, onde distinguimos o “Proto-Zacarias” (1-8) e o “Dêutero-Zacarias” (9-14), sem excluir a possibilidade que este último seja obra de outros autores.

Mas podemos assegurar que em torno do ano 200 a.C os livros proféticos já tinham a redação que possuímos atualmente. Assim se deduz da citação das cópias encontradas em Qumran.
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GLOSSÁRIO:
Betel: Betel, em hebraico (בית אל)(Bêṯ-ʼĒl) pode se escrito também Beth El ou Beth-El, significa literalmente "Casa de Deus". É o nome de uma cidade cananéia da antiga região da Samaria, situada no centro da terra de Canaã, a noroeste da cidade de Ai, na estrada para Siquém, a 30 km ao sul de Silo e a 20 km ao norte de Jerusalém. A cidade de Betel é a mais mencionada na Bíblia, depois da cidade de Jerusalém.
Guilgal: Gilgal é um local mencionado na Bíblia Hebraica e está intimamente associado com a idéia da relação especial de Israel com Deus. Quando Josué conduziu o povo para a terra prometida, eles construíram um memorial em Gilgal (Josué 4:19-20). No mesmo lugar, os filhos de Israel foram circuncidados para mostrar que estavam deixando para trás toda a influência corrupta do Egito (Josué 5:1-9). O povo ficou em Gilgal para celebrar a primeira Páscoa na nova terra (Josué 5:10), e mais tarde vieram juntos a esse lugar para dividir a terra que Deus lhes havia dado (Josué 14:6). Gilgal, como Betel, representava a presença de Deus entre os israelitas. Gilgal é o lugar da Aliança, é o lugar de formar profetas. O primeiro lugar do acampamento Israelita após a travessia do Rio Jordão . Ele também foi um lugar de sacrificios (I Sam. 10:8, 11:15, 15:12)
Ázimos: Pão ázimo ou asmo, matzo (ídiche) matzá (hebraico), מַצָּה, é um tipo de pão assado sem fermento, feito somente de farinha de trigo (ou de outros cereais como aveia, cevada e centeio) e água. A preparação da massa não deve exceder 18 minutos para garantir que a massa não fermente. De acordo com a tradição judaico-cristã, pão ázimo foi feito pelos israelitas antes da fuga do Antigo Egito, por que não houve tempo para esperar até a massa fermentar.