domingo, 16 de janeiro de 2011

Os aspirantes a Rei-Messias

O PODER DO REI-MESSIAS
NO IMPÉRIO ROMANO

Introdução

A presente reflexão quer ser uma contribuição ao estudo, sobretudo, do messias-rei em Israel, no contexto do império romano. Jesus será analisado no conjunto dos movimentos e lideranças messiânicas. Primeiro, procura-se conceituar a terminologia messias na história de Israel e povos circunvizinhos. Em seguida, é apresentado o contexto do império romano. Por fim, grupos religiosos, movimentos e lideranças messiânicas que atuaram no interior do império romano, são analisados detalhadamente. A conclusão parece inevitável: o sonho rei-messias continua vivo, alimentando a esperança de tempos melhores.

1 - O messias na história de Israel tem poder de rei, sacerdote e profeta

Hammasiah é o termo hebraico usado para designar o Messias, isto é, o “ungido”, aquele que, por ter recibo a unção com óleo, está revestido de poder divino. Mitologias extrabíblicas falam de um rei do início do mundo que voltaria no fim dos tempos. No entanto, não se pode afirmar com certeza que textos do Egito ou Mesopotâmia tratem de rei salvador escatológico. Os persas acreditavam que um salvador vira para purificar o mundo, destruir o mal e ressuscitar os mortos. Davi foi um rei justo, piedoso, iluminado por Deus e, por isso, vitorioso. Com ele Israel expandiu os seus territórios. Sua realeza devia permanecer para sempre, o que foi justificado pela promessa da perpetuação da dinastia davídica. O messias esperado devia ser um rei, descendente da casa de Davi. E essa foi a idéia predominante na época de Jesus.

Profetas

Isaías apresenta o messias na linha real davídica. Ficou famoso o texto: “Eis que uma jovem concebeu e dará à luz um filho e por-lhe-á o nome de Emanuel” (Is 7,14). Miquéias segue a reflexão da comunidade de Isaías e acrescenta: “Mas tu (Belém), Éfrata, embora a menor dos clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que será o dominador de Israel. Suas origens são de tempos antigos, de dias imemoráveis... Ele se erguerá e apascentará o rebanho pela força de Javé, pela glória do nome de Deus” (Miq 5,1-3). Jeremias diz que o Messias será da casa de Davi (Jr 23,5; 33,15-27). Ezequiel fala de um Messias apocalíptico e escatológico que apascentará Judá e Israel, novamente unificados, e será príncipe para sempre (34,23; 17,22-24).

Salmos

Nos Salmos reais, Davi aparece como rei messias que vai concretizar as esperanças dos pobres. Ele o protótipo do Messias. A oração nos Salmos projeta o rei ideal: descendente de Davi (Sl 45); escolhido e ungido por Deus (Sl 2; Sl 45); representante de Deus (Sl 72); protegido de Deus (Sl 18); tem a função de governar e defender o povo (Sl 18; 72); a sua vitória nas guerras é mérito de Deus (Sl 18); é presença visível da santidade de Deus perante os súditos (Sl 101); sinal e penhor do reino que todos esperam (Sl 2; 72); rei e sacerdote (Sl 101); vencedor de guerras e do mal (Sl 2); seu aniversário e casamento são sagrados e fontes de fecundidade para todo o país e povo (Sl 45). Os Salmos rezam a esperança messiânica de modo a criar uma estrutura de oração baseada na teologia da corte, ou seja, a ideologia da corte vem justificada com o poder libertador e divino do rei. Cria-se com isso a ideologia da corte baseada no tripé: Trono: ordem sagrada da sociedade; Estado: instituição sagrada; Rei: encarnação sagrada da instituição e detentor dos poderes social, militar e econômico. A autoridade do rei, rezada nos salmos, dá a certeza ao povo que ele participa do governo de Deus. Os salmos reais justificam a ação do Estado. Eles não são, portanto, críticos ao poder dos reis. Quando rezam, pedem a proteção do reinado de Davi como garantia da permanência da monarquia. As festas reais funcionam como elementos legitimadores da ação do rei. Ao celebrar a vida do rei, celebra-se a presença de Deus. Desse modo, o culto passa a ser expressão da realeza de Deus e do poder divino dos reis. E a chegada do Messias é a garantia da realização plena do reino. O Sl 72 é um bom exemplo para podermos compreender a libertação dos pobres, sonhada e depositada na pessoa de um rei que tem uma plataforma de governo justo, benéfico, forte, salvador e abençoado por Deus. Na releitura do Sl 72, os cristãos identificaram Jesus como rei-messias, esperança dos pobres, aquele que está sentado à direita de Deus e que recebe o reino universal. Basta vermos alguns exemplos para entender a afirmação anterior. Lc 1,33: ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim. Mt 2,2: “onde está o rei dos judeus recém-nascido? Com efeito, vimos a sua estrela no seu surgir e viemos homenageá-lo”. Ap 15,4: “todas as nações virão se prostrar diante de ti, porque tuas justas sentenças foram promulgadas”. Fl 2, 10: “ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e no abismo, e toda boca proclame que Jesus, o messias, é Senhor” .

Exílio da Babilônia

Os exilados judeus na Babilônia, alimentaram a esperança em um messias, nascido no cativeiro da Babilônia ou depois dele, traria a salvação para o mundo, o que coincidia com pensamento persa a respeito do messias. Os exilados judeus alimentaram a esperança de um “Salvador da pátria”. Chegaram até mesmo a identificá-lo com Ciro, rei da Pérsia, que permitiu a volta do exílio.

Rabinismo

Os rabinos consideravam o messias como “rei ungido” e “filho de Davi”, agiria com poder para defender Israel e fazê-lo grande, submetendo-lhe todos os povos. Menahem (o ‘consolador’ em hebraico) é o nome citado pelos rabinos como o messias que nasceria em Belém durante uma noite em que Jerusalém estivesse sendo destruída (TJ Ber. 5 a). O messias seria da descendência de Ezequias (TB Sanh, 98b). O período que antecede a vinda do Messias seria marcado por “miséria material e moral”. Elias, acompanhado de Moisés, viriam dois anos antes para anunciar a sua chegada e ungi-lo (Midraxe Rabbot Ex 10,1; Targ Jon. Ex 12,42). O Messias virá como profeta. Ele será um segundo Moisés (Midraxe Qon 1,9; Midraxe Ruth 56). O “Servo de Javé” de Zc 12,10 e Sl 22 é visto pelos por alguns rabinos como Messias davídico e, por outros, como Messias “filho de José” ou “filho de Efraim”. Sendo o último um Messias de menor valor, o qual precederia o verdadeiro Messias. O monte das Oliveiras seria o lugar da manifestação do Messias (Targum de Jônatas e Talmud). Rabbi Akiba, a quem é devedor o judaísmo a sua continuidade no mundo pós-guerra de 70 E.C., reconheceu o líder revolucionário nacionalista Simão Bar Kokhba como o rei messias que Israel tanto esperava.

Apócrifos

No escritos apócrifos, o messias tem um caráter transcendental. Oráculos sibilinos 3,46-62 fala de um Messias que reinaria sobre o mundo todo, depois da submissão do Egito a Roma. Ele traria felicidade para Jerusalém. 4 Esdras apresenta o messias como leão de Judá que destrói, com a sua palavra, a águia, símbolo do império romano. Depois trazer a bênção para a terra nos seus 400 anos de reinado, o messias morre e um mundo novo e imperecível surge (11,37-12.1.31-34; 7,28). Testamento dos doze Patriarcas diz que de Judá nascerá um rebento, pelo qual o seu tronco recuperará a realeza, fará justiça para todos que invocam o Senhor. Outros textos apócrifos falam de um messias sacerdote e “filho de Levi” (Testamento de Levi 18,5 e de Judá 24). No apocalipse de Baruc o messias virá para a consumação dos tempos, passará pelas “dores do messias” e voltará uma segunda vez. Os mortos ressuscitarão para participar de um mundo novo.

Qumran

A comunidade de Qumran fala de dois messias, um ungido de Aarão e outro de Israel (1Qs 9,11; CDC 12,23ss;14,19;19,10s;20,1). O primeiro tem o poder sacerdotal e segundo, régio. O Messias sacerdotal tem primazia sobre o régio, embora o Messias tenha um papel político e guerreiro. O Messias virá para colocar um fim ao “tempo da impiedade” e vencerá Magog. Um profeta virá para anunciar a vinda do Messias.

A vasta utilização do termo Messias para designar o rei, o sumo sacerdote e sacerdotes judeus, bem como os patriarcas israelitas e o salvador prometido por Deus e esperado pelos judeus , deixa claro que o messianismo foi e é a esperança de um messias dotado de poderes divinos para trazer a salvação para toda a humanidade e o cosmo. Esperar o messias é um ato de fé, que alimentou e alimenta o povo judeu na sua caminhada com Deus. A vinda do messias é esperada num tempo futuro, escatológico, na pessoa de um messias rei, profeta e filho do homem. Deus, ao revelar a Torá no Sinai e feito uma aliança com Israel, deixou previsto uma intervenção futura sua na pessoa de um Messias, ao qual o povo obedeceria. E foi essa esperança que impulsionou o surgimento de várias lideranças messiânicas no período da dominação romana na Palestina do tempo de Jesus.

2 – Império romano: a opressão gera esperança messiânica

A dominação romana na Palestina deu seqüência à grega, iniciada por Alexandre Magno, homem de rara inteligência, que criou, nos poucos anos de seu reinado, um grande império. Ele morreu com apenas 33 anos de idade. Três de seus generais disputaram entre si o poder, o que resultou na divisão do império em três territórios políticos: África e Palestina, governada pelos Lágidas, Síria e Ásia Menor, pelos Selêucidas e Macedônia e Europa, pelos gregos. No entanto, a cultura grega se manteve. O governo lágida na Palestina entrou em decadência em 221. Antíoco III assumiu o poder na Síria em 225 e venceu os egípcios. Mais tarde, os judeus facilitaram o domínio sírio na Palestina. No entanto, quando Antíoco IV (175-164) reinava na Palestina, os romanos exigiram mais impostos dos sírios. Antioco IV saqueou os templos, proibiu a observância da Torá, dedicou o templo de Jerusalém ao deus grego Olimpus. Tudo isso provocou uma luta armada, desencadeada pela família de Matatias e continuada por Judas Macabeus. Daí o nome: “Revolta dos Macabeus”. Esse movimento libertário acabou vitorioso. Em 164 a.E.C., o culto a Javé foi restabelecido no templo. Como nos tempos áureos de Davi, a Terra prometida voltou a viver um período de independência. No entanto, a dinastia asmoneia, criada após vitória dos macabeus, não durou muito. Altas taxas de impostos, brigas internas, corrupção, dentre outros fatos, propiciaram a chegada, no ano 63 a.E.C, de um outro dominador na terra de Jesus, os romanos. A chegada deles foi um alívio para o povo sofrido e explorado na guerra civil iniciada no ano 104 a.E.C. Muitos camponeses tinham sido expulsos de suas terras. Os piedosos queriam observar a Torá, mas piratas estrangeiros haviam invadido o país. Roma logo percebeu que ocupar a Palestina seria ideal para fortalecer o oriente do império. E além disso, ela estaria criando uma nova fonte abastecimento agrário. Galiléia transformou em grande produtor agrícola. Os romanos exigiam ¼ da produção como imposto. Os judeus estavam isentos de impostos desde o ano 142 a.E.C.

Os romanos ocuparam a Palestina. Algumas décadas se passaram e o povo percebeu que eles não eram os salvadores da pátria. Em 57 E.C. explodiu na Palestina uma revolta popular contra Roma. Lideranças e grupos religiosos se organizaram nessa luta. A Galiléia, onde se concentravam a melhores terras, tornou-se um barril de pólvora. O sonho da retomada da dinastia davídica foi interrompido pela dominação, também cruel, dos romanos.

Jesus nasceu nesse contexto de revolta contra Roma. Sua pregação incluiu a resistência a Roma. Na parábola do semeador, Jesus denuncia: “tem gente sem terra”. Não teria sido Jesus um dos revoltosos? A sua pregação não teria sido também anti-romana? Os textos canônicos não foram remodelados para amenizar essas questões e defender o império romano? São questões que permanecem no rol das discussões.

2.1 – Situação político-econômica do império romano

O modo de produção no império romano era o tributário-escravagista. Havia escravos por toda parte. Dois terços da população de Corinto era formada por escravos, cerca de 400 mil pessoas. Por não conseguir pagar uma dívida, alguém poderia tornar-se escravo. Ademais, a corte romana obrigava a população a pagar impostos.

A sociedade romana estava organizada de forma piramidal:

No ápice, estavam os senhores da terra, os senadores, os homens livres e os cidadãos ricos.
No meio, se encontravam o exército, os governadores e os sacerdotes.
Na base, sustentando a situação econômica de dominação, se encontravam os agricultores, carpinteiros, pastores, escravos e mulheres.

No período anterior e posterior ao nascimento e vida pública de Jesus, destacaram-se a atuação de imperadores e governadores romanos, tais como:

• Herodes, o Grande. Chamado assim por sua astúcia e grandes obras. Ele acabou com a dinastia dos asmoneus e reinou como tetrarca da Judéia (37 a.E.C - 4 E.C). Foi o responsável pela perseguição aos inocentes, na época do nascimento de Jesus.

• Herodes Arquelau, filhos de Herodes, o grande. Reinou como etnarca (governador) da Judéia, Samaria e Iduméia (4 E.C - 6 E.C.). Cruel como o pai, foi deposto e exilado pelo imperador Augusto.

• Herodes Antipas, filho mais novo de Herodes, o grande. Foi tetrarca da Galiléia e Peréia (4 E.C- 39 E.C.). Mandou executar João Batista. Pretendia ser Imperador, mas antes foi exilado em Lyon pelo Imperador Galígula.

• Herodes Agripa (41-44 E.C.). Neto de Herodes, o Grande. Agraciado com os favores de Roma, teve um vasto território para reinar.

• Augusto (30 a.E.C - 14 E.C), foi o primeiro imperador do império romano. O seu nome era Otávio César. Augusto era um título honorífico, que significa “abençoado, sublime”. Jesus nasceu no seu governo.

• Tibério (14 – 37 E.C.). Filho adotivo e sucessor de Augusto, Tibério foi imperador na época da vida pública de Jesus.

• Pilatos, procurador romano na Palestina (26 E.C - 36 E.C), na época de Tibério. Criou inimizade com os samaritanos e judeus. Tem papel decisivo na crucifixão de Jesus. A literatura apócrifa alternativa mostra-o como cristão penitente. Uma tradição diz que ele morreu executado pelo imperador Nero e outra, que ele cometeu suicídio.

• Caio Calígula (37-41 E.C.).
• Cláudio (41-54 E.C.)
• Nero (54-68 E.C). Perseguiu as comunidades cristãs em Roma .
• Vespasiano (69 -79 E.C). Ainda como general, iniciou a guerra judaica.
• Domiciniano (79 - 96 E.C) Pregava a reencarnação de Nero.

O império romano e suas atrocidades com o povo judeu possibilitaram o surgimento de vários messias, dentre os quais encontramos Jesus. E não foram poucas as lideranças populares que se apresentaram como tal. É o que veremos a seguir.

2.2 – Messianismo e profetismo, apoio e resistência ao império romano

O período que vai do governo de Herodes (37 a.E.C. a 4 E.C.) ao início do segundo século da nossa era é marcado por movimentos, grupos políticos de inspiração messiânica ou profética que resistem ao império romano. Houve também grupos pró Roma, nos quais o messianismo é menos evidente. O projeto político-religioso desses movimentos e sua ralação com o messianismo no império romano é que veremos a seguir. Vamos considerar no nosso estudo não somente os movimentos messiânicos de libertação da Palestina em prol de novo reino davídico, mas também os grupos religiosos tradicionais, como saduceus, fariseus, etc., os quais também conviviam a situação de dominação romana.

1) SADUCEUS

a) Origem

A origem dos saduceus remonta a Sadoc, chefe dos sacerdotes de Jerusalém, no tempo de Davi (1010-970 a.E.C.) e Salomão. Saduceus deriva de Saddiq, justiça. Como partido, os saduceus aparecem com mais força quando o asmoneu Jônatas (163 a.E.C.) uniu os poderes religioso e político, declarando-se sumo sacerdote e passando a ter o controle do templo e do sacerdócio.

b) Membros

Faziam parte do grupo dos saduceus, a elite sacerdotal de Jerusalém, os proprietários de terras, os anciãos (burocratas) e os ricos em geral.

c) Projeto e messianismo

Apoiar o império romano, com o qual deve-se procurar viver em harmonia, evitando conflito com o povo. Não acreditar na ressurreição e nem esperar pelo messias. Não valorizar a tradição oral judaica (tradição dos antepassados). O que vale é Lei e não a sua interpretação. O sacerdote deve pautar a sua vida segundo a Lei de Moisés, sentir defensor da ortodoxia judaica e ser rigoroso na liturgia.

d) Área de influência

Os saduceus formavam um grupo poderoso na condução do Sinédrio. Em questões litúrgicas tinham a palavra final. O poder religioso fazia com eles se mantivessem longe do povo.

2) HERODIANOS

a) Origem

Entre os estudiosos, a opinião se divide em torno à origem dos herodianos. Uns dizem que eles eram cortesãos de Herodes Antipas. Alguns Santos Padres falam de um grupo que consideravam Herodes Magno (4 a.E.C - 39 E.C.) como Messias. Seriam esses os herodianos?Herodes Magno.

b) Membros

Funcionários e soldados da corte herodiana, proprietários de terra e “grandes” comerciantes.

c) Projeto e messianismo

Defender o império romano na pessoa de Herodes Antipas (ou Magno?). Os herodianos eram chamados de “os amigos de Roma”. Como os Saduceus, não acreditavam na ressurreição e nem se preocupavam com a libertação de Israel.
d) Área de influência
Os herodianos tinham o poder civil na Galiléia e não eram populares.

3) FARISEUS

a) Origem

Os fariseus nasceram no período do governo asmoneu de João Hircano (135-104 a.E.C.).

b) Membros

O grupo dos fariseus era composto por doutores leigos, mas também faziam parte do partido, os escribas, sacerdotes do terceiro escalão, pequenos comerciantes e artesãos.

c) Projeto e messianismo

Fortalecer a Torá oral, a tradição. Negar o monopólio dos sacerdotes na interpretação da Torá. Combater a política profana dos sacerdotes-príncipes hasmoneus. Interpretar de forma popular a Torá para o povo. Fariseu significa “separado” dos impuros, portanto, eles pretendiam fazer de Israel um povo santo, isto é, puro, na observância radical da Lei. Esperar do Messias, filho de Davi, não subordinado ao filho de Aarão. Ele viria para restaurar o poder político e levar Israel ao cumprimento da Torá. O Messias chegaria no momento definido por Deus. Até que isso acontecesse, o povo devia se preparar, não seguindo o caminho indicado pelos asmoneus. Em relação ao império romano, os fariseus faziam uma aparente oposição, embora acreditasse na libertação do domínio dos estrangeiros. Os fariseus também acreditavam na ressurreição dos mortos.

d) Área de influência

Com pouca influência no campo da política, os fariseus, por outro lado, controlavam as sinagogas, lugares de estudo, oração e reunião do povo. Durante o período de Alexandra no poder asmoneu, os fariseus ocuparam cargos políticos importantes. Por serem fieis observadores da Lei mosaica, os fariseus eram respeitados e amados pelo povo. No entanto, foi esse mesmo rigorismo que os distanciou das classes populares, fazendo com que eles não percebessem as necessidades e sofrimentos do povo diante do império romano. Os pobres não eram capazes de seguir o rigorismo proposto por eles e, por isso, foram deixados de lado.

O famoso texto de Mt 24 que coloca negativamente os fariseus, parece não ter sua origem na fala de Jesus, mas em brigas posteriores entre judeus e cristãos. Jesus tinha amigos fariseus.

Com a guerra judaica (67-70 E.C.), o farisaísmo foi o único grupo judaico que permaneceu.

4) ZELOTAS

a) Origem

Os Zelotas têm origem no grupo dos fariseus e macabeus. A facção político-religiosa que leva esse nome se organizou como entre 66-70 da E. C. e atuou em Jerusalém.

b) Membros

Revolucionários e zelosos pelos dos costumes judaicos. É discutível se Simão, um dos seguidores de Jesus, era zelota. A terminologia zelota, na época de Jesus, tinha somente a conotação religiosa.

c) Projeto e messianismo

Zelo pelas coisas de Deus, daí o nome zelota. Combater o sacrifício em prol do imperador que era feito no templo de Jerusalém, o que configurou em uma afronta ao império romano. O messianismo dos zelotas pode ser visto no modo como eles agiam para purificar o país da ação dos pagãos romanos. Essa atitude zelota garantiria a vinda o messias. Nesse sentido, o grupo configurado como Zelota agiu na época da guerra judaica como verdadeiros revolucionários. O messias para eles era um guerrilheiro.

d) Área de influência

Os seguidores de Judas Galileu e João de Giscala receberam influência ou influenciaram os Zelotas. Lideranças messiânicas de inspiração zelota surgiram no período da guerra judaica.

5) ESSÊNIOS

a) Origem

A briga com o sacerdócio de Jerusalém, no que se refere à interpretação de textos bíblicos sobre a pureza cultual no templo, tempo das festas religiosas, resultou na criação desse grupo religioso, fundado por um tal “Mestre da Justiça”, sacerdote iluminado por Deus. Eles foram viver no deserto, em Qumran, perto do mar morto. A atuação dos essênios foi forte marcante na época de Jesus. No entanto, podemos falar também um outro tipo de essênios, diferente do ramo de Qumran, que teve sua origem por volta do ano 200 a.E.C., em meio ao movimento apocalíptico .

b) Membros

Levitas, sacerdotes dissidentes e leigos.

c) Projeto e messianismo

Levar uma vida monástica austera e separada, preparando-se para a consumação dos tempos, a luta entre o bem e o mal. Considerar-se povo da Nova Aliança. Interpretar de modo próprio a Lei. Ter o seu próprio calendário litúrgico. Praticar a purificação, conversão dos pecados, oração matinal ao sol, observar o Sábado. Não freqüentar os cultos em Jerusalém e nem sacrificar animais. Todas essas práticas apressariam a vinda do Messias. Eles acreditavam em dois Messias, um sacerdotal e outro davídico, subordinado ao primeiro .

Segundo Flávio Josefo , eles tinham uma visão fatalista da providência, e pregavam, sobre a alma, uma doutrina alheia ao judaísmo. Além disso possuíam uma doutrina secreta, reservada aos iniciados.

d) Área de influência

Viviam separados do povo, mas eram respeitados como monges ascéticos. Os essênios se uniram aos outros grupos judeus na luta contra Roma (67-70 E.C.).

6) JUDAS GALILEU

a) Época

Líder de um grupo revolucionário e originário de Gâmala, na Gaulanítide, Judas Galileu conseguiu iniciar uma revolução popular contra Roma, nos anos 4 a.E.C. e 6 E.C., a qual foi retomada nos anos da guerra judaica e resistiu até o ano 73 da E.C. O movimento de Judas teve sua inspiração em uma outra liderança popular que o antecedeu na luta contra Roma, o seu pai Ezequias, assassinado por Herodes.

b) Membros

Lideranças populares rebeldes.

c) Projeto e messianismo

Insurreição política contra Roma, visto que o povo estava caminhando para uma submissão total ao império. Como atesta Flávio Josefo, Judas pregava que eles, os judeus, não podiam aceitar mortais como mestres, depois de ter Deus como Senhor (Ant. XVII, 271-2). Lutar contra a decisão romana de fazer um o senso demográfico, o que era proibido pela lei judaica. Reagir contra as altas taxas do impostas pelo império romano. Garantir a terra como dom e promessa de Deus. Pagar impostos da terra significava perder esse direito sagrado. Nesse sentido, é que podemos falar de messianismo no projeto de Judas Galileu. Ele resgata o ideal messiânico davídico. Deus seria o único rei do povo de Israel.

d) Área de influência

Judas Galileu era muito respeitado no meio do povo. Os camponeses da Galiléia aderiram em massa a sua proposta. Os romanos conseguiram destruir o movimento de Judas, mas ele renasceu mais tarde no grupo dos Zelotas.

7) ATRONGES

a) Ëpoca

Camponês de notória estatura e força, Atronges liderou o movimento nacionalista contra Roma, no período do reinado a Arquelau, propriamente nos anos 4 a.E.C. a 6 E.C. Astronges tinha quatro irmãos, os quais, sob sua liderança, dirigiam grupos rebeldes.

b) Membros

Rebeldes armados, camponeses e pastores.

c) Projeto e messianismo

Retomar o reino de Israel. Matar as milícias romanas. Atronges chegou a ser designado rei e, portanto, usava um diadema real, o que configura o seu movimento como o messiânico, isto é, esperança de um rei-messias (ungido) que libertaria Israel do domínio romano.

d) Área de influência

O povo, com Atronges, viu fortalecida a esperança escatológica de um rei que restauraria Israel. O diadema usado por ele simbolizava a resistência aos romanos. Arquelau perseguiu Atronges e pôs fim ao seu movimento.

8) JOÀO BATISTA

a) Época

O movimento batista surgiu por volta do ano 20 E.C., no deserto da Judéia e à beira do rio Jordão. João Batista era filho do sacerdote Zacarias.

b) Membros

Populares que se empolgavam com a sua pregação.

c) Projeto e messianismo

Anunciar o batismo e a conversão dos pecados para obter o perdão. O batismo na água colocava as pessoas em relação direta com Deus. Não eram mais necessárias as práticas rituais do templo de Jerusalém. Assim, os batistas se tornaram perigosos para ordem judaica estabelecida a partir do templo, bem como para o império romano. João conclamava o povo a ir ao deserto, o que, simbolicamente retomava a figura de Moisés e o êxodo. E do deserto, de novo, o povo entraria na terra da promessa. Para tanto, era necessária a preparação prévia com o batismo na água e de conversão dos pecados. Os evangelhos sinóticos apresentam a pregação escatológica de João sobre o juízo e a vinda do reino de Deus e do messias.

d) Área de influência

Povo simples que não tinha como oferecer sacrifícios no templo de Jerusalém. Herodes Antipas, prevendo uma rebelião de João contra Roma, mandou decapitá-lo.

9) JESUS

a) Época

A vida pública de Jesus durou apenas três anos, entre 30 a 33 da Era Comum.

b) Membros

Pescadores, mulheres, doentes. Povo pobre, mais também gente influente na sociedade, como os fariseus e publicanos.

c) Projeto e messianismo

Por meio de uma pregação objetiva e popular, contando parábolas e fazendo denúncias, Jesus tinha como projeto despertar a consciência do povo em relação à opressão romana. Anunciando o Reino de Deus, ele priorizava o contato com o povo nas suas casas. Não são poucas as passagens dos evangelhos que falam de Jesus na casa de Zaqueu, de Marta e Maria, de Pedro, de um Fariseu, dos discípulos de Emaús, etc. No seu projeto missionário, a cruz não foi prevista, mas acabou sendo conseqüência de sua atuação missionária. A história conservou a memória da cruz vazia como anuncio de certeza de que Jesus continua vivo, ele ressuscitou, o que configurava como afronta e negação do império romano, o qual não foi capaz de impedir a eficácia da pregação missionária de Jesus. O nascimento de Jesus em Belém, terra de Davi, atestado nos evangelhos, mesmo que seja somente um dado de fé, provou que ele era o messias esperado pelos profetas.

d) Área de influência

Multidões seguiram os ensinamentos de Jesus. Jerusalém o acolheu como messias. O império romano, tendo percebido a força de sua atuação político-revolucionária, mandou crucificá-lo e iniciou um processo de perseguição aos seus seguidores. Três séculos depois, o império romano acabou assimilando o cristianismo no “seu projeto”. A romanização do cristianismo possibilitou a sua expansão no mundo ocidental. Hoje, um terço da população é cristã.

10) TEÚDAS

a) Época

Teúdas surgiu no cenário político revolucionário da Palestina por volta do ano 44 da Era Comum.

b) Membros

Pessoas simples do povo. At 5,36 fala de 400 homens que o seguiram.

c) Projeto messiânico

O povo devia ajuntar seus pertences e acompanhar Teúdas até o rio Jordão, onde se cumpriria a sua proposta profética escatológica, de inspiração messiânica. O historiador Flávio Josefo assim escreve sobre Teúdas: “Ele se dizia profeta, e que à sua ordem o ri o Jordão se separaria em dois abrindo fácil passagem para eles, de modo que o povo aí reunido poderia cruzá-lo a pé enxuto” . Esse gesto proposto por Téudas relembra a mesma atitude em relação às águas realizadas pelos profetas Moisés e Elias. A abertura do rio Jordão simbolizava o desejo de retomada da Palestina como terra da promessa. Teúdas seria o líder messiânico que levaria o povo a um novo tempo. Ele mesmo teria se proclamado como messias ou profeta . Ademais, entre o povo circulava a idéia da volta de Moisés como precursor da figura do messias . E Teúdas seria o “novo Moisés”.

d) Área de influência

Os judeus, que sofriam com a exploração político-econômico de Roma, aderiram ao projeto de Teúdas. Por outro lado, o império romano logo também intuiu o perigo que Teúdas representava para ele. Assim, Fado mandou uma cavalaria que perseguiu, matou a muitos, e dispersou o movimento. Teúdas foi preso e levado decapitado a Jerusalém.

11) O EGÍPICIO

a) Época

Nunca saberemos o nome desse egípcio que nos anos 52-54 E.C. organizou uma revolta contra Roma.

b) Membros

O historiador Josefo fala que cerca de trinta mil pessoas seguiram o Egípcio. Já Atos dos Apóstolos mencionam quatro mil ‘bandidos’ (Sicários?) adeptos.

c) Projeto e messianismo

Com voz profética e escatológica, o Egípcio convocou os seus seguidores a passarem pelo deserto e ir até o monte das Oliveiras, onde sob suas ordens os muros de Jerusalém cairiam e a cidade seria tomada por eles. Inspirado nas figuras históricas de Moisés e Josué (deserto e tomada de Jericó), o movimento do Egípcio acreditava numa redenção messiânica de Israel. A entrada (tomada) de Jerusalém teria uma conotação messiânica. Entre o povo havia a idéia que o messias se revelaria no monte das Oliveiras.

d) Área de influência

Roma, no comando de Félix, conseguiu atacar o Egípcio e seus seguidores, matando a uns, prendendo outros. O egípcio conseguiu fugir. O povo e até mesmo os romanos acreditavam que ele voltaria (At 21,38).

12) SIMÀO BAR GIORA

e) Época

Natural de Gerasa, zona rural da Iduméia, pastor e líder carismático, Simão bar Giora iniciou um movimento revolucionário contra Roma, no ano 66 da Era Comum.

f) Membros

Populares revoltosos, pessoas influentes da sociedade, escravos e salteadores.

d) Projeto e messianismo

Justiça para os pobres. Organizar uma revolta popular em vista da libertação da Palestina do poderio romano. Josefo informa, com desdenho, que Simão bar Giora saqueava as casas dos ricos, maltratava as pessoas (Guerras II, 652-3). Nas cavernas e depositava tesouros e pilhagens de guerra. Seus seguidores o consideravam rei (Guerras IV, 507-13). O movimento de Simão bar Giora esperava um libertador da casa real de Davi que viria para libertar o povo da dominação estrangeira, libertar os escravos e melhorar as condições de vida da população. Como Davi, Simão também era um simples pastor.

e) Área de influência

Os camponeses miseráveis e a população de Jerusalém aderiram ao movimento de Simão, por acreditarem que a independência nacional teria chegado. Quando entrou em Jerusalém, na páscoa de 69 E.C., ele foi aclamado pelo povo como rei-messias. Ele esteve unido na luta de libertação ao movimento de João de Giscala e Zelotas. Capturado pelos romanos, em 70 E.C., Simão foi levado para a Roma como trunfo de vitória e morto pelo General Tito.

13) JOÃO DE GISCALA

a) Época

João de Giscala, filho de Levi, atuou na Galiléia nos anos 66 a 70 da E.C., época da guerra judaica contra Roma. João de Giscala era um pobre camponês que ‘usava uma foice para ceifar’, mas que se tornou, mais tarde, um revolucionário. Na sua época, a situação de revolta popular contra Roma tinha tomado proporções sem precedentes. No início de seu movimento, João de Giscala defendia um acordo pacífico com os romanos.

b) Membros

Habitantes da cidade de Giscala e agricultores.

c) Projeto e messianismo

Resistir contra os altos tributos impostos por Roma aos camponeses. Luta armada contra as milícias romanas instaladas na Galiléia. Josefo conta que “no momento da entrada de João de Giscala em Jerusalém, toda a população se lançou à sua frente e cada um dos fugitivos estava cercado por uma vasta multidão” (Guerra Judaica IV,121). Esse fato demonstra o caráter messiânico dado pelo povo de Jerusalém a João de Giscala, quem acabou liderando a guerra contra Roma. Um futuro promissor de redenção de Israel estava próximo.

d) Área de influência

A atuação de João de Giscala despertou no povo o ideal messiânico, adormecido no inconsciente coletivo . A sua presença em Jerusalém uniu as forças populares messiânicas contra Roma. O historiador Rapapport admite que o movimento de João recebeu influência dos Zelotas . Para liderar a revolução contra Roma, João de Giscala fez aliança com outros grupos revolucionários.

14) MENAHEM

a) Época

Filho de Judas Galileu, Menahem, nome que significa ‘o Consolador’, catalisava esperança messiânica judaica. Segundo a crença judaica, Menahem designava simbolicamente a esperança de um messias da linhagem de Davi que deveria nascer em Belém. Menahem atuou como líder revolucionário, nos anos da Guerra Judaica (66-70 E.C.).

b) Membros

Guerrilheiros e campesinos.

c) Projeto e messianismo

Revolução armada, de inspiração messiânica, contra Roma. Um futuro triunfante para a Palestina estava próximo. Para expressar o seu projeto de realeza, Menahem entrou na esplanada do templo trajando uma túnica real. Organizou sua entrada messiânica em Jerusalém, como rei de Israel (Guerras II, 434). Os ideais monárquicos de Menahem eram inspirados no seu pai Judas Galileu, Ezequias e Davi.

d) Área de influência

Menahem conseguiu mobilizar as massas para atacar o palácio de Herodes, em Masada, e organizou o cerco do palácio, em Jerusalém. Mehahem era um dos lideres dos ‘sicários’. Muitos do povo viram em Menahem o esperado ‘redentor’ da Palestina, embora a sua luta não obteve o esperado sucesso. Menahem foi assassinado, quando disputava com Eleazar ben Hananiah a liderança dos revoltosos de Jerusalém.

15) JÔNATAS

a) Época

Tecelão e comerciante, Jônatas atou na região de Cirene, onde havia se estabelecido, quando Vespasiano era o imperador romano (69-79 E.C.)

b) Membros

Pobres da região de Cirene.

c) Projeto e messianismo

Jônatas convocava o povo para ao deserto, onde ele realizaria sinais e prodígios. Um novo êxodo aconteceria com eles. O deserto era associado à expectativa profética messiânica.

d) Área de influência

Roma conseguiu minar o movimento de Jônatas, prendendo-o em 72 E.C.

16) ANDREAS LUKAS

a) Época

Judeu da diáspora, de Cirene, Andreas Lukas organizou os judeus da diáspora para lutar contra Roma, nos anos 114-117 E.C., quando Trajano era o imperador romano.

b) Membros

Judeus da diáspora.

c) Projeto e messianismo

Luta armada contra Roma. Fortalecer o ideal messiânico dos judeus da diáspora, levando-os a crer que seria possível retornar à pátria, reconquistando Jerusalém das mãos dos pa’gàso romanos. Implantar o reino do messias com uma grande guerra escatológica.
d) Área de influência

Andreas Lukuas liderou a guerra dos judeus contra Roma no Egito, em Chipre e Pentápolis. Multidões o seguiam nos campos de batalha. Roma, com muito custo, destruiu o movimento nacionalista messiânico de Andreas Lukuas.

17) SIMÀO BAR KOCKHBA

a) Época

Ultimo líder judeu de ideal messiânico na resistência contra Roma, Simão bar Kokhba liderou, nos 132-135 E.C., a segunda grande guerra judaica, quando Adriano era o imperador romano.

b) Membros

Populares e camponeses desejos de retomar o anseio de libertação nacional, destruído pelos romanos na rebelião de 114-117 liderada por Andreas Lukuas.

c) Projeto e messianismo

Redenção de Israel através de uma luta armada de caráter escatológico-messiânico-revolucionária. O nome Kokhab significa estrela,o que levava o povo a se recordar de Nm 24,17: “Uma estrela de Jacó se torna rei, um cetro se levanta , procedente de Israel”. O reino messiânico seria instalado definitivamente com a sua luta.

d) Área de influência

Bar Kokhoba gozava de muita popularidade na Judéia. Restos arqueológicos encontrados nas cavernas da Judéia trazem inscrições que intitulam Bar Kokhoba como “Presidente de Israel”. Simão Bar Kokhoba foi vencido pelos romanos e com ele terminou o ciclo de movimentos messiânicos de libertação nacional, que começara no tempo dos Macabeus (167 a.E.C.). Simão bar Kokhoba foi reconhecido como messias pelo sábio e notável Rabbi Akiba ben Yosef, o qual o abençoou com as palavras “Este é o rei messias” (TJ Ta’anit IV.8). Já um dos Padres da Igreja, Eusébio, chamou Bar Kokhoba de “bandido sanguinário que sob a força e impacto de seu nome, como se ele tivesse escravos com que lidar, exibiu-se como uma luz cintilante que desceu dos céus a fim de iluminar seus miseráveis” (Eusébio, História Ecclesiastica,IV, 6).

3 – Conclusão: o rei-messias resgata o nacionalismo e a esperança

A análise do perfil dos movimentos acima apresentados e de suas respectivas lideranças nos leva, inevitavelmente, a concluir o seguinte:

- Em perspectiva política, podemos classificar os movimentos acima apresentados em grupos favoráveis à ordem social estabelecida (judaica e romana) e os de oposição às injustiças cometidas pelo império romano.
- Os romanos trataram com desdenho e humilhação as lideranças messiânicas da Palestina. Simão de bar Giaro foi humilhado publicamente até à morte.

- O sentimento nacionalista do povo judeu e a reconquista da terra prometida funcionaram como gasolina na condução da maioria dos movimentos messiânicos.

- Muitos movimentos de resistência tinham, na origem, um caráter meramente social, mas ganharam, depois, a dimensão religiosa messiânica, própria do período intertestamentário.

- Muitos líderes revoltosos eram sicário ou zelota. O historiador Flávio Josefo enquadra no termo zelota todos os revolucionários.

- Se o império romano foi duramente criticado pelos messias e profetas, há de se considerar que Jerusalém, o templo e o povo judeu não ficaram imunes às denuncias dessas lideranças. Nesse sentido, notória é a figura de um camponês chamado Jesus, filho de Ananias, que passou sete anos andando pelas ruas de Jerusalém gritando sem cessar: “uma voz do leste, uma voz do oeste, uma voz dos quatro ventos, uma voz sobre Jerusalém e o templo, uma voz sobre o noivo e a noiva, uma voz sobre todo o povo” (Josefo, Bell 6,300-306). O procurador romano, Albino, após açoitá-lo, o considerou louco, libertando-o.

- A maioria dos movimentos messiânicos atuava fora do espaço sagrado do templo, o que lhes garantiam a condição de movimentos alternativos de resistência ao pensamento oficial judeu e ao império romano.

- O deserto, o rio Jordão e mar Vermelho fizeram parte do imaginário coletivo messiânico de libertação do povo. Assim, muitas lideranças convidaram o povo para ir ao deserto, passar a pé enxuto pelo rio Jordão para retomar a Palestina, a terra prometida ocupando pelos pagãos e opressores romanos. Com João Batista, por exemplo, quem se deixava batizar estava assumindo o compromisso de reconquistar a terra.

- Embora múltipla no entendimento do termo messias, a tradição da fé judaica se encarregou de definir que Jesus não foi o messias esperado por eles. Vários motivos concorrem para essa afirmação, dentre eles: o messias não podia ser Deus, pois Deus é UM; Ele nasceria de uma mulher e homem normais; Poria fim ao sofrimento e guerra no mundo; Faria com que o povo judeu voltasse a viver em paz, em Israel; O messias jamais morreria pregado numa cruz. Como Jesus não preencheu esses e outros critérios de identificação do messias, ele não o foi o salvador enviado por Deus.

- Mesmo que afirmemos que os judeus não aceitaram Jesus como messias, vale lembrar que a questão não é essa. Jesus é o messias porque os seus seguidores creram nele e difundiram a fé na messianeidade.

- A fé em Jesus-messias alimentou a esperança de muitos judeu-cristãos e não judeus que se aderiram aos ideais libertários de Jesus. E tudo isso foi possível porque Jesus se reconheceu como presença de Deus. Ademais, o ambiente da exploração romana foi propício para o surgimento de messias.

- Após a famosa guerra de 70, o ideal messiânico continuou no imaginário coletivo dos judeus da diáspora. Roma destruiu a pátria, mas não o sonho de libertação. Outros líderes messiânicos continuaram a surgir, mesmo na diáspora. Andreas Lukuas, nos anos 114-117, foi um deles. Mais tarde, entre 132-135, Simão bar Kokhba, na Palestina, ressuscitou o movimento de Andreas. Ele foi proclamado messias pelo Rabino Akibba e derrotado pelos romanos. Encerrando, assim, um ciclo do período messiânico de Israel, mas a esperança do rei-messias não morreu nas terras do povo da Bíblia.

sábado, 15 de janeiro de 2011

O ideal Messiânico e a religião judaíca

Introdução

Existem algumas vantagens em ser judeu quando tentamos entender os Evangelhos, especialmente se alguém já esteve colocado em contato próximo com a liturgia judia, com as cerimônias do ano religioso judeu, com a literatura rabínica e com a visão geral moral e cultural judia. Muitos aspectos dos evangelhos são tão familiares para os judeus como o ar que respiram.

Quando Jesus bebeu vinho e partiu o pão na Última Ceia, ele estava fazendo o que os judeus fazem todas as vezes que celebram a cerimônia do Kiddush antes de um Festival ou da refeição do Sabath. Quando Jesus começa sua oração com “Nosso Pai que estais no céu...” ele está seguindo o padrão das orações farisaicas que ainda fazem parte do Livro Diário de Orações dos Judeus. Quando ele falou em parábolas e usou frases chocantes (tais como “engolis o camelo” ou “a trava em seus próprios olhos”) ele estava usando métodos de expressão familiares a qualquer estudante dos escritos Talmúdicos.

Ao mesmo tempo, um Judeu lendo os Evangelhos fica imediatamente alertado para aspectos que não parecem autênticos; por exemplo, a narrativa dos fariseus aguardando para matar Jesus em razão de ele curar no Sabath. Os Fariseus nunca incluíram a cura na sua lista de atividades proibidas no Sabath; e os métodos de cura de Jesus não envolviam nenhuma das atividades que eram proibidas. É improvável que eles tivessem desaprovado mesmo moderadamente as curas sabáticas de Jesus. Além disso, a figura de Fariseus assassinos, sedentos de sangue apresentada nos Evangelhos contradiz tudo que é conhecido sobre eles desde Josefo, seus próprios escritos e do judaísmo que eles criaram e que ainda vive hoje.

Desta maneira temos aqui uma contradição nos Evangelhos entre aquelas passagens que parecem autênticas e aquelas que não. Para um judeu estudando os Evangelhos a contradição é manifesta e a questão se expande quando ele considera a religião baseada sobre os Evangelhos, o cristianismo propriamente, que é uma mistura de elementos judeus, não-judeus e anti-judeus.

Como conceber que uma religião que se vale tão intensamente do judaísmo tenha, na maior parte de sua história, encarado os judeus como parias e excluídos? Que em uma civilização baseada nas escrituras hebraicas, uma civilização cuja linguagem está permeada com o idioma Hebreu, os judeus sejam tratados com um extraordinário ódio, culminando com o Holocausto de 6.000.000 de judeus europeus durante a Segunda Guerra Mundial.

O Messias

Se a persistente vontade pelo Messias tivesse sido nada mais do que um desejo por independência política não teria o poder de inspirar tão extraordinária resistência. Em outros países o patriotismo produziu grande heroísmo contra Roma, mas nada tão prolongado e determinado do que os esforços judeus os quais pela sua obstinação e coragem levantou a admiração, medo e ódio dos historiadores romanos. O ideal Messiânico surgiu da inteira "weltanschauung" 1 do povo judeu o qual foi única no mundo antigo. O ideal Messiânico surgiu do monoteísmo.

O monoteísmo unificou a história humana em um único processo tendendo a um objetivo final, o preenchimento dos propósitos de deus na criação do mundo. A idéia de uma era Messiânica provendo o desenlace do drama cósmico é inerente no monoteísmo. O politeísmo, por outro lado, não provê tal drama cósmico. Cada nação tem seus próprios deuses e não existe um propósito prioritário para a humanidade. A história nas culturas politeístas é considerada como cíclica. As nações como os indivíduos têm seus ciclos-de-vida; e acima dos homens e deuses estava um inexorável, indiferente Destino. Somente os judeus alegavam estar em contato com o supremo e imortal Destino, alegando também que ele não era indiferente à humanidade, mas um Pai amoroso que moldava o processo da história. Este conceito de progresso da história na direção de uma Utopia final tem sido a inspiração da tradição utópica da cultura Ocidental – de tal forma que é difícil visualizar a unicidade desta idéia na antiguidade.

Assim como tem sido a fonte de um otimismo insaciável, o monoteísmo era incapaz de reconhecer derrota. As nações politeístas podiam admitir que seus deuses tivesse se mostrado mais fracos do que os de Roma; ou podiam sucumbir ao sincretismo romano pelo qual os deuses imbatíveis eram identificados com os deuses de Roma (Júpiter/Zeus/Amon). O Deus judeu, o criador do Céu e da Terra, não podia se submeter a tal anexação. Quando os judeus eram de fato derrotados não significava que Deus tivesse sido derrotado pelo deus daquelas pessoas, mas que o povo de Deus havia falhado na sua missão e deviam se dedicar novamente pelo arrependimento. Este é o significado das campanhas de arrependimento que acompanhavam o movimento messiânico. O Monoteísmo iniciou como a religião de um bando de escravos fugitivos; e expressa sua determinação a não se submeter novamente a nenhuma indivíduo ou classe opressivos.

O Rei dos Judeus

Os evangelhos mostram Jesus, repetidamente, profetizando sua própria morte em Jerusalém e a sua subseqüente ressurreição. Os discípulos são apresentados como tendo dificuldades para entender estas profecias ao ponto de que em uma ocasião ocorreu até mesmo uma séria discussão entre Jesus e Pedro sobre esta questão. Enquanto podemos rejeitar a idéia de que Jesus esperava sua própria morte em Jerusalém, é perfeitamente possível que houvesse naquele tempo alguma dissensão entre Jesus e seus principais seguidores, os Doze. O objeto da dissensão, muito provavelmente, era o plano de resitência a ser seguido contra os romanos. Os discípulos de Jesus, com sua tendência Zelota, podem ter desejado organizar uma resistência de grande envergadura. O entusiasmo nacional pelo advento de Jesus como Rei-Profeta deve ter significado uma oportunidade ideal para a mobilização de um grande exército para engajar os romanos numa batalha. Por outro lado, Jesus era um convincente apocalíptico, o qual considerava que uma batalha contra Roma seria amplamente vencida por meios miraculosos e, portanto, não fez nenhum preparativo militar sério. Jesus não era um oportunista político ou militar. Ele estava preparado para sacrificar sua vida na crença de que sua missão tinha proporções cósmicas. Expulsar os romanos pela força das armas, como Judas Macabeu havia expulsado os Gregos, não era seu propósito; tal sucesso iria apenas conduzir à fundação de mais uma dinastia como a dos Hasmoneus. Jesus iria inaugurar o Reino de Deus, uma nova era na história do mundo, ou nada.........

A Entrada Triunfal foi o ponto alto da carreira política de Jesus. As esperanças apocalípticas que o cercavam, primeiro como Profeta depois como Rei-Profeta explodiram em boas-vindas extáticas quando a multidão em Jerusalém o clamava com os gritos, "Hosana! Salve-nos".

Qual foi a data da Entrada Triunfal de Jesus? De acordo com os evangelhos foi na época da Festa da Páscoa, i.e, na primavera. Entretanto, existem muitas indicações que não foi assim, e a Entrada Triunfal teria ocorrido no outono, na época do festival judeu conhecido como Festa dos Tabernáculos.

A série completa de eventos desde a Entrada Triunfal até a crucificação (incluindo o interrogatório com o Sumo Sacerdote, o julgamento diante do Sanedrim, julgamento diante de Herodes Antipas e julgamento diante de Pilatos, sem mencionar várias atividades prévias tais como A limpeza do Templo, a oração no Templo e a Última Ceia) é suposta ter acontecido em seis dias. Isto é uma impossível aceleração de procedimentos humanos políticos e judiciais. A história a ser discutida aqui é que a Entrada Triunfal de Jesus teve lugar imediatamente antes da Festa dos Tabernáculos e sua execução aconteceu na Festa da Páscoa, cerca de seis meses depois.

A característica mais óbvia que aponta para o outono como a data da Entrada Triunfal são os ramos de palmeira que ficam em evidência no Domingo de Ramos. Na Páscoa, não existem ramos de palmeira na região e é improvável que os admiradores de Jesus o tivessem homenageado com ramos secos de palmeira guardados desde o último outono. Além disso, os ramos de palmeira desempenhavam (e ainda desempenham hoje) um papel essencial dos ritos do Festival dos Tabernáculos. Os "ramos de árvores" mencionados nas narrativas da Entrada Triunfal são também importantes nestes ritos, sendo usado em profusão para cobrir os "tabernáculos" ou tendas que davam o nome ao festival, e para acompanhar o uso de ramos de palmeiras (Ver Levítico 23:40)

Uma curiosa confirmação como sendo outono o tempo da Entrada Triunfal pode ser encontrada na história de Jesus amaldiçoando a árvore da figueira, que aconteceu imediatamente após sua Entrada. Jesus, aparentemente deparou-se com uma figueira sem frutos, e disse "Que nenhum fruto cresça nesta árvore jamais". Isto tem que ter acontecido no outono, pois ninguém esperaria encontrar uma figueira carregada de frutos na primavera. A razão da reação irada de Jesus é, provavelmente, o seguinte: Os profetas hebreus haviam predito de que o tempo do Messias seria de uma fertilidade nunca vista de plantas e animais (Joel 2:22 "... a figueira e a vinha dão a sua riqueza"). Jesus com seus Galileus acreditavam em espíritos maus, e podem ter acreditado que a figueira continha um mau espírito que estaria lutando contra o Reino de Deus.

O uso do clamor "Hosana" pela multidão (Hebreu, "hoshi'anna", significando "salve-nos já") também confirma a data do outono para a Entrada de Jesus. Este louvor tem um uso litúrgico especial nos ritos dos Tabernáculos e em nenhum outro festival. O "clamor era endereçado a Deus, não a Jesus e siginificava algo como "Salve-nos", Deus através de seu Messias". A palavra "salvar" é especialmente associada ao longo das escrituras hebraicas, com a misericórdia de Deus através de governantes e guerreiros que protegiam Israel contra seus inimigos. Uma oração por esta salvação era oferecida na Festa dos Tabernáculos e estaria perfeitamente adaptada como acompanhamento na Entrada de Jesus em missão de salvação.

Isto conduz a um ponto ainda mais importante: o fato de que a Festa dos Tabernáculos era em um sentido especial um festival Real. Em geral, a família real judia tinha um pequeno papel a cumprir nos cerimoniais da religião judaica, mas a exceção era a Festa dos Tabernáculos. No festival o Rei realmente entrava no Átrio do Templo e lia em voz clara "o parágrafo do Rei", i.e, a parte da Lei Mosaica relativa a seus deveres (Dt 17:14-20).

A leitura da Lei pelo Rei era realizada a cada sete anos. Não há dúvidas de que Jesus programou sua Entrada de modo a coincidir com o fim do Ano da Remissão, no fim do qual a leitura do rei se realizava. Ele planejou cuidadosamente a época de sua Coroação e seu progresso real de maneira que chegou a Jerusalém exatamente a tempo para o festival. Ele então entraria no Átrio do Templo como Rei e renovaria o rito realizado por seus grandes predecessores no trono judeu. O ato mais do que qualquer outro sinalizaria sua ascensão ao trono e sua intenção de assumir os deveres de rei e salvador.

Uma figura em particular deve ter estado na mente de Jesus, nominalmente, seu grande antecessor rei Salomão. Foi na Festa dos Tabernáculos que Salomão realizou a Dedicação do Primeiro Templo, oferecendo uma longa oração a Deus de uma plataforma, especialmente, construída no Átrio do Templo.

Podemos enxergar agora porque a primeira ação de Jesus entrando em Jerusalém foi a Limpeza do Templo. Esta ação tem sido muito trivializada pelos redatores dos Evangelhos, os quais a apresentaram como uma demonstração individual onde qual Jesus ameaçou os cambistas com um chicote. A ação foi muito mais do que isto; Jesus, como Rei virtuoso, estava levando a efeito uma reforma no Templo, limpando-o da corrupção do alto clero Saduceu venal. Jesus estava no topo de seu poder. Embora ele não dispusesse de um exército organizado, a populaça judaica o aplaudia cada vez mais. A polícia do Templo, o qual agiria rapidamente contra mera violência individual, estava impotente para cessar as reformas de Jesus. Ele poderia até mesmo ter anunciado um novo Sumo Sacerdote, como Rei ele estava autorizado a fazê-lo (Isto foi a primeira coisa que os insurgentes fizeram na Guerra dos Judeus em 66 A.D.)

Tendo limpado a administração do Templo Jesus deveria ter ido adiante com seu plano de re-dedicação do Templo para a era Messiânica aparecendo no Átrio do Templo como Salomão na Dedicação do Primeiro Templo, para ler "o parágrafo do Rei". Sem dúvidas, como Salomão, ele também aproveitou a oportunidade para endereçar uma oração a Deus pelo seu novo regime e talvez para dar uma mensagem profética para o povo. É o pouco que podemos depreender de uma confusa e distorcida narrativa, encontrada apenas em João, de uma visita de Jesus ao Templo na Festa dos Tabernáculos, embora João represente esta visita como tendo acontecido em uma ocasião distinta da Entrada Triunfal.

O paralelo entre Jesus e Salomão joga luz em uma acusação que foi mais tarde imputada a Jesus: que ele ameaçara destruir o Templo e reconstruí-lo. É perfeitamente possível que Jesus tenha declarado a intenção de destruir e reconstruir o Templo, uma vez que seu Reino estivesse completamente estabelecido. O Templo no qual Jesus reinava tinha sido construído por Herodes o Grande, conhecido pelos fariseus como Herodes o Iníquo. Os fariseus haviam dado seu relutante consentimento para a reconstrução do Templo por Herodes, mas a despeito de sua suntuosa beleza, eles nunca esperaram que este Templo persistisse até o reino do Messias. Se Jesus tivesse realmente provado ser o Rei-Messias expulsando os Romanos, os fariseus não teriam criado objeções para que a sua destruição do Templo de Herodes e a construção de outro, ele teriam esperado que ele fizesse isto. Por que deveria o purificado e re-dedicado povo judeu, restaurado para a liberdade, adorar a Deus em um templo construído pelo corrupto Herodes? Não existe nada aqui que os fariseus teriam considerado como blasfematório, ou que amedrontaria alguém exceto o Sumo Sacerdote Caifás e sua claque. A acusação de planejar a destruição e reconstrução do Templo foi parte do indiciamento contra Jesus, não como um blafesmador ou rebeldia contra o judaísmo, mas como um rebelde contra o regime fantoche do Sumo Sacerdote.

Assim a datação da Entrada Triunfal no outono, ao invés de na primavera, traz muito mais sentido à série de eventos, este é a exata época que alguém se colocando à frente como Messias teria escolhido para entrar em Jerusalém. Um argumento mais importante não foi ainda mencionado. A profecia de Zacarias diz que a grande batalha dos últimos Dias terá lugar no outono, na ocasião da Festa dos Tabernáculos. No aniversário deste grande evento todas as nações do mundo serão requisitadas a vir a Jerusalém para celebrar a Festa dos Tabernáculos nos tempos messiânicos. (Zc 14:16). Quando Jesus entrou em Jerusalém montando no lombo de um jumentinho ele estava se comprometendo com o conceito de Zacarias sobre os últimos dias. Aqueles que conheciam suas escrituras (e muitos conheciam) saberiam pela maneira da entrada de Jesus quais eram suas intenções; engajar os romanos na batalha antes da Festa dos Tabernáculos chegar ao fim.

Por que os redatores dos evangelhos (provavelmente seguindo uma tradição da igreja-Gentia já estabelecida) colocaram a Entrada Triunfal na primavera? A razão mais provável é que para os cristão-gentios o evento importante na vida de Jesus era sua morte pela crucificação, o qual eles encararam como o ponto principal da história. Parece mais dramático, portanto, condensar os eventos, subordinando-os todos à Crucificação e amontoando todos eles na última cena da peça. A Crucificação teve lugar na primavera, este, portanto, se tornou o período de todos os eventos culminantes da vida de Jesus.

No culto de ressurreição de Adônis, Attis e Osíris, a morte e ressurreição do jovem Deus se dão na primavera. A Entrada Triunfal, portanto, concordaria com o festival do Jovem Deus antes do sacrifício nestes cultos; e seria, portanto, correto mover a Entrada Triunfal para mais perto do sacrifício para o qual ela era apenas os preliminares. O apelo do cristianismo ao mundo antigo dependeu bastante destas afinidades.

Para Jesus, entretanto, que esperava sucesso e não fracasso, e que não teria entendido a apoteose romântica do fracasso a época natural para sua chegada era o outono, o tempo do jubilo com a colheita. Muitas das parábolas de Jesus comparam a chegada do Reino de Deus com a época das colheitas. Este era o período mais feliz do ano judeu, quando o período de purificação do novo ano estava encerrado, a colheita estava garantida e o tempo do agradecimento a Deus havia chegado. A Festa dos Tabernáculos é a única do qual as escrituras dizem. "E você será completamente feliz". A Páscoa, o festival da primavera, era o período do começo da salvação, o aniversário do Êxodo do Egito, o começo da história judaica. Mas o final triunfante da história seria esperado de ocorrer no outono; exatamente como o Rei Salomão celebrou no outono o fim de um longo período de tribulações e a inauguração do Reino Messiânico.

O dia do senhor

O reino de Jesus como o rei dos judeus em Jerusalém durou menos do que uma semana. Que aconteceu durante essa semana? De acordo com os evangelhos, a única ação positiva executada por Jesus foi sua limpeza do templo. Depois disso, aparentemente, ele se confinou ao ensino e a pregação no templo até a época de sua prisão. Da análise do último capítulo, nós vemos que Jesus fez muito mais do que isto. A limpeza do templo não foi um incidente isolado, mas uma reforma completa, envolvendo a ocupação da área de templo por Jesus e seus seguidores. Como em muitas outras revoltas deste tipo descritas por Josefo, Jesus far-se-ia mestre de apenas uma parte de Jerusalém. A maioria de Jerusalém estaria ainda tomada pelas tropas romanas de Pilatos e pelas tropas judaicas do Sumo Sacerdote. Do ponto de vista de Pilatos e de Caifás, a revolta não era um grande problema. Por alguns dias (como descreveram) um fanático falacioso com apoio da multidão podia capturar uma área limitada de Jerusalém, incluindo as terras do templo, interrompendo desse modo a temporariamente jurisdição do Sumo Sacerdote. Os serviços do templo não foram interrompidos, porque Jesus permitiu que a vasta maioria dos sacerdotes permanecesse em seus postos, expurgando somente aqueles, proximamente, associados com o fantoche Caifás.

Entretanto, durante aqueles poucos dias, Jesus reinou supremo na área do templo. Os evangelhos tornam claro que o Sumo Sacerdote não estava disposto a tentar a prisão de Jesus por causa do forte apoio popular dado pela multidão do festival. Caifás calculou que, provavelmente, seria melhor esperar até que a primeira onda de entusiasmo se acabasse e então colocar Jesus sob guarda. Não pediu ajuda às tropas romanas nesta fase porque pensou que poderia ele mesmo ser capaz de controlar a situação.

As aparições de Jesus no templo durante aqueles poucos dias foram como um Profeta-Rei, não como o pregador retratado nos evangelhos. Seu desempenho dos ritos do Tabernáculo era um ato político de grande importância, consolidando sua reivindicação ao Messianato. Sua pregação era sem dúvidas de caráter apocalíptico, como os evangelhos certamente mostram, mas não profetizava sua própria morte e a desgraça que viriam para os judeus e para o templo; estas profecias foram introduzidas nos evangelho após a derrota dos judeus e a destruição do templo pelos romanos em 70 A.D.

Jesus não passou todo o tempo na área de templo durante seus poucos dias de reinado. Nas noites ia ao Monte das Oliveiras, a leste de Jerusalém, aproximadamente, uma milha fora da cidade. A profecia de Zacarias na qual Jesus, particularmente, se baseava estabelecia que a localização do milagre seria no Monte das Oliveiras. Esta montanha era de grande significado religioso, especialmente, para um Messias, porque era não somente ela a posição do esperado milagre, como era igualmente o lugar onde Davi usou para orar. Além disso, era lá que o profeta Ezequiel tinha visto a aparição da "glória de Deus" pela qual Jesus estava esperando.

Chegamos ao episódio conhecido como a última ceia. Segue da argumentação do último capítulo que isto ocorreu não no tempo da Páscoa, mas durante a festa dos Tabernáculos. Nos evangelho a última ceia tem sido traduzida por um mito que serve a três finalidades: mostrar que Jesus previu e pretendeu sua própria morte na cruz; mostrar como Judas Iscariote se tornou determinado a trair Jesus; e mostrar que Jesus instituiu o rito da comunhão, com seu simbolismo pagão de comer a carne e de beber o sangue do Deus.

Nenhum traço é revelado de alguns dos ritos especiais da Páscoa, "Sêder," como comer do pão sem fermento, comer do cordeiro Pascal, as ervas amargas, e o relacionamento com o êxodo do Egito. O único rito especial dos Tabernáculos com respeito a comer, é a tomada das refeições no Succah, ou nas tendas (de onde o festival retira a seu nome). Sobre isto há algum traço na referência impar "a um andar superior," descrito em Marcos como "arrumado". As tendas ou os rituais dos "Tabernáculos" eram construídos freqüentemente nos telhados planos das casas, de maneira que "o quarto superior" possa ter sido de fato um "tabernáculo" que fora "arrumado" com os ramos de árvores na maneira prescrita.

A característica da Santificação ("Kiddush") com vinho e pão é comum a todos os festivais judaicos, e se aplica tanto aos Tabernáculos quanto à respeito da Páscoa. Não há, na cerimônia de Kiddush, nenhum simbolismo místico da "carne" e do "sangue" no uso judaico do pão e do vinho. O vinho é usado, primeiramente, para pronunciar uma bênção no festival. O pão é então usado como um cerimonial inicial do festival. Jesus ficaria chocado de saber da interpretação pagã aplicada mais tarde sobre o simples Kiddush com que começou a última ceia.

Jesus não teve nenhum pré-conhecimento de sua queda e crucificação. A última ceia era uma celebração com seus discípulos mais próximos de sua aparição como o rei e da derrota iminente do poder romano. Após ter-se preparado em diversas noites de oração no Monte das Oliveiras, Jesus foi convencido que "o dia do senhor" estava próximo e à mão e chamou seus discípulos para juntos tornarem mais forte a ligação entre eles antes dos tempos cruciais a serem enfrentados. A atmosfera deve ter sido extremamente tensa. Estavam a ponto de correrem um grande risco do qual dependeria o destino de seu país e do mundo inteiro. Mas a pungência especial e o drama das narrativas dos evangelhos são o produto de interpretações posteriores dos eventos e dos mitos que foram gerados mais tarde para explicar a queda de Jesus.

A última ceia seria considerada igualmente como um aperitivo da grande ceia e festival que ocorreria se Jesus fosse bem sucedido. A lenda judaica, profetizando épocas messiânicas, continha muitos detalhes da grande festa messiânica em que o Leviatan seria devorado e todos os grandes heróis da história judaica estariam presentes. Não há nenhuma dúvida do que Jesus procurou transmitir quando disse na última ceia, "Em verdade vos digo que jamais beberei do fruto da videira, até àquele dia em que o hei de beber, novo, no reino de Deus." Sua refeição seguinte seria, propriamente, a festa messiânica na celebração da vitória sobre os inimigos do Deus, os romanos.

Após a última ceia, Jesus conduziu seus discípulos, como de costume, ao Monte das Oliveiras. Mas desta vez havia uma diferença. Jesus estava convencido que esta era a noite em que Deus apareceria na glória e derrotaria os invasores estrangeiros de sua Terra Santa. Desta forma, exigiu que seus discípulos equipassem-se com espadas. Duas espadas foram apresentadas, e Jesus disse, "é o bastante." Ao Messias e seus seguidores, como Gideão e seu grupo minúsculo, seria exigido luta, porque a profecia de Zacarias tinha dito, entre suas predições impressionantes sobre a intervenção de Deus, "e Judá igualmente lutará em Jerusalém." Mas duas espadas seriam bastante: o milagre seria até mesmo maior do que no caso de Gideão.

Somente Lucas reteve o incidente das espadas. Ele não teria nenhum possível motivo de inventá-lo, porque vai contra o cerne de sua narrativa. A única explanação possível de sua inclusão é que é uma reminiscência da história original que somente Lucas não foi piedoso o bastante para extirpar. Os redatores do evangelho seguiam o esboço de um evangelho mais antigo. Para torcer este evangelho para um significado novo exigia bastante coragem; às vezes os nervos podem falhar. Isto explicaria porque pedaços da narrativa velha podem às vezes ser encontrados projetados de forma incômoda no corpo do novo.

Jesus estava agora determinado a colocar em teste sua interpretação da profecia de Zacarias. Pode ser útil, conseqüentemente, colocar diante de nós esta profecia, que era de importância decisiva para Jesus:

E o Senhor sairá, e pelejará contra estas nações, como no dia em que pelejou no dia da batalha. E naquele dia estarão os seus pés sobre o monte das Oliveiras, que está defronte de Jerusalém para o oriente; e o monte das Oliveiras será fendido pelo meio, para o oriente e para o ocidente, e haverá um vale muito grande; e metade do monte se apartará para o norte, e a outra metade dele para o sul. E fugireis pelo vale dos meus montes (porque o vale dos montes chegará até Asel), e fugireis assim como fugistes do terremoto nos dias de Uzias, rei de Judá: então virá o Senhor meu Deus, e todos os santos contigo, ó Senhor. E acontecerá naquele dia, que não haverá preciosa luz nem espessa escuridão. Mas será um dia conhecido do Senhor; nem dia nem noite será; e acontecerá que no tempo da tarde haverá luz. ... E o Senhor será rei sobre toda a terra: naquele dia um será o Senhor, e um será o seu nome. E esta será a praga com que o Senhor ferirá a todos os povos que guerrearam contra Jerusalém: a sua carne será consumida, estando eles de pé,e lhes apodrecerão os olhos nas suas órbitas, e lhes apodrecerá a língua na sua boca. Naquele dia também acontecerá que haverá uma grande perturbação do Senhor entre eles; porque pegará cada um na mão do seu companheiro, e alçar-se-á a mão de cada um contra a mão do seu companheiro. E também Judá pelejará em Jerusalém,... E acontecerá que, todos os que restarem de todas as nações que vieram contra Jerusalém, subirão de ano em ano para adorarem o Rei, o Senhor dos Exércitos, e celebrarem a festa das cabanas... e não haverá mais cananita na casa do Senhor dos Exércitos naquele dia.

A forte influência da profecia de Zacarias em Jesus é mostrada na maneira com que entrou em Jerusalém montado em um jumentinho. Esta deliberada confirmação de Zacarias 9:9 sugere que Jesus igualmente tenha o final da profecia de Zacarias em mente.

"Os povos que lutaram contra a Jerusalém" não eram em nada diferentes dos romanos, ímpios bárbaros que tinham unido "as nações" em um grande império e tinham colocado suas faces contra Deus. Ele mesmo, Jesus de Nazaré, era a pessoa a quem o profeta endereçava suas instruções; O Messias que chegaria em Jerusalém no potro de um jumento, e se apresentaria "no vale das montanhas" junto com uma companhia de "santos" para testemunhar o surgimento da glória do deus no Monte das Oliveiras. Ele veria os romanos golpeados por uma praga, e lideraria Judá na luta contra eles. Então, após uma grande vitória, reinaria como Rei-Messias em Jerusalém, onde a cada ano no aniversário de sua vitória daria boas-vindas a representantes de cada nação na terra, que viessem prestar ao Senhor dos Exércitos a homenagem ao senhor dos anfitriões em seu templo.

Pode-se objetar que este narrativa faz Jesus parecer insano. Poderia ele realmente ter esperado que a profecia de Zacarias se cumprisse tão literalmente naquela noite no Monte das Oliveiras? Como ele poderia estar tão seguro para saber a exata hora da profecia e que seria através dele que ela se cumpriria? Como uma pessoa, Jesus era o que seria descrito hoje como um caráter "maníaco", isto é, alguém capaz de permanecer por longos períodos em um ritmo elevado de entusiasmo e de euforia. Isto lhe permitiu impressionar seus associados até ao ponto em que estes não poderiam deixar sua memória morrer. Ele não era Judas da Galiléia, ou a Bar Kochba, que eram Messias de temperamento, essencialmente, ordinário ou normal, homens que fizeram suas apostas por poder, falharem, e aquilo era aquilo. Não foi por acidente que Jesus deu crescimento a uma religião nova do mundo. A cristandade era uma falsificação de tudo pelo qual Jesus representou, contudo cada detalhe desta falsificação foi construído sobre algo que existia em seu temperamento e perfil. Era apenas uma etapa para que os Gentios Helenistas transformassem a elevada convicção de Jesus em sua missão universal em um dogma de sua divindade; ou para transformar sua confiança da vitória pela mão do Deus, ao invés de métodos de guerrilha, em uma doutrina pacifista do outro mundo a qual transferisse o conceito da vitória para um plano "espiritual". O temperamento "maníaco" de Jesus foi a corrente principal da igreja cristã primitiva, com seu modo extático, sua ambição universal, e sua confiança na vitória final.

Para mentes modernas, pareceria insano esperar derrotar Roma sem um exército apropriado e com as somente duas espadas, por causa de algumas obscuras sentenças obscuras em um livro escrito quinhentos anos antes. Contudo, a narrativa cristã de Jesus o faz parecer ainda mais insano. De acordo com esta narrativa, Jesus considerou-se como uma das três pessoas da Santíssima Trindade, que tinha descido das imensidades do mundo da luz a fim de se imolar em nome da humanidade. Tal combinação de megalomania e de fantasia suicida era estranha à sociedade de Judéia e de Galiléia nos dias de Jesus. Eles tinham suas próprias extravagâncias apocalípticas, mas este tipo da esquizofrenia Helenística era completamente estranho à sua experiência ou compreensão. Jesus nunca se considerou desta maneira. Sua natureza "maníaca" profundamente impressionante seguiu o padrão estabelecido para tais temperamentos na tradição profética judaica. Suas reivindicações pareceriam, a seus contemporâneos, surpreendentes, ousadas, mas inteiramente razoáveis.

A resistência judaica contra Roma consistiu de vários grupos, todos de caráter religioso. Diferiam, entretanto, na questão sobre quanto poderia ser deixado para a intervenção de Deus. Os Zelotas estavam preparados para uma luta longa, dura por métodos militares realísticos. Bar Kochba, sucessor dos fanáticos, teria dito em oração a Deus, "mestre do universo, eu não peço para você lutar do meu lado; somente que você não lute pelos romanos, e isto será o suficiente." Alguns Messias em potencial, tais como Teudas, estavam no outro extremo, e confiavam em Deus ainda mais do que Jesus. Os Fariseus eram cautelosos "esperar-e-ver" pessoas, que como Gamaliel, pensavam, "se este plano ou este trabalho forem dos homens, ele resultará em nada; mas se for do Deus, não poderemos derrotá-lo." Mesmo sendo levados às vezes pelo fervor apocalíptico, como era o caso do rabino Akiva, nos dias de Bar Kochba, Jesus pode ser colocado, no espectro da resistência judaica, como um fariseu apocalíptico cujas esperanças seriam similares àquelas de Teudas, e o profeta do Egito, mencionado por Josefo, que igualmente centrou seu movimento em torno de um esperado milagre no Monte das Oliveiras.

Tendo chegado ao Monte das Oliveiras, Jesus postou-se com seus discípulos no "Jardim de Getsêmani." Este é localizado, tradicionalmente, em um ponto no pé do Monte das Oliveiras, mas possivelmente está afastado de Jerusalém em um vale entre dois platôs da montanha. A profecia de Zacarias diz que os pés de Deus estariam sobre o Monte das Oliveiras, que se racharia em um terremoto para o leste e o oeste, removendo a massa da montanha de Norte a Sul. A profecia continua, "Fugireis do vale das montanhas." Jesus levou então seus discípulos ao ponto indicado pelo profeta, onde poderia observar o milagre e não ser atingido por ele. Foi ainda garantido pelo profeta, "E Iahweh, meu Senhor, virá, todos os santos com ele." O próprio Deus juntar-se-ia ao Messias no vale e na luta contra o inimigo derrubando seus comandados como uma praga. Outros maravilhosos milagres aconteceriam: sairá água viva de Jerusalém em dois rios; e "e à tarde haverá luz."

Uma vez no "vale da decisão," Jesus se aplicou na oração e na vigília. Disse a seus discípulos, o "Vigiai e orai, para não entrar em tentação." Jesus então experimentou uma agonia da tristeza sobre sua próxima crucificação. Esta, pelo menos, é a versão de Marcos e Mateus. (João omite todo o incidente) Somente Lucas usa a palavra "agonia," e o que parece descrever não é uma agonia da tristeza, mas uma forte oração. "E cheio de angústia, orava com mais insistência ainda, e o suor se lhe tornou semelhante a espessas gotas de sangue que caíam por terra." Com que propósito Jesus estava orando tão zelosamente naquele momento? Por que instruiu seus discípulos "para prestar atenção e orar," uma injunção que ele tinha usado anteriormente para aqueles que esperavam a chegada do reino de deus? Por que os advertiu de não cair em tentação? Caso estivesse resignado quanto à crucificação e passava a noite em Getsêmani esperando Judas chegar com as tropas para prendê-lo, não havia nenhuma razão particular para orar ou mesmo permanecer acordado. E não havia nenhuma tentação particular a ameaçar os discípulos enquanto estavam esperando.

Entretanto, na teoria esboçada aqui havia uma grande razão para orar e permanecer acordado, e havia uma grande razão para evitar a tentação. Jesus não estava esperando passivamente no vale de Getsêmani por sua prisão. Esperava um milagre impressionante e a aparição da glória de Deus: mas deve ter sentido que esta manifestação dependeria, em certa medida, de seu próprio mérito e do de seus discípulos.

Jesus não profetizava meramente a vinda do Reino de Deus; tinha igualmente se preparado para ele. Tinha feito campanha entre "as ovelhas perdidas de Israel," chamando-os ao arrependimento, porque sentiu que a vinda do Reino de Deus estava sendo retardada por pecados de Israel. Os escritos dos fariseus, freqüentemente, enfatizam que as promessas de Deus a Israel não são cumpridas automaticamente; são subordinadas ao mérito e à cooperação de Israel. Conseqüentemente, mesmo que Jesus sentisse que o tempo era propício para a vinda "do dia do Senhor," ele não poderia estar completamente seguro. O que era necessário agora era um último grande esforço de oração. A crença na eficácia da oração era muito forte entre os fariseus, especialmente quando a oração vem de um profeta. O que não pôde ser realizado pelas orações poderosas de um dedicado Messias-Profeta, suportadas por um grupo de homens sagrados, todos concentrando seus pensamentos para Deus, em uma hora e local apropriados para a salvação?

Somente o mais poderoso combinado feixe de concentração sagrada, dirigido de Getsêmani para Deus, podia neutralizar os traços dos pecados de Israel, e trazer a hora da redenção. Jesus sozinho não era suficiente, porque Zacarias havia dito, "e meu senhor virá, e todos os santos com ele." Isto explica porque Jesus limitou sua companhia aos doze naquela noite. Quis a companhia daqueles em quem poderia mais confiar, porque o poder da oração sem pecado seria bem mais importante do que a força de meros números.

Não é de se admirar que Jesus criou o slogan messiânico, "Vigiai e Orai" para seus discípulos, que ele mesmo entrou em uma agonia da oração, e que admoestou seus discípulos quando sentiu uma falta da concentração e de sinceridade em suas orações.

A história da falha dos discípulos em Getsêmani deve ter se desenvolvido muito cedo na história da igreja Judaico-Cristã. Era impossível acreditar que o próprio Jesus havia falhado. Seus próprios discípulos preferiram acreditar que haviam falhado, uma vez que se responsabilizando poderiam continuar a acreditar nele. Ele tinha, temporariamente, se afastado do mundo, como Elias quando ascendeu aos céus, mas quando eles se mostrassem dignos ele retornaria e os conduziria à vitória.

Mais tarde, na Igreja Gentia-Cristã, quando Jesus tinha sido transformado em um Deus, a idéia de que era necessário ele se sustentar em seus discípulos para realizar sua missão se tornou imprópria. A injunção de Jesus aos seus discípulos em Getsêmani para prestar atenção e orar, e sua própria agonia na oração, tornaram-se injustificadas e incompreensíveis.

Não era difícil para os discípulos, depois da prisão e execução de Jesus sentirem sentimentos de culpa e conferir toda a culpa a eles próprios. Jesus deve ter feito, em muitas ocasiões, eles se sentirem culpados por sua fé ardente e altruísta. Isto pode explicar, em certa medida, muitas histórias nos evangelhos sobre lapsos dos discípulos.

Jesus, então, se posta no vale do Getsêmani, com o Monte das Oliveiras flutuando sobre o horizonte acima dele. Isto, ele acredita fervorosamente, é o vale da decisão, o vale do julgamento do Senhor. Caso tivesse escolhido o momento certo, se os corações de seus companheiros são puros, e se sua campanha e recuperação entre "as ovelhas carneiros perdidas de Israel" fosse bem sucedida, a última batalha seria travada. Mas, enquanto ora, sente uma sensação de luta. Ele luta na oração até seu suor cair como grandes gotas de sangue na terra. A dificuldade de sua oração é imprópria, e ele pode ver que os poderes de seus companheiros escolhidos estão enfraquecendo. Com uma grande tristeza compreende que a longa penúria de Israel não chegou ainda ao fim.

A Prisão e o Julgamento

A aparição miraculosa do senhor Deus no Monte das Oliveiras não ocorreu. Como Tedas e "o profeta de Egito" e muitas outras figuras de messias do período, Jesus, apesar de seu enorme carisma, acabou desiludido em suas esperanças apocalípticas. Quando as tropas romanas chegaram ao Getsêmani elas encontraram um punhado de rebeldes equipados com apenas duas espadas. Alguns socos foram trocados, mas Jesus foi logo capturado. Os discípulos fugiram consternados e as tropas, que tinham ordens de levar somente o líder do grupo criminoso, prosseguiram seu caminho com o prisioneiro.


sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Israel Finkelstein e a Epopéia de Gilgamesh sobre o Dilúvio

O passado das civilizações nada mais é que
a história dos empréstimos que elas fizeram
umas às outras ao longo dos séculos ...”

1. Da “corrida ao ouro bíblico” à nova historicidade das sagradas escrituras.

Em meados do século XIX, após a descoberta na antiga cidade de Nínive da biblioteca do imperador assírio Assurbanípal (668-627 a.C.), o mundo redescobriu as antigas grandes civilizações da Mesopotâmia em tábuas de argila contendo escritos em sinais mais tarde denominados cuneiformes. Civilizações estas de que até então, o pouco que se conhecia estava contido nos livros da Bíblia, em informações “escassas e pouco reveladoras, uma vez que estavam diretamente relacionadas com a história do povo hebreu”.(CORREA, 200-, p. 2).

Tais descobertas deram início a uma espécie de “corrida ao ouro bíblico” que propunha evidenciar arqueológicamente as sagradas escrituras. Outras ruínas então, como as de Uruk, Ur e Nipur, começaram ser escavadas e revelaram mais inscrições sobre o passado do Oriente Próximo.

O trabalho de decifração destas tábuas foi realizado por vários pesquisadores, mas coube ao arqueólogo britânico George Smith, a primeira tradução contendo um trecho da Epopéia de Gilgamesh: o relato do dilúvio. Em 1872, Smith anuncia sua descoberta1 em um encontro da Sociedade de Arqueologia Bíblica causando um “forte impacto na Europa (...) por apresentar um texto pagão aparentemente antecipando a Arca de Noé”.(CORREA, 200-, p. 2).

Estas descobertas abalaram toda a comunidade científica e religiosa do século XIX, laicizando muitos dos objetivos iniciais, modificando métodos dos pesquisadores, e abrindo precedentes para o questionamento da veracidade dos textos bíblicos.

Nas últimas quatro décadas, diferentes estudos estão sendo realizados sobre os temas levantados no século XIX, tanto pela comunidade científica como em grande parte pela comunidade religiosa, fazendo com que sejam discutidos os elementos mitológicos presentes na confecção dos livros que compõe o Pentateuco2, que vão desde a formação do mundo à existência histórica dos seus patriarcas.

Há uma tentativa, nos dias atuais, por parte de arqueólogos e historiadores de remontar a bíblia separando o que é história do que são mitos e lendas.

"Apesar das paixões suscitadas por este tema, nós acreditamos que uma reavaliação dos achados das escavações mais antigas e as contínuas descobertas feitas pelas novas escavações deixaram claro que os estudiosos devem agora abordar os problemas das origens bíblicas e da antiga sociedade israelita de uma nova perspectiva, completamente diferente da anterior. (…) A história do antigo Israel e o nascimento de suas escrituras sagradas a partir de uma nova perspectiva, uma perspectiva arqueológica.” (FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2001, pp. V-VI, p. 1).

2. Da teogonia à teofania.

Paralelamente às discussões bíblicas, as descobertas feitas pelas escavações remontam os três milênios que antecedem à Cristo, onde a região entre os rio Tigre e Eufrates viu a ascensão e queda de grandes civilizações como os sumérios, acádios, assírios e babilônicos.

Dos textos traduzidos, vários deles incompletos devido ao estado de conservação dos mesmos, pôde-se extrair muito da filosofia e da mitologia mesopotâmicas, onde podemos observar que “o Oriente antigo, antes da Bíblia, e mesmo abstraindo-se dela, não desconhecia a reflexão sobre o homem. (...) As questões fundamentais da existência, da felicidade e da infelicidade, da relação com as potências cósmicas e com o domínio misterioso dos deuses, do sentido da vida e das incertezas do destino, já tinham neles um lugar de grande importância”.(GRELOT, 1980, p. 13).

Neste universo de descobertas, os sumérios e os acadianos revelam-se fornecedores de costumes, rituais e modelos literários a todos os povos do Oriente Médio3. Suas lendas, se consideradas como o primeiro repositório das recordações históricas dos povos do oriente antigo, “se transformaram, se esquematizaram, se reagruparam, mudaram eventualmente de país, se ampliaram, às vezes, desmedidamente” (GRELOT, 1980, p. 13), onde cada cultura apropriou-se de um mito conforme a sua ótica4.

Não diferente desta regra, os israelitas inovaram ao excluir todo um panteão, centralizando sua fé num deus único, propondo uma desmitização do universo transformando as forças cósmicas ao que de fato são. A situação do homem diante de Deus modifica-se totalmente, “embora, na prática, a adaptação da mentalidade corrente dos israelitas a essa mudança radical se tenha processado lentamente e com dificuldade” (GRELOT, 1980, p. 15), mantendo grande parte do antigo modo de expressar religioso herdado dos sumérios e acádios.

Desta forma, Israel começa a escrever sua própria história, ora compilando fatos de seu próprio povo em grandiosas lendas, ora adaptando mitos antigos à sua realidade e aos seus propósitos. As histórias contidas na parte hebraica da bíblia, embora difíceis de serem datadas pelos anacronismos que ali apresentam5, foram compiladas e ordenadas “principalmente, no tempo do rei Josias (640-609 a.C.), para oferecer uma legitimação ideológica para ambições políticas e reformas religiosas específicas”.(FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2001, p. 14).

3. A Epopéia de Gilgamesh e sua influência sobre demais literaturas do mundo antigo.

Considerada a mais antiga obra literária da humanidade, a Epopéia de Gilgamesh na sua forma “tardia” (século VII a.C.) como é difundida no Ocidente (TIGAY6 citado por ZILBERMAN (1998, p. 58)), não foge à regra das obras de origens mesopotâmicas: um compilado de lendas e poemas, cuja origem e veracidade perdem-se na difusão oral, adaptação cultural e textos fragmentados.

As narrativas contidas na epopéia deviam ser muito populares em sua época, pois são encontradas em várias versões escritas por vários povos e línguas diferentes, sendo que as primeiras versões da mesma, datam do Período Babilônico Antigo (2000-1600 a.C.), podendo ter surgido muito antes7, pois o herói desta epopéia é o lendário rei sumério Gilgamesh, quinto rei da primeira dinastia pós-diluviana de Uruk, que teria vivido no período protodinástico II (2750-2600 a.C.)8.

Devido à sua antiguidade e originalidade, muito se especula sobre a influência desta sobre textos mais difundidos e conhecidos pela humanidade, como os poemas épicos gregos Ilíada e Odisséia de Homero, escritos entre VIII e VII a.C.. Mas a polêmica é maior quando se comparados às narrativas do Pentateuco, a parte mais antiga do Velho Testamento, datadas do Primeiro Milênio a.C.. No caso desta última, o que legitima-nos a observar as influências, além de semelhanças impressionantes, o próprio contexto histórico e geográfico. Contexto este em que a origem dos hebreus e das grandes civilizações semitas são mescladas com a própria história do povo sumério. Históricos períodos de cativeiro, onde a aculturação era, além de inevitável pelas circunstâncias de sobrevivência, uma forma de dominação ideológica:

“O povo dominado era absorvido pelos nativos ao serem levados, havia a destruição total da nacionalidade, do culto, das instituições, nada ficando que pudesse ser lembrado a fim de que jamais alguém se encorajasse a agir em favor de uma reconstrução. Todo o elemento que representasse qualquer valor moral ou intelectual era desterrado e em seu lugar era posto outro povo trazido de outras regiões.” (LOPES, 200-, p. 2).

4. A semelhança entre as narrações.

As semelhanças narrativas encontradas entre Epopéia de Gilgamesh e o Livro do Gênesis iniciam-se logo nos primeiros versículos da bíblia, ou seja, na criação do homem. O povo de Uruk, descontente com a arrogância e luxúria do rei Gilgamesh, exige dos seus deuses a criação de um homem que fosse o reflexo do rei, e tão poderoso quanto ele para que pudesse enfrentá-lo e redimi-lo. O deus Anu, ouvindo o lamento da população, ordenou a Aruru, deusa da criação, que fizesse Enkidu:

“A deusa então concebeu em sua mente uma imagem cuja essência era a mesma de Anu, o deus do firmamento. Ela mergulhou as mãos na água e tomou um pedaço de barro; ela o deixou cair na selva, e assim foi criado o nobre Enkidu”.(SANDARS, 1992, p. 94).

“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança”.(GENESIS, cap. 1, ver. 26).

“Então formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente”.(GENESIS, cap. 2, ver. 7).

Enkidu foi criado inocente, longe da malícia da civilização, vivendo entre as criaturas selvagens e compartilhando a natureza com elas:

“Ele era inocente a respeito do homem e nada conhecia do cultivo da terra. Enkidu comia grama nas colinas junto com as gazelas e rondava os poços de água com os animais da floresta; junto com os rebanhos de animais de caça, ele se alegrava com a água”.(SANDARS, 1992, p. 94).

“Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra, e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento. E a todos os animais da terra e a todas as aves dos céus e a todos os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda erva verde lhes será para mantimento”. (GENESIS, cap. 1, ver. 29-30).

O rei Gilgamesh, sabendo da existência de Enkidu, incube uma missão a uma das prostitutas sagradas do templo da deusa Ishtar (deusa do amor e da fertilidade): seduzir Enkidu e trazê-lo para dentro das muralhas de Uruk. Enkidu deixou-se seduzir pela rameira e perdeu sua inocência, além de seu poder selvagem, tornando-se conhecedor da malícia do homem. Arrependido, lamenta-se, mas a rameira consola-o enfatizando as vantagens desta nova vida que está por vir:

“Enkidu perdera sua força pois agora tinha o conhecimento dentro de si, e os pensamentos do homem ocupavam seu coração”.(SANDARS, 1992, p. 96).

“Olho para ti e vejo que agora és como um deus. Por que anseias por voltar a correr pelos campos como as feras do mato?” (SANDARS, 1992, p. 99).

“Porque Deus sabe que no dia em que comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal.” (GENESIS, cap. 2, ver. 5).

Nesta comparação com a tentação no Éden, não identificamos diretamente os fatos, mas sim, as idéias. A prostituta sagrada, condenada também em outros livros da bíblia, pode ser compilada como o fruto proibido, a serpente e a própria Eva, com o poder de seduzir o homem e tirar sua inocência com falsas promessas.

Enkidu, já na cidade de Uruk, enfrenta o rei Gilgamesh em combate. Vencendo-o, é reconhecido pelo rei como irmão, pois este jamais havia enfrentado alguém com tamanha força. Formando-se então uma grande amizade que protagoniza grandes aventuras e tragédias ao longo da epopéia.

Gilgamesh e Enkidu partiram então para a floresta de cedros (provavelmente, o atual Líbano), onde enfrentaram o monstro Humbaba, a sentinela da floresta.

Este se irrita com Enkidu, por profanar a floresta sagrada dos cedros inferiorizando-o e humilhando-o com palavras semelhantes às palavras de Deus, ao condenar o homem por comer do fruto proibido. Novamente não vemos relação direta entre os fatos, mas uma linha comum de pensamento é verificada entre os textos onde, a profanação e a desobediência são punidas com a servidão:

“… tu, um mercenário, que depende do trabalho para obter teu pão!” (SANDARS, 1992, p. 119).

“… maldita é a terra por tua causa: em fadigas obterás dela o sustento durante os dias da tua vida”.(GENESIS, cap. 3, ver. 16).

“No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado”.(GENESIS, cap. 3, ver. 19).

Os heróis, com a ajuda de Shamash (deus sol, protetor de Gilgamesh), matam o monstro Humbaba cortando-lhe a cabeça. Fato que irritou o poderoso Enlil (deus da terra, do vento e do ar universal), que exigiu a vida de um dos heróis pelo insulto.

A deusa Ishtar, vendo a força e beleza do herói, apaixona-se por Gilgamesh que a despreza, provocando a cólera da deusa. Então, Ishtar enviou a terra, um monstro com a missão de destruir o herói: o Touro Celeste. Mas a dupla de heróis novamente é vitoriosa. Então, Enkidu zomba da deusa derrotada atirando-lhe pedaços do touro mutilado. Enlil enfurecido com a atitude do mortal decide enfim qual dos dois heróis deverá morrer. Enkidu então adoece e, sucumbindo à doença, impulsiona o rei Gilgamesh a sua missão final: a busca da imortalidade.

A primeira semelhança encontrada pelos tradutores das tábuas em escrita cuneiforme é a mais impressionante. Foi a mola propulsora de toda a discussão sobre a veracidade dos textos bíblicos, pois a descrição do dilúvio não só é a mais bem conservada tábua de toda a epopéia, mas a mais rica em detalhes e semelhanças com a descrição no Gênesis. Além de que, outras narrativas do dilúvio foram encontradas em forma de poemas isolados e com outros personagens, como as tábuas de Atra-Hasis, a Epopéia de Erra, e os textos do rei Ziusudra9.

Na epopéia, Gilgamesh parte em busca da imortalidade, e para isso, precisa obter este segredo dos deuses com o imortal Utnapishtim (Noé do Gênesis). Para encontrar o imortal, Gilgamesh enfrentou uma longa jornada, cheia de perigos e provações. Ao encontrar Utnapishtim, ouve que este não poderá lhe tornar imortal, mas poderá revelar ao herói como se tornara um e conta do dia em que os deuses, desgostosos com a sua criação (a humanidade), resolveram eliminá-la da terra:

“Naqueles dias a terra fervilhava, os homens multiplicavam-se e o mundo bramia como um touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus. Enlil ouviu o alvoroço e disse aos deuses reunidos em conselho: ‘O alvoroço dos humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia.’ Os deuses então concordaram em exterminar a raça humana”.(SANDARS, 1992, p. 149).

“Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra, e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração”.(GENESIS, cap. 6, ver. 5).

“A terra estava corrompida à vista de Deus, e cheia de violência”.(GENESIS, cap. 6, ver 11).

“Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis, e as aves do céu; porque me arrependo de os haver feito”.(GENESIS, cap. 6, ver 7).

Ea (deus da água doce e da sabedoria, patrono das artes e protetor da humanidade), avisa Utnapishtim em um sonho das intenções de Enlil e orienta-o de como sobreviver à catástrofe que estaria por vir:

“... põe abaixo tua casa e constrói um barco. Abandona tuas posses e busca tua vida preservar; despreza os bens materiais e busca tua alma salvar. Põe abaixo tua casa, eu te digo, e constrói um barco. Eis as medidas da embarcação que deverás construir: que a boca extrema da nave tenha o mesmo tamanho que seu comprimento, que seu convés seja coberto, tal como a abóbada celeste cobre o abismo; leva então para o barco a semente de todas as criaturas vivas. (...) Eu carreguei o interior da nave com tudo o que eu tinha de ouro e de coisas vivas: minha família, meus parentes, os animais do campo – os domesticados e os selvagens – e todos os artesãos”.(SANDARS, 1992, p. 149-151).

“Faze uma arca de tábuas de cipreste; nela farás compartimentos, e a calafetarás com betume por dentro e por fora. Deste modo a farás: de trezentos côvados será o comprimento, de cinqüenta a largura, e a altura de trinta. Farás ao seu redor uma abertura de um côvado de alto; a porta da arca colocarás lateralmente; farás pavimentos na arca: um em baixo, um segundo e um terceiro”. (GENESIS, cap. 6, ver 14-16).

“… entrarás na arca, tu e teus filhos, e tua mulher, e as mulheres de teus filhos. De tudo o que vive, de toda carne, dois de cada espécie, macho e fêmea, farás entrar na arca, para os conservares contigo”.(GENESIS, cap. 6, ver. 18).

Enlil então envia uma tempestade de grandiosas proporções, fazendo com que toda a terra desaparecesse sobre as águas:

“Caiu a noite e o cavaleiro da tempestade mandou a chuva.(...) Por seis dias e seis noites os ventos sopraram; enxurradas, inundações e torrentes assolaram o mundo; a tempestade e o dilúvio explodiam em fúria como dois exércitos em guerra.” (SANDARS, 1992, p. 151-153).

“… nesse dia romperam-se todas as fontes do grande abismo, e as portas do céu se abriram, e houve copiosa chuva sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites”.(GENESIS, cap. 7, ver. 11-12).

E toda a humanidade foi exterminada:

“… agora eles (humanos) flutuam no oceano como ovas de peixe”. (SANDARS, 1992, p. 152).

“Assim foram exterminados todos os serem que havia sobre a face da terra …” (GENESIS, cap. 7, ver. 23).

Com o passar dos dias, a tempestade ameniza-se e o dilúvio começa a serenar:

“Na alvorada do sétimo dia o temporal vindo do sul amainou; os mares se acalmaram, o dilúvio serenou”.(SANDARS, 1992, p. 153).

“Deus fez soprar um vento sobre a terra e baixaram as águas. Fecharam-se as fontes do abismo e também as comportas dos céus, e a copiosa chuva do céu se deteve”. (GENESIS, cap. 8, ver. 1-2).

Após a calmaria do grande oceano que se formara, Utnapishtim solta uma pomba para ver se há terra firme para que então possa desembarcar:

“Na alvorada do sétimo dia eu soltei uma pomba e deixei que se fosse. Ela voou para longe; mas, não encontrando lugar para pousar, retornou. Então soltei uma andorinha, que voou para longe; mas, não encontrando lugar para pousar, retornou. Então soltei um corvo. A ave viu que as águas haviam abaixado; ela comeu, voou de uma lado para outro, grasnou e não mais voltou para o barco”.(SANDARS, 1992, p. 153).

“Ao cabo de quarenta dias, abriu Noé a janela que fizera na arca, e soltou um corvo, o qual, tendo saído, ia e voltava, até que se secaram as águas sobre a terra. Depois soltou uma pomba para ver se as águas teriam já minguado da superfície da terra; mas a pomba, não achando onde pousar o pé, tornou a ele para a arca; porque as águas cobriam ainda a terra. Noé, estendendo a mão, tomou-a e a recolheu consigo na arca. Esperou ainda outros sete dias, e de novo soltou a pomba for a da arca. A tarde ela voltou a ele; trazia no bico uma folha nova de oliveira; assim entendeu Noé que as águas tinham minguado de sobre a terra. Então esperou ainda mais sete dias, e soltou a pomba; ela, porém, já não tornou a ele”.(GENESIS, cap. 8, ver. 6-12).

Após a bonança, já em terra firme e grato ao deus Ea por ter lhe salvo a vida, Utnapishtim prepara um sacrifício aos deuses:

“Eu então abri todas as portas e janelas, expondo a nave aos quatro ventos. Preparei um sacrifício e derramei vinho sobre o topo da montanha em oferenda aos deuses”.(SANDARS, 1992, p. 153).

“Então Noé removeu a cobertura da arca, e olhou, e eis que o solo estava enxuto”.(GENESIS, cap. 8, ver 13).

“Levantou Noé um altar ao Senhor, e, tomando de animais limpos e de aves limpas, ofereceu holocaustos sobre o altar”.(GENESIS, cap 9, ver 20).

Enlil, furioso com Ea por ter permitido que um humano sobrevivesse e conhecendo o segredo dos deuses, viu-se sem alternativa que não a de transformar Utnapishtim em um imortal, para que sua maldição de que nenhum mortal sobrevivesse se completasse.

Gilgamesh desapontado por não ter tido sucesso em busca da imortalidade, prepara seu retorno para Uruk, mas é abordado pela esposa de Utnapishtim que, compadecida com o fracasso do herói, revela-lhe o segredo da imortalidade em que, nas profundezas do mar, havia uma planta maravilhosa, e quem a comesse, seria eternamente jovem. O herói então mergulha no mar profundo, ferindo-se, mas obtendo a tão desejado segredo.

Tomado de rara compaixão, Gilgamesh decide não comer sozinho o maravilhoso fruto, mas sim dividi-lo com os anciãos da cidade de Uruk. No retorno para casa, Gilgamesh é surpreendido por uma serpente marinha que lhe rouba a flor, perdendo para sempre o segredo da imortalidade:

“Se conseguires pegá-la (a planta sagrada), terás então em teu poder aquilo que restaura ao homem sua juventude perdida. (…) Vem ver esta maravilhosa planta. Suas virtudes podem devolver ao homem toda a sua força perdida. (...) mas nas profundezas do poço havia uma serpente, e a serpente sentiu o doce cheiro que emanava da flor. Ela saiu da água e a arrebatou”.(SANDARS, 1992, p. 160).

Apesar dos fins da ação de comer o fruto sejam diferentes (a morte e a imortalidade), podemos fazer uma analogia da função da serpente em roubar a imortalidade do homem: sendo tirando-lhe a oportunidade da vida eterna pela sua obtenção, como na Epopéia de Gilgamesh; sendo condenando-lhe a morte pela cessão do fruto ao homem, como no livro do Gênesis. Gilgamesh então ficou desolado e abatido, pois além de fracassar em sua missão, perdera para sempre o irmão Enkidu, restando-lhe apenas, melancolicamente esperar o dia de sua morte chegar.

No livro do Gênesis, não encontramos somente semelhanças com a Epopéia de Gilgamesh, mas com outros textos antigos, como o sumeriano Mito de Dilmum onde o deus Enki, o senhor das águas profundas e do abismo que suporta a terra; e Nintu, a virgem pura, deusa que presidia aos partos; habitavam sozinhos num mundo cheio de delícias sem que nada existisse além do par divino, caracterizando uma descrição muito semelhante do que seria e onde seria o jardim Éden:

“E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, da banda do Oriente, e pôs nele o homem que havia formado. (...) E saía um rio do Éden para regar o jardim, e dali se dividia, repartindo-se em quatro braços. (...) O nome do terceiro rio é Tigre; é o que corre pelo oriente da Assíria. E o quarto é o Eufrates”. (GENESIS, cap. 2, ver. 8-14).

5. Considerações finais.

É impossível afirmar a influência direta da Epopéia de Gilgamesh sobre a escrita do livro do Gênesis, pois tanto um como o outro poderiam ter sido influenciados por histórias ainda mais antigas e difundidas no Oriente, ao mesmo tempo em que é inegável que o mundo situado entre o Mediterrâneo e os Montes Zargos, onde havia intensa circulação de mercadores de diferentes etnias e religiões variadas, era pequeno demais para descartar qualquer influência cultural entre eles.
Os hebreus, possivelmente muito antes de seus períodos de cativeiro na Babilônia e Assíria, já tiveram contato com as lendas e mitos sumério-acadianos e que por várias razões, os utilizaram na formulação de suas próprias lendas, o que sugere que seu deus, Jeová, toma por empréstimo características de deuses como Anu, Enlil e Ea, seja criando a terra e o homem, seja julgando-os por seus atos, seja compadecendo-se de seu povo e os protegendo.


Acreditamos ser impossível obter conclusões definitivas sobre as influências de um texto sobre o outro, ou principalmente, da formação de um pensamento religioso sem a existência do pensamento antecessor, sem que se faça juízo de valores como é recomendado a um historiador, mas ao se estudar o contexto em que o Gênesis é idealizado e escrito, tomando aqui, palavras de Finkelstein e Silberman, observa-se que "a saga histórica contida na Bíblia (...) não foi uma revelação miraculosa, mas um brilhante produto da imaginação humana”.10
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Notas:

1SANDARS, N. K. A epopéia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 11-12.
2Os 5 primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
3GRELOT, P. Homem quem és? São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 14.
4CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 211-238.
5FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. The Bible Unearthed. Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001, p. 38.
6TIGAY, Jeffrey. On the evolution of the Gilgamesh epic. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1982, p. 11.
7ZILBERMAN, Regina. Nos princípios da epopéia: Gilgamesh. In: BAKOS, Margaret Marchiori; POZZER, Katia Maria Paim. JORNADA DE ESTUDOS DO ORIENTE ANTIGO: LÍNGUAS ESCRITAS E IMAGINÁRIAS, 3., 1997, Porto Alegre. Anais ... trabalho 4. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p. 58.
8BOUZON, Emanuel. Ensaios babilônicos: sociedade, economia e cultura na Babilônia pré-cristã. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998, p. 126.
9CHARPIN, Dominique. El mundo de la biblia: Mesopotamia y la biblia. Valencia: EDICEP, 1984, p. 9.
10FINKELSTEIN; SILBERMAN. The Bible ... 2001. p. 13.
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Referências Bibliográficas
BÍBLIA, V. T. Gênesis. Português. A bíblia sagrada. Tradução João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. Cap. 1-9.

BÍBLIA, V. T. Gênesis. Português. A bíblia de Jerusalém. Tradução Theodoro Henrique Maurer Jr.. São Paulo: Edições Paulinas, 1985. Cap. 1-9.

BOUZON, Emanuel. Ensaios babilônicos: sociedade, economia e cultura na Babilônia pré-cristã. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.

CHARPIN, Dominique. El mundo de la biblia: Mesopotamia y la biblia. Valencia: EDICEP, 1984.

CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. The Bible Unearthed. Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001.

GRELOT, P. Homem quem és? São Paulo: Edições Paulinas, 1980.

SANDARS, N. K. A epopéia de Gilgamesh. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

ZILBERMAN, Regina. Nos princípios da epopéia: Gilgamesh. In: BAKOS, Margaret Marchiori; POZZER, Katia Maria Paim. JORNADA DE ESTUDOS DO ORIENTE ANTIGO: LÍNGUAS ESCRITAS E IMAGINÁRIAS, 3., 1997, Porto Alegre. Anais ... trabalho 4. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
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Referências Eletrônicas

http://iraqipages.com/

CLOUGH, Brenda W. A short discussion of the influence of the Gilgamesh Epic on the bible. Disponível em http://www.sff.net/people/Brenda/gilgam.htm, 1999. Acesso em: 27 jul. 2003.

CORREA, Maria Isabelle Palma Gomes. Mitos Cosmogônicos: Suméria e Babilônia. Disponível em http://www.galeon.com/projetochronos/chronosantiga/isabelle/Sum_indx.html, 200-. Acesso em: 18 ago. 2003.

LOPES, Fabiano Luis Bueno. Exílio e retorno dos judeus na Babilônia. Disponível em http://www.galeon.com/projetochronos/chronosantiga/fabiano/fab_ind.htm, 200-. Acesso em: 18 ago. 2003.

SUBLETT, Kenneth. Epic of Gilgamesh. Disponível em http://www.piney.com, 2003. Acesso em: 27 jul. 2003.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Zecharia Sitchin e os deuses Sumérios

Uma das leituras que mais fascina é sobre história antiga. E por ‘antiga’ entenda-se de quatro mil anos para trás. Impossível ler sobre civilizações que surgiram, cresceram e desapareceram sem denotar um mínimo de entusiasmo. Quem foram aquelas pessoas? Como era seu cotidiano? Claro que essas perguntas encontram respostas nos livros de história e nos achados arqueológicos – estelas de argila, inscrições, pergaminhos e papiros, que permitem traçar um esboço desses povos. Assim, temos noção de formas de governo, costumes, religião, comércio, leis e todos os elementos que compunham aquela sociedade.

E a civilização Suméria foi, sem dúvida, a mãe das civilizações da antiguidade e grande influenciadora da evolução do mundo como o conhecemos. A Suméria (Sinar na Bíblia, Sangar no Egito e KI-EN-GIR na língua nativa), que significa “Lugar dos Senhores Civilizados”, é considerada a civilização mais antiga da humanidade, localizava-se na parte sul da Mesopotâmia, posicionada em terrenos conhecidos por sua fertilidade, entre os rios Tigre e Eufrates. Evidências arqueológicas datam o início da civilização suméria em meados do quarto milênio a.C. Entre 3500 e 3000 a.C. houve um florescimento cultural e a Suméria exerceu influência sobre as áreas circunvizinhas, culminando na dinastia de Ágade, fundada em aproximadamente 2340 a.C. por Sargão I, sendo que este, ao que tudo indica, seria de etnia e língua semitas. Depois de 2000 a.C. a Suméria entrou em declínio, sendo absorvida pela Babilônia e pela Assíria.

Duas importantes criações atribuídas aos sumérios são a escrita cuneiforme, que antecede todas as outras formas de escrita, tendo sido originalmente usada por volta de 3500 a.C.; e as cidades-estado – a mais conhecida delas sendo a cidade de Ur, construída por Ur-Nammu, o fundador da terceira dinastia Ur, por volta de 2000 a.C.

Comecei a pesquisa em incontáveis páginas da web e culminei na bibliografia de Zecharia Sitchin, de quem já li uns cinco livros até agora. Zecharia Sitchin nasceu em Baku, Azerbaijão, foi criado na Palestina e adquiriu conhecimentos do hebraico antigo e moderno e outras línguas europeias e semíticas, do Velho Testamento e da história e arqueologia do Oriente e, chamou minha atenção por tocar num outro assunto de meu interesse: a etimologia.

Traduzindo as milenares escritas cuneiformes sumérias, ele defende a tese de que há 400 mil anos os deuses da antiguidade foram astronautas que vieram de outro planeta, chamado Nibiru. Ele chegou a essa conclusão ao traduzir escritas sumérias que diziam ser as primeiras dinastias na Terra constituídas pelos ‘deuses’, ou os AN.UNNA.KI, cuja tradução é “Aqueles Que Do Céu à Terra Vieram”. E a partir daí surge uma profusão de nomes, lugares e acontecimentos que se mesclam e se confundem. Em muitos momentos as deduções encontram um paralelo hollywoodiano, como o fato dos alienígenas virem à Terra para extrair ouro, transformá-lo em pó e pulverizar a atmosfera de Nibiru, que estava se desfazendo.

Sitchin reconstrói uma época pré-diluviana onde deuses realmente andaram entre os homens. Quanto mais eu lia os livros, mais certeza tinha de que esses deuses foram reais. Fica nítido que os grandes ANU, ENKI, ENLIN, NINHURSAG, MARDUK, NABU, INANNA e dezenas de outras ‘divindades’ foram pessoas reais. Homens e mulheres de profundo conhecimento e sabedoria, que ditaram regras para criar uma poderosa civilização. Os atributos metafísicos ou alienígenas ficam por conta da imaginação de Sitchin, que é veementemente rebatido por Michael Heiser, Ph.D. em estudos semíticos e hebreus da Universidade de Wisconsin-Madison.

É nítida a influência dos ‘deuses’ sumérios na Babilônia, Egito, Pérsia, Grécia, etc. Eram seres com amores e desafetos, constituíam família, iravam-se, riam, guerreavam, presenteavam, tinham relações incestuosas e davam pouca atenção aos ‘mortais’. Exatamente como os deuses gregos e egípcios. Daí conclui-se que a similaridade dos deuses antigos entre culturas diferentes é um reflexo ou cópia do panteão sumério. Por exemplo, a história de Inanna (Ishtar, na Babilônia) e sua insaciável libido remete à Afrodite/Vênus. Anu, o deus mais distante e que comandava os outros, é Zeus/Odin. Os irmãos Enki e Enlil são contrapartes egípcias de Ptah e Tot, respectivamente. Marduk é Rá no Egito, mas seu nome babilônico nas escrituras bíblicas é Merodaque.

Os nomes de notórios monarcas da antiguidade também estão intimamente ligados aos nomes dos ‘deuses’ aos quais eles eram devotos. No princípio, dizem os textos sumérios, os reis eram sacerdotes e serviam de interlocutores com a população. Com o tempo, os ‘deuses’ foram ampliando os poderes desses sacerdotes para que pudessem ter autonomia de governo, dando origem às monarquias. Esses reis mantinham em seus nomes o nome da divindade favorita, como no caso dos reis babilônicos Nabupolasar e seu filho Nabucodonosor – ambos com o nome do ‘deus’ NABU nas iniciais, afirmando uma linhagem divina. Essa mesma formação de epítetos ocorre no Egito, no nome do faraó Ramsés (RA-MOSES ou Ra-Ms-S), que significa “Filho do Deus Rá”.

Pela visão dos sumérios, entende-se a criação do horóscopo e notamos que as adivinhações publicadas nos jornais não são nem a sombra da ciência de observação astronômica da antiguidade. Para os sumérios (ou os Anunnaki), havia diferença entre Destino e Sorte. O Destino era tudo o que se podia prever – como a movimentação dos corpos celestes, o dia depois da noite, as estações do ano e tudo o que mantinha um movimento constante. A Sorte eram os acontecimentos que estavam além da capacidade de previsão dos próprios ‘deuses’ – os imprevistos. Assim, os sumérios sabiam que em determinada época do ano uma constelação seria vista no céu; mas não podiam dizer se alguém morreria nesse período. Parece idiota aos olhos do século XXI, mas pense nisso há seis ou sete mil anos atrás.

Surpreendeu-me, também, descobrir que ainda hoje temos influência suméria em nosso vocabulário. Por exemplo, a palavra suméria E.DIN é traduzida como a “Morada dos Justos” (de onde pode ter derivado a palavra bíblica Éden). A região de E.DIN ficava entre os rios Tigre e Eufrates, local que viria a ser conhecido depois como Mesopotâmia. É lá que se encontram os picos gêmeos do monte Arrata (Ararat). Foi em E.DIN que a primeira cidade, E.RI.DU (“Lar na Lonjura”), estabeleceu-se. O nome ‘Eridu’ foi traduzido para muitos idiomas do mundo, incluindo alemão (Erde), inglês médio (Erthe), curdo (Ertz) e hebreu (Eretz). A palavra acabou por se tornar o que em inglês atual conhecemos como Earth (Terra).

Como E.RI.DU era o nome de uma cidade-estado, os sumérios tinham outra palavra para designar o planeta Terra, que era Ki (o mesmo significado do ‘ki’ de An.unna.ki). Em acadiano, Ki tornou-se Gi (ou Ge) – de onde saiu a palavra Geo (de geografia, geologia, etc.). Mais tarde, os indo-europeus acrescentaram a palavra ‘Aia’, que significa “avó”, e daí surgiu a palavra Gaia, a “Avó-Terra”, mas que alguns antropologistas preferiram traduzir como “Mãe-Terra”.

Outra palavra suméria que usamos até hoje e que sofreu pouca alteração ao longo dos milênios é “mãe” ou “mamãe”, que deriva das palavras Mamma, Mammi ou Mami, as quais, por sua vez, são outros nomes utilizados para se referir à ‘deusa-mãe’ Ninhursag (“Senhora da Montanha”), associada à fertilidade.

Em seu livro Encontros Divinos, Sitchin faz uma descrição de inúmeros relatos registrando o encontro entre homens e ‘deuses’. Ele começa traçando um perfil de como eram esses encontros e como eles interferiam no cotidiano das pessoas, sempre pendendo para a teoria extraterrestre. Porém, Sitchin começa a enveredar por outros caminhos no último capítulo e decide traçar um paralelo entre todos os deuses sumérios e o Deus dos hebreus, no Velho Testamento. O propósito é identificar qual dos deuses sumérios seria o Deus descrito na Bíblia, então ele compara um a um buscando similaridades na personalidade, nos diálogos, nos feitos e nos milagres.

E só então um novo elemento nos é apresentado. Os poderosos ‘deuses’ da Suméria, quando viam seus planos frustrados ou quando enfrentavam algum imprevisto, reconheciam suas limitações e atribuíam esses acontecimentos a quem chamavam de “O Criador de Todas as Coisas” (cujo poder controlava tanto a Sorte quanto o Destino). Ou seja, os ‘deuses’ possuíam um Deus. Não encontrando paralelo no panteão sumério, Sitchin admite que o Deus bíblico é, de fato, o Criador de Todas as Coisas.

Essa informação é esclarecedora para os primeiros capítulos do Velho Testamento, ao visualizarmos a dificuldade e resistência que Abraão, Moisés e os outros patriarcas enfrentaram ao tentar difundir a Palavra de um Deus invisível para povos acostumados a ‘deuses’ que viviam entre eles, tinham esposas e filhos – algumas daquelas pessoas podiam até mesmo ser descendentes desses ‘deuses’.