terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O Enigma de Gênesis 6.1-8

Quem eram os “Filhos de Deus” em Genesis 6?

Sobre esse comentário expositivo de Gênesis 6.1-8, talvez fosse suficiente deixar claro que o texto trata da história dos descendentes de Sete e Caim, entretanto, tratarei de outras possibilidades teológicas encontradas nesse texto. Por isso, pretendo nesse breve adendo apresentar as duas mais importantes visões sobre a narrativa mosaica, seus defensores, pontos fortes e fracos, na intenção de oferecer ao leitor informações que o ajudem a entender o dilema e refletir sobre que opção parece mais aceitável diante das escrituras.

Entretanto, uma nota introdutória a esse estudo é importante, e sobre o assunto David Merkh diz:
“Não importa a interpretação adotada, o ponto parece ser o mesmo: o pecado agora está transpondo fronteiras espirituais (sejam celestiais, sejam terrestres). O vírus do pecado virou pandemia!1”.

A idéia é que independente da opinião teológica, a ênfase essencial do texto não é perdida, e a isso Derek Kidner complementa:

“Onde a escritura é tão reticente como o é aqui, Pedro e Judas nos aconselham a retirada. Coloquemo-nos em nosso próprio lugar! Mais importante do que as minúcias desse episódio é sua indicação de que o homem não pode socorrer-se a si mesmo, seja que os setitas tenham traído a sua vocação, seja que os poderes demoníacos tenham conseguido um tento 2”.

Portanto, ainda que a definição teologia seja importante, ela não é fundamental aqui para a essência da compreensão do texto. Como veremos, todas as opções tem suas fraquezas e falhas, mas não impedem o sentido geral do texto. A opinião do autor ficará evidente, e seu favoritismo por determinada opção não deve conduzir o leitor à suas conclusões, mas certamente tornará evidente a razão de sua preferência.

1. Filhos de Deus: Anjos Caídos

A opinião provavelmente mais tradicional é de que anjos caídos são representados pelo termo “Filhos de Deus” e que em sua devassidão abandonaram seu estado original e vieram a terra para coabitar com as filhas dos homens. A razão dessa distinção não é exclusivamente lingüística, mas aparentemente textual. Os defensores dessa linha de raciocínio defendem que essa é a leitura que melhor se harmoniza com o texto. Bob Deffinbaug entende que a terminologia usada por Moisés claramente indica o fato de que “Filhos de Deus” se referem a anjos no AT. Sobre isso atesta: “Os estudiosos que rejeitam esta opinião prontamente reconhecem o fato de que o termo preciso é claramente definido na Escritura. A razão para rejeitar a interpretação dos anjos caídos é que tal opinião é tida como uma afronta à razão e às Escrituras 3”.

a. Pontos Fortes:
Alguns pontos fortes podem ser levantados:

Antiguidade do Argumento: Essa interpretação é provavelmente a mais antiga tradição e é encontrada no Códice Alexandrino, que verte o texto com o uso de termo “aggeloi” (anjo) em tradução da expressão bene há’elohim (Filhos de Deus). No livro apócrifo de Enoque 4 encontramos essa tradição expressa: “E aconteceu que, quando os filhos dos homens se multiplicaram, naqueles dias, bela e formosa filhas nasceram. E os anjos, os filhos do céu, vendo-as as desejaram, e disseram uns aos outros: “Vem! Vamos escolher por nós mesmos esposas dentre o povo, e vamos gerar para nós filhos 5”.

Uso da Expressão: No Antigo Testamento a expressão “Filhos de Deus” é usada para descrever anjos. Em Jó.1.6 lemos: “Num dia em que os filhos de Deus vieram apresentar-se perante o SENHOR, veio também Satanás entre eles” (cf. 2.1). A tradução da LXX aqui adota novamente o termo “aggeloi” e, segundo Adam Clarke, a versão caldéia usa “tropa angélica”. Nesses textos em Jó parece não haver discussão sobre usa referência, observe: “quando as estrelas da alva, juntas, alegremente cantavam, e rejubilavam todos os filhos de Deus?” (Jó.38.7). Ao analisar esse texto, são raros os que não encontram aqui uma referência angélica. Mesmo os que defendem que em Gn.6 o termo não se refere a anjos, aqui o reconhecem, como Barnes: “E todos os filhos de Deus – Anjos – chamados filhos de Deus, de sua semelhança com ele, ou a serem criados por ele 6”. Em Sl.89.6 não há qualquer suspeita: “Pois quem nos céus é comparável ao SENHOR? Entre os seres celestiais, quem é semelhante ao SENHOR?” (cf. Dn.3.25).

Origem dos Gigantes: Os defensores dessa visão entendem que os gigantes, e homens de renome do mundo antigo são apenas explicados pela união entre seres angelicais e seres humanos. Sobre isso, Deffinbaug atesta: “As mulheres ansiavam pela esperança de ser a mãe do Salvador. Quem seria o pai mais apropriado para tal criança? Não seria um “homem poderoso de renome”, que também seria capaz de se gabar da imortalidade? Alguns dos piedosos descendentes de Sete viveram aproximadamente 1000 anos de idade, mas os Nefilins não morreriam, se fossem anjos. E assim começou uma nova raça 7”.

Contexto: Segundo os defensores o uso do termo “homem” (hb. ‘adam) no verso 1 não tem qualquer distinção do termo usado no verso 2. Se filhas dos homens tem um sentido mais restrito (como sugerem os defensores da união da descendência de Sete e Caim), o texto não introduz tal conceito e, portanto não deve ser uma opção válida. Não é possível diferenciar o homem do verso 1 das filhas dos homens do verso 2.

Respaldo Bíblico: Dois aspectos são defendidos aqui:

1. As escrituras ensinam que os anjos podem fazer-se presente entre os homens (Hb.13.2) e de serem de tal forma parecido com seres humanos que foram confundido com eles (Gn.19.1). Em defesa desse fato, os que adotam essa opção apresentam o caso de Sodoma e Gomorra, ocasião que os homens de Sodoma se sentiram atraídos sexualmente pelos seres angélicos: “Onde estão os homens que, à noitinha, entraram em tua casa? Traze-os fora a nós para que abusemos deles” (Gn.19.5). Aos olhos dos sodomitas, tais anjos eram homens atraentes.

2. O Novo Testamento apresenta textos que falam sobre esse evento: “E a anjos, os que não guardaram o seu estado original, mas abandonaram o seu próprio domicílio, ele tem guardado sob trevas, em algemas eternas, para o juízo do Grande Dia” (Jd. 6; cf. 2Pe.2.4). O argumento aqui é que os anjos abandonaram seu domicílio, a presença de Deus, e desceram à terra

b. Pontos Fracos:
Vamos listar alguns:

Viola a Lei Natural Estabelecida por Deus: Uma das verdades que se tem por clara e evidentes nas escrituras é que a geração sempre acontece entre criaturas da mesma espécie. Essa verdade é estampada no relato da criação, em que vemos esse fato com uma bênção divina para plantas (1.11), animais (1.23-25), diferente do homem (1.26). Não há nada no relato da criação que aceite a idéia de uma geração mista entre entidades de diferentes espécies. Se um anjo caído tem poder reprodutor, a lei da natureza ainda impediria que o fruto desse relacionamento misto fosse reprodutor, pois assim acontece na natureza hoje, e não temos razões para crer que era diferente nesse aspecto na ocasião. Outro detalhe que deve ser lembrado é que as escrituras não falam sobre seres híbridos. Para se defender desse ponto, alguns alegam que tais anjos possuíram os homens, como vemos acontecer nos evangelhos e por isso a reprodução foi possível. Entretanto, aqui há larga contradição no argumento, pois se apenas seres angélicos são opção suficiente para a existência de gigantes, um homem possuído por uma entidade angélica ainda seria o progenitor biológico, e portanto, não teria qualquer distinção entre ele e um homem não possuído.

Ignora o juízo divino: Os que defendem essa opção precisam responder por que razão o julgamento divino incluiu apenas o homem, os animais e a terra, se os causadores do problema foram seres angélicos. Se a perversão da humanidade alcançou os céus, por que nenhuma menção de juízo, repreensão divina oferecida? Se tais anjos eram malévolos, por que razão Deus não manifestou sua ira contra eles? Essa ausência sugere que seres angelicais não estavam presentes na ocasião.

Ignora a terminologia mosaica em Gênesis: Essa crítica tem três aspectos:

1. O uso do termo “anjo” em Gênesis: Em Gênesis o termo em português “anjo(s)” é visto 15x (32x no Pentateuco) e em todas as ocasiões é a tradução do termo hebraico “mal’ak”. O termo hebraico é usado 17x em Gênesis (34x no Pentateuco) e em duas ocasiões se refere a um mensageiro (32.3, 6). Ou seja, todas as vezes que se quis retratar uma figura angélica em Gênesis (e no Pentateuco), Moisés não usou a expressão filhos de Deus, mas usou o termo hebraico para tal: mal’ak. Ora, se Moisés tem um costume de se referir a seres angélicos com esse termo, por que não o fez em Gn.6?

2. O uso da expressão “tomaram para si”: A idéia da expressão não é violentaram, forçaram, ou coabitaram com as mulheres, como se esperaria de espíritos malignos. O termo é usado para descrever uniões matrimoniais. Em Gênesis 11.29, vemos um claro exemplo para isso: “Abrão e Naor tomaram para si mulheres; a de Abrão chamava-se Sarai, a de Naor, Milca, filha de Harã, que foi pai de Milca e de Iscá” (cf. Gn.4.19; Jz.21.18; Rt.1.4). A NIV já assumiu o uso do termo e traduziu assim o verso: “e os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram belas e então se casaram com qualquer quer uma que escolhessem”. A questão que fica aqui é: Por que razão os anjos caídos iriam oficializar seus relacionamentos?

3. O uso do termo Gigantes: O termo hebraico para gigantes é “nephiyl” e é também usado no Pentateuco em Nm.13.33: “Também vimos ali gigantes (os filhos de Anaque são descendentes de gigantes), e éramos, aos nossos próprios olhos, como gafanhotos e assim também o éramos aos seus olhos”. Se tais seres são resultados de seres angélicos e humanos, temos que considerar que: (a) ou todos não morreram no dilúvio; ou (b) o evento se repetiu. Entretanto, o contexto deixa claro que nem uma coisa nem outra aconteceram. Portanto, é seguro afirmar que esses gigantes não dependem da “genética angélica”.

O suporte neotestamentário é questionável: O uso de passagens neotestamentárias para validar essa opção não é convincente e pode certamente fazer referência a outros eventos. No caso de Jd.6, o texto podemo muito bem estar se referindo a Ez.28, ou Is.14 ao falar da queda de Satanás e dos seres angelicais.

Conforme vimos até aqui, tal opção, embora defendida a muito tempo, incluindo cristãos sérios com as escrituras não parece ser a opção mais aceitável. Vamos considerar a outra opção.

2. Filhos de Deus: Descendentes de Sete

A opção adota pelo autor é certamente favorecida (em sua opinião) em função do contexto maior de Gênesis. A clara distinção entre as gerações de Sete e Caim e seus feitos sugerem que a intenção de Moisés é demonstrar a distinção entre ambas as genealogias. Entretanto, notamos que o capítulo 6 inicia como um acréscimo ao capítulo cinco e não como um prelúdio ao dilúvio. A distinção parece pequena, mas faz grande diferença.

Aos que lêem Gn.6.1-4 como o prelúdio do dilúvio, acreditam que a severidade do juízo de Deus está ligada à perversidade iniciada por seres angélicos. Por outro lado, se Gn.6.1-4 for a conclusão do capítulo cinco, encontramos um cenário parecido com o que Jesus parece ter visto nos dias de Noé: “assim como nos dias anteriores ao dilúvio comiam e bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca” (Mt.24.38). Ou seja, os filhos de Deus estavam tomando para si as filhas dos homens (casavam e davam-se em casamento) como demanda o ciclo da vida do homem, e pela multiplicação da humanidade, houve a multiplicação da maldade da humanidade, causadora do dilúvio. Esse simples distinção pode diferenciar o modo como lemos o texto, mas vamos às suas características.

a. Pontos Fortes:
Alguns pontos fortes podem ser levantados:

Antiguidade do Argumento: Essa interpretação também não é recente nem inovadora. Certamente não é tão antiga quanto a anterior, mas já era observada desde Agostinho, e fez história na história da interpretação cristã, sendo favorecida por Calvino e Lutero.

Contexto: “Até aqui no contexto, o contraste tem sido entre a linha de Sete e Caim; cp. 4.26 e 5.22-24 mostra a linha de Sete (Enoque) andando com Deus. A introdução de anjos/demônios nesta altura de Gênesis, especialmente uma referência tão obscura, parece estranho 8”. O contraste apresentado no capítulo 4 e 5 é agora destruído pelo desejo lascivo do coração do homem. Deve-se notar que a ênfase primária do texto é a descrição da história da humanidade, e claramente se percebe que em Gn.6 há a continuidade dessa tônica: “Como se foram multiplicando os homens na terra, e lhes nasceram filhas” (v.1). Essa identificação é favorecida pela continuidade do texto, no qual Deus demonstra sua punição ao homem por sua maldade, e não os seres angélicos.

Similaridade com Gênesis: O argumento é visto de dois pontos de vista:

1. Queda: O texto de Gn.6.2 segue em parte os passos da tentação de Eva antes da queda: Ver, tomar, o que é bom, desejável, agradável. Além de termos similares serem usados aqui, o processo sugere uma interação humana e não angélica. A resposta divina em punição em ambos os casos (também similares) demonstram por fato que Deus assim se manifesta com seres humanos.

2. Lameque: A idéia de tomar para si mulheres parece seguir o padrão de Lameque que tomou para si duas mulheres. Mais uma vez, a idéia está diretamente ligada com o coração lascivo da humanidade. A idéia da poligamia aqui não é estranha ao texto, e é uma representação das atitudes da descendência de Caim, o que na descendência de Sete é novo.

A expressão “Filhos de Deus”: Moisés usa uma expressão similar a encontrada em Gn.6.2 para descrever pessoas: “Filhos sois do SENHOR, vosso Deus” (Dt.14.1; cf. Dt.32.5). Nessa expressão “filhos do Senhor” (hb. banim YHWH) é uma clara descrição de seres humanos, e nenhuma razão há para se dizer que se trata de seres angelicais. Diversas vezes no AT a nomenclatura de “filho” de Deus faz referência ao povo de Deus (Sl 73.15; Is 43.6; Os 1.10, 22.1). Todas essas designações demonstram que a terminologia não exige a identificação dos filhos dos homens com os seres angélicos, e que o modo mais natural de ser entendido é em referência a seres humanos.

A terminologia mosaica: Três aspectos devem ser ressaltados:

1. Ainda que Moisés tenha feito aqui uso de uma expressão que na pena de outros autores foi usada para descrever seres angelicais, esse termo jamais foi usado para descrever demônios. Parece extremamente estranho às Escrituras chamar um anjo caído (demônio) de Filho de Deus. Por outro lado, parece repulsivo e injusto que anjos-não-caídos tenham feito isso sem se tornarem culpados por suas ações, ou sem alguma repreensão de Deus.

2. Moises quando se refere a seres angélicos usa exclusivamente o termo hebraico mal’ak, como já temos demonstrado. Portanto, é sensato esperar que se quisesse transmitir a idéia de seres angélicos teria usado o termo que lhe é comum.

3. Moisés usa a expressão “tomaram para si mulheres” que é usado normalmente por ele para descrição de casamento (Gn.4.19; 11.29). Entretanto, se o texto tratar de anjos se casando, essa informação está em franca contradição com a realidade angélica, pois eles não se casam nem se dão em casamento (Mc.12.25; cf. Mt.22.30; Lc.20.25).

Caráter profilático de Gênesis: Em diversos aspectos o livro de Gênesis é profilático: No que se refere a cosmogonia, Gênesis é uma clara correção ideológica. No que se refere ao conhecimento de Yahweh, como Deus de Israel, Gênesis é um auto-desvendamento de Deus e de suas Obras e Caráter. No que se refere a história do povo de Israel, Gênesis demonstras os perigos do jugo desigual. Embora nenhuma palavra tenha sido demonstrada em favor da preferência de Yahweh pela manutenção da descendência de pessoas que invocavam a Deus, sua vontade é claramente demonstrada em sua punição. O pecado de Lameque é aumentado pelos filhos de Deus, que optam por casar em conformidade com seus desejos lascivos, e não segundo a recomendação de Deus. Essa designação também seria profilática ao povo a quem Moisés escreveu o livro, que sofria os assédios do casamento misto.

b. Pontos Fracos:
Embora seja essa a preferência ela também tem suas dificuldades, observe:

Definição: Essa interpretação tem dificuldades em restringir o significado de algumas expressões usadas no texto, observe:

1. Filhos de Deus: Um dos problemas dessa interpretação é a definição de “Filhos de Deus” como referência aos descendentes de Caim: Em nenhum lugar essa nomenclatura é usada para descrever os setistas. Não há evidencias contextuais que suportem essa visão: ” Como se foram multiplicando os homens na terra, e lhes nasceram filhas” (Gn.6.1). Não há evidências que se encontre uma distinção entre os homens desse verso, usado de modo genérico ou geral, com as filhas dos homens, de modo específico, como sugere a interpretação dos casamentos mistos.

2. Filhas dos homens: Do mesmo modo, não podemos encontrar razões lingüísticas para definir filhas dos homens como um grupo distinto de dentre o todo da humanidade. Observe que Moisés disse que: “Como se foram multiplicando os homens na terra, e lhes nasceram filhas” (Gn.6.1). Não existe nenhuma evidência que faça distinção entre as filhas do verso 1 e as do verso 2.

3. Nephilim: “De maneira nenhuma fica claro porque a descendência de casamentos mistos deveria ser Nephilim-Gibborim, no entanto estes devem ser entendidos dentro do alcance da interpretação possível… Mas sua (a do autor bíblico) referência ao ato conjugal e à gestação encontra justificativa apenas se ele estiver descrevendo a origem dos nephilim-gibborim. A menos que a dificuldade que se segue a esta conclusão possa ser superada, a interpretação do casamento misto da passagem deve ser definitivamente abandonada 9”.

Contexto: Observe alguns detalhes importantes:

1. Contraste entre as Genealogias: Nada indica no contexto que todos os descendentes de Sete teriam sido piedosos e que os de Caim teriam sido infiéis. O que o contraste entre as genealogias apresenta entre pessoas de ambas as genealogias e sua relação com Deus. Na verdade, o contraste entre as genealogias está sendo supervalorizado nessa interpretação.

2. Descrição das Genealogias: Em nenhum lugar a descrição da genealogia de Caim apresenta sua descendência como tendo filhos e filhas. Sabemos que existiram filhas, mas se o contraste em Gn.6 exige que as filhas dos homens fossem descendentes de Caim, seria interessante encontrar alguma evidência disso no contexto. Enquanto na descendência de Caim a expressão “filhas” não é utilizada, na de Sete é usada nove vezes.

3. Implicações da Genealogia: a descrição de gênesis demonstra que apenas Noé era alguém justo, embora a descendência de Sete tivesse diversos exemplares no mesmo período. Ou seja, não se pode presumir que toda a descendência de Sete era formada por homens piedosos, como a interpretação sugere.

Em função de ser essa a opção adotada pelo autor, alguns comentários em réplica a esses pontos fracos podem ser feitos e sua força pode ser minimizada:

Sobre a Definição de termos:

1. homens e Filhos de Deus devam ter alguma distinção exegética ou lingüística para basear o argumento. Como não encontram rejeitam a interpretação. Entretanto, deve-se dizer que a distinção não é exegética, mas hermenêutica. Moisés estabelece um claro contraste entre as descendências, como o fará mais a frente com outras genealogias, e tal contraste antecedente ao relato de Gn.6 sugere que tal contraste está se perdendo. Ou seja, essa interpretação exige que os descendentes de Sete não estão tomando seu relacionamento com prioridade, de modo que nos dias de Noé ele apenas era descrito como homem justo. Segundo essa interpretação a decadência do homem atingiu até mesmo aqueles que passaram a invocar a Yahweh.

2. Nephilim: Nada é mais mítico do que pensar que tal descendência exige DNA angélico, e entra em contradição com Nm.13.33, que descreve esses homens novamente. Essa “necessidade” só é vista nos olhos daqueles que precisam enxergar no texto seres angélicos e precisam somar argumentos para se defender.

3. Yahweh e Elohim: Os que criticam essa visão não percebem o uso intercambiável que Moisés faz dos termos Yahweh e Elohim, Portanto, se em Enos se inicia a invocar a Yahweh e em Gn.6 os filhos de Elohim estão se casando com as filhas dos homens, eles não podem fazer parte do mesmo grupo. Se invocar pode ser identificado como “ser chamado pelo nome de Yahweh”, ser filho de Elohim pode se referir a esse grupo. Observe, não há exigência exegética, há possibilidade hermenêutica. Essa distinção é importante para a interpretação.

Sobre o Contexto:

1. Supervalorização das Genealogias: Na verdade o contraste entre as genealogias parece supervalorizado para os que defendem outra interpretação, e por isso tendem a minimizar tal contraste. De fato, o argumento é montado sobre o contraste entre as genealogias, mas não de modo a supervalorizar, mas de considerar a seqüência textual: Gn.6.1-4 é um adendo a realidade descrita nos dois capítulos anteriores: é uma breve explicação do que acontecem com o passar de muito tempo, até mesmo os homens fiéis se perverteram.

2. Descrição das Genealogias: Parece ingênuo inferir que pelo fato de Moisés não usar o termo “filhas” na genealogia de Caim, a expressão “filhas dos homens” não pode ser uma referência textual. O valor dessa crítica é numérica: ela soma-se a outras, e portanto, o número de críticas parece maior. Do ponto de vista da hermenêutica desse texto, tal argumento parece irrisório.

3. Implicações da Genealogia: O ponto levantado pelos contrários a nossa visão do texto apresentam exatamente o que pensamos sobre ele: No período de Noé ele era o único justo (pela fé), por isso apenas ele e sua família foram favorecidas por Deus. Esse é o clímax do texto: Até mesmo aqueles que invocavam o nome de Yahweh se extraviaram.

Diante da análise de prós e contras, tendo a crer que tal opção é favorecida por questões hermenêuticas e lingüísticas. Entretanto, outros críticos poderiam encontrar nessa apresentação e defesa outros motivos de crítica. Por isso, é recomendável ao leitor municiar-se de comentários e procurar orientar-se diante da palavra de Deus. O alerta de Merkh e Kidner no início dessa análise merece atenção aqui novamente:

“Não importa a interpretação adotada, o ponto parece ser o mesmo: o pecado agora está transpondo fronteiras espirituais (sejam celestiais, sejam terrestres). O vírus do pecado virou pandemia! 10”.

“Onde a escritura é tão reticente como o é aqui, Pedro e Judas nos aconselham a retirada. Coloquemo-nos em nosso próprio lugar! Mais importante do que as minúcias desse episódio é sua indicação de que o homem não pode socorrer-se a si mesmo, seja que os setitas tenham traído a sua vocação, seja que os poderes demoníacos tenham conseguido um tento 11”.

Conclusão

É bem verdade que poderíamos encontrar mais opções: Krell sugere mais duas possibilidades: Filhos de Deus como descrição de homens valentes do passado; Filhos dos homens como uma designação de filhos de Adão em termos gerais. A primeira leitura foi defendida por Flávio Josefo (Antig. Cap.3, 10, CPAD, pp.50) e pelo Targun de Onkelos e o supostamente de Jonatas Ben Uzziel. A segunda é bem menos familiar e o próprio autor não apresenta muitas defesas dessa opção.

O que é fato, e deve ser lembrado com clareza, é que nenhuma das duas principais opções apresentadas aqui interferem nas linhas gerais do texto: Ambas apresentam o papel devastador do pecado e sua conseqüência no dilúvio. Portanto, apesar da franca preferência do autor aqui pela interpretação da miscigenação, o leitor pode ter por certo que outros comentaristas ainda mais recomendados preferirão outras opções e que tais distinções não são fundamentais para o entendimento geral do texto. Assim, convido o leitor à crítica da minha posição em direção ao entendimento da passagem.
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1 MERCK, David, Graça e Desgraça.
2 KIDNER, Derek, Gênesis – Introdução e Comentário. pp.79.
3 DEFFINBAUG, Bob, The Sons of God and the Daughters of Men (Genesis 6:1-8). Bible.org
4 Livro provavelmente escrito por volta de 300-200 a.C.
5 Old Testamente Greek Pseudoepigrafica. Traduzido por Craig Evans. A mesma idéia é vista na tradução de R.H. Charles Litt (The apocrypha and pseudoepigraficaofthe Old Testament in English).
6 BARNES, Albert, Notes on the Bible.
7 DEFFINBAUG, Bob, The Sons of God and the Daughters of Men (Genesis 6:1-8). Bible.org
8 MERCK, David, Graça e Desgraça.
9 KLINE, Meredith G., Divine Kingship and Genesis 6.1-4. Westminster Theological Journal, XXIV, Nov, 1961 – Mai 1962, pp.190. IN: DEFFINBAUG, Bob, The Sons of God and the Daughters of Men (Genesis 6:1-8). Bible.org
10 MERCK, David, Graça e Desgraça.
11 KIDNER, Derek, Gênesis – Introdução e Comentário. pp.79

Conversando com Deus: Sobre a Criação

O Dilema da Criação

Estudar o início do livro de Gênesis certamente exige de nós conhecimento: Muitas são as teorias que tentam compreender o que se passa nos primeiros versos de Gênesis. Alguns o entendem como uma poesia; outros preferem encontrar nele um relato apologético das origens do mundo; outros associam suas crenças científicas ao relato enquanto outros ainda preferem identificar nesse um relato inspirado por Deus de acordo com o conhecimento de Moisés, seu agente intermediário.

É bem verdade que todos os que se aproximam do texto tentam verificar-lhe a beleza e veracidade, entretanto, por não poderem equalizar ambas as características teorizam para harmonizar suas crenças com as escrituras que defendem. De fato, não existe um manual inspirado por Deus que defina como o texto deve ser lido, mas há certamente algumas observações de natureza hermeneutica e histórica que poderiam nos auxiliar a observar o texto sem violar-lhe a beleza e veracidade:

Gênesis 1 não é uma poesia hebraica: A poesia hebraica tal como vista nos livros poéticos do antigo testamento tem forma e métrica extremamente oposta àquela encotrada aqui. Enquanto os paralelos hebraicos (Pv.10.27), suas rimas ideológicas (Pv.16.4) fazem parte da poesia hebraica, Gênesis apresenta-se com um texto lógico e estruturado historicamente.

Gênesis 1 não é um tratado primariamente apologético: Um dos frequêntes equívocos que se comete ao ler Gênesis 1 é entende-lo como primariamente apologético. Muito embora, Gênesis 1 tenha grande valor apologético, esse não parece o propósito do autor do relato, nem mesmo a compreensão dos seus primeiros leitores: Gênesis foi escrito para o povo de Deus, não para os infiéis. “Aqueles que se recusam a aceitar o criacionismo não o fazem por falta de provas (Rm.1.18ss), ou por causa do seu grand econhecimento (Sl.14.1), mas por falta de fé (Hb.11.3). Gênesis é mais uma declaração que uma defesa[1]”.

Gênesis 1 não é um tratado científico: Ainda que o Deus revelado nas escritas é o mesmo que se revela na natureza e que Sua Auto-revelação não é contraditória, Deus revelou-se a Moisés (ou a outras pessoas antes dele que preservaram sua declaração oralmente) de modo que pudesse ser compreendido corretamente diante do conhecimento que ele dispunha. Não faria sentido para Deus manifestar-se a Moisés de acordo com o conhecimento científico de nossa era, pois seus leitores primários seriam incapazes de compreendê-lo. Portanto, ainda que o valor científico desse relato ainda seja fundamental para a apologética cristã, esse não é o caráter fundamental desse texto.

Gênesis 1 é o relato inspirado por Deus para revelar-se ao Seu povo: Eventualemente a falta de atenção ao contexto histórico de Gênesis nos força a compreender o texto for a de sua origem: Aqueles que saíam do Egito, certamente precisavam conhecer o Deus que os retirava da escravidão. O Grande “Eu Sou” também é o criador e originador de todas as coisas, povos e culturas, e precisava ser conhecido mais amplamente.

A verdade sobre Gênsis 1 é que o dilema normalmente é visto do ponto de vista errado. B.B. Warfield provavelmente está certo quando diz:

“Uma janela de vidro está diante de nós. Levantamos os olhos e vemos o vidro; notamos sua qualidade, observamos seus defeitos e especulamos sobre sua composição. Ou olhamos através dele na perspectiva de ver além terra, céu e mar. Da mesma forma, há duas maneiras de se olhar o mundo. Podemos ver o mundo e ficar absorvidos pelas maravilhas da natureza. Essa é a maneira científica. Ou podemos olhar diretamente através do mundo e ver Deus por detrás dele. Essa é a maneira religiosa. A maneira científica de olhar para o mundo não é mais errada do que a maneira do fabricante do vidro olhar a janela. Essa maneira de olhar para as coisas tem um uso muito importante. No entanto, a janela foi colocada não para ser observada, mas para observarmos através dela, e o mundo falha em seu propósito a menos que também olhemos através dele e os olhos repousem não nele mas no Deus que o fez[2]”

O que podemos dizer com certeza é que o relato de Gênesis não foi escrito para o fabricante de vidros, mas para pessoas como nós que param diante da janela e adimiram a paisagem d’além dela. Gênesis foi escrito para que as pessoas pudessem olhar Deus por detras do universo e ser admirado como tal.

A. Visões sobre a Criação

Como já sabemos, muitas visões são oferecidas para o relato de Gênesis, por isso abaixo transcrevo o sumário oferecido por Keith Krell[3], como algumas adaptações, sobre as opções de abordagem do relato de Gênesis:

1. Criacionismo Científico:
Defensores da criação da Terra jovem acreditam que Deus criou a terra em seis dias literais, e que todo o universo é de aproximadamente 10.000 anos de idade. Acredita-se também que a maioria dos fósseis foram formados durante o dilúvio de Noé, que eles vêem como uma catástrofe mundial (Gn 6:17; 7:21-23). Criacionistas aplicar os seus métodos científicos para a conta de inundações em Gênesis 6-9 e estão convencidos de que a atual condição da terra, que dá a aparência de ser muito mais velha, reflete a catastrófica destruição causada pelo dilúvio de Noé. Proponentes: Henry Morris, Duane Gish e Adauto Lourenço. Sugiro a leitura do livro “Onde tudo começou” de Adauto Lourenço como referência para esse grupo.

2. Criacionismo histórico:
Deus criou o universo durante um tempo indeterminado, que o autor chama “o princípio” (Gn 1:1). Esse “princípio” não foi uma questão de tempo, mas um período de tempo, com toda a probabilidade de um longo período de tempo. Após esse período de tempo, Deus passou a preparar a terra “como um lugar para os seres humanos a habitar”. Essa visão compreende 1:2-2:4 como uma descrição da preparação de Deus do Jardim do Éden, ou mais especificamente, a Terra Prometida. Proponente: John Sailhamer. Sugiro a leitura de “Genesis Unbound: A Provocative New Look at the Creation Account ” de John Sailhamer.

3. A Teoria do Intervalo:
Defensores do que é chamado a teoria do intervalo acreditam que Gênesis 1:1 fala de uma criação inicial, seguido por um período de tempo extremamente longo. A maioria dos organismos que agora encontrar no registro fóssil viveu durante esse tempo. Segundo a teoria do Intervalo, Gênesis 1:2 descreve um momento da morte e ruína, causado por Satanás, quando Deus expulsou-o para a terra. O restante de Gênesis 1 descreve como o Senhor restaurou a criação em seis dias literais. Embora essa visão permita que se veja Gênesis como história factual, enquanto ainda acreditar em uma terra antiga, a Escritura não parece mostrar grande apoio. Em nenhum lugar da Bíblia mencionar diretamente tal lacuna ou qualquer destruição universal causada por Satanás. Além do mais, outras passagens (como Êxodo 20:11) referem explicitamente a seis dias da criação, não re-criação. Proponentes: C.I. Scofield, Merrill Unger, MR DeHaan, e J. Vernon McGee. Esta visão não é muito difundida hoje. Sugiro a leitura da “Bíblia em ordem cronológica”, organizada por Edward Reese e Frank Klassen.

4. Criacionismo Progressivo:
Os defensores desta posição de dia-era acreditam que o dia em Gênesis 1 não se referem a seis períodos literais de 24 horas, mas a seis períodos indefinidamente longos séculos. Acredita-se que o universo tem entre oito a desesseis bilhões de anos e que a vida começou na Terra há 3,5 bilhões de anos atrás. Criacionistas Progressivos salientam que a palavra hebraica para dia (yom) é usado em três diferentes maneiras na narrativa da criação (1:4-5; 2:4). Nesses três versos, yom é usado para descrever um período de 12 horas, um período de 24 horas, e durante todo o período de criação. Criacionistas Progressivos também citam o Salmo 90:4 e 2 Pedro 3:8 como prova de que “dias” no calendário de Deus são muito mais do que os nossos dias. Proponentes: Hugh Ross, Gleason Archer, e Millard Erickson. Sugiro a leitura do livro “The Genesis question” escrito por Hugh Ross.

5. Evolução Teísta:
Defensores da evolução teísta ensinam que as plantas, animais e homem evoluiram gradualmente a partir de formas inferiores, mas que Deus supervisionou o processo. Enquanto os criacionistas da Terra-jovem e Terra-velha acreditam que Deus criou formas de vida, por ordem divina, os evolucionistas teístas acreditam que Deus usou a evolução, ou algo semelhante, para fazer parte de sua obra. A maioria dos evolucionistas teístas tem dificuldades em passagens como Gênesis 1:1-1:24 por argumentar que Deus criou formas vivas indiretamente, usando as leis da natureza. Por sua própria confissão, evolucionistas teístas tem uma abordagem poética ou alegórica na interpretação de Gênesis 1:1-2:4. Proponentes: C. S. Lewis, Howard Van Till e Francis Collins. Sugiro a leitura do livro “A Linguagem de Deus” de Francis Collins.

6. Design Inteligente:
Uma nova escola de pensamento está a evoluir (desculpem o trocadilho). É conhecido como o movimento do “design inteligente”. Aqueles que defendem este ponto de vista são geralmente agnósticos (e até mesmo ex-ateus), que agora acreditam que, com toda probabilidade, não há um designer inteligente por trás da criação. Eles podem não saber quem ele é, mas eles são menos dispostos a admitir que os evangélicos têm acreditado o tempo todo. Esse movimento realmente arrancou em 1996 com o livro, Darwin’s Black Box: The Biochemical Challenge to Evolution por Michael Behe (bioquímico de um católico na Lehigh University).

B. Contexto histórico do Relato da Criação

Uma das convicções que temos por certeza é que Deus sempre fala com homens selecioandos por Ele, em ocasiões específicas e com propósitos definidos. Ao que sabemos de Deus, temos por claro o testumunho das escrituras que Ele não manifesta sua Auto-Revelação sem que um Propósito específico tenha sido almejado (Ef.1.11). Assim, devemos tratar o início de Gênesis desse modo: Deus em sua Soberania e Graça deu aos antigos israelitas uma declaração de quem Ele é por meio do relato da criação.

Por meio da arqueologia, também sabemos que o relato da criação encontrado em Gênesis não é único nem mesmo o primeiro dos relatos conhecidos: Os egípcios tinham diversos mitos sobre a criação do universo e do homem. Em função de esses relatos serem anteriores ao relato bíblico, não poucos estudiosos se propuseram a estudá-los. Muitos desses, entendem que esses mitos egípcios tem grandes relações com o relato mosaico.

No livro Caos and Creation, Watke sugere algumas similaridades entre os mitos e informações encontradas nas escrituras. Segundo ele, o Sl.74.13-14 tem claras similaridades com o Texto Ugarítico 67:I.1-3; 27-30:

“Salmo 74:13-14 “Tu, com o teu poder, dividiste o mar; esmagaste sobre as águas a cabeça dos monstros marinhos. Tu espedaçaste a cabeça do crocodilo e o deste por alimento às alimárias do deserto.” Texto 67: I . 1-3, 27-30: “Quando esmagaste Lotan (Leviathan) o diabólico dragão, também destruíste o dragão disforme, o poderoso de 7 cabeças…[4]”

A relação entre os textos mencionados acima (vale lembrar que não são so únicos) devem ser entendidos á luz da cronologia da revelação, até por que sabe-se que existe grande distância entre os relatos de tal forma que podem nem ser relacionados. É por isso que alguns tem sugerido que a cosmologia hebraica é uma adaptação desmitologizada das antigas cosmologias e por isso, são equivalentes ou de mesmo valor. Contudo, considerando sobre essas similaridades, Bob Deffinbaug diz:

A explicação mais aceitável é que as semelhanças são explicadas pelo fato de que todos os relatos similares da criação tentam explicar os mesmos fenômenos[5].

A idéia de que a similaridades apontam para uma verdade observada de pontos de vista e opiniões culturais diferentes é interessante: Não há a necessidade de que todas as variantes sejam falsas, apenas progressões de um conhecimento antigo que YHWH resolveu deixar explícita ao revelar-se a Moisés. É bem possível que o conhecimento mais antigo do relato da criação houvesse sido distorcido a tal ponto que perdesse sua originalidade e veracidade. Contudo, YHWH salvaguardou de modo coerente com o contexto histórico do Seu Povo quando deu a conhecer de Moisés Sua visào da criação. Sobre esse assunto, Merril Unger diz:

“Muito cedo os povos se desviaram daquelas primeiras tradições da raça humana, e em climas e temperaturas variadas, têm-nas modificado de acordo com sua religião e modo de pensar. As modificações com o tempo resultaram na corrupção da tradição pura e original. O relato de Gênesis não é o único inalterado, mas em qualquer lugar sustenta a inerrante impressão da inspiração divina quando comparado às extravagâncias e corrupções de outros relatos. A narrativa bíblica, podemos concluir, representa a forma original que deve ter sido assumida por essas tradições.”[6]

É também salutar dizer aqui, que a despeito de alguns similaridades linguisticas ou situacionais, o relato de Gênesis tem em grande parte material único, apenas encontrado na Auto-Revelação de YHWH. Considerando sobre as diferenças entre os relatos, Derek Kidner diz:

“A versão mais completa que existe do Épico de Atrahasis, de mais de 1200 versos, liga os dois acontecimentos [criação e dilúvio] numa só história contínua que nos dá uma espécie de paralelo de [Gn.] 1-8. Mas, ao terminarem esses poemas, Gênesis mal está começando. A narrativa deste começa num ponto bem anterior ao daqueles (visto que, neles, as águas, personifcadas, são o princípio, e os deuses que a dominavam são apenas seus produtos) e só termina quando a igreja do Antigo Testamento já está firmemente alicerçada e quatro gerações de patriarcas tinham tido vida momentosa no cenário de duas civilizações diferentes [7]”

Contudo, é ainda interessante investigar um pouco mais sobre o assunto para demonstrar a clara distinção que existe entre os relatos culturais anteriores ao relato de Gênesis e sua superioridade em relação a eles.

C. Breve sumário das Cosmologias Egípcias[8]

As crenças egípcia e conceitos de criação aparecem em várias fontes: Textos em pirâmides, Textos em caixões, no Livro dos Mortes, Na Teologia Mephita, bem como em vários hinos. Essas fontes mostram que a cosmologia egípcia é ao mesmo tempo uniformes e diversa. Embora existam cerca de uma dúzia de mitos de criação egípcia, as três mais ifluentes surgiram nos locais de culto de Heliópolis, Memphis, e Hermopolis. Estes três interligam-se com um outro, como evidenciado pelo surgimento de alguns dos deuses em mais de uma tradição. A cosmogonia de Heliópolis e Memphis partilham mais em comum com um outro que com Hermopolis. No entanto, todos eles apresentam os conceitos similares de um oceano primordial, uma colina primordial, ea deificação de natureza. Estas três cosmogonias lidam especificamente com a forma como os deuses criaram o mundo. Eles não tratam diretamente da criação dos seres humanos e dos animais. “As primeiras cosmogonias registados parecem mais preocupados com a origem do mundo do que com a criação de homem ou dos animais [9]“. Abaixo apresentamos as três principais cosmologias egípcias.

1. Heliópolis:

Textos da Pirâmide de Hiliópolis contêm as expressões mais antiga da cosmogônia egípcaia. Os Sacerdotes do Templo em Heliópolis gravaram textos em hieróglifos dentro das pirâmides do Unis, Teti, Pepi I, Merenre I, II11 Pepi (reis das dinastias 5 e 6, aprox. 2375-2184 a.C.). A partir destes textos vem o conhecimento da cosmogonia de Heliópolis. Em Heliópolis, nove deuses constituem as funções do Grande Ennead (lit. nove deuses). Atum funciona como o Deus Criador, de quem os outros oito deuses são originados. O texto piramidal 1655 enumera os deuses do Grande Ennead e reconhece Atum como o pai dos outros oito. Nele lê-se:

“Ó Grande Ennead você está no Ön (Heliópolis), (a saber) Atum, Shu, Tefēnet, Geb, Nut, Osíris, Isis, Seth e Néftis, ó filhos de Atum, prolonguem a sua boa vontade para com seu filho em seu nome de Nove Arcos [10]“.

Atum primeiro surge a partir das águas primordiais (personificada como Nun) de que também emerge a montanha primitiva. Ele assume a sua posição sobre o monte primevo, e começa seu trabalho de criação. Por não ter um conjugê, ele se masturba para trazer outros deuses para ajudá-lo na criação. O texto piramidal 1248 graficamente descreve este evento.

“Tendo Atum desenvolvido seu crescimento fálico, em Heliópolis, colocou seu pênis em sua posse de modo que ele pudesse fazer orgasmo com ele, e os dois irmãos nasceram-Shu e Tefnut”.

Desde a sua emissão erótica, Shu e Tefnut, deificaram o ar e umidade, respectivamente. Então, Shu e Tefnut copularam e produziram Geb, a terra, e Nut, o céu. Geb e Nut, por sua vez produziram cinco filhos: Osíris, Isis, Horus o Velho, Set, e Nephthys. No entanto, Horus o Velho não se tornou um membro da Grande Ennead. Em vez disso, ele, junto com Thot, Maat, Anúbis, e outras divindades que não são claramente identificadas, constituem o pequeno Ennead.

2. Memphis:

A Pedra Shabaka contém a famosa Teologia Mephita. Esculpido em uma laje de granito negro, por ordem do rei Shabaka (716-702 aC) da vigésima quinta Dinastia, esta pedra preserva a escrita de um documento carcomido. Infelizmente, a pedra mais tarde sofreu danos graves. Os nomes dos Shabaka e do do deus Set foram intencionalmente retirados, e a pedra foi usada para moer grãos. Os teólogos de Memphis emprestaram o Grande Ennead de Heliópolis. Ptah substitui Atum como o deus criador, entretanto, Atum, não desapareceu da nova teologia.

Segundo a Mercer, Ele “tornou-se o coração (entendimento) e língua (palavra) de” Ptah, o Grande ‘, e por sua vez, Ptah era o coração ea língua do Ennead [sic] … Ptah (isto é, Atum) foi o Ennead em emanação ea manifestação. Assim, os outros oito divindades do Ennead Memphite eram apenas Ptah-se na manifestação [11]“.

A linha 55 da Pedra de Shabaka corrobora a afirmação da Mercer, e revela que Ptah cria pela palavra divina.

Ela diz: “Seu (Ptah) Ennead está diante dele como dentes e lábios. Eles são o sémen e as mãos de Atum. O Ennead de Atum surgiu com o sêmen e os dedos. Mas o Ennead são os dentes e lábios nessa boca que pronuncia o nome de cada coisa, desde que Shu e Tefnut saiu, e que deu origem ao Ennead [12]“.

Neste texto, a criação de Ptah pela palavra é contrastada com a criação de Atum, pela masturbação, e o método de Ptah é indicado para ser o verdadeiro motivo por trás do método de Atum de criar. A Teologia Memphita não retrata Ptah ao usar a magia para chamar o mundo à existência.

“O criador divino não é imaginado como um mago recitando suas magias, ele é visto como aquele que primeiro concebeu em sua mente o que deve ser criado para dar forma ao mundo e, em seguida, pôs em circulação, pronunciando o comando necessário para que seja [13]“.

3. Hermopolis:

Na cidade de Hermopolis, a cosmogonia dos Ogdoad surgiu. O Ogdoad de Hermopolis consiste em quatro deuses e suas respectivas companheiras: Nun e Naunet, Keku e Kauket, Hehu e Hauhet, Amun e Amaunet. Cada uma das quatro deusas recebe o seu nome a partir da forma feminina do nome de suas divindades masculinas. Essas deidades representam as quatro condições presentes no início da criação egípcia. Nun e Naunet personificam as águas primordiais. Nun encarna o oceano primordial, e Naunet, sua consorte, referiu-se ao contra-céu deitado sob o oceano primitivo. Keku e Kauket personificam a escuridão que assistiram ao estado primordial. Hehu e Hauhet personificam a ausência de limites e informe da condição primordial. Amun e Amaunet apresentam alguma dificuldade em determinar o seu significado preciso. Apesar de Amon ter sido identificado com o deus Sol, Ra, durante o Reino Médio, ele foi originalmente conhecido como o deus do ar e vento. Pode-se ver uma associação entre o ar eo vento, e a idéia de “oculto” ou “invisível”. Assim, Amun e Amaunet personificam o ar escondido e vento que assistiram ao estado primordial. Frankfort comenta sobre o papel Amun, e explica a função do Ogdoad.

Ele afirma, “Amon poderia ser concebido em épocas posteriores como o elemento dinâmico do caos, o motor da criação, o sopro da vida na matéria morta. Mas esta não é a concepção original, que simplesmente, por meio da Ogdoad, fez o caos mais específico, mais apto a ser compreendido. Na ilha de Flames Oito misteriosamente fez o deus-sol saem as águas, e com isso a sua função foi cumprida [14]“.

4.Diferenças entre os três cosmogonias egípcias:

Os três cosmogonias de Heliópolis, Memphis, e exibem Hermopolis semelhanças e diferenças. Às vezes as diferenças criam contradições na mente do leitor moderno. No entanto, essas contradições entre as três tradições e até mesmo dentro das tradições si não representa um problema para os antigos egípcios.

5. Semelhanças entre os três cosmogonias egípcias:

De estudar os diversos elementos de prova lidar com o entendimento egípcio da criação, três conceitos comuns trazer unidade para as histórias da criação de outro modo diverso. Toda a criação compartilha em suas histórias a crença em um oceano primordial, uma colina primordial, e a deificação da natureza. Estes conceitos encontram representação em cada um dos locais templo no antigo Egito.

D. O Significado do Relato da Criação para os primeiros leitores

Tendo conhecido um pouco da cosmogonia egípcia, é evidente que o relato de Gênesis mostra-se em grande parte distinto deles. Muito embora alguns estados similares pudessem ser encontrados (oceano primevo como uma alusão à expressão “face das águas”), a santidade de YHWH é claramente mantida no relato de Gênesis. Assim, considerando o pano de fundo histórico e religioso temos por certo que o relato de Gênesis tem dois propósitos: (1) Corrigir a cosmologia aprendida no Egito durante o tempo em que estiveram por lá; (2) apresentar YHWH como único Deus capaz de criar.

1. Promover correção:

Diante da cosmologia egipcia, e pelo tempo que passaram em sujeição ao domínio egípcio, não seria estranho que o Povo de Deus tivesse sido contaminado pela visão altamente religiosa do Egito. Isso é claramente percebido nas declarações de fidelidade a YHWH e nas diversas advertências para o povo abandonar os ídolos que carregavam.

“Agora, pois, ó Israel, que é que o Senhor teu Deus requer de ti, senão que temas o Senhor teu Deus, que andes em todos os seus caminhos, e o ames, e sirvas ao Senhor teu Deus de todo o teu coração e de toda a tua alma” (Dt. 10.12)

“Agora, pois, temei ao Senhor e servi-o com integridade e com fidelidade; deitai fora os deuses aos quais serviram vossos pais dalém do Eufrates e servi ao Senhor.” (Js. 24:14)

Por isso, não podemos descartar que Deus em sua Sabedoria está a corrigir a visão sobre a cosmologia do seu povo, para que possam reconhecê-lo como Senhor exaltado acima de todos os falsos deuses que haviam conhecido no Egito. Assim, “não era suficiente honrar a Yahweh simplesmente como um deus, um entre muitos. Nem poderia ser concebido isso do Deus de Israel. Só Yahweh é Deus. Não há outro Deus. Ele é o criador dos céus e da terra. Ele não é simplesmente superior aos deuses das nações em derredor. Somente Ele é Deus [15]”. Essa visão permeia todo o Pentateuco:

“Ouve, ó Israel; o Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Dt. 6:4)

O Deus exaltado acima da criação é o Deus único que não precisa de mediadores para sua Criação, em distinção dos deuses egípcios (Dt.4.32). Ele não exerce seu poder de modo erótico, ou até mesmo promíscuo na criação, Ele em santidade mostra-se superior moralmente (Lv.11.45). Além disso, Ele está além de sua Criação e lhe é superior. Por isso “a tendência em se começar a confundir Deus com Sua criação foi uma parte dos pensamentos do mundo antigo. Ele deve ser honrado como o Deus da criação, não apenas Deus na criação. Todas as tentativas de se visua-lizar ou humanizar a Deus na forma de alguma coisa criada foram tendências em equiparar Deus com Sua criação. Creio que foi assim com o bezerro de ouro de Arão [16]”.

2. Promover Informação [17]:

Negativamente, Gênesis um corrige muitas concepções populares erradas a respeito de Deus. Positivamente, retrata Seu caráter e Seus atributos.

Deus é soberano e Todo-Poderoso. Distintamente das cosmogonias de outros povos antigos, não há nenhuma batalha na criação descrita em Gênesis um. Deus não enfrentou forças opostas para criar a terra e o homem. Deus criou com uma simples ordem “Haja…” Há ordem e progresso. Deus não faz experiência, mas, ao invés disso, habilmente molda a criação conforme Seu projeto onisciente.

Deus não é simplesmente energia, mas uma Pessoa. Ainda que devamos ficar atemorizados pela transcendência de Deus, devemos ficar também pela Sua imanência. Ele não é uma energia cósmica distante, mas um Deus pessoal sempre presente. Isto é refletido no fato de que Ele criou o homem à sua própria imagem (1:26-28). O homem é um reflexo de Deus. Nossa personalidade é simplesmente uma sombra da personalidade de Deus. No capítulo dois Deus deu a Adão uma tarefa significativa, com uma companheira como auxiliadora. No terceiro capítulo aprendemos que Deus tinha comunhão diária com o homem no jardim (cf. 3:8).

Deus é eterno. Enquanto que outras criações são vagas ou errôneas no que concerne à origem de seus deuses, o Deus de Gênesis é eterno. O relato da criação descreve Sua atividade no princípio dos tempos (do ponto de vista humano).

Deus é bom. A criação não teve lugar num vácuo moral. A moralidade foi tecida dentro da estrutura da criação. Repetidamente é encontrada a expressão “e era bom”. Bom implica não somente em utilidade e complexidade, mas em valores morais. Aqueles que sustentam pontos de vista ateístas sobre a origem da terra não vêem nenhum outro sistema de valores a não ser o que é sustentado pela maioria das pessoas. A bondade de Deus é refletida em Sua criação, a qual, em seu estado original, era boa. Mesmo hoje, a graça e a bondade de Deus são evidentes (cf. Mt. 5:45; At. 17:22-31).
_________________________
[1] DEFFINBAUG, Bob, The creation of Heavens em the Earth (Gênesis 1.1-2.3). IN: http://bible.org/seriespage/creation-heavens-and-earth-genesis-11-23
[2] WARFIELD, Benjamin B., Selected shorter writngs of Benjamin B. Warfield, Vol 1, pp.108.
[3] KRELL, Keith, Gênesis – The Book of Beginnings. pp. 15-16. Escrito como artigo, Creative Gennius, também encontrado em: http://www.timelessword.com/?p=147
[4] Watke, Caos and Creation, pp.12; IN: DEFFINBAUG, Bob, The creation of Heavens em the Earth (Gênesis 1.1-2.3). ( http://bible.org/seriespage/creation-heavens-and-earth-genesis-11-23)
[5] Idem.
[6] Merrill F. Unger, Archaeology and the Old Testament, p. 37, citado por DEFFINBAUG, Bob, The creation of Heavens em the Earth (Gênesis 1.1-2.3). (http://bible.org/seriespage/creation-heavens-and-earth-genesis-11-23)
[7] KIDNER, Derek, Gênesis – Introdução e Comentário. pp.13
[8] Material adaptado de Tony L. Shetter: “Genesis 1-2 In light of Ancient Egyptian Creation Myths”.
[9] Brandon, Creation Legends, pp. 61. Cyrus H. Gordon, “Khnum and El,” in Scripta Hierosolymitana: Egyptological Studies, vol. 28, pp. 206-07
[10] Brandon, Creation Legends, pp.14.
[11] Mercer, Religion of Ancient Egypt, pp.79.
[12] Miriam Lichtheim, Ancient Egyptian Literature: A Book of Readings, vol. 1, pp.54.
[13] Brandon, Creation Legends, pp.38
[14] Henri Frankfort, Kingship and the Gods: A Study of Ancient Near Eastern Religion as the Integration of Society & Nature, pp.155.
[15] DEFFINBAUG, Bob, The creation of Heavens em the Earth (Gênesis 1.1-2.3). ( http://bible.org/seriespage/creation-heavens-and-earth-genesis-11-23)
[16] Idem.
[17] Material aproveitado de DEFFINBAUG, Bob, The creation of Heavens em the Earth (Gênesis 1.1-2.3). ( http://bible.org/seriespage/creation-heavens-and-earth-genesis-11-23)

domingo, 9 de janeiro de 2011

Feitiços, Adivinhações e possessões no Antigo Israel

Adivinhação, feitiçaria, magia e possessão no AT:
suspeitas a partir da teologia feminista

Ao discutir as práticas de magia, feitiçaria e adivinhação nos textos bíblicos, estamos perguntando pelos mecanismos e processos de intermediação entre a divindade e o povo. Esta intermediação é legítima ou não de acordo com o contexto e a época, com o grupo ou o lugar social onde esta é praticada. Por exemplo: adivinhação é proibida em Dt 18, mas jogar as sortes através das pedras de adivinhação – Urim e Tumim – não recebe repreensão.

O propósito aqui é analisar algumas práticas e perguntas pela relação com o grupo social, a saber, as mulheres que estão por detrás destas ações.

Adivinhação, feitiçaria e augúrio

Uma tendência corrente nos estudos de magia, adivinhação e feitiçaria no mundo do antigo Oriente Próximo, especialmente a partir dos testemunhos dos textos bíblicos, é definir estas práticas como simbólicas, entendendo este simbolismo, como meramente ilustrativo ou alegórico, ou seja, que não tem cunho político ou religioso. Em relação aos textos bíblicos, ocorre muitas vezes uma harmonização de conflitos, ou uma postura de relegar estas práticas a uma fase anterior da “evolução” da religião a um monoteísmo explícito. Toma-se a religião, em sua manifestação monoteísta, como mais evoluída, mais avançada, pura em sua estruturação e definição, enquanto que as práticas mágicas representam pensamentos primitivos, atrasados, ligados a pessoas ou grupos marginais. Outra postura defendida por alguns estudiosos é vincular as práticas mágicas unicamente à iniciativa humana, diferenciando-as dos atos que vêm da vontade de Javé1.

A proposta adotada aqui será de perguntar pelas práticas mágicas em relação com outras práticas sociais. O objetivo é não tomar cada prática de forma isolada, ou tomar a magia e adivinhação como fenômenos isolados, mas inseri-las na rede de relações sociais, culturais, econômicas, políticas e religiosas. Ou seja, o levantamento dos conceitos não quer identificar as características de cada prática, com o intuito de encontrar uma definição, mas é ver como os usos destes conceitos estão relacionados ao contexto, aos pré-conceitos culturais, às pressuposições dos autores, dos estudiosos e dos tradutores, entre outros fatores. É nesta configuração que é possível localizar e entender por que algumas práticas são condenadas em alguns textos, e acontecem, de forma legitimada, em outras situações, ou outras épocas.

A condenação

O texto condenatório em Dt 18.9-14 está inserido num contexto que quer promover o contraste entre o povo escolhido de Deus e o povo cananeu. Observa-se a afinidade lingüística com o texto igualmente denunciador de práticas advindas “dos gentios”, em 2Rs 16.32. Este texto enumera a adivinhação junto com uma série de outras “práticas abomináveis”: sacrifício de crianças, encantamentos, necromancia, consulta aos mortos. Contudo, ficam fora outras práticas como Urim e Tummim, sonhos ou lançar as sortes, que em outros textos, fora do ambiente legal, parecem ser práticas comuns e admitidas em certos círculos.

Chama a atenção que o texto que segue – Dt 18.15-22 – é onde se institucionaliza e legitima Moisés como o único intermediário entre o divino e o humano. Num contexto muito próximo, em Dt 17.8-13, adverte-se que as decisões difíceis devem ser consultadas com sacerdotes e levitas em Jerusalém. O verbo usado para falar desta consulta (darash) aos representantes legitimados pela instituição sacerdotal é o mesmo que irá falar da “consulta” aos adivinhadores. Estas interpelações levantam a hipótese que a condenação ocorre por uma questão de poder. O ideal de um javismo puro, centralizado e a partir das instâncias oficiais, defendido pelo deuteronomista, apresenta-se como um contraponto às práticas populares3.

Uma abordagem semântico-morfológica dos termos que são usados para designar as atividades de adivinhação, feitiçaria, augúrios na lista proibitiva de Dt 18.9-14 auxilia na compreensão e localização social destas práticas. Ali são listados profissionais, cujas práticas não devem mais ser seguidas pelo povo: quem faz passar pelo fogo o seu filho ou a sua filha, o adivinhador, o prognosticador, o agoureiro, o feiticeiro, o necromante, o mágico, o encantador ou quem consulta os mortos. Um cuidado é necessário: ter em conta as diferenças de estilo, forma e gênero dos textos legais e dos textos proféticos. Estas diferenças podem influenciar na escolha por determinadas terminologias, ou uso de determinados conceitos. Os pronunciamentos proféticos, em sua maioria, foram feitos, em primeira instância, em nível oral. Estes, posteriormente foram organizados e estruturados em escritos. Este processo todo influência e determina a opção de terminologias e conceitos, ainda mais, se estes conceitos estão ligados com práticas em que a escrita não é determinante, como no caso da magia, da adivinhação e da feitiçaria/bruxaria4.
~sq este verbo já foi analisado anteriormente, constatando um significado de adivinhar, conjurar. O rei da Babilônia, conforme Ez 21. 21, se pára nas encruzilhadas, na entrada de dois caminhos para consultar oráculos e adivinhar por meio de flechas, além de interrogar os ídolos do lar (terafins) e examinar o fígado. A história de Balaão, em Nm 22-24, que é um adivinho, conforme Js 13.22, estabelece a função de adivinho dentro das práticas que são utilizadas pelo povo israelita. Ele tem poder de amaldiçoar (22.6) e abençoar (23 e 24). E cobra pelas suas adivinhações (22.7).

Vek;m. que significa feiticeira, deriva da raiz acádica kašāpu ou do substantivo kišpu, quer por sua vez significa, “magia negra”5. O termo mekaššep significa “bruxa, feiticeira”6.

rb,x' rbex significa aquele que amarra encantamentos, encantador. A mesma palavra serve para designar companheiro, amigo, cúmplice, sócio. A raiz verbal significa unir, enlaçar, ligar, aliar7. Mas pode estar se referindo a práticas mágicas de amarrar e desamarrar nós, de enrolar ou desenrolar fios ou faixas em volta de pessoas ou objetos, em práticas simbólicas, mágicas8.

bAa laev significa quem consulta os mortos. O termo bAa significa fantasma, espectro, alma penada, espírito, necromante, ocultista. Pode referir-se a espírito invocado, ou à pessoa que invoca ou consulta os espíritos9. O termo bAa pode se referir a um buraco, uma cavidade no chão, como o texto de Is 29. 4 parece indicar10. No entanto, há várias opiniões acerca do termo. Poderia ser o espírito de um morto que descansa com ele no Sheol, ou no túmulo, que homens ou mulheres podem invocar. Há ainda a possibilidade de ser somente o instrumento utilizado para esconjurar (exorcizar) os defuntos, ou para praticar magia. O mais provável, entretanto, é que o termo sofre um encontro de significados, podendo significar tanto um espírito, como um objeto através do qual o espírito pode ser lembrado, ou ainda, a pessoa capaz de receber, intermediar e interpretar a fala do espírito. Os textos bíblicos que proíbem tais práticas refletem essas interpretações simultâneas: Dt 18.11; Lv 20.27; 2Rs 21.6; 23.24; 2Cr 33.6.

Uma mulher que é dona de um espírito – 1 Sm 28 – a bruxa de Endor

A necromancia é a prática de consulta aos mortos. Em 1 Sm 28 temos um texto paradigmático sobre a consulta aos espíritos dos mortos, que pode ajudar no entendimento da questão, embora o texto seja único em toda a Bíblia Hebraica11. O contexto é de guerra. Os filisteus são uma ameaça concreta para Saul e seu exército. O rei está amedrontado e sem rumo. Já consultou ao Senhor por sonhos, por Urim, e pelos profetas, e o silêncio foi a sua resposta. Parece que sua última alternativa é consultar uma necromante, indo contra suas próprias leis proibitivas, como informa o v.3. A “senhora dos espíritos”, ou “dona dos espíritos” (ba´alat 'ôb). Esta tem uma proximidade semântica com um título que recebe Samaš, a divindade solar, significando “O senhor dos espíritos dos mortos”12. Não há nenhum sinal indicando que ela seja estrangeira, mas sim, israelita.

A mulher tem poder para invocar qualquer espírito, conforme sua pergunta no v. 11: “Quem te farei subir?” ou “Quem queres que eu evoque?” O ritual, com sua performance, não é descrito. No v. 13, ela diz: “Vejo um Deus(es) (elohim) que sobe(m) da terra.”

A inquirição à divindade via sonhos, pessoas, oráculos ou mortos fazia parte da experiência familiar. Grande parte destas atividades registra o envolvimento ou a participação de mulheres, talvez por ser a esfera doméstica o espaço onde elas se moviam13.

A redação deuteronomista deixa suas marcas no texto e na configuração do contexto. As práticas sincréticas levam o rei à ruína. É por causa disso que Saul é desabonado por Deus. O texto, fruto de um trabalho redacional da oficialidade centralizadora, quer deixar claro que a pluralidade religiosa precisa ser controlada, para garantir os interesses e a autodeterminação de Israel. Essa proposta trilha num fino limite onde a palavra profética tem o seu critério de verificação definido a partir da fala/anúncio/denúncia. A palavra, o oráculo do Senhor é o meio legítimo da profecia. Gestos, encantamentos, cheiros, fumaças, jarras, cuidado com os mortos são desabonados.

O poder da mulher, dona de espírito, a médium, faz com que se estabeleça um contato entre um espírito e um inquiridor vivo. E a mensagem que recebe é a verdadeira palavra de Deus. Segundo o texto, sua ação não acaba na intermediação entre a divindade (ou o espírito) e a pessoa angustiada que faz a consulta. Ela estabelece um acompanhamento “pós-consulta”. Como a notícia recebida afeta profundamente o cliente, a mulher trata de restabelecer a saúde, física e emocional da pessoa. Prepara uma farta comida para o rei e seus servos. Seria uma espécie de ritual final do processo de evocação dos espíritos, ou seria nada mais do que atenção a quem está necessitado e angustiado, diante de tão desventurosas notícias?

Outro texto que pode estar se referindo a práticas de necromancia encontra-se em Is 29.4, no qual se diz que a voz sairá do chão, da terra, como a de um fantasma. A idéia de que os espíritos vêm do chão, já é encontrada na terminologia, quando ´ôb pode referir-se também a um buraco no chão. Is 28.7-22 é um texto dirigido contra as profecias ilícitas, onde podem ser encontradas referências a atividades ligadas à necromancia. Especialmente os versículos 15 e 18, nos quais a denúncia se dirige aos que fizeram alianças com a morte. Ainda, em Is 8.19, condena-se explicitamente aqueles que buscam conselhos com necromantes, adivinhos e Is 19.3 imputa aos egípcios a prática de necromancia, feitiçaria e adivinhação14.

Outra observação é a idéia de que cada termo corresponde a uma função específica que uma pessoa irá assumir, ou seja, que está determinando uma função para uma só pessoa. A configuração social do antigo Israel está baseada no modelo familiar, que segue a linhagem de clãs e tribos. Este modelo social implica numa pequena diferenciação entre as pessoas nos diferentes níveis e espaços da estrutura social. Neste sentido, a lógica é que uma pessoa ocupe mais que uma função social. Uma listagem bem variada de funções ligadas ao espaço religioso aparece em vários textos bíblicos, como, visionários, profetas, sacerdotes, homem de Deus, serviçais do templo, levitas, escribas, pessoas consagradas, nazireus, entre outros. Se a diferenciação social segue um modelo rural, familiar, tribal, várias destas funções são assumidas pela mesma pessoa. Assim, um profeta pode ser um visionário, um homem de Deus, e, isso pode implicar em assumir funções de adivinhação, cura, proferir oráculos. Exemplos desta configuração são Jeremias e Ezequiel: assumem funções sacerdotais e proféticas, que, por sua vez, são exercidas de diferentes maneiras ou jeitos, por meio de visões, oráculos, gestos simbólicos, sinais, posturas corporais etc.15.

Esta mescla de funções pode ser comprovada no ambiente da feitiçaria ou bruxaria na Mesopotâmia. Além de ocorrer um intercâmbio de funções, também ocorre um trânsito de espaços.

...a própria feitiçaria pertenceu originalmente ao nível popular de cultura da Mesopotâmia e só eventualmente se tornou parte do domínio do exorcista de templo. Na forma popular, a ‘bruxa’ não é necessariamente um ser mau e que faz atos ilegais, mas na realidade, pode executar vários atos mágicos (ambos feitos de formas normativas e não-normativas de feitiçaria) em nome de outros e até mesmo contra as bruxas ‘más’. Nesta forma popular, a ‘bruxa’ parece exibir associações com tipos de extáticos praticantes. Tais associações podem bem ser significantes, porque elas recordam a junção ocasional de possessão periférica e feitiçaria. Assim, em certas circunstâncias sociais, o mesmo indivíduo pode utilizar possessão de espírito e pode ser empregado como um exorcista, mas então, também ser classificado como uma bruxa.16

A grande diversidade de possibilidades de traduções, com um leque amplo de significados, aponta para um cuidado metodológico que deve ser tomado na análise das práticas aqui estudadas. Muitas vezes o significados deriva do contexto ou de aproximações convencionais, do que propriamente de definições exatas e descritivas das práticas17.

Nesta diversidade de atividades, está uma ampla gama de artes mânticas, como, por exemplo, a interpretação do “curso e da posição dos corpos celestes, eclipses do sol e da lua, o sopro do vento, o vôo dos pássaros, a expressão de animais, bem como dos humanos, sonhos, nascimentos anômalos ou o comportamento dos animais de sacrifício”18.

Magia, bruxaria, feitiçaria e adivinhação são práticas atestadas na antiga Mesopotâmia. O cuidado metodológico consiste numa abordagem que não tome estas como categorias opostas, em conflitos, e que outras categorias sejam analisadas em oposição a partir destas, como politeísmo e monoteísmo, bem e mal, fé e superstição, sacerdócio e pessoas leigas, medicina e charlatania19. Neste sentido, em relação à magia, pode-se afirmar que, tampouco, é possível fazer uma distinção entre magia “branca” e “negra”. As técnicas usadas pelas bruxas eram as mesmas usadas para invocar poderes de cura ou de destruição. A diferença consistia na maneira secreta de atuar, em questões de uso de poderes malignos, enquanto que a defesa, o uso dos poderes para o bem e a cura, era feita abertamente20.

No antigo Egito, as fórmulas mágicas são usualmente manifestadas por meio de simbologias, como os ditos, acompanhadas de performances rituais que envolvem certos objetos e ingredientes, que servem como amuletos. A magia, no Egito, tinha preferencialmente um caráter de proteção, ou de profilaxia, advinda dos Deuses21.

O campo de operação, que contém maior quantidade de descrição de rituais mágicos no antigo Egito, pertence à esfera dos ritos funerários. São registradas informações sobre ditos e rituais mágicos nos Textos das Pirâmides do Antigo Império, nos Textos dos Sarcófagos do Médio Império e no Livro dos Mortos, do Novo Império22.

Um propósito dos feitiços era transformar o defunto em outro ser, um espírito (’h), que pertencia ao mundo divino, onde todas as forças da natureza se juntavam. Esta transformação, que acontecia num mundo onde as condições de existência eram completamente diferentes, e até mesmo a comida que o defunto precisava era simbólica, era alcançada por meio de uma vasta gama de feitiços e rituais. Muitos destes eram executados durante cerimônias de enterro, nos quais um vasto número de modos de ser e relações hipotéticas eram evocados.23

Como atestado na antiga Mesopotâmia, de forma análoga no antigo Egito, os campos de atuação dos profissionais envolvidos nas práticas mágicas se misturam. O mágico, o protetor e o sacerdote de Sekhmet poderiam estar associados ao doutor ou aquele que cura. Da mesma forma, menções aos profissionais são encontradas nos espaços públicos, como em espaços domésticos. Mulheres sábias são nomeadas em meio a estes profissionais. Textos bíblicos testemunham a presença de mágicos e adivinhos em serviços ao faraó: Gn 41.8 traz os magos e os sábios convocados para interpretar os sonhos do faraó, que também são mencionados em Ex 7.11 e 22. Os hartummîm, os mágicos do faraó tinham uma ligação com a casa da vida, o centro de estudos teológicos, onde a produção literária em torno da manifestação de Re era composta24.

Segundo Gabriela Frantz-Szabó, no contexto cultural-religioso hitita, podem ser detectadas duas formas de magia e feitiçaria: a assim chamada “magia negra,” que é a que causa dano e a “magia branca,” que tem caráter defensivo ou preventivo. A lei hitita punia àquelas pessoas que se envolviam com práticas mágicas maléficas. O trato da questão da feitiçaria e magia estava sob os cuidados do estado, pois as ações não envolviam somente a indivíduos, mas podiam acarretar em prejuízos sobre grupos e sobre o estado mesmo25.

Uma das profissionais mais conhecidas do mundo mágico hitita é a mulher sábia”, ou a “mulher velha”. Ela era uma espécie de sacerdotisa, não de um templo, mas de rituais mágicos e de oráculos de sorte. Ela podia atuar em equipe, com a ajuda de uma assistente hieródula, um médico, um visionário, ou um que observa os pássaros. Um ritual hitita de purificação da mulher, em período de parto conhecido como papanikri, dura 4 dias e já começa antes de dar à luz. Os pássaros malignos são observados durante este ritual. O quarto onde a mulher dá à luz é purificado, a mulher e a criança são consideradas portadoras de impurezas. A cadeira sobre a qual a mulher se acocora também passa por um ritual de purificação com o sangue de dois pássaros. Também há referência a um ritual no qual óleo é passado sobre a cabeça da parturiente, fazendo a limpeza ritual das mãos e da boca. com lã vermelha. Este ritual é presidido por uma parteira26.

A adivinhação hitita é composta por sonhos, presságios e oráculos, de sorte, ou de exames das vísceras de uma ovelha. Os fenômenos da magia e adivinhação estão espraiados na sociedade hitita. Estes faziam parte do mundo público e do mundo privado, e eram praticados pelo povo em geral, bem como pelo rei e o pessoal ligado ao palácio. Magia e feitiçaria se misturavam com as esferas religiosas e médicas, bem como dialogavam com as sociedades vizinhas, como Mesopotâmia e Ásia Menor27.

Com as informações sobre o contexto circundante mesopotâmico, egípcio e hitita é possível estabelecer parâmetros e analogias com as práticas do antigo Israel. “Adivinhação é uma prática comum no antigo Oriente Próximo e, assim, é natural encontrá-la no mundo fenício-cananeu, bem como num contexto mais amplo.” “Diferente dos mesopotâmicos, os hebreus e os cananeus da Palestina não produziram um corpus especificamente dedicado à adivinhação”28.

Os meios de adivinhação encontram analogias nas diferentes culturas, no antigo Oriente Próximo. O diferencial é que há pouco registro escrito destas práticas no antigo Israel. Os meios legítimos, exercidos pelos sacerdotes, foram a adivinhação por meio de sorte, o efod (peça do vestuário sacerdotal), e o Urim e Tummim. Os escritores sacerdotais e deuteronomistas vão fazer a redução necessária destas práticas, condenando as que não foram incorporadas, e legitimando outras que recebem o aval do corpo especializado. Não dá para estabelecer um critério único, para dizer porque determinadas práticas foram incorporadas e legitimadas, e outras relegadas ao proibitivo. Mas, a partir dos textos bíblicos, é possível estabelecer uma ligação entre práticas mágicas e adivinhação com parte do mundo e das concepções religiosas no antigo Israel. É um dos meios de acesso ao mundo sobrenatural, ao mundo do transcendente, do divino.

Como meio de acesso, o ponto que deve ser discutido em estreita relação com as proibições e condenações é a questão do controle destes meios de acesso. Ou seja, em que medida as proibições, negações e deslegitimações não respondem a questões de poder. A polêmica se encerra num contexto de definição de identidade, onde o conflito reside em determinar quem são os atores sociais legítimos, empoderados para exercer determinadas práticas. Ou, dizendo de forma mais concreta, o problema não são as práticas, mas quem as faz, onde elas acontecem e, conseqüentemente, a quem elas se dirigem.

Parece que em épocas pré-exílicas algumas práticas ou profissões poderiam ser consideradas compatíveis com o javismo daquela época. Já em épocas tardias, com a preocupação crescente pela manutenção da identidade em contexto de ameaça de misturas culturais e religiosas, que se apresentam no exílio, estas são condenadas. “Quando elas aparecem, mais tarde, em textos do dtr, ou nos textos influenciados pela ideologia do dtr, elas são retratadas como práticas ilícitas e proscritas”29.

Pode-se conjecturar que práticas do âmbito da magia e da adivinhação são elementos constitutivos da sociedade do antigo Israel. Há um movimento de relegar estas práticas ao mundo assim chamado “pagão” ou “cananeu”, enfim, aos outros, aos estrangeiros. Ao impelir estas práticas para fora do contexto cultural-religioso de Israel, preserva-se uma retórica de afirmação e construção da identidade isolada do ambiente cultural circundante. Neste sentido, ao abordar a temática da magia e da adivinhação na Bíblia Hebraica, deve-se ter em conta que a forma de apresentar o tema no próprio texto, leva a uma direção que quer estabelecer categorias de controle em assuntos de pureza e contaminação30.

As evidências textuais apontam para uma probabilidade da existência e aceitação de práticas de adivinhação em certos círculos no antigo Israel. O propósito do controle é mais percebido em textos cujas composições sofreram interferências deuteronomísticas. Os objetivos da profecia e da adivinhação são semelhantes, pois querem facilitar e agilizar a comunicação entre Javé, a divindade e seu povo. Mas para o escritor deuteronomista, a adivinhação não pode ser um meio legítimo, pois os canais fidedignos estão centralizados nos profetas de linha mosaica, ou ainda faz-se uma associação da adivinhação com práticas estrangeiras31.

A intermediação religiosa pode ser definida como “um processo de comunicação entre as esferas divina e humana na qual mensagens são canalizadas em ambas as direções, através de um ou mais indivíduos que são reconhecidos pela sociedade para exercer tal função”32. Esta definição correlaciona os profetas e adivinhadores em relação ao exercício de seu papel ou funções sociais. Ambos exercem a intermediação, apesar de o fazerem com suas especificidades, de acordo com os aspectos culturais que são relevantes em determinadas épocas e contextos.

Os textos condenatórios trazem uma característica em comum. Todos os intermediários são especialistas aos quais se recorre em busca de intermediação entre o reino sobrenatural e o terreno. Neste sentido, condenação se insere na pergunta de quais os meios são legítimos. Quais os mecanismos reconhecidos de comunicação com Deus? O Dt promete que serão fornecidos os intermediários legitimados e reconhecidos: o profeta de tradição mosaica. Este será o único intermediário reconhecido e os textos atestam isso. (Nm 12.6-8 )33.

Possessão no AT

A idéia de possessão no AT pode ser aproximada da profecia. Textos indicam que a experiência profética pode ser descrita como uma espécie de ocupação de copo e de identidade por parte de um espírito. O marco para a profecia é a possessão do espírito de Deus. A “mão do Senhor” cai sobre o profeta e este é possuído pelo poder de profetizar – 1 Rs 18.46; 2 Rs 3.15, Jr 15.17; Ez 1.30. O espírito ainda pode “pairar sobre” , Nm 11.25-26; ou “revestir” alguém, Jz 6.34; Am 3.8.

Há poucas referências a possessão demoníaca no AT: Ex 22.17 –18 e Lv 19.26 proíbem; no v. 31 há referência a necromancia, ou a consulta a um espírito familiar. Outros textos: 1 Sm 15.23; 2 Rs 17.17; 21.6; 23.24; 2 Cr 33.6. Há diferentes concepções, significados e formas de descrever o que se pode chamar de possessão: uma delas é que é associado com doença (epilepsia); outra é com horror e arrepios – Jó 4.12-16 – o espírito faz arrepiar o cabelo e ouve-se uma voz. O espírito pode ser manifesto como ciúme de marido que pensa que está sendo traído, em Nm 5.14-15; ou como espírito mentiroso que entra na boca dos profetas de Acab – 1 Rs 22.19-24.

Há uma diferença notável que levanta uma suspeita que pode ser aprofundada nas experiências de mulheres possuídas nos textos do AT e NT. No AT, não há referência explícita de mulheres possessas que são exorcizadas. Ao contrário, a partir de 1 Sm 28 pode-se dizer que a mulher é dona, controla ou tem o poder e conhecimento de como manejar, fazer subir o espírito. Nos textos do NT as referências a mulheres e possessão acontece sempre onde elas são possuídas e devem ser exorcizadas. De Madalena se diz que foram expulsos 7 demônios (Lc 8.2-3) ou a mulher que estava presa/amarrada por Satanás há 18 anos ficando encurvada (Lc13.16); ou a menina que tem um espírito de adivinhação (At 16.16ss).

Como problematizar esta situação dada no NT, em relação às mulheres e os espíritos demoníacos?

Estudos comparativos culturais mostram que a possessão demoníaca é usualmente um significado pelo qual um indivíduo num papel social subordinado pode responder para e lidar com circunstâncias que não podem ser efetivamente manejadas de outra forma. Muitas vezes estas circunstâncias emergem de conflitos intrafamiliares. Por isso, a possessão demoníaca ocorre, na maioria das vezes, nos indivíduos mais subordinados da estrutura familiar: mulheres e crianças34.

Então, poderia-se dizer que a situação das mulheres no contexto cultural do NT é mais difícil, mais subordinado? Por outro lado, o argumento do silêncio – não há menção a exorcismo de mulheres no AT – não pode significar de que não exista. Mas, exorcismos de homens sim, são mencionados: Davi exorcisa o espírito mau e violento de Saul, com música, conforme relato em 1 Sm 16.14-23; 18.10-12.

O que, sim, se pode afirmar é de que quanto mais se institucionaliza o culto e as práticas religiosas tanto mais as mulheres são afastadas do manejo com o sagrado. Tanto mais as práticas das mulheres são relegadas ao espaço do proibido, do ilícito, e que no linguajar do AT pode ser também, impuro, abominação, idolatria. A questão é então, quem tem o poder de nomear. De dar nome e legitimidade às suas práticas. Quem pode incorporar e oficializar as práticas e quem deve fazer o que sabe, na cozinha, atrás das cortinas, no fundo das roças, nas encostas e beiras de rios. Longe do templo, do sacerdote e de seu deus.
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1 Joanne Kay KUEMMERLIN-MCLEAN, Divination and magic in the religion of Ancient Israel , p. 2.
2 Brian B. SCHMIDT, Canaanite Magic vs. Israelite Religion: Deuteronomy 18 and the Taxonomy of Taboo. In. MIRECKI, Paul and MEYER, Marvin. (Ed.) Magic and ritual in the Ancient World. Leiden : Brill, 2002, p. 242-259, p. 242.
3 Thomas W. OVERHOLT, Cultural anthropology and the Old Testament, Minneapolis : Fortress, 1996, p. 69-73.
4 Joanne Kay KUEMMERLIN-MCLEAN, Divination and magic in the religion of Ancient Israel , p. 84.
5 Frederick CRYER, Divination in Ancient Israel and its Near Eastern Environment , p. 258.
6 Richard A. HENSHAW, Female and Male. The cultic personnel, p. 174.
7 Luis Alonso SCHÖKEL, Dicionário bíblico hebraico-português. P. 202-203.
8 Richard A. HENSHAW, Female and Male. The cultic personnel, p. 171; Joanne Kay KUEMMERLIN-MCLEAN, Divination and magic in the religion of Ancient Israel , p . 83.
9 Luis Alonso SCHÖKEL, Dicionário bíblico hebraico português, p. 32.
10 Harry A. HOFFNER, bAa , p. 140-142.
11 A análise deste texto está baseada, principalmente, nos seguintes comentários: Luiz José DIETRICH, Shigeyuki NAKANOSE, Francisco OROFINO. Primeiro livro de Samuel: Pedir um rei foi nosso maior pecado; Athalya BRENNER, A mulher israelita; José Luís SICRE. Profetismo em Israel ; Diana Vikander EDELMAN, King Saul in the Historiography of Judah, p. 238-251.
12 David Toshio TSUMURA, The interpretation of the Ugarit Funerary Text, p. 55.
13 Patrik MILLER, The Religion of Ancient Israel , p. 72.
14 Jean-Michel de TARRAGÓN, Witchcraft, magic, and divination in Canaan and ancient Israel , p. 2075.
15 Frederick CRYER, Divination in Ancient Israel and its Near Eastern Environment , p. 247-248.
16 Tzvi ABUSCH, Some reflections on Mesopotamian Witchcraft, p. 22 “... witchcraft itself originally belonged to the popular level of Mesopotamian culture and only eventually became part of the domain of the temple exorcist. In the popular form, the ‘witch’ is not of necessity an evil being and doer of illegal acts but may in fact perform various magical acts (both normative and non-normative forms of witchcraft) on behalf of others and even against ‘evil’ witches. In this popular form, the ‘witch’ seems to exhibit associations with ecstatic types of practioners. Such associations may well be significant, for they recall the occasional coalesce of peripheral possession and witchcraft. In certain social circumstances, thus the same individual may both utilize spirit possession and be employed as an exorcist but then also be labeled as a witch.
17 Joanne Kay KUEMMERLIN-MCLEAN, Divination and magic in the religion of Ancient Israel , p. 34.
18 Gabriella FRANTZ-SZABÓ, Hittite witchcraft, magic, and divination, p. 2007. “ … the course and position of heavenly bodies, eclipses of the sun and the moon, the blowing of the wind, the flight of the birds, the utterances of animals as well as of humans, dreams, monstrous births, or the behavior of sacrificial animals.”
19 Walter FARBER, Witchcraft, magic, and divination in ancient Mesopotamian, p. 1895.
20 Walter FARBER, Witchcraft, magic, and divination in ancient Mesopotamian, p. 1898.
21 J. F. BORGHOUTS, Witchcraft, magic, and Divination in ancient Egypt , p. 1775-1779.
22 J. F. BORGHOUTS, Witchcraft, magic, and Divination in ancient Egypt , p. 1779.
23 J. F. BORGHOUTS, Witchcraft, magic, and Divination in ancient Egypt , p. 1779. “One purpose of the spells was to turn the deceased into another being, a spirit (’h), who belonged to the world of the divine where all forces of nature came together. This transformation, which took place in a world where the conditions of existence were completely different and even the food the deceased needed was symbolic, was achieved by means of a vast range of spells and rituals. Many of these were performed during burial ceremonies, in which vast numbers of hypothetical modes of being and relationships were evoked.”
24 J. F. BORGHOUTS, Witchcraft, magic, and Divination in ancient Egypt , p. 1784.
25 Gabriella FRANTZ-SZABÓ. Hittite witchcraft, magic, and medicine, p. 2008.
26 James Carrol MOYER, The concept of ritual purity among the Hitites, p.70-72; Gabriela Frantz-SZABÓ. Hittite witchcraft, magic, and medicine, p. 2011.
27 Gabriella FRANTZ-SZABÓ. Hittite witchcraft, magic, and medicine, p. 2018.
28 Jean-Michel de TARRAGON, Witchcraft, magic and divination in Canaan and Israel , p. 2071.Divination is a common practice in the ancient Near east, and so it is natural to find it in the Phoenician-Canaanite world as well as in the broader context.” “Unlike the Mesopotamian, the Hebrews and the Canaanites of Palestine produced no corpus specifically dedicated to divination.”
29 Brian B. SCHMIDT, Canaanite Magic vs. Israelite Religion, p. 253. “The remaining four, soothsaying, sorcery, divining, and charming, were not attested in pre-exilic texts. This might indicate that while the professions were compatible with earlier forms of Yahwism (admittedly the text are silent on this point), they came to pose a threat to dtr ideology only by the exilic period or thereafter. When they do show up in later dtr texts or texts influenced by dtr ideology, they are depicted as illicit practices and outlawed.”
30 Brian B. SCHMIDT, Canaanite Magic vs. Israelite Religion, p. 259.
31 Thomas H. OVERHOT, Prophecy and divination, p. 126.
32 Thomas H. OVERHOT, Prophecy and divination, p. 141.
33 Robert R. Wilson. Profecia e sociedade no antigo Israel. São Paulo : Paulinas, 1993, p 152.
34 Stevan DAVIES L. Jesus, the healer. Possession, trance, and the origins of Christianity. New York : Continium, 1995. p. 81