quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Dr. Robert Eisenman: E a longa e perdida história da formação do cristianismo "pré-histórico"


Nas suas recentes publicações The Dead Sea Scrolls Uncovered (em parceria com Michael Wise) e The Dead Sea Scrolls and The First Christians, Rober Eisenman do Institute for the Study of Judeo-Christian Origens e do Institute For Higher Critical Studies tinha ameaçado/prometido redesenhar o mapa das origens cristãs e agora, por Deus, ele conseguiu. A amplitude e o detalhe da investigação de Eisenman tanto quanto suas implicações são de tirar o fôlego. Em James The Brother Of Jesus ele nos conta a longa e perdida história da formação do cristianismo "pré-histórico" tal como ele emerge da atribulada Palestina revolucionária e das hostilidades mutuamente destrutivas entre os Paulinos e o Cristianismo Ebionita. Eu denomino isso de "pré-histórico" porque Eisenman reconstrói os eventos apresentados diante de nós e por de baixo das histórias canônicas do cristianismo primitivo que conhecemos. Seu empreendimento é nesse sentido relacionado com aquele de Burton L. Mack, esse outro grande pesquisador das profundezas subterrâneas do cristianismo pré-histórico. Como Mack, Eisenman descobre um cristianismo (ou talvez uma protocristianismo ou mesmo um pré-cristianismo) para as quais Jesus ainda não tinha obtido centralidade. Apenas, aonde Mack enxerga o germe inicial de uma nova religião como uma variedade do cinismo, Eisenman rejuvenesce ou mesmo reivindica a antiga alegação de Renan de que o cristianismo começou como "um essenismo".

No processo Eisenman reivindica outro dito de Renan, especificamente de que para se escrever a história de uma fé, precisamos ter pertencido a ela, mas não devemos mais pertencer a ela. Enquanto alguém carrega o fardo de representar o cristianismo parece ser quase impossível se livrar de tendências apologéticas. Lidando com Paulo, isso significa que mesmo especialistas críticos não conseguem se furtar em pressupor que a mensagem de Paulo, teológica, ou qualquer outra, deve ser, basicamente, verdadeira. Mesmo se alguém deve praticar uma pequena cirurgia crítica aqui e acolá, e.g, o papel da mulher, Paulo é ainda é o alicerce da Igreja de cada um. Pelo menos esta tendência Paulina implícita resulta no que Bruce Malina e outros denominam de uma abordagem doceta para o texto.

Para antecipar o núcleo do livro como um todo, digamos que Eisenman primeiro desenha um retrato das comunidades primitivas de Tiago como um religioso, nacionalista messiânico e uma seita xenofóbica de devoção extrema algo que a maioria de nós consideraria fanatismo. Eisenman mostra como a "cristandade-judia" era parcela de um ambiente sectário o qual incluía Essênios, Zelotas, Nazoreus, Naziritas, Ebionitas, Elchasites (um subgrupo dos Ebionitas), Sabeanos, Mandeanos etc., e que essas categorias não eram mais do que tipos ideais de maneira alguma segregados uns dos outros como bestas exóticas em jaulas adjacentes, identificadas no zôo teológico. Contra essa qualidade de "Lubavitcher Christianity", Eisenman retrata o cristianismo Paulino (e ainda seus primos helenistas, os cristianismos Joaninos, de Marcos e Lucas) como sendo raiz e ramo, comprometendo e assimilando uma apostasia herodizante do judaísmo. O cristianismo grego dá a Torá e à identidade judaica o surto de crescimento. O Cristo Paulino, um redentor espiritual com um reino invisível, é consistente com a cristianização de Vespasiano como messias por Josefo.

Claro que essas idéias de maneira alguma são novas. Eisenman está, simplesmente, preenchendo o quadro de uma maneira exaustiva inimaginável por S.G.F. Brandon, Robert Eisler e seus sucessores. A figura de Jesus nos evangelhos gregos, comendo com coletores de taxas, caçoando das tradições de seu povo, acolhendo pecadores e ridicularizando a devoção da Torá são todas expressões de antijudaísmo gentílico. Somente gentios totalmente sem simpatia com o judaísmo poderiam professar enxergar Jesus como um nobre pioneiro de "superior virtuosidade". Da mesma forma, a noção do Novo Testamento de que Jerusalém caiu porque seu povo havia rejeitado o messias, quando na verdade eles estavam lutando uma guerra messiânica contra o anticristo romano, deve ser julgada como uma peça helenista cínica de perseguição judia. O cristianismo tal como emerge na missão gentia é um produto da acomodação cultural, Quinlingismo pró-romano, e assimilação intencional. É uma maneira de judaísmo sincrético diluído diferente do culto Sabázio.

Armado com uma hermenêutica de suspeição, Eisenman nos mostra como quebrar os códigos da desinformação teológica, para ouvir os ecos amortecidos e longínquos, como encontrar sustentação para o que tem parecido ser uma escalada inaccessível a um cume o qual se possa ver a até agora inobservada paisagem do cristianismo primitivo. Quais são as ferramentas para a escalada?

Primeiro; Eisenman considera uma gama maior de fontes históricas do que a maioria pensa que ele precisa. Ele examina como poderíamos esperar os Pergaminhos do Mar Morto, bem como os Reconhecimentos e Homilias Clementinas, as Constituições Apostólicas, Eusébio, os dois Apocalipses de Tiago de Nag Hammadi e até mesmo o texto Ocidental dos Atos e o Josefo Slavônico. Eisenman assume Josefo como fonte dos Atos de Lucas de uma maneira muito mais séria do que qualquer um jamais tinha considerado antes. Tudo isso nosso autor escrutina cuidadosamente, não deixando nada sem crítica. Aonde ele se diferencia da maioria dos especialistas é em tomar seriamente esses materiais como novas fontes de informação, a sugestão estranha aqui ou acolá, sobre Tiago ou Paulo. Como Richard Pervo (Profit With Delight) começou a mostrar o negligenciamento tradicional de fontes relacionadas com elas (e.g O Apócrifo Atos dos Apóstolos) por supostamente especialistas críticos é mais um caso de apologética canônica do que método histórico. Porque os especialistas do Novo Testamento concordam que os Atos de Lucas são legendários e fictícios em larga medida e logo em seguida assumem a história com o valor de face? Eisenman, por outro lado, percebe que Lucas e a literatura Pseudoclementinas estão mais ou menos par a par. Cada uma delas deve ser tratada com reservas, todavia com um otimismo que no meio de todo o material, em algum lugar, alguém pode descobrir um pedaço vital de informação.

Segundo; Eisenman desenvolveu um apurado senso para o "jogo dos nomes" jogado nas fontes. A maioria de nós alguma vez já quebrou a cabeça com as provocativas confusões latentes na estranha redundância de nomes similares nas narrativas do Novo Testamento. Como pode Maria ter tido uma irmã de nome Maria? Existe alguma diferença entre José Barrabás Justo, Judas Barrabás Justo e Tiago o Justo? Daí todos os Tiagos e Judas? Quem é Simão o Zelote e Judas o Zelote (o qual aparece em alguns manuscritos do NT e em outros documentos do cristianismo primitivo)? Seria Coplas o mesmo que Cleofás? O que acontece com Jesus bem-Ananias, Jesus Barrabás, Elimas bar-Jesus e Jesus Justo? O que realmente significa Boanerges? Seria Nataniel um apelido para alguém que conhecemos? E assim por diante e por diante. A maioria de nós se espanta, momentaneamente, com essas estranhezas e depois nos movemos adiante. Afinal, quão importante podem ser elas? Eisenman não segue adiante antes de explicá-las.

Sua hipótese de trabalho é que as confusões, alterações e ofuscações seguem um interesse em encobrir a importância e, portanto, a identidade dos Desposyni, os herdeiros de Jesus o qual aparentemente funcionaram, ao menos para o cristianismo palestino, como um califado dinástico similar à sucessão no Islã ou a sucessão dos irmãos hasmoneanos. É lugar comum que os textos dos evangelhos tratando a mãe de Jesus, irmãos e irmãs, ora duramente (Marcos e João), ora delicadamente (Lucas, c.f, o Evangelho de acordo com os hebreus), são funções das polêmicas eclesiásticas sobre as reivindicações de suas lideranças em oposição a Pedro e os Doze (analogamente aos Companheiros do Profeta no Islã) ou a forasteiros como Paulo. É igualmente bem conhecido que as listas dos apóstolos nos Sinóticos diferem entre elas e entre os manuscritos de cada Evangelho. Por quê? Eisenman conecta esse fenômeno com outro, a confusão levantada entre teólogos primitivos sobre os parentes de Jesus à medida que a doutrina da virgindade perpétua de Maria tornou-se largamente difundida. Eles tiveram que harmonizá-la com o dogma, assim irmãos e irmãs se tornaram primos, meio irmãos etc. E personagens tornaram-se divididos. Maria, subitamente, tinha uma irmã chamada Maria porque a mãe de Tiago, Joset e Judas não podia mais também ser a mãe de Jesus. E assim por diante.

Os evangelhos deram importância a um círculo interior de três: Pedro, João filho de Zebedeu e João irmão de Tiago. Gálatas tem os três Pilares em Jerusalém: Pedro, João filho de Zebedeu e Tiago o irmão de Jesus. O que aconteceu aqui? Certamente o grupo interior de três é entendido como preparatório para os Pilares, para provê-los de uma ancestralidade de Jesus. Mas então porque existem dois Tiagos? Não deveriam ser eles, originalmente, os mesmos? Eisenman diz que eles eram, mas certas facções que pretendiam enfatizar a autoridade do sombrio colégio dos Doze contra a primitiva autoridade dos herdeiros consideraram político levantar uma barreira entre Tiago, o irmão de Jesus, e os Doze, assim Tiago tornou-se, Tiago o Justo, de um lado e Tiago, o irmão de Jesus, no outro.

Outra tentativa de distanciar Tiago, o Justo, dos Companheiros de Jesus teria sido a clonagem de Tiago o Justo com Tiago o filho de “Alfeu“, cujo nome Papias afirma ser intercambiável com “Cleofás” que vem a ser o pai de Simão, sucessor de Tiago como bispo de Jerusalém e também seu irmão. E posteriormente Tiago o filho de Alfeu e Tiago o filho de Zebedeu ambos substituíram Tiago o Justo no círculo de discípulos. Enquanto isso, Tomé sofreu uma mitose em Judas de Tiago, Tadeu, Lebeu e Judas Iscariotes. Simão o Zelote é Simão bar-Cleofas outro irmão de Jesus, o sucessor de Tiago como líder dos cristãos de Jerusalém após o martírio de Tiago. Ele foi confundido também com Simão Cefas (Simão Pedro).

Eisenman trabalhou uma complexa e coerente construção gramática desses processos e termina com um círculo muito mais reduzido “dos Doze”, a maioria deles sendo “aliases” e substituições para os irmãos de Jesus. Isso escandalizará alguns, mas outros leitores acharão que a teoria agrega verdade em contrapartida ao, alternativamente, estranho fato de que os Doze são entidades sombrias e insignificantes no Novo Testamento.

Terceiro; Eisenman traz para suportar as narrativas dos Atos o modelo de uma técnica redacional "combina e ajusta" pela qual Lucas é visto como tendo composto suas histórias através da recombinação de características proeminentes de cada história nas suas fontes. Quando Lucas termina, somente pedaços dos paradigmas ou composição sintática dos originais são encontradas, mas existindo suficiente para reconhecer uma como mutação da outra. Esse é o procedimento usado recentemente com grande resultado por um número de especialistas, nada menos do que John Dominic Crossan (o qual mostra a narrativa da paixão ter sido provadamente construída a partir de vários textos do Antigo Testamento), Randel (o qual nas ficções do evangelho mostra caso após caso uma história do evangelho derivada de uma história similar da Septuaginta) e Thomas L. Brodie (o qual decifra numerosas narrativas de Lucas em seus componentes originais Deuteronômicos). A originalidade de Eisenman nesse ponto não está na técnica, mas no seu zelo de levar a sério o uso de Josefo como fonte por Lucas. (Novamente, isso é algo que ninguém que deseja uma data mais cedo para Lucas ou uma base histórica para os Atos gostaria de considerar seriamente, mas dessa forma temos um caso de apologética disfarçada como crítica). E a análise redacional de Eisenman sobre Lucas em Josefo é somente um dos principais avanços de Tiago o irmão de Jesus. Não parece ser demasiado dizer que o livro inaugura uma nova era no estudo dos Atos.

Não se quer afirmar, entretanto, que Eisenman limita seu uso de técnicas ao uso de Josefo por Lucas. Longe disso: ele é capaz de extrair tradições de várias fontes e identificá-las em seus novos aspectos nos Atos-Lucas e em qualquer outra parte do Novo Testamento. Eu proponho agora oferecer sumários de algumas reconstruções de Eisenman, mostrando em contornos amplos o que ele vê em Lucas (ou outros) tendo produzido tradições originais bastante diferentes.

Várias fontes primitivas cristãs apresentam Tiago como sendo eleito pelos apóstolos como bispo de Jerusalém sob indicação de Jesus (como no Evangelho de Tomé, logion 12). A agenda helenizante de Lucas o levou a recontar essa história não como uma substituição de Jesus por Tiago o Justo, mas sim a substituição de um vilão Judas Iscariotes pelo insignificante "Matias". Tiago, o Justo, foi diminuído bastante de maneira a se esconder atrás do candidato à posição, "José Barrabás chamado Justo". O nome Matias foi sugerido, através de simples associação de palavras, por Matias o pai de outro Judas, Judas Macabeu. Assim, quando mais tarde encontramos Tiago, o Justo, como o chefe da Igreja de Jerusalém nós temos a expectativa de saber quem é ele, embora Lucas tenha eliminado o que poderia ser sua apresentação! Um sinal evidente da história original tratando da eleição de Tiago, não como novo 12º apóstolo, mas como o bispo de Jerusalém, é o texto-prova, "seu episcopado deixa outro homem tomar" (Atos 1:20/Ps 109:8). Tiago foi simplesmente abortado de várias narrativas dos Atos nas quais deveríamos esperar ler sobre todos os três pilares, mas agora lemos somente sobre o duo dinâmico Pedro e João.

Como Hans-Joachim Schoeps já tinha conjecturado, o apedrejamento de Estevão suplantou exatamente da mesma maneira o apedrejamento de Tiago (na realidade uma combinação do posterior apedrejamento de Tiago sob o comando de Ananus e um anterior ataque por Saulo nos degraus do templo preservado em um incidente separado nos Reconhecimentos). O nome de Estevão foi emprestado de um oficial romano surrado por insurgentes judeus o qual Josefo retrata ter sido emboscado fora dos muros da cidade. Porque esse nome? Por causa de um jogo de palavras: Estevão significa "coroa" e foi sugerido tanto pelos longos cabelos dos Naziritas (ao qual Tiago pertencia de acordo com escritores da igreja primitiva) como pela coroa do martírio. Sobre Estevão havia sido transferida a declaração de Tiago sobre o Filho do Homem situado à direita de Deus no paraíso, assim como a oração de Tiago, para seus perseguidores do mesmo tipo daquelas proferidas por Cristo. (Eisenman deve ter notado também que a identidade original do mártir como Tiago, O justo, é assinalada por Atos 7:52, "Até mataram os que anteriormente anunciaram a vinda do Justo, do qual vós agora fostes traidores e homicidas!").

Lemos que um jovem de nome Saulo estava verificando vestes para os executores de Estevão e com seu gosto por sangue imediatamente estimulado iniciou a fomentar perseguição em Jerusalém e Damasco. Isso tem sido trazido novamente pelo folclore de Tiago bem como de Josefo. O motivo da roupa foi sugerido pelo golpe final em Tiago com um bastão, ao mesmo tempo logo após sua própria narrativa da morte de Tiago, Josefo relata sobre o tumulto iniciado por um Herodiano de nome Saulo em Jerusalém!

Eisenman observa vários temas envolvendo Tiago circulando livres para serem conectados de formas inteiramente diferentes nas escrituras cristãs. Por exemplo, a transfiguração traz Jesus resplandecendo em glória celestial como Estevão o viu e Tiago o proclamou. E claro Tiago estava lá na cena. O elemento "branqueador" é repetido na aparência de Jesus com as roupas brilhantes, mais brancas do que qualquer branqueador as pudesse alvejar. Novamente, nos Reconhecimentos, Saulo está perseguindo Tiago e os santos de Jerusalém até Jericó (nas vizinhanças de Qumran "Damasco"), e de alguma maneira eles são protegidos pelo espetáculo da tumba de dois mártires as quais, milagrosamente, brilham a cada ano. Existe o elemento branqueador ligado à perseguição de Saulo. De novo, na tumba vazia (relembrando aquelas tumbas dos mártires), encontramos um "jovem homem" (o epíteto aplicado a Saulo no apedrejamento de Estevão em Atos) vestido de branco e sentando à direita, dessa vez, no local de repouso de Jesus exatamente como Estevão viu Jesus à mão direita de Deus.

A visita de Pedro a Cornélio, qualificada, praticamente, como uma paródia da história de Josefo sobre Simão, um líder piedoso com sua própria assembléia o qual desejava barrar Herodes Agripa I no templo por conta de suas contaminações gentias, conseqüentemente Agripa o convidou para inspecionar sua casa em Cesaréia e então dispensá-lo com presentes. Lucas pegou emprestado o nome Cornélio de algum local em Josefo aonde Cornélio é o nome de dois soldados romanos, um envolvido no cerco do Templo sob Pompéia, o outro no cerco de Jerusalém sob Tito. Os colaboradores dos romanos em Cesaréia, aonde Lucas estacionou seus piedoso Cornélio, estava entre os mais dispostos à violência da Palestina. O elemento de conflito entre Herodes Agripa I e Simão Pedro foi naturalmente transferido para Atos 12, aonde Herodes prende Pedro e Pedro foge, sendo o mesmo desenvolvimento básico, mas com dramaticidade aumentada.

O que dizer do sempre fascinante personagem Simão Magno? Eisenman o identifica com um mágico de nome Simão de quem Josefo reconta que ele ajudou Berenice a convencer sua irmã Drusila a desprezar seu marido Rei Azizo de Emesa que se circuncisou para esposá-la, para que pudesse se arranjar, não com ele, mas com o não-circuncisado Felix. O Simão mágico de Josefo é um Cipriota enquanto O Simão Mago dos Atos é considerado por escritores posteriores procedente de Gita na Samária, mas na verdade esse fato estressa a conexão, desde que era natural confundir "Gita" com "Kittim" ou Povo Marítimo de Cipros. Não só isso, mas Eisenman nota que alguns manuscritos de Josefo denominam o mágico "Átomos" que Eisenman relaciona com a doutrina do Adão Primal enxergada por ele como implicada na alegação de Simão ser o uno encarnado muitas vezes. Mas ainda existe uma relação próxima que Eisenman não teve a oportunidade de notar. Qualquer um pode ver que Lucas criou o episódio Saulo/Paulo argumentando contra Elimas o vidente (Atos 13:8 e seguintes) como uma contrapartida paulina para a competição de Pedro com Simão Mago em Atos 8:9 (na verdade, o patronímico de Elimas "bar-Jesus", provavelmente, reflete a alegação que Simão fez de ter aparecido recentemente na Judéia como Jesus). Assim Elimas é simplesmente Simão Mago. E o que você sabe, o texto ocidental dos Atos dá nomes como Etoimas ou Etomas ao invés de Elimas! Assim, Simão Mago=Elimas=Átomos=José de Simão=Simão Mago.

Aonde Lucas encontrou sua matéria prima para a profecia de Ágabo sobre a grande fome para ocorrer no reinado de Cláudio, para a viagem de Paulo da Antioquia para levar fundos de ajuda para a fome a Jerusalém e para a narrativa anterior de Felipe e o eunuco Etíope? Novamente, de Josefo (embora talvez também de outras fontes de informação associadas). Tudo isso deriva, de um jeito ou de outro, da história de Helena, rainha de Adiabene, um reino contíguo e/ou superposto com Edessa, cujo rei Agbaro/Abgaro em algumas fontes é o marido de Helena. Helena e seu filho Izates convertido ao judaísmo, embora inicialmente Izates se abstivesse da circuncisão devido ao conselho de um professor judeu que garantiu a ele que a devoção a Deus era mais importante do que a circuncisão. Sua mãe, também aconselhou contra isso, uma vez que seus súditos poderiam se ressentir por ele abraçar tal costume estrangeiro. Mas logo um professor austero de Jerusalém, um tal de Eliezer, visitou Izates encontrando-o a meditar sobre a passagem de Gêneses da aliança Abraâmica sobre a circuncisão. Eliezer indagou se Izates entendia a implicação do que estava lendo. Se sim, porque então ele não enxergava a importância de ser circunsisado? E isso o príncipe concordou em fazer. Helena e Izates provaram sinceridade na sua conversão, através de entre outras filantropias, ao enviar agentes ao Egito e Cerne para comprar grãos durante a fome no tempo de Cláudio e distribuí-los entre os pobres de Jerusalém.
Esses eventos deixaram sua marca no Novo Testamento da maneira que se segue: Eisenman nota (como naturalmente todos os comentaristas fazem) que não existe espaço para a visita de ajuda da fome no itinerário Galatiano da visita de Paulo a Jerusalém, mas ele tenta colocar o evento durante a jornada na "Arábia" o qual, no idioma da época, poderia incluir Edessa/Adiabene. Os Atos conhecem duas Antioquias, aquela na Pisídia e Síria, mas havia outras incluindo Edessa! Eisenman identifica Paulo como o primeiro professor judeu que diz a Izates que ele não precisa se circuncisar na sua fé em Deus. (Esse episódio também está na base do episódio de Antioquia recontado em Gálatas, quando certo homem de Tiago chega a Antioquia para dizer aos convertidos por Paulo que eles afinal precisam ser cincuncisados.) Paulo é um dos agentes de Helena para trazer ajuda para a fome em Jerusalém, o qual ele diz em Atos 11 fazer "de Antioquia".

Mas, peguemos novamente a história de Helena no capítulo 8, com Filipe substituindo Paulo, aonde Filipe aborda o agente financeiro de um rei estrangeiro indo de Jerusalém para o Egito via Gaza. Esse é claro o eunuco etíope. Porque Lucas transformou Helena a rainha de Adiabene em Candace a rainha da Etiópia? Ele reverteu um padrão do antigo do Antigo Testamento, fazendo Helena, convertida ao judaísmo, em uma Rainha de Sabá do Novo Testamento que viera a Jerusalém para ouvir a sabedoria de Salomão. Existe também um jogo de palavras na raiz saba, denotando batismo no estilo dos Essênios, Sampsaeans, Sabeanos, Masbutheans e Mandeanos, o tipo de judaísmo que Helena havia se convertido (dado o posterior envolvimento Zelote de seus filhos e sua própria reputação de 21 anos de ascetismo Nazirita). Henry Cadbury anotou muito tempo atrás que Lucas caiu na mesma armadilha que um número de literatos contemporâneos foi pego ao assumir como nome próprio, Candace, o título de todas as antigas rainhas Etíopes, kandake, mas Eisenman também vê um jogo de palavras no nome do filho de Helena, Kenedaeos. Que deu sua vida para o adotado povo na Guerra Romana. De qualquer maneira não havia rainhas etíopes naquele tempo.

Quando o profeta Ágabo previu a fome, Lucas derivou seu nome daquele do marido de Helena, Agbaro. Quando o eunuco convida Filipe para entrar em sua carruagem, temos um eco de Jeú recebendo Jonadab em sua carruagem. Quando Filipe pergunta ao etíope se ele entendia o que lia, Lucas estava emprestando isso da história de Izates e Eliezer, aonde a questão também pressagia um ritual de conversão, apenas que dessa vez é a profecia de Isaias sobre Jesus, e o ritual do batismo. A circuncisão original sobrevive na forma de paródia crua (relembrando Gálatas 5:12) com o Etíope sendo totalmente castrado. Até mesmo a localização do episódio dos Atos é ditado pela história de Helena, pois o etíope viaja para o Egito via Gaza porque o agente de Helena precisa estar em posição de comprar grão. A motivação substituída por Lucas para o objeto da a viagem é absurda: um eunuco não poderia ter ido a Jerusalém para adorar uma vez que eunucos eram barrados no Templo!

O suicídio de Judas Iscariotes (originalmente "O Sicário") representa uma mistura de elementos que fazem mais sentido no seu presumível ambiente mais cedo na vida de Tiago e Judas. Os elementos do suicídio (bem como o lançamento de sorte no contexto adjacente de Atos 1) provêm do lançamento de sorte para iniciar os suicídios dos Sicários em Massada. A queda abrupta vem de Tiago sendo empurrado do pináculo do templo, enquanto as entranhas derramadas refletem o esmagamento dos miolos de Tiago pelo diabólico lavador. Como Tiago, Judas nos Atos é enterrado aonde cai.

Eisenman enxerga Tiago estando envolvido, integralmente, em alguns dos episódios que Josefo reconta no mesmo período, tal como a construção de um muro para cortar a vista da sala de jantar de Herodes Agripa do altar sacrifical do templo, que aconteceu logo antes do martírio de Tiago e a profecia de Jesus-ben-Ananias sobre a destruição final de Jerusalém, que aconteceu exatamente depois. Tiago tinha sido a fortaleza impedindo o julgamento de Deus. E com ele fora do caminho, o destino da cidade estava selado. (Orígenes leu uma versão de Josefo na qual ele diz que o povo atribuía a queda da cidade como punição pela morte de Tiago o Justo). Essa profecia de Jesus bem-Ananias é a base tanto para o oráculo mencionado por Eusébio que alertava aos cristãos de Jerusalém para fugirem como para Ágabo alertando Paulo para não continuar em Jerusalém (atos 21).

Tiago foi executado por blasfêmia por conta de sua atuação (como os antigos escritores da Igreja nos contam) como Sumo Sacerdote opositor entrando no Santo do Santos no dia do perdão. Como um essênio (como mostrado por suas práticas ascéticas, suas vestes de linho brancas etc.) ele celebraria o Yom Kippur em um dia diferente, que seria a maneira de não esbarrar com Ananus fazendo a mesma coisa que é a razão pela qual por irregularidades ritualísticas ele teria sido executado, como o Mishnah exigia para infrações como essa.

A maneira como Eisenman descreve o papel de Tiago tem muito pouco a ver com Jesus (tão pouco quanto a Epístola de Tiago). Até mesmo a famosa história de Tiago sendo convidado pelo Sumo Sacerdote para se dirigir ao povo na Páscoa, para dissuadi-los de sua crescente fé em Jesus e recebendo sua surpresa confissão, "Porque vocês me perguntam sobre o Filho do Homem...?" deve ser lido, pelo que parece Eisenman sugerir, como uma cristianização de um original na qual Tiago foi solicitado a acalmar a excitação da multidão na Páscoa (uma fonte anual de dores de cabeça escatológicas para o Templo e para o "establishment" romano) com nenhuma referência a Jesus como o messias esperado. E a resposta de Tiago teria sido um incitamento da expectativa messiânica novamente sem referência a Jesus como o Filho do Homem. Igualmente o voto de Tiago prometendo não comer ou beber até que o Filho do Homem tenha se elevado, pode ser uma redação cristã do voto de Tiago para observar o ascetismo nazirita até a vinda do messias, não necessariamente a ressurreição de Jesus. Assim o Tiago de Eisenman faria muito mais sentido como uma figura religiosa em seu próprio mérito, não se apoiando na sombra de Jesus. Essa é, de qualquer forma, a impressão que ganhamos de Hegésipo e de outros: Como poderiam as autoridades do Templo sequer solicitado a Tiago para acalmar o entusiasmo popular sobre Jesus se eles soubessem que ele mesmo era um líder cristão? Eles o conheciam como um judeu piedoso assim como Josefo.

A figura de Tiago como importante por seu próprio mérito, encerra duas outras hipóteses distintas de Eisenman. O primeiro é a identificação de Tiago o Justo como o Mestre da Retidão de Qumran, uma situação que ele argumenta extensivamente em seu livro anterior The Dead Sea Scrolls and the First Christians. Ele alude à possibilidade dessa identificação várias vezes em James the Brother of Jesus. Claro que, mesmo nas leituras de Eisenman dos textos dos Manuscritos do Mar Morto, muito pouco é dito sobre Jesus. Suas leituras nas fontes originais de Tiago faz sentido com isso. Jesus não tinha ocupado uma centralidade criptológica no contexto original do "Essenismo" o qual posteriormente se fragmentou ao longo das linhas faccionais leais a Jesus (Cristianismo Ebionita), João Batista (Mandeanos) e Tiago o Justo (seita em Qumran). Para um cenário similar em solo gentio veja 1 Co 1:12.

A segunda audaciosa hipótese de Eisenman, relevante para este quadro de um Tiago mais ou menos independente, é que o nosso quadro nos evangelhos gregos parece largamente ser uma amálgama Paulino anti-halaka e episódios emprestados de várias figuras messiânicas e proféticas encontradas em Josefo.

Na entrada triunfal de Jesus em Jerusalém para "limpar" o Templo que se tornara um "antro de ladrões", como não reconhecer a entrada do messias Simão bar-Giora na cidade sob convite dos sacerdotes para "limpar" o Templo de agitadores subversivos rivais? E (como Eisenman e John Dominic Crossan ambos notaram) não seria a muda flagelação de Jesus pelos sacerdotes e pelo Procurador Romano para prever a destruição do Templo suspeitamente similar àquela de Jesus bem-Ananias? A humilhação de Jesus como um rei durante a visita a um "soberano" herodiano soa marcadamente como o incidente de Carabas reportado por Philo em Contra Flaco (Adversus Flaccus - novamente Crossan também notou isso), o qual também ecoa Barrabas. A tentativa pela multidão de forçar Pilatos a condenar Jesus através da ameaça de relatar sua delinqüência a César lembra a verdadeira alegação feita contra Pilatos feita por Samaritanos após ele liquidar partidários do Samaritano Taheb no Monte Gerizim, um feito que na verdade resultou numa chamada de Pilatos Roma. A execução de Jesus como Rei dos Judeus nos relembra a de Simão bar-Giora em Roma.

A espetada de lança para confirmar sua morte lembra aquela que se seguiu ao pacto de suicídio do rei revolucionário fugitivo espartano Cleomenes e seus colaboradores em Vidas, de Plutarco. Igualmente, os prodígios na crucificação de Jesus são exatamente aqueles da crucificação de Cleomenes os quais deixaram as mulheres espectadoras a aclamar o rei rebelde assassinado como filho dos deuses e a visitarem o local para adorá-lo. E como Eisenman mostra, mesmo as aparições de Jesus depois de três dias de luto de seus discípulos se encaixa nas do herói Niger em na Guerra Romana, o qual foi considerado morto por amigos e adversários, mas estava realmente se escondendo numa caverna por três dias enquanto seus enlutados discípulos procuravam por seu corpo, somente para serem "surpreendidos pela alegria" quando ele reaparece vivo de sua caverna!

Eisenman também nos lembra que sabemos menos do que supomos sobre a cronologia de Jesus. De acordo com evidências em Josefo devemos posicionar a execução de João Batista o mais tardar em 35-36 CE. E Epifânio afirma que o espiscopado de Tiago durou 24 anos após a partida de Jesus; partindo da data informada por Josefo para a morte de Tiago, a morte de Jesus seria colocada cerca de 38 CE. E os Atos de Pilatos, substituído pelo Evangelho Cristão de Nicodemus, datou a execução de Jesus em 21 CE. Irineu imagina Jesus morrendo aos 50 anos, sob Cláudio, enquanto o Talmude o tem crucificado sob Alexandre Janeau! E teria o Credo se importado em afirmar que Pilatos executou Jesus a não ser que alguém estivesse negando isso?

Igualmente chocante para muitos será a sugestão de Eisenman que o Saulo Herodiano de Josefo, ativo durante o cerco de Jerusalém, não era outro senão Saulo de Tarso! Como Hyam Maccoby, recentemente, nos lembrou (No The Mythmaker). Nossa assunção convencional de que Paulo morreu sob ordem de Nero permanece apenas no manifestadamente imperfeito legendário material em Clemente 1 (um resumo anônimo de peças exortatórias de datas desconhecidas) e nos Atos de Paulo. Nós realmente não sabemos o que pode ter acontecido a ele. Igualmente, Eisenman chega perto de identificar Simão Pedro com Simão bar-Cleofas, que é dito, como Simão Pedro, ter sido crucificado, mas bem depois do reinado de Nero. (Na verdade, Eisenman pensa que sem dúvida existia um Pedro distinto do Pilar Cefas, que a tradição referente aos dois tem sido confundida devido à similaridade entre os nomes).

Outro ponto no qual Maccoby e Eisenman coincidem é sua disposição de assumir seriamente a acusação Ebionita de que Paulo nunca foi, para início de conversa, realmente um judeu. Maccoby mostra quase extensivamente em seu Paul and Hellenism que as espístolas paulinas dão pouca evidência séria de que sejam escritas por um judeu, por suas explosões antisemitas, suas afinidades religiosas misteriosas, suas exegeses gnósticas e suas visões definitivamente não-judias do Torá como ônus. Eisenman afirma a evidência da influência Herodiana, alguma coisa que realmente não precisamos ler nas entrelinhas para ver, dado sua cidadania romana, seu parentesco com um dos Herodes e à casa de Aristóbulo. Se isso é o que os Ebionitas querem significar, que Paulo era tão judeu como Herodes o Grande a despeito de suas pretensões, então temos um cenário mais natural do que aquele que os Ebionitas acusam o que de outra forma implica: a idéia de Paulo como um tipo de Grego pagão entrando superficialmente e por fora no judaísmo. Como Eisenman observa, Paulo protesta de que é Hebreu, um Israelita, mesmo um Benjaminita, mas ele evita chamar-se de judeu! E Eisenman sugere que, dado o estranho fato que "Bela" aparece tanto como chefe do clã dos Benjamins como o primeiro rei Edomita. "Benjaminita" pode ter siso um tipo de eufemismo Herodiano para a sua oblíqua relação com o judaísmo.

Eisenman cita a nota do Talmude que os Rechabitas (=Naziritas) costumavam casar com as filhas do Sumo Sacerdote. Embora ela não faça a particular conexão Eu vou fazê-la, pois essa nota talmúdica me sugere uma nova e mais natural maneira de entender a acusação Ebionita de que Paulo se converteu ao judaísmo porque estava fascinado pela filha do Sumo Sacerdote e desejava bajular seu pai para ganhar sua mão. Agora, pense na narrativa dos Atos sobre o estratagema infeliz de Paulo, fingindo uma aliança Nazirita pagando para a purificação de quatro dos ativistas de Tiago (Atos 21:23-26) o quais se voltaram contra ele o que acabou conduzindo a desordens por "ativistas da Torá" de Tiago (não alguns judeus da Ásia Menor, como Lucas reportou) devido à tentativa de Paulo de profanar o Templo (atos 21:27-30). Como o uso de dinheiro para endossar o rito de purificação dos quatro homens parece ser uma variante da apresentação e rejeição da Coleta (Romanos 15:31), podemos suspeitar que a repulsa a Paulo como um pretenso Nazirita, essa decisiva rejeição da tentativa de Paulo de bajular o partido de Tiago tem sido figurativamente interpretada na propaganda posterior Tiaguista (i.e., Ebionita) como uma tentativa frustrada de Paulo fazer o que os Naziritas faziam, "esposar a filha do Sumo Sacerdote!" Porque escolher essa metáfora em particular para Paulo como um falso profeta? Devido às ressonâncias do "cortejador" como sedutor (de Israel), um enganador e falso profeta (cf., 2 Co 11:1-5 aonde Paulo redireciona precisamente a mesma acusação de volta aos "super-apóstolos" de Jerusalém).

Em relação à associação de Eisenman entre Paulo e o Pregador da Mentira que repudiava a Lei e traia a nova aliança, o inimigo do Mestre da Retidão de Qumran, uma tese que permeia inteiramente o livro, eu observarei apenas que as coincidências entre a retórica de Qumran e os vestígios de anti-paulinismo no Novo Testamento são no mínimo tão convincentes como aquelas convencionalmente aceitas como prova de Mateus alvejando Paulo em vários pontos de seu evangelho. Eisenman ameaça obscurecer seu próprio caso exagerando, referenciando muitas terminologias compartilhadas por Paulo e Qumran, algumas vezes utilizadas com sentidos diferentes, e insistindo que elas refletem mutuamente refutação e ridículo, mas os principais exemplos são impressionantes. E certamente a rotulação de Paulo, Tiago e Ananus nos Pergaminhos é muito mais natural que os palpites desordenados através dos quais especialistas convencionais em Qumran procuram identificar os principais personagens dos Pergaminhos com essa ou aquela figura Hasmoniana. (Admitidamente existem raras referências aqui e acolá para denominar figuras do primeiro século da EC, mas Eisenman não sustenta que cada simples pergaminho seja um produto do primeiro século da EC. Como poderia ele, quando seu argumento é que o "cristianismo" de Tiago foi um crescimento evolucionário a partir de uma espécie pré-existente "Essênia").

Uma questão que Eisenman deixa aberta é a verdadeira identidade existente atrás do fictício João "filho de Zebedeu". Quem poderia ter sido ele? Eu penso que temos um par de palpites. (E penso que vale a pena persegui-las dessa maneira demonstrando que a tese de Eisenman não se fia meramente sobre suas próprias impressões subjetivas, mas também em um método que pode ser assumido por outros obtendo seus próprios resultados. Uma vez que alguém absorve o talento, seu método se prova tão científico como qualquer um empregado sobre a forma e crítica redacional).

Primeiro, desde que Tomé/Tadeu é também chamado "Lebeu", uma aparente variante do título de Tiago "Oblias" (o Bastião = O Pilar), devemos supor que os herdeiros de Jesus e os Pilares eram sinônimos, o que de certa maneira torna o Pilar João um irmão de Jesus. (Eisenman supõe que deve ter existido um Pilar de nome João; é sua conexão com o Zé Ninguém "Tiago filho de Zebedeu" é que apresenta a dificuldade). Assim não há problemas em se aceitar o Pilar João como irmão real de Tiago, o Justo, de Judas Tomé e de Simão bar-Cleofas. Todos eram contados como Pilares ou Bastiões cuja presença em Jerusalém mantinha a cidade segura. E lembremos a curiosa questão com Tiago e João sendo cristianizados "Boanerges", que significa "filhos do trovão".

Mas porque João não aparece na lista de parentes em Marcos 6:3? Eu suspeito que seu lugar foi tomado por "Joset". A posição original de João como irmão de Jesus tem sido transferida para outro João, João Batista! Lucas torna o Batista tanto um sacerdote popular hereditário por linhagem como um "primo" de Jesus, da mesma maneira como uma tradição posterior faz Os irmão de Jesus Simão e Tiago seus primos. E um apocalipse anterior preservado no Chrysostom's Encomium on John the Baptist (ver E. A Wallace Budge's Coptic Apocrypha in the Dialect of Upper Egypt) é atribuído a "João o irmão do Senhor", implicando que talvez alguém, em algum lugar, lembrou-se da conexão original.

Mas e sobre o Joset de Marcos? Eisenman sugere que esse nome é simplesmente um disfarce substituindo ninguém mais do que Jesus, o que não é inconcebível. Mas eu sugeriria que Joset é uma reserve para João. O nome propriamente é um vestígio de uma lista que originalmente se leria, "Não é o carpinteiro, o filho de Maria e José, e irmão de Tiago, João, Judas e Simão"? Quando a vemos em Marcos 6 ela já foi misturada, Joset se tornando um dos irmãos e o pai de Jesus sendo retirado da lista. Mateus, aparentemente, pensou isso, assim ele tomou de Jesus o epíteto "o carpinteiro" e colocou-o sobre o pai de Jesus.

O livro de Eisenman James the Brother of Jesus frequentemente parece muito redundante e repetitivo, mas isso é o resultado dele ter mantido uma série de bolas no ar ao mesmo tempo. Ele tem que começar a explicar algo aqui, coloca aquilo em espera, vai para outra material que você precisa ligar ma primeira explicação, então retorna, vai para outra e outra então vota aos primeiros itens, relembra o leitor deles e finalmente monta todo o complexo mecanismo. Eisenman é como os cientistas da Renascença que tem que construir à mão todas as partes intricadas de uma invenção planejada. O livro é um oceano de teorias e abordagens instrutivas, uma maciça e profunda realização que deve abrir novas linhas na pesquisa do Novo Testamento.
Independente de acharmos que o retrato de Tiago apresentado por Eisenman seja convincente ou não deveríamos ficar gratos pela enchente de novas luzes que ele espalha em muitos assuntos incluindo as fontes dos Atos e seu método de redação.

Mais um Round: "LENDAS" BÍBLICAS X "COMPROVAÇÕES" ARQUEOLÓGICAS

Descobertas arqueológicas indicam que as histórias narradas no livro sagrado estão mais para lendas do que para verdades históricas.A disputa entre ciência e religião pela posse da verdade é antiga. No Ocidente, começou no século XVI, quando Galileu defendeu a tese de que a Terra não era o centro do Universo. Essa primeira batalha foi vencida pela Igreja, que obrigou Galileu a negar suas idéias para não ser queimado vivo. Mas o futuro dessa disputa seria diferente: pouco a pouco, a religião perdeu a autoridade para explicar o mundo.

Quando, no século XIX, Darwin lançou sua teoria sobre a evolução das espécies, contra a idéia da criação divina, o fosso entre ciência e religião já era intransponível. Nas últimas décadas, a Bíblia passou a ser alvo de ciências como a filologia, a arqueologia e a história. E o que os cientistas estão provando é que o livro mais importante da história é, em sua maior parte, uma coleção de mitos, lendas e propaganda religiosa.Das três ciências que estudam a Bíblia, a arqueologia tem se mostrado a mais promissora. "Ela é a única que fornece dados novos", diz o arqueólogo israelense Israel Finkelstein, diretor do Instituto de Arqueologia da Universidade de Tel Aviv e autor do livro The Bible Unearthed (A Bíblia desenterrada), publicado em 2002. A obra causou um choque em estudiosos de arqueologia bíblica, porque reduz os relatos do Antigo Testamento a uma coleção de lendas inventadas a partir do século VII a.C.

A ciência também analisa os textos do Novo Testamento, embora o campo de batalha aqui esteja muito mais na filologia (ciência que estuda uma língua, literatura, cultura ou civilização sob uma visão histórica, a partir de documentos escritos) Leia mais aqui. A arqueologia, nesse caso, serve mais para compor um cenário para os fatos do que para resolver contendas entre as várias teorias.

Bíblia x Arqueologia

A libertação do Egito.
O que diz a Bíblia -
No Êxodo, Deus escolhe Moisés como libertador do povo hebreu, envia as Dez Pragas e divide as águas do Mar Vermelho. No Monte Sinai, já a caminho da Terra prometida, Moisés recebe as tábuas dos Dez Mandamentos.

O que diz a Arqueologia -
Não há qualquer registro da existência de Moisés ou dos fatos descritos no Êxodo. Aliás, boa parte dos reinos e locais citados na sua jornada também não existiam no século XIII a.C. e só surgiriam 500 anos depois. A escolha do lugar que passou a ser conhecido como Monte Sinai ocorreu entre os séculos IV e VI d.C. por monges bizantinos.

O Dilúvio universal.

O que diz a Bíblia -
Segundo o Gênesis, um grande dilúvio destruiu a Terra. Noé e sua família, avisados, construíram uma arca para salvar um casal de cada espécie animal.

O que diz a Arqueologia -
Ruínas achadas no Mar Negro, próximo da Turquia, mostram que houve uma enchente catastrófica por volta de 5600 a.C. O nível do Mar Mediterrâneo subiu e irrompeu pelo Estreito de Bósforo, inundando a planície onde hoje está localizado o Mar Negro. Na época, a região era uma planície de terras férteis, com um lago. Sobreviventes dessa catástrofe migraram para a Mesopotâmia. Assim teria surgido a história do dilúvio no texto sumério de Gilgamesh. Os hebreus conheceram a história quando estiveram cativos na Babilônia.

A conquista de Canaã.

O que diz a Bíblia -
Depois da libertação do Egito, Moisés conduziu os hebreus até a entrada da Terra Prometida. Ali, os israelitas enfrentam os nativos canaanitas com uma ajuda divina: ao toque de suas trombetas, as muralhas de Jericó desabam miraculosamente.

O que diz a Arqueologia -
Jericó nem tinha muralhas nesse período. Na verdade, a tomada de Canaã pelos hebreus acontece de forma gradual, quando as tribos hebraicas trocam o pastoreio pela agricultura dos vales férteis. A história da conquista foi escrita durante o século VII d.C., mais de 500 anos depois da chegada dos hebreus aos vales cananeus.

A saga do rei David.

O que diz a Bíblia -
Após derrotar Golias, David firma-se como rei dos hebreus, submetendo primeiro a tribo de Judá e, posteriormente, todas as 11 tribos israelitas.

O que diz a Arqueologia -
Em 1993 foi encontrado uma pedra de basalto datada do século IX a.C. com escritos que mencionam a existência de um rei hebreu chamado David. Mas não há qualquer evidência das conquistas de David narradas na Bíblia. David pode ter sido o líder de um grupo de rebeldes vindos de camadas pobres dos cananeus que, nessa época, atacava as cidades do sul da Palestina.

A guerra assíria.

O que diz a Bíblia -
Por volta de 700 a.C., o rei Ezequias, de Judá, revolta-se contra os assírios. Judá é atacada e a cidade de Lachish é completamente destruída.

O que diz a Arqueologia -
Os fatos são narrados com precisão histórica. Achados arqueológicos permitiram reconstruir o cenário da batalha descrita na Bíblia. Além disso, a destruição de Lachish pelos assírios foi expressa num relevo em Nínive, a capital assíria, e as imagens batem com a narrativa bíblica.

Império de Salomão.

O que diz a Bíblia -
Salomão sucedeu a seu pai, David, fez alianças com reinos vizinhos e construiu o Templo de Jerusalém. Em seu reinado, os israelitas alcançaram opulência e poder. Salomão construiu palácios e fortalezas em Jerusalém, Megiddo, Hazon e Gezer.

O que diz a Arqueologia -
Não há sinal de arquitetura monumental em Jerusalém ou em qualquer das outras cidades citadas. Tudo leva a crer que Salomão, como David, eram apenas pequenos líderes tribais de Judá, um Estado pobre e politicamente inexpressivo.

Desastre ecológico no Mundo Antigo?
As dez pragas que Deus teria enviado para salvar os judeus da escravidão no Egito podem ser um eco fantasiado de uma catástrofe ecológica que realmente aconteceu no Egito. Veja abaixo quais são as pestes e como a ciência explica cada uma delas.

1. As águas do Nilo se tingem de sangue.
Uma mudança climática repentina esquenta a água do Nilo e provoca a reprodução descontrolada de Pfiesteria, uma alga que provoca hemorragias nos peixes, matando-os e intoxicando as águas com sangue.

2. Rãs cobrem a terra.
A intoxicação das águas faz rãs e sapos fugirem, espalhando-se por toda a região.

3. Mosquitos atormentam homens e animais.
A morte dos sapos produz uma superpopulação de insetos, inclusive do terrível maruim, um pequeno mosquito de picada dolorida.

4. Moscas escurecem o ar e atacam homens e animais.
Outro tipo de inseto, a mosca dos estábulos, transforma-se em praga, atacando todo tipo de mamífero que encontra.

5. Uma peste atinge os animais.
A peste eqüina africana e a peste da língua azul são doenças transmitidas pelo maruim e que atingem mamíferos.

6. Pústulas cobrem homens e animais.
O mormo, uma doença eqüina que também ataca o homem, é transmitida pela mosca dos estábulos. Ela produz úlceras na pele.

7. Chuva de granizo destrói plantações.
O granizo pode cair nas regiões desérticas do Mediterrâneo, embora seja um fenômeno relativamente raro.

8. Nuvem de gafanhotos ataca plantações.
Os gafanhotos também são uma praga conhecida na região.

9. Escuridão encobre o Sol por três dias.
Uma tempestade de areia pode durar dias e é capaz de encobrir completamente a luz do Sol.

10. Os primogênitos de homens e animais morrem.
Cereais guardados em celeiros ainda úmidos podem desenvolver um bolor altamente tóxico. Como no Egito antigo os primogênitos (tanto humanos quanto dos animais) tinham a precedência na alimentação, em tempos de escassez eles foram os primeiros a ser fatalmente intoxicados pelo bolor.

Sobre Jesus.
Pescador de homens.
O que diz a Bíblia -
Depois de ser batizado por João Batista e sofrer as tentações no deserto, Jesus foi para a Galiléia, onde recrutou seus primeiros discípulos entre os pescadores do lago Tiberíades. Escolheu viver com seus seguidores em Cafarnaum, uma pequena vila de pescadores.

O que diz a Arqueologia -
Cafarnaum existiu e era um povoado com cerca de 1 500 moradores na época em que Jesus viveu. Escavações encontraram os restos de uma casa que pode ter sido de um dos discípulos, provavelmente de Simão Pedro, o primeiro a ser recrutado por Jesus.

Infância desconhecida.

O que diz a Bíblia -
Não há quase nada sobre a infância e a adolescência de Jesus, com exceção de uma passagem em que, aos 12 anos, numa visita ao Templo de Jerusalém durante a Páscoa, seus pais o encontram discutindo teologia com os sábios nas escadarias do templo de Jerusalém.

O que diz a Arqueologia -
Escavações recentes revelaram que, ao mesmo tempo em que Jesus crescia em Nazaré, bem próximo era construída a monumental cidade de Séfores, idealizada pelo rei hebreu Herodes Antibas para ser a capital da Galiléia. Séfores estava a uma hora a pé de Nazaré e é muito provável que José e Jesus tenham trabalhado como carpinteiros em sua construção. Em Séfores, Jesus teria visto a família real, a opulência das famílias dos sacerdotes do Templo de Jerusalém e, provavelmente, teve contato com a cultura dos hebreus helenizados.

Jesus de Nazaré condenado à Morte, acusação: MAGIA

Morte e vida “severina” de Jesus: um camponês galileu na “cruz” da história
A tese que quero defender hoje é simples, e ao mesmo tempo, marcada por uma certa ousadia hermenêutica, que como toda ousadia, e toda hermenêutica, precisa e muito da benevolência dos ouvintes.

A tese é que, se olharmos para a narrativa do julgamento e morte de Jesus, existem evidentes sinais de que, em última instância, é a magia dele o motivo mais importante de acusação e condenação à morte.

Mas antes de mergulhar propriamente na tese que proponho, me sejam permitidas 3 (três) premissas, à moda de introdução.

A primeira diz respeito, como não podia ser diferente, ao título de minha fala, e à sua referência ao celebre poema de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina:
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos

1 Este texto foi originalmente apresentado no I Seminário Internacional Jesus Histórico, no Rio de Janeiro, 16-18 de Outubro de 2007, Universidade Federal do Rio de Janeiro. E, por sua vez, é uma re-elaboração de um texto anteriormente publicado no livro CHEVITARESE, André & CORNELLI, Gabriele & SELVATICI Monica. Jesus de Nazaré: uma outra história. São Paulo, FAPESP / Annablume, 2006.

iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia

A idéia espero possa ser compreendida da maneira que eu gostaria, isto é: a narrativa da morte de Jesus é aproximável àquela do retirante do poema, num contexto de extrema pobreza, onde se “morre de velhice antes dos trinta”, e “de fome um pouco todo dia”. É neste contexto, que é tanto antigo e galileu, como escandalosamente contemporâneo, que a narrativa da morte do mago e curandeiro Jesus de Nazaré assume um sentido mais próprio. Defendo assim, contra qualquer tentativa de uma historiografia positivista e presentista, que o lugar inicial da pesquisa, a declaração de intenções, a hermenêutica é necessária à honestidade da mesma. É aqui, portanto, in terra brasilis, que estas próximas palavras encontram seu lugar e seu mais profundo sentido.

Uma segunda premissa, diz respeito à intuição fundamental do texto, que me veio de minha frequentação tanto dos livros do aqui presente Prof. Dominic Crossan, como, de maneira mais incisiva, das pesquisas de um eminente biblista, infelizmente pouco trabalhado por aqui, que é Morton Smith. Falecido em 1991, tem sua obra reeditada pelo discípulo Shaye Cohen. Foi professor da Columbia University por muitos anos, e antes, nos anos ´40, foi aluno de Cadbury (de Novo Testamento), de Wolfson (Judaísmo) e de Nock (religiões greco-romanas), sempre em Harvard. E aluno de Gershom Sholem (misticismo judaico) em Jerusalém. Seu livro talvez mais célebre é Jesus, the Magician. E a este livro extraordinário, devo muito.

Uma terceira premissa tem a ver com a compreensão da magia que defendo aqui.

E para isso, não encontro melhor ponto de partida que uma citação do Prof. Crossan:
"A magia está para a religião assim como o banditismo está para a política. Enquanto o banditismo contesta a legitimidade do poder político, a magia contestaa do poder espiritual. Tanto no mundo antigo quanto no moderno pode-se fazer uma distinção entre magia e religião através de definições prescritivas e políticas, mas não através de descrições neutras e objetivas. A religião é magia oficial e aprovada; a magia é uma religião extra-oficial e censurada."

Não acrescento mais. A questão parece-me clara. E fecha o círculo das três premissas.

Vamos à exegese do bloco narrativo da paixão.

“Banca o profeta!”

Da mesma forma que Herodes com relação a João Batista, as autoridades religiosas de Jerusalém temem uma reação popular contra a prisão de Jesus:
[Os sumos sacerdotes e os fariseus] procuravam prendê-lo, mas tiveram medo das multidões (evfobh,qhsan tou.j o;clouj), pois elas o consideravam como profeta (profh,thn).
Aqui o termo profhth,j, com o qual Jesus é nomeado pelas multidões, é significativo.

De qual profecia está se falando neste caso? Com que tradição profética Jesus é identificado pelas multidões? Como veremos em detalhes mais adiante, o conjunto das tradições sobre o Jesus histórico parece indicar que os modelos proféticos do galileu Jesus são Elias e Eliseu, profetas da tradição popular do Norte, magos e taumaturgos.

Nos escárnios dirigidos contra Jesus, preso, pelos guardas do Sinédrio, volta o tema da profecia:
Alguns puseram-se a cuspir nele, a velar-lhe o rosto, a dar pancadas e dizer-lhe: “Banca o profeta!” (profh,teuson).
neste sentido a aguda comparação de J. D. Crossan, O Jesus Histórico, pp 174-177.

Na versão mateana:
Então eles lhe cuspiram no rosto e lhe deram pancadas; outros o esbofetearam. Disseram eles: “Banca o profeta (profh,teuson) para nós, Messias: quem foi que te bateu?”.

É subentendida, em ambas as versões dos escárnios, a fama de Jesus como profeta adivinho. A profecia que lhe é cobrada neste momento é a da adivinhação.

Não parece um detalhe privado de significado o fato de Mateus citar o escárnio quem foi que te bateu, dirigido contra Jesus, sem preparar e explicar isso narrativamente com o encobrimento do rosto de Jesus, como na versão marcana. Se este pormenor deve-se provavelmente a um esquecimento de Mateus, confirmando mais uma vez sua dependência em relação a Marcos, é um fato que a expressão banca o profeta! – e todo o sentido de escárnio com relação às reais capacidades proféticas de Jesus – não é esquecida.

O que esta memória parece indicar é que a profecia de Jesus deveria ser compreendida pelos contemporâneos como adivinhação ou prognóstico.

A acusação pela qual Jesus é levado até o governador romano Pilatos é a seguinte:
Se este indivíduo não tivesse praticado o mal (kako.n poiw/n), porventura o entregaríamos a ti?9

Para um estudo sistemático dos escárnios contra Jesus, Raymond E. Brown (The Death of the Messiah: a Commentary on the Passion Narratives in the Four Gospels. New York, Doubleday, 1994, pp.568-586; 863-877). O autor pretende fundamentalmente distinguir os diferentes motivos dos escárnios dos judeus (por ser um falso profeta) e dos romanos (por ser um pretenso “rei dos judeus”), cf. p. 569. A distinção de R. Brown confirmaria assim a nossa suspeita com relação ao fato de que, para os interesses do judaísmo oficial, é a imagem de um Jesus “falso profeta” a que mais incomoda. Enquanto o problema de Jesus como “rei dos judeus”, que perpassa também todas as narrativas da paixão, seria mais uma representação da acusação do poder romano. A acusação de praticar o mal é, claramente, uma acusação de magia.

A prisão de Jesus no horto das Oliveiras, segundo a versão lucana, acontece num clima de demonstração de poderes mágicos: Jesus cura a orelha do servo do Sumo Sacerdote decepada por um de seus discípulos.

Ao longo das narrações da assim chamada paixão de Jesus, emergem vários indícios, nos detalhes esquecidos e nas contradições da forte armação querigmática, de que a acusação contra ele está ligada de alguma forma à sua prática mágica.

“Destruirei este templo”
Um dos temas recorrentes nas narrativas de acusação é o de Jesus ter prenunciado que iria destruir o templo. Uma breve comparação entre as versões marcana e mateana (Lucas não recebe esta acusação) mostra um detalhe significativo:

Marcos e Mateus

Nós o ouvimos dizer: eu destruirei este templo (nao.n tou/ton) feito por mãos de homem, e, em três dias, construirei outro, que não será feito por mãos de homem (avceiropoi,hton).12

Este homem disse: “Posso destruir o santuário de deus (to.n nao.n tou/ qeou) e reconstruí-lo em três dias”.

Lc 22, 51: mas Jesus tomou a palavra e disse: “Deixai fazer, até isso”. E tocando-lhe a orelha (a`ya,menoj tou/ wvti,ou), curou-o (iva,sato auvto,n))

Para uma discussão mais aprofundada sobre essa complexa tradição cf. Raymond E. Brown, The Death of the Messiah, pp. 264-293. Ainda que a maioria dos comentadores não reconheça nenhuma probabilidade histórica numa tradição tão bizarra como a do corte da orelha do servo, chama atenção o comentário naïf de Latourelle:
“Se a história dessa cura fosse um acidente isolado no evangelho, eu teria problemas em aceitá-la. Porém, no contexto da vida de Jesus, creio apenas que não é impossível”.

Mesmo que para a economia narrativa do julgamento de Jesus essa acusação não seja decisiva (pois, comenta Marcos, os acusadores não concordavam em seu testemunho), parece sê-lo para a compreensão de qual podia ser o incômodo que a figura de Jesus criava para as autoridades religiosas de Jerusalém.

Nesse sentido, a versão originária marcana, da qual com toda probabilidade Mateus depende, parece representar de maneira mais viva as palavras de um homem divino galileu na frente do templo de Jerusalém.

Enquanto em Mateus o templo é chamado de to.n nao.n tou/ qeou, “o” templo de deus, em Marcos o templo é nao.n tou/ton, este templo aqui. Se para Mateus o importante é deixar claro que Jesus afirma ter eventualmente o poder sobre o templo de Jerusalém, reconhecido como templo de deus, para Marcos a questão é mais profunda: Jesus mostra a intenção clara de construir um novo templo, diferente deste aqui. E a diferença está no termo avceiropoi,hton, não feito por mãos de homens.

Essa afirmação de Jesus em Marcos, pela qual de fato está sendo acusado, remete diretamente para um paralelo de extremo interesse na obra enumerada entre as obras apocalípticas intertestamentárias, e que recebeu o nome de Testamento de Salomão.

Narra-se aqui a construção do templo de Jerusalém pelas mãos dos demônios, sujeitados pelo poder do anel de Salomão. A obra, repleta de tradições ligadas à magia popular, como simpatias e palavras mágicas, na linha da literatura dos PMG, deve ser considerada como um paralelo histórico-literário central para entender a origem hermenêutica do tema da destruição do templo e da construção de um templo avceiropoi,hton.

Se entrarmos diretamente na discussão textual sobre o Testamento de Salomão, a presença de temas apocalípticos e mágicos na narração da construção do templo pelos demônios aponta para uma tradição de origem israelítica e popular, provavelmente galiléia.

O fato de que Lucas não recebe essa tradição não significa que ele não compreenda esse conflito. O mesmo é de fato remetido para Atos, na boca de um outro condenado, Estevão: “O Altíssimo não habita mansões construídas pela mão dos homens”

Assim, se a afirmação da destruição do templo caberia muito bem na boca de um profeta-santo Galileu,16 mais ainda deveria estar entre as tradições do Jesus histórico a intenção da construção de um templo avceiropoi,hton¸ isto é, fruto da magia xamânica, como no caso de Salomão.

Dessa forma, a acusação contra Jesus por ter afirmado querer destruir e reconstruir o templo, antes e mais do que uma acusação de rebeldia político-religiosa, seria uma acusação de xamanismo e prática mágica.

Interessante notar que o mesmo tema reaparece novamente nos escárnios atribuídos por Marcos e Mateus a quem passava aos pés do crucificado.

Os transeuntes o insultavam, meneando a cabeça, e diziam: “Olá, tu que destróis o templo e o reconstróis em três dias”.

Os transeuntes o insultavam, meneando a cabeça, e dizendo: “Tu que destróis o templo e o reconstróis em três dias...”.

Jesus é reconhecido aqui como “aquele que disse que ia destruir o templo e reconstruí-lo em três dias”. Aparentemente, um indício de que a tradição devia ser muito conhecida. O escárnio acontece por um motivo muito simples: não conseguir demonstrar em próprio favor seus poderes mágicos. Não consegue se libertar, como irá construir o templo em três dias?

"Filho de deus”

Para o termo Geza Vermes, Jesus, o judeu, pp. 64-86. Com esta terminologia Geza Vermes quer traduzir o termo hassid. O termo hassid, porém, não me parece absolutamente adequado, por ser característica central dos hassidim a obediência à Lei. Coisa que não parece estar absolutamente entre as prioridades de figuras religiosas outsiders como a de Jesus.

Segundo a estrutura interna das narrativas sinóticas da paixão, a acusação decisiva, da qual depende a condenação de Jesus à morte, é a de ter se autoproclamado “filho de deus”.

Na versão marcana:
O sumo sacerdote o interrogava, dizendo: “És tu o messias, filho de deus bendito? (Su. ei= o` Cristo.j o` ui`o.j tou/ euvloghtou/*)”. Jesus disse: “Eu sou (VEgw, eivmi), e vereis o Filho do homem assentado à direita do Todo-poderoso e vindo com as nuvens do céu”.

A resposta de Jesus tem o tom de uma auto-revelação. Proclamando-se “filho de deus” e citando o Salmo 110, 1 (em destaque na tradução acima) Jesus assina sua condenação. De fato:
O sumo sacerdote rasgou as vestes e disse: “Que necessidade temos ainda de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia (blasfhmi,a). Que vos parece?”. E todos o condenaram como digno de morte.

Por que exatamente esta expressão, filho de deus, na boca de Jesus, é considerada uma blasfhmi,a e é causa direta de sua condenação a morte?

Primeiramente, é preciso notar o seguinte: a expressão filho de deus não é muito comum no judaísmo como referência à figura do Messias. Nos mesmos sinóticos a expressão aparece normalmente no contexto da atividade taumatúrgica de Jesus. Isto leva autores como Morton Smith e Georg Luck a sugerir que a expressão “filho de deus”, portanto, estaria ligada ao âmbito da magia.

Mateus e Lucas resolvem ambos deixar a auto-proclamação de Jesus na ambigüidade: “Tu o dizes” – é a resposta de Jesus em Mt 26, 64. Segundo a Bíblia TEB Jesus exprime-se com uma reserva que deixa os interlocutores em face à sua própria pergunta (TEB, Mc 14, 62: nota o).

De fato, são especialmente os demônios que, nos sinóticos, chamam Jesus de filho de deus. Os seus discípulos o reconhecem como tal depois de seus milagres. Já os adversários recusam tal título, pois não se aplicaria àquele que consideravam como um mago e feiticeiro, possuído por um espírito impuro.

Particularmente significativo é o uso que Marcos faz da expressão. A proclamação de Jesus como filho de deus é mantida em segredo, a ser revelado somente nesta confrontação final com os sumos sacerdotes. A expressão aparece somente cinco vezes em todo o evangelho. Excluindo o cabeçalho (1, 1), a primeira vez que o termo aparece é na boca dos demônios em 3, 11, no bloco de tradições sobre a atividade mágica de Jesus que, num crescendo de intensidade, apresenta as reações à mesma atividade das diversas categorias presentes. Portanto a proclamação de Jesus como filho de deus está na boca dos demônios, como aquela de ter Beelzebul está na boca dos inimigos. Tanto os demônios como os inimigos parecem reconhecer sua força mágica, sua identidade de filho de deus.

E se no julgamento, em Mc 14, 61, é na boca do sumo sacerdote que a expressão filho de deus é colocada, a última vez que aparece é na boca do centurião romano, em Mc 15, 39.

Jesus, portanto, é proclamado filho de deus pelos demônios, pelo sumo sacerdote e por um soldado romano. Os três são paradigmas de poderosos inimigos do povo, na perspectiva galiléia e popular marcana.24

A confirmação desse sentido mágico da expressão “filho de deus”, no interior da literatura mágica helenística, a expressão “filho do deus vivo” era um dos títulos mais usados no politeísmo oriental e greco-romano, autoridades, heróis e milagreiros eram chamados de “filho(s) de deus.

Mesmo na literatura judaica bíblica ou extra-bíblica anterior ou contemporânea ao Novo Testamento, o “filho de deus” como título para um ser humano é extremamente raro e, de todo modo, limitado a uma obscura passagem dos Rolos do Mar Morto”). O trecho obscuro de Qumram ao qual o autor se refere é 4Q246. O mesmo vale para Mc 5, 7.

Considerando esta relação estreita entre a proclamação da figura de Jesus e seus milagres, Theissen fala de um arco aretológico em Marcos: “All the small units and the overall structure of the gospel can come together at this one point. Put in form of critical terms, wonder and acclamation motifs, together with the contrasting motif of secrecy, are structural motifs of overarching composition in Mark” (The Miracle Stories…, p. 212.

Tradução:
“Todas as pequenas unidades e a estrutura geral do evangelho encontram-se neste ponto. Colocados de forma crítica, os motivos de milagre e aclamação, juntamente com o motivo contrastante do segredo, constituem motivos estruturais do arco redacional de Marcos”). Usados, uma das forças mágicas mais poderosas. Há, nesse sentido, um interessantíssimo paralelo entre a iniciação xamânica de Jesus no batismo e os PMG. Aqui a descida do espírito é seguida por uma proclamação normalmente considerada como uma investidura messiânica: Ou-to,j evstin o` ui`o,j mou..., este é o meu filho."

Segundo Bultmann, a tradição do batismo deve ser muito antiga, por causa de sua inclusão tanto em Marcos como em João. Contradiria a teologia dos dois evangelhos, sendo assim preservada por eles como um fóssil inconsistente. Por outro lado, a tradição pode ser considerada como uma apologia da magia de Jesus: ele é um homem divino, um xamã, portanto está possuído (não tem como negá-lo!), mas pelo espírito santo de deus, e não por um espírito impuro.

Usando a terminologia acima, portanto, Jesus é filho, sim, mas de deus

Cabe notar que se a tradição do batismo é antiga, a acusação contra Jesus, formulada no Sinédrio pelo sumo sacerdote, nos termos acima analisados, de “ser filho de deus”, deve sê-lo ainda mais. Pois a apologia, logicamente, segue sempre a acusação, nunca a precede.

Para concluir o círculo comparativo, é preciso destacar o fato de exemplos de uma relação íntima do xamã com seu deus-pai estarem presentes até na literatura rabínica: as duas únicas vezes em que o termo Abbá, pai, é referido a deus em toda a literatura rabínica encontram-se no Talmude da Babilônia. Ambas as referências estão em tradições ligadas à figura de Honi há-Meaggel (o traçador dos círculos).

O contexto talmúdico é de magia, revelando inclusive, na figura de Honi, a atitude de um filho mimado por um pai que faz tudo o que o filho pede, indicando assim uma relação toda privilegiada e quase que de De Honi ha-Meaggel (o traçador de círculos) tratam duas fontes: a Mixná (Taanit) e uma memória de Flávio Josefo (que prefere chamá-lo de Onias).

A força, a capacidade especial atribuída a Honi é aquela de fazer chover. Esta habilidade chama diretamente à memória a figura de Elias. Aquele de Honi é o único milagre registrado na Mixná, código oficial da lei rabínica, composto na Palestina em torno do ano 200 d. C. Segundo o Talmude da Babilônia Honi se comportava diante de deus como um filho petulante e mimado: “Assim ele lhe disse: Pai [Abba], banha-me em água morna [e ele obedece], lava-me em água fria [e ele obedece], dá-me nozes, amêndoas, pêssegos e romãs, e ele lhe deu tudo”.

Controle ou coação da vontade do pai pelo filho. Algo pelo qual a magia é normalmente condenada.

A mesma expressão aramaica abbá é colocada na boca de Jesus no Getsêmani por Marcos:
“Abbá, tudo te é possível, afasta de mim este cálice!”.

Segundo Raymond Brown seria esta a única expressão aramaica transliterada pelos evangelhos e, como no caso de Honi acima citado, a expressão deveria ser a maneira mais comum pela qual uma criança dirigia-se ao seu pai.

A trama redacional de Marcos e a construção da tradição do batismo com relação à definição de Jesus como filho de deus apontam, mais uma vez, para uma tentativa de defender a figura de Jesus das acusações de magia. Desde sua iniciação mística no batismo até o julgamento, Jesus é filho de deus, não um mago ou charlatão.

Delito religioso

A maioria dos estudiosos compreende como causa da morte de Jesus a complexa trama político-religiosa na qual o itinerante galileu e seu movimento haviam se embatido nos anos 30 do I século, entre movimentos messiânicos-milenaristas e ocupação romana.

J. P. Meier de fato afirma:
É significativo que quando examinamos as várias tradições do julgamento de Jesus, e as diversas acusações assacadas contra ele, praticamente não há indicações de os milagres terem sido a razão principal de sua condenação e execução. (...) Quando ao final chegamos à prisão e ao julgamento de Jesus, nada nos diz que os milagres foram um motivo de sua execução. E chega ao ponto de quase reclamar dos evangelhos, por haver nelesum curioso senso de desconexão entre um elemento importante da narrativa do ministério público de Jesus (ou seja, os milagres, às vezes desencadeando planos para matar Jesus) e as acusações contra ele em seu julgamento.

Até mesmo Morton Smith, que traça um coerente perfíl de Jesus mago em sua já citada obra principal, Jesus, the Magician, não considera as acusações de magia como centrais frente às tradições do julgamento e: Enquanto eles todos [os sinóticos] relatam que sua pretensão de ser um (filho de) deus foi um dos fatores de sua perseguição, e João reporta que ele também foi acusado de magia na frente de Pilatos (18, 30), estas não parecem ter sido as acusações decisivas. A afirmação de João segundo a qual os sacerdotes de Jerusalém foram motivados, primeiramente, pelo medo de um levante messiânico (11, 48ss.), e a concordância de todos os evangelhos de que Jesus foi morto como um pretenso “rei dos judeus”, não deixa dúvidas sobre as causas da crucifixão.

Mas é exatamente a indicação, na cruz romana, de Jesus como “rei dos judeus” – após todos os indícios de acusação de magia até aqui levantados – que parece, ao contrário, significativa, e me faz tentar aqui um certo distanciamento da interpretação majoritária. Parece extremamente relevante, para compreender o motivo da acusação contra Jesus, focalizar a atenção sobre a atitude de Pilatos. Jesus lhe é apresentado como o “rei dos judeus”, e, portanto, fundamentalmente, como um agitador político ou um profeta milenarista, à maneira de muitos outros naquela época. Mas, após o interrogatório:

Pilatos disse aos chefes dos sacerdotes e às multidões: não encontro neste homem motivo algum de condenação.

Se é verdade que os paralelos de Mateus e Marcos não registram essa fala, mas simplesmente que Pilatos ficou muito impressionado por ele, na frente da multidão este não consegue realmente ver algum delito nas ações de Jesus, e pergunta: Que mal fez ele? (ti, ga.r kako.n evpoi,hsen*).

A culpa de Jesus não podia ser diretamente política, pois Pilatos, que representa o maior poder político na região, não consegue entender a atividade de Jesus como perigosa para os interesses romanos.

Outros interesses e poderes, os do Sinédrio, por exemplo, deviam se sentir ameaçados pelos poderes de Jesus. A ameaça não devia ser propriamente política, pois ao contrário teria atingido indiretamente Pilatos.

Qual tipo de ameaça não atingiria, de fato, os romanos? Uma ameaça interna ao sistema religioso judaico, provavelmente. Uma ameaça de heresia, é possível. Ou a do grande inimigo de todo sistema religioso estabelecido: a magia popular, extra-oficial.

Sobre agitadores políticos e profetas milenaristas: cf. Horsley & Hanson. Bandidos, profetas e messias: movimentos populares no tempo de Jesus. São Paulo, Paulus, 1995.

Sobre a figura histórica do governador Pilatos, cf. Helen K. Bond. Pontius Pilate in History and Interpretation. Cambridge, Cambridge University Press, 1998.

A possível confirmação disso é o fato que a acusação contra Jesus teria partido das autoridades judaicas oficiais. Sobre isso tanto os quatro evangelhos como o Testimonium Flavianum parecem concordar. Cf. J. P. Meier. Um judeu marginal. Vol. II, III, pp. 146-147. O “problema Jesus” – usando uma expressão do mesmo Meier – devia ser compreendido muito melhor pelas autoridades judaicas oficiais do que pelo poder romano.

O que foi falado acima com relação à distinção de Raymond Brown entre os motivos dos escárnios dos judeus e dos romanos. Não quero, porém, de maneira alguma negar nem a relevância política do movimento de Jesus nem o interesse lucano em salvar os romanos. Cf. Klaus Wengst. Pax Romana: pretensão e realidade. Paulinas, São Paulo, 1991.

De fato, quando Jesus é enviado para Herodes, por estar sob a jurisdição deste mesmo sendo galileu, lemos:
Ao ver Jesus, Herodes se alegrou grandemente, pois fazia muito tempo que desejava vê-lo, por causa do que ouvia dizer de Jesus, e esperava vê-lo fazer algum milagre (ti shmei/on).

A expectativa por milagres por parte de Herodes, tetrarca da Galiléia, e portanto presumivelmente bem informado sobre o nazareno itinerante Jesus, deve ser considerada como um sinal da fama deste: o que Herodes ouvira dizer sobre Jesus era, fundamentalmente, dos seus milagres.

No coração do processo de julgamento de Jesus, mais um indício precioso sobre qual seria a grande fama do homem divino Jesus.

A fama de milagreiro de Jesus aparece novamente na cruz. Jesus é mais uma vez escarnecido, sendo desafiado a demonstrar seus poderes mágicos:
“Salva- te a ti mesmo, descendo da cruz!”(...) Igualmente, os sumos sacerdotes e os escribas escarneciam uns com os outros: “Ele salvou os outros, e não pode salvar a si mesmo!”.

Jesus é desafiado a usar seus poderes mágicos, já demonstrados salvando os outros (isto é, curando, ressuscitando etc.), salvando a si mesmo e descendo milagrosamente da cruz. Jesus é desafiado a provar que seus poderes não são uma farsa ou charlatanismo. Mais uma vez, no ápice da condenação de Jesus, um sinal da popularidade de sua magia.

39 Lc 23, 8. Sendo este o único testemunho do encontro de Jesus preso com Herodes (Mt e Mc não recebem esta suposta tradição) é provável que o encontro com o terceiro poder da região, depois de Pilatos e o Sinédrio, obedeça mais aos interesses teológico-querigmáticos de Lucas, como também demonstraria a paralela citação em At 4, 27. De toda forma, a expectativa de milagres de Herodes pode ser considerada indicativa da fama geral (e talvez especificamente galiléia) do homem divino Jesus.

“Eloi, Eloi, lamá sabactáni”

Para concluir esta análise das narrativas de julgamento e morte de Jesus, é extremamente significativa a confusão que os que estão assistindo a sua agonia fazem quanto à interpretação do grito de Jesus antes de morrer na cruz.

Na versão marcana:

E às três horas, Jesus gritou com voz forte “Eloi, Eloi, lamá sabactáni”, que significa: “Meu deus, meu deus, por que me abandonaste?”. Ao ouvi-lo, alguns dos que estavam diziam: “Está chamando Elias!” (...) “Esperai, vejamos se Elias virá tirá-lo daí”.41

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

André Torres Queiruga e [A ressurreição sem milagre]

A ressurreição sem o ressuscitado
Para o idealismo moderno, a ressurreição nasce da idealização, póstuma, de Jesus morto. A glória nasce de uma derrota. Dessa forma, o relato evangélico é virado de ponta-cabeça já que, segundo ele, a fé nasce da percepção real do Ressuscitado, d'Àquele que venceu a morte.

A ressurreição sem milagre
"A ressurreição não apenas não é um milagre, mas não é nem mesmo um acontecimento empírico. E a fé na ressurreição não depende de se aceitar ou recusar a realidade histórica do sepulcro vazio.” É o que diz o trecho destacado na capa do livro de André Torres Queiruga, La ressurrezione senza miracolo [A ressurreição sem milagre]1. A obra é interessante, na medida em que é a expressão completa de uma tendência que, depois de Bultmann, se tornou hegemônica nos estudos exegéticos e teológicos: a tendência segundo a qual a ressurreição é uma pedra errante, um pedregulho perdido que a crítica tem de remover para tornar compreensível, ao homem moderno, o conteúdo da fé cristã.

O Cristo ressuscitado de Piero della Francesca ou A incredulidade de Tomé de Caravaggio pertencem à arte do passado. No futuro, já não se poderá fazer uma leitura realista da ressurreição, só se admitirá a leitura “simbólica”. Numa singular reviravolta dos processos cognitivos, a fé não pressupõe o sepulcro vazio e a experiência tangível do Ressuscitado; ao contrário, é o Cristo ressuscitado que só “aparece” como tal na precompreensão da fé.

Dessa forma, uma parte notável da literatura teológica – aquela que considera óbvia a oposição entre o “Cristo histórico” e o “Cristo da fé” – abandona a posição realista e se encontra, necessariamente, com o ponto de vista idealista. Assim, não é a realidade, aquilo que concretamente acontece, que gera e explica o “convencimento”; ao contrário, é a “visão do mundo”, a fé preliminar, que torna evidentes, “visíveis”, fatos que, sem ela, não subsistem. A fé, privada de qualquer razoabilidade, não é mais “juízo”, mas pré-juízo que “vê” independentemente da realidade, como lugar de uma experiência “mística”, afetiva, idealizante.

A fé, graças à mediação imaginativa, idealiza o seu objeto. No caso do cristianismo, isso significa que Cristo “aparece” como ressuscitado na fé, graças à fé. Fora da fé, só existe o mistério de um túmulo vazio, de um cadáver que desapareceu. Problema este que não interessa à fé, para a qual o que importa é tão-somente o Cristo ideal, divino. A ressurreição não precisa da carne de Jesus de Nazaré, da sua pessoa individual; é suficiente a idéia, o símbolo do Homem-Deus. A fé vive da idéia, não da realidade.

Esse pressuposto, verdadeiro a priori conceitual, fica evidente no texto de Torres Queiruga. Para o filósofo de Santiago de Compostela, as aquisições “irreversíveis” da exegese e da cultura atual fazem com que não se possa mais conceber “a presença ativa de Deus como uma irrupção pontual, ou seja, física e acessível aos sentidos, na trama do mundo”2. Uma definição perfeita da Encarnação, que o autor elimina com um simples traço de caneta.

Como para Bultmann, segundo o qual “é mitológica a concepção na qual o não-mundano, o divino, aparece como mundano, humano, na qual o além aparece como aquém”3, também para Torres Queiruga Deus não pode agir sensivelmente neste mundo. Por isso, “a análise da ressurreição de Jesus como ‘milagre’ – o mais espetacular – desapareceu definitivamente dos tratados sérios. A tal ponto, que até nos tratados mais ‘ortodoxos’ se pode ler a afirmação de que a ressurreição não só não é um milagre, mas não é nem mesmo um acontecimento ‘histórico’”4.

A “experiência” do Ressuscitado deve remover qualquer presença de tipo empírico. “Se o Ressuscitado fosse tangível ou comesse, seria necessariamente limitado pelas leis do espaço, ou seja, não seria ressuscitado. E a mesma coisa aconteceria se fosse fisicamente visível”5. Acreditar em algo diferente disso significaria submeter-se ao “imperialismo do princípio empirista”6, tornar impossível “a razoabilidade da fé na ressurreição”7.

Para o autor, “os discípulos não viram com seus olhos o Ressuscitado nem o tocaram com suas mãos, pois isso era impossível, uma vez que ele estava fora do alcance de seus sentidos”8. O que eles “viram” “não pode conservar nenhuma relação material com um corpo espaço-temporal”9.

De resto, “nem na vida terrena o corpo pode ser considerado o suporte absolutamente indispensável da identidade”, nem “se vê o que poderia provocar a transformação (?) de seu corpo morto, ou seja, do cadáver”10. Para o “idealista” Torres Queiruga, a “realidade” do Cristo ressuscitado não pressupõe a sua realidade sensível, corpórea. Ela se baseia na subjetividade do crente, nas “experiências psíquicas, de visualização ou imaginação de convicções íntimas. Convicções que podem ter um referente real – o místico, na sua visão, liga-se realmente a Cristo –, sem que esse referente seja a forma em que se apresenta”11.

A “visão” pressupõe a experiência interior, a peculiar condição pessoal e ambiental, a partir da qual a “mediação imaginativa”12 – que o autor evoca, remetendo-se a Kant – entra em ação, dando forma ao objeto de sua aspiração. No caso dos discípulos, “dentro da cultura daquele tempo, aberta às manifestações extraordinárias e empíricas do sobrenatural, podia funcionar com toda naturalidade o esquema imaginativo da ressurreição como uma espécie de retorno à vida”13. Ou seja, os discípulos acreditaram vê-lo na medida em que eram predispostos a isso por um contexto, um ambiente espiritual. Dentro desse horizonte, o elemento decisivo, o estopim, é provocado pela experiência fundamental da morte de Jesus: “O contexto vivissimamente emotivo causado pelo drama do Calvário”14.

É aqui, no drama do falecimento da pessoa querida, que amadurece “o que poderíamos chamar kantianamente o ‘esquema imaginativo’ para compreender a ressurreição como já acontecida”15. No contexto messiânico-escatológico de Israel, a morte de Jesus provoca um vazio lancinante, uma experiência de dor que urge por uma solução.

A cruz de Cristo se “transforma” na ressurreição: “A ressurreição acontece na própria cruz”16. Cristo, o morto, volta a ser vivo na fé.

Torres Queiruga segue à letra, sem citá-lo, Rudolf Bultmann: “Cruz e ressurreição, enquanto evento ‘cósmico’, formam uma unidade”17. A ressurreição não é um evento real que se segue à morte de Jesus na cruz. É, simbolicamente, a transfiguração ideal de Cristo induzida pela experiência trágica de seu fim. Numa forma paradoxal, que ocupa o centro do modelo idealista, a ausência produz a presença, o vazio dá lugar a uma plenitude, a privação se transforma em vitória. Isso requer que seja removido da cruz o aspecto de escândalo, em sentido paulino: o Filho de Deus suspenso àquilo que, para os modernos, é a forca. Esse aspecto seria, nos Evangelhos, uma construção literária, não um elemento histórico.

Torres Queiruga reconhece que “um hábito inveterado, que se apóia fortemente na letra dos Evangelhos, levou a ver a cruz como um lugar de ‘escândalo’, que decretava o fim da fé dos discípulos, os quais nesse momento teriam fugido, negando ou traindo seu Mestre. Para explicar sua conversão posterior, teria de acontecer algo extraordinário e milagroso, que, com a sua evidência irrefutável, lhes restituísse a fé. Esse algo seria a ressurreição, que obtém, assim, uma autêntica ‘demonstração’ histórica.

Não se pode negar que o argumento tenha a sua força; de fato, ele continua a ser o mais recorrente nos tratados atuais. Todavia, uma reflexão mais atenta permitiu ver, cada vez com maior clareza e mais ampla aceitação entre os estudiosos, a sua natureza de ‘dramatização’ literária com valor apologético”18. Essa conclusão seria comprovada pelo fato de que “a hipótese de uma traição ou de um renegamento é profundamente incompreensível e injusta com os discípulos”19. Estes teriam traído Jesus no momento da prova suprema, teriam sido ingratos e sem coração. O que, para o autor, é inadmissível.

Por outro lado, o escândalo vale para os romanos, não para os judeus: “Os criminosos de Roma eram os heróis do povo por eles subjugado”20. A cruz de Cristo, na ótica completamente positiva pintada por Torres Queiruga, não é o que afasta, o lugar da solidão. Ao contrário, é o ponto coagulante da fé: “A crucifixão, com o horrível escândalo da sua injustiça, aparece como o catalisador mais determinante para compreender que o que aconteceu na cruz não podia ser a conclusão definitiva”21. A cruz não é um ponto de fuga, mas de “virada”. Uma conclusão obrigatória, para Torres Queiruga, na medida em que, entre a morte de Jesus e a fé da Igreja nascente, não acontece nada.

O idealismo, como filosofia do não acontecimento, implica um curto circuito segundo o qual a fé deve preceder o evento, não seguir-se a ele. O argumento segundo o qual os discípulos fogem, apavorados e desmoralizados, tem lá a “sua força”, como reconhece o autor, mas, mesmo assim, não pode ser admitido. O vazio deve produzir o cheio, a morte deve-se transformar em idéia do Ressuscitado, em vez de gerar escândalo, fuga, desorientação. Se assim não fosse, teríamos “apologética”, não história. Na sua efetividade, o morto é uma bandeira, o símbolo de uma vida que não podia acabar.

Na órbita de Hegel

É curioso que Torres Queiruga cite Kant várias vezes – por sua meditação imaginativa da fé – e, por outro lado, não faça referências a Hegel. Curioso porque sua reflexão se insere, perfeitamente, no horizonte especulativo idealista, e sua cristologia acompanha a hegeliana, com discordâncias que, no tema tratado, são completamente marginais22. Como em Hegel, para o filósofo espanhol a revelação também “não consiste na irrupção de algo externo, mas, sim, na descoberta de uma presença que, ignorada ou pressentida talvez, já lá estava e procurava deixar-se reconhecer”23.

O cristianismo diz respeito à ontologia, não à história. Revela o que está presente já desde sempre, ainda que de forma velada, na interioridade do eu; é uma relação imanente, não movida de fora. “Não é que em dado momento Deus ‘entre’ no mundo para revelar alguma coisa por meio de um gesto extraordinária. Ele está sempre presente e ativo no mundo, na história e na vida dos indivíduos, e está sempre procurando dar a conhecer a sua presença, a fim de que consigamos interpretá-la de modo correto”24. Por isso, “o importante não é que o sol comece a brilhar, mas que as janelas estejam abertas e limpas”25.

A Revelação não é o ato de Deus se “revelar”, uma vez que Ele o faz sempre, mas a descoberta humana é “que constitui a revelação em sentido estrito”26. Torres Queiruga despoja radicalmente o cristianismo de seu caráter histórico. Resume-o a uma estrutura ideal, uma concepção gnóstico-panteísta segundo a qual o Deus-no-mundo anseia tornar-se cognoscível, perfurando o véu de sombra da ignorância humana. O Cristo histórico, como em Hegel, é apenas a “oportunidade” para que desperte a consciência do Cristo ideal. Como Sócrates, Cristo é a “parteira” cuja arte maiêutica traz à luz o Deus-em-nós, segundo a “rica e profunda tradição do magister interior”27.

Essa perspectiva, a idéia de uma revelação imanente, com relação à qual o Cristo histórico é apenas uma provocação contingente, esclarece o segundo ponto de proximidade entre Hegel e Torres Queiruga: a negação da dimensão empírica da fé. Em suas Lições sobre a filosofia da religião, Hegel faz distinção entre dois tipos de fé: a fé exterior e a fé interior. A fé “exterior” se fundamenta no Cristo histórico, em sua pessoa e autoridade. Esta, porém, para Hegel, é uma fé limitada, contingente. É “um modo exterior, acidental, da fé. A fé verdadeira repousa no espírito de verdade. A outra concerne ainda a uma relação com a presença sensível imediata. A fé verdadeira é espiritual, existe no espírito: tem por seu fundamento a verdade da idéia”28. Se comparada a essa fé interior, “a fé exterior deve, portanto, ser considerada apenas como um meio para chegar à verdadeira fé; na medida em que é exterior, é submetida à contingência, e o espírito alcança a sua verdade não segundo a contingência, mas segundo o livre testemunho”29.

A fé interior repousa na idéia eterna, no ideal imanente do espírito, não nos milagres ou numa revelação empírica. É essa fé que, segundo o idealista Hegel, “produz” a idéia do Homem-Deus, transforma o morto num ressuscitado. A fé interior opera a metamorfose do Cristo histórico, um utopista judeu da mensagem revolucionária, no Cristo “teológico”, divino. Graças a ela a figura de Jesus de Nazaré é entregue à memória, ao passado, à primeira aparição não espiritual do divino.

O ponto de passagem entre as duas imagens de Cristo, a empírica e a ideal – o terceiro elemento que une a cristologia de Torres Queiruga à de Hegel –, é a morte de Cristo. A morte é a ressurreição: esse topos da cristologia idealista, de Hegel a Bultmann, é o verdadeiro nó em torno do qual gira grande parte da exegese histórico-crítica. É um nó que, no plano especulativo, só se sustenta se considerarmos válido o que é assumido pela dialética, quando afirma que do negativo procede necessariamente o positivo.

Como escreve Torres Queiruga: “O próprio pensamento moderno, tanto filosófico quanto teológico, sabe da capacidade reveladora desse tipo de experiência, pois a própria contradição, em seu íntimo, obriga a buscar uma síntese capaz de reconciliá-la”30. No caso da morte de Jesus, “só a ressurreição e a exaltação permitiriam superar esse terrível conflito, que ameaçava mergulhar tudo no absurdo”31. Da morte, do negativo, brota a necessidade do positivo. Uma necessidade ideal: Cristo ressuscita na idéia, na concepção da comunidade, na fé interior. Não na realidade factual.

Dessa forma, como escreve Hegel, “essa morte é o ponto central em torno do qual tudo gira; na sua concepção está a diferença entre a concepção exterior e a fé, ou seja, a mediação com o espírito”32. Vem daí, como conseqüência, que a fé autêntica se baseia na morte de Jesus, não na ressurreição; nasce do Cristo morto, não do Cristo ressuscitado.

O Cristo ressuscitado não fundamenta a fé, é muito mais “fundamentado”, idealizado pela fé. Dessa forma, o idealismo, que está por trás da oposição entre o Cristo da fé e o Cristo da história, revira os termos com os quais, na concepção da Igreja, se apresenta a relação entre fé e realidade. Na medida em que o Ressuscitado pressupõe já a fé no Homem-Deus, essa fé deve nascer, necessariamente, da sublimação de uma derrota. O cristianismo, como dogma, surge da idealização de um fracasso, não do empirismo joanino baseado no que foi “visto, ouvido, tocado com as mãos”.

Uma morte incompreensível e uma fé sem ressurreição

O idealismo histórico-crítico, baseado na dialética do negativo, torna árdua não apenas a compreensão da ressurreição – sempre e de qualquer forma obra de “visionários” – mas também da morte de Cristo. Se Jesus não foi condenado à morte por ter-se proclamado Deus, por que foi crucificado? A autoproclamação divina é negada em nome da oposição entre o Cristo histórico e o Cristo da fé.

Só a comunidade dos crentes diviniza Jesus, que de per si nunca se teria concebido Deus. Para explicar o motivo da condenação, resta apenas a hipótese política: Jesus como potencial zelote que, perigoso para a ordem romana, é crucificado. É o leitmotiv do Jesus “judeu” que guia a Inchiesta su Gesù [Investigação sobre Jesus] de Corrado Augias e Mauro Pesce33. A última prova de uma investigação, curiosa e por vezes não banal, que, todavia, não consegue, dados os pressupostos mais uma vez idealistas, produzir nada de novo. O Jesus judeu não cristão34 de Augias-Pesce é um utopista, próximo do grupo de João Batista, caracterizado por uma total confiança em Deus e por uma atenção particular aos últimos. Um radical, privado de uma utopia social organizada, que, além do tom de sua pregação e do próprio testemunho, não mostra nada original, nada moral, com relação à lei judaica. Por que, então, esse sonhador, não-político e inofensivo, foi condenado à morte? Pesce declara que não é por motivos religiosos, mas políticos, que Jesus é condenado pelo poder romano. A responsabilidade dos membros do Sinédrio seriam obra da reconstrução, posterior, dos redatores dos Evangelhos, filo-romanos.

Mas quais são os motivos políticos pelos quais Jesus é condenado? Trata-se das suspeitas sobre a natureza de um movimento que nasceram naqueles que “não captaram as reais intenções da ação de Jesus. Foi, portanto, um grosseiro e grave erro de avaliação política dos romanos”35.

Realmente, é uma consideração que surpreende, ao deixar inteiramente em suspenso os motivos da condenação de Jesus à morte. Ainda mais que, o que também é estranho, esses motivos não se estendem a seus discípulos. Igualmente misteriosa continua a ser a ressurreição, que não seria afirmada por testemunhas oculares, mas por videntes que “enxergavam” dentro dos esquemas cultural-religiosos de Israel. Na Investigação, ainda, é totalmente enigmático o nascimento do cristianismo. Pesce não concorda com “a idéia de que o cristianismo nasça com a fé na ressurreição de Jesus, nem que nasça graças a Paulo [...].

Paulo também, como Jesus, não é um cristão, mas um judeu que permanece no judaísmo”36. O cristianismo surgiria, mais tarde, na segunda metade do século II, num processo de helenização da posição judaica originária. Com relação a Hegel e a Torres Queiruga, Augias e Pesce acrescentam mais uma ruptura, o que torna ainda mais enigmático o nascimento da fé cristã. No quadro hegeliano, o cristianismo é mediado pela morte de Jesus, cujo produto é a idéia do Ressuscitado. Na Investigação sobre Jesus, ele nasce muito depois da visão da ressurreição, fruto não da fé, mas de uma tardia elaboração teológico-filosófica de cunho helenista.

O que continua igual é o topos dominante: a fé não se baseia na ressurreição, mas a precede ou se segue a ela sem ter com ela relação. Um posicionamento que, em vez de simplificar o problema, o complica enormemente. Se o Cristo histórico é esse que é descrito por Augias-Pesce, um judeu observante sem nada de realmente original, não se compreende como possa ser “o homem que mudou o mundo”. Não se compreende por que foi condenado. Se esse homem terminou sua vida derrotado, não se compreende, sem aceitar a necessidade lógica da dialética, como de um morto possa nascer, na comunidade primitiva, a fé num vivo. Não se compreende, por último, como o “Cristo da fé” possa prescindir da ressurreição, seja ela real ou imaginária, e formar-se apenas no século II, como quer Pesce.

Um destino curioso para o racionalismo histórico-crítico: tendo nascido com a intenção de esclarecer o contexto, o que ele consegue é delinear um quadro geral cheio de pontos nebulosos e saltos no vazio. O modelo idealista demonstra todos os seus limites. Partindo do preconceito de que o fato não possa ter acontecido – de que Deus não possa se tornar homem e ressuscitar da morte –, ele é obrigado a justificar a fé como idealização. Com isso, porém, a narração evangélica se torna incompreensível. Se as descrições do Cristo ressuscitado constituem o grande enigma, para o leitor antigo e moderno, a sua remoção gera uma série de perguntas sem resposta. É o Cristo “histórico” que se torna incompreensível. Reencontrado, arqueologicamente, sob as camadas da fé, ele parece um sonhador, radical e ingênuo ao mesmo tempo, que não motiva o incêndio que se apossou da história. As conclusões do racionalismo crítico – extrair um vivo de um morto, uma revolução espiritual de um utopista semelhante a muitos outros – são profundamente não razoáveis.

O fracasso dessa posição é a premissa “crítica” para a retomada de uma posição realista que não tem a pretensão de demonstrar o dogma, mas, sim, de reconhecer que é contra qualquer evidência racional, humana, afirmar que a visão desolada de um crucificado possa gerar a idéia, gloriosa, de um ressuscitado.
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Notas
1 Torres Queiruga, A., La risurrezione senza miracolo, tradução italiana, Molfetta, Edizioni La Meridiana, 2006. A edição italiana é uma síntese da obra maior espanhola Repensar la resurrección. La diferencia cristiana en la continuidad de las religiones y de la cultura, Madri, Trotta, 2003. 2 Id., ibid., p. 8. 3 Bultmann, R., Neues Testament und Mythologie. Das Problem der Entmythologisierung der neutestamentlichen Verkündingung, Hamburg-Bergsted, Herbert Reich Verlag, 1948. Tradução italiana: “Nuovo Testamento e mitologia. Il problema della demitizzazione del messaggio neotestamentario”, in: Bultmann, R., Nuovo Testamento e mitologia, Brescia, Queriniana, 1973, p. 119. 4 Torres Queiruga, A. op. cit., p. 8. 5 Id., ibid., p. 42. 6 Id., ibid., p. 48. 7 Id., ibid., p. 47. 8 Id., ibid., pp. 46-47. 9 Id., ibid., p. 49. 10 Id., ibid., p. 54. De maneira idêntica, Kant afirma: “A razão não tem interesse em arrastar até a eternidade um corpo que (admitido que a personalidade se apóie na identidade do corpo) deve sempre, por mais purificado que seja, ser composto da mesma matéria que está na base do nosso organismo e à qual o próprio homem nunca se apegou durante a vida; nem é compreensível o que possa ter em comum com o céu esta terra calcária da qual o homem é formado” (Kant, I., “La religione nei limiti della semplice ragione”, tradução italiana, in: Kant, I., Scritti morali, Turim, Utet, 1970, p. 457, nota a). 11 Torres Queiruga, A. op. cit., p. 42. 12 Id., ibid., p. 65. 13 Id., ibid., p. 41. 14 Id., ibid., p. 23. 15 Id., ibid. 16 Id., ibid., p. 53. 17 Bultmann, R., op. cit., p. 165. 18 Torres Queiruga, A., op. cit., pp. 26-27. Grifo nosso. 19 Id., ibid., p. 26. 20 Id., ibid., p. 29. 21 Id., ibid., p. 30. 22 Sobre a cristologia hegeliana, cf. Borghesi, M. La figura di Cristo in Hegel, Roma, Studium, 1983; Idem, L’età dello Spirito in Hegel. Dal Vangelo “storico” al Vangelo “eterno”, Roma, Studium, 1995. 23 Torres Queiruga, A. op. cit., p. 59. 24 Id., ibid., p. 36. 25 Id., ibid. 26 Id., ibid., p. 37. 27 Id., ibid., p. 38. 28 Hegel, G. F. W., Lezioni sulla filosofia della religione, tradução italiana, 2 volumes, Bolonha, Zanichelli, 1974, vol. II, pp. 388-389. 29 Id., ibid., vol. I, p. 283. 30 Torres Queiruga, A. op. cit., p. 30. Grifo nosso. 31 Id., ibid., p. 31. 32 Hegel, G. F. W., op. cit., vol. II, p. 372. 33 Augias, C.; Pesce, M., Inchiesta su Gesù. Chi era l’uomo che ha cambiato il mondo, Milão, Mondadori, 2006. 34 Cf. Id., ibid., pp. 221 e 237. 35 Id., ibid., pp. 168-169. 36 Id., ibid., p. 201.