quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Dr. William P. Grady " Mitologia Romana".

A mitologia romana pode ser dividida em duas partes: a primeira, tardia e mais literária, consiste na quase total apropriação da grega; a segunda, antiga e ritualística, funcionava diferentemente da correlata grega. O romano, que impregnava a sua vida pelo numen, uma força divina indefinida presente em todas as coisas, estabeleceu com os deuses romanos um respeito escrupuloso pelo rito religioso – o Pax deorum – que consistia muitas vezes em danças, invocações ou sacrifícios. Ao lado dos deuses domésticos, os romanos possuíam diversas tríades divinas, adaptadas várias vezes ao longo das várias fases da história. Assim, à tríade primitiva constituída por Júpiter (senhor do Universo), Marte (deus da guerra) e Quirino (fundador de Roma, ou Rômulo), os etruscos inseriram o culto das deusas Minerva (deusa da inteligência e sabedoria) e Juno (rainha do céu e esposa de Júpiter). Com a república surge Ceres (deusa da Terra e dos cereais), Líber e Libera. Mais tarde, a influência grega inseria uma adaptação para o panteão romano do seu deus do comércio e da eloquência (Mercúrio) sob as feições de Hermes, e o deus do vinho (Baco), como Dionísio.

Da natureza dos primeiros mitos romanos

Consistia de um sistema bastante desenvolvido de rituais, escolas de sacerdócio e grupos relacionados a deuses. Também apresentava um conjunto de mitos históricos acerca da glória e da fundação de Roma envolvendo personagens humanos com ocasionais intervenções divinas. Os deuses estabeleciam uma benevolência para com os homens.

Antiga mitologia sobre os deuses

O modelo romano consistia de uma maneira não muito diversa de pensar e definir os deuses da dos gregos, sendo alguns dos deuses romanos inspirados nos deuses gregos.

Principais deuses romanos
Baco; deus das festas, do vinho, do lazer e do prazer

Baco (em grego: Βάκχος, transl. Bákkhos; em latim: Bacchus) era um nome alternativo, e posteriormente adotado pelos romanos,[1] do deus grego Dioniso, cujo mito é considerado ainda mais antigo por alguns estudiosos. Os romanos o adotaram, como muitas de suas divindades, estrangeiras à mitologia romana, e o assimilaram com o velho deus itálico Liber Pater. Algumas lendas mencionam que a cidade de Nysa, na Índia (atual Nagar) teria sido consagrada a ele.

É o deus do vinho, da ebriedade, dos excessos, especialmente sexuais, e da natureza. Príapo é um de seus companheiros favoritos (também é considerado seu filho, em algumas versões de seu mito). As festas em sua homenagem eram chamadas de bacanais - a percepção contemporânea de que tais eventos eram "bacanais" no sentido moderno do termo, ou seja, orgias, ainda é motivo de controvérsia.

A pantera, o cântaro, a vinha e um cacho de uvas. Outras associações que não eram feitas com Baco foram atribuídas a Dioniso, como o tirso que ele empunha ocasionalmente.

História

Sémele quando estava grávida exigiu a Júpiter que se apresentasse na sua presença em toda a glória, para que ela pudesse ver o verdadeiro aspecto do pai do seu filho. O deus ainda tentou dissuadi-la, mas em vão. Quando finalmente apareceu em todo o seu esplendor, Sémele, como mortal que era, não pôde suportar tal visão e caiu fulminada. Júpiter tomou então das cinzas o feto ainda no sexto mês e meteu-o dentro da barriga da sua própria perna, onde terminou a gestação.

Ao tornar-se adulto, Baco apaixona-se pela cultura da vinha e descobre a arte de extrair o suco da fruta. Porém, a inveja de Juno levou-a a torná-lo louco a vagar por várias partes da Terra. Quando passa pela Frígia, a deusa Cíbele cura-o e o instrui nos seus ritos religiosos. Curado, ele atravessa a Ásia ensinando a cultura da vinha. Quis introduzir o seu culto na Grécia depois de voltar triunfalmente da sua expedição à Índia, mas encontrou oposição por alguns príncipes receosos do alvoroço por ele causado.

O rei Penteu proíbe os ritos do novo culto ao aproximar-se de Tebas, sua terra natal. Porém, quando Baco se aproxima, mulheres, crianças, velhos e jovens correm a dar-lhe boas vindas e participar de sua marcha triunfal. Penteu manda seus servos procurarem Baco e levá-lo até ele. Porém, estes só conseguem fazer prisioneiro um dos companheiros de Baco, que Penteu interroga querendo saber desses novos ritos. Este se apresenta como Acetes, um piloto, e conta que, certa vez velejando para Delos, ele e seus marinheiros tocaram na ilha de Dia e lá desembarcaram. Na manhã seguinte os marinheiros encontraram um jovem de aparencia delicada adormecido, que julgaram ser um filho de um rei, e que conseguiriam uma boa quantia em seu resgate. Observando-o, Acetes percebe algo superior aos mortais no jovem e pensa se tratar de alguma divindade e pede perdão a ele pelos maus tratos. Porém seus companheiros, cegados pela cobiça, levam-no a bordo mesmo com a oposição de Acetes. Os marinheiros mentem dizendo que levariam Baco (pois era realmente ele) onde ele quisesse estar, e Baco responde dizendo que Naxos era sua terra natal e que se eles o levassem a até lá seriam bem recompensados. Eles prometem fazer isso e dizem a Acetes para levar o menino a Naxos. Porém, quando ele começa a manobrar em direção a Naxos ouve sussurros e vê sinais de que deveria levá-lo ao Egito para ser vendido como escravo, e se recusa a participar do ato de baixeza.

Baco percebe a trama, olha para o mar entristecido, e de repente a nau pára no meio do mar como se fincada em terra. Assustados, os homens impelem seus remos e soltam mais as velas, tudo em vão. O cheiro agradável de vinho se alastra por toda a nau e percebe-se que vinhas crescem, carregadas de frutos sob o mastro e por toda a extensão do casco do navio e ouve-se sons melodiosos de flauta. Baco aparece com uma coroa de folhas de parra empunhando uma lança enfeitada de hera. Formas ágeis de animais selvagens brincam em torno de sua figura. Os marinheiros levados à loucura começam a se atirar para fora do barco e ao atingir a água seus corpos se achatavam e terminavam numa cauda retorcida. Os outros começam a ganhar membros de peixes, suas bocas alargam-se e narinas dilatam, escamas revestem-lhes todo o corpo e ganham nadadeiras em lugar dos braços. Toda a tripulação fôra transformada e dos 20 homens só restava Acetes, trêmulo de medo. Baco, porém, pede para que nada receie e navegue em direção a Naxos, onde encontra Ariadne e a toma como esposa. Cansado de ouvir aquela historia, Penteu manda aprisionar Acetes. E enquanto eram preparados os instrumentos de execução, as portas da prisão se abrem sozinhas e caem as cadeias que prendiam os membros de Acetes. Não se dando por vencido, Penteu se dirige ao local do culto encontrando sua própria mãe cega pelo deus, que ao ver Penteu manda as suas irmãs atacarem-no, dizendo ser um javali, o maior monstro que anda pelos bosques. Elas avançam, e ignorando as súplicas e pedidos de desculpa, matam-no. Assim é estabelecido na Grécia o culto de Baco. Certa vez, seu mestre e pai de criação, Sileno, perdeu-se e dias depois quando Midas o levou de volta e disse tê-lo encontrado perdido, Baco concedeu-lhe um pedido. Embora entristecido por ele não ter escolhido algo melhor, deu a ele o poder de transformar tudo o que tocasse em ouro. Depois, sendo ele uma divindade benévola, ouve as súplicas do mesmo para que tirasse dele esse poder.

Literatura
Na epopeia Os Lusíadas, de Luís de Camões, Baco é o principal opositor dos heróis portugueses, argumentando no episódio do concílio dos deuses que seria esquecido se os lusos chegassem à Índia.

Cupido; deus do amor

Cupido, também conhecido como Amor, era o deus equivalente em Roma ao deus grego Eros. Filho de Vênus e de Marte, (o deus da guerra), andava sempre com seu arco, pronto para disparar sobre o coração de homens e deuses. Teve um romance muito famoso com a princesa Psiquê, a deusa da alma.

Cupido encarnava a paixão e o amor em todas as suas manifestações. Logo que nasceu, Júpiter (pai dos deuses), sabedor das perturbações que iria provocar, tentou obrigar Vénus a se desfazer dele. Para protegê-lo, a mãe o escondeu num bosque, onde ele se alimentou com leite de animais selvagens.

Cupido era geralmente representado como um menino alado que carregava um arco e um carcás com setas. Os ferimentos provocados pelas setas que atirava despertavam amor ou paixão em suas vítimas. Outras vezes representavam-no vestido com uma armadura semelhante à que usava Marte, talvez para assim sugerir paralelos irónicos entre a guerra e o romance ou para simbolizar a invencibilidade do amor. Embora fosse algumas vezes apresentado como insensível e descuidado, Cupido era, em geral, tido como benéfico em razão da felicidade que concedia aos casais, mortais ou imortais. No pior dos casos, era considerado malicioso pelas combinações que fazia, situações em que agia orientado por Vénus.

O mito de Cupido e Psiquê

Um certo dia, Vênus estava admirando a terra quando avistou uma bela moça chamada Psique. Vênus era uma deusa muito vaidosa e não gostava de perder em matéria de aparência, muito menos para uma mortal. Vênus chamou Mercúrio e disse-lhe: "- Mande esta carta para Psiquê."

Quando Psiquê recebeu a carta ficou admirada, recebendo uma carta de uma deusa. Mas ficou muito decepcionada quando a leu. Na carta havia uma profecia clamada pela própria Vênus. A profecia dizia que Psiquê ia se casar com a mais horrenda criatura. Psiquê ficou desesperada, foi contar para suas irmãs. Psique era muito inocente e nunca percebeu que suas irmãs morriam de inveja dela.

Enquanto isso, no Monte Olimpo, Vênus chamou seu filho Cupido: "- Meu caro filho, preciso de um grande favor seu. Quero que você vá a terra e atire uma de suas flechas de amor em Psique, e faça com que ela se apaixone pelo homem mais feio do planeta". Cupido gostava muito de sua mãe e não quis contrariá-la. Então foi. Quando anoiteceu, Cupido foi até a casa de Psique, entrou pela janela avistou um rosto perfeito, traços encantadores. Cupido chegou bem perto para não ter a chance de errar o alvo (apesar de ter uma mira muito boa, mas estava encantado com a bela jovem). Se preparou para atirar, esticou o seu arco e quando ia soltar a flecha, Psiquê moveu o braço, e Cupido acertou ele mesmo. A partir daquele instante Cupido ficou perdidamente apaixonado pela jovem. Voltou para casa, mas não conseguiu dormir pensando na bela Psiquê.

No dia seguinte, Cupido foi falar com Zéfiro (o vento oeste) e pediu para que transportasse Psique para os ares e a instalasse num palácio magnífico, onde era a casa de Cupido. Quando a noite caiu, a moça ouviu uma voz misteriosa e doce: "- Não se assuste, Psiquê, sou o dono desse palácio. Ofereço a ti como presente de nosso casamento, pois quero ser seu esposo. Tudo que está vendo lhe pertence. E tudo que deseja será concebido. Zéfiro estará às suas ordens, ele fará tudo o que você quiser. Eu só lhe faço uma exigência: não tente me ver. Só sob esta condição poderemos viver juntos e sermos felizes".

Toda noite Cupido vinha ver Psiquê, mas em uma forma invisível. A moça estava vivendo muito feliz naquele lindo palácio. Mas passando os dias Psiquê ficava cada vez mais curiosa para saber quem era seu marido. Certa noite, quando Cupido veio ver Psiquê, eles se encontraram e se amaram. Mas quando Cupido adormeceu, Psiquê escondida e em silêncio pegou uma lamparina e acendeu-a, e quando ela viu o belo jovem de rosto corado e cabelos loiros, ficou encantada. Mas num pequeno descuido ela deixou cair uma gota de óleo no braço do rapaz, que acordou assustado e, ao ver Psiquê, desapareceu. O encanto todo acabou, o palácio os jardins e tudo que havia em volta desapareceu, como num passe de mágica. Psiquê ficou sozinha num lugar árido, pedregoso e deserto.

Desconsolado, Cupido voltou para o Olimpo e suplicou a Zeus que lhe devolvesse a esposa amada. O senhor dos deuses respondeu: "- O deus do amor não pode se unir a uma mortal".

Mas Cupido protestou. Será que Zeus que tinha tanto poder não podia tornar Psiquê imortal? O senhor dos deuses sorriu lisonjeado. Além do mais como poderia de deixar de atender a um pedido de Cupido, que lhe trazia lembranças tão boas? O deus do amor o tinha ajudado muitas vezes, e talvez algum dia Zeus precisaria da ajuda de Cupido de novo. Seria mais prudente atender o seu pedido. Zeus mandou Hermes ir buscar Psique e lhe trouxesse para o reino celeste. Então Zeus, o soberano, transformou Psiquê em imortal. Nada mais se opôs aos amores de Cupido e Psiquê, nem mesmo Vênus, que ao ver seu filho tão feliz se moveu de compaixão e abençoou o casal. Seu casamento foi celebrado com muito néctar, na presença de todos os deuses.

As Musas (jovens encantadas, que eram acompanhantes do deus Apolo) e as Graças (jovens que representavam a beleza que acompanhavam a deusa Venus) aclamavam a nova deusa em meio a cantos de danças. Assim Cupido viveu sua imortalidade com o ser que mais amou.

Diana; deusa da caça muitas vezes relacionada com os ciclos da Lua

Em Roma, Diana era a deusa da lua e da caça, mais conhecida como deusa pura , filha de Júpiter e de Latona, e irmã gêmea de Apolo. Era muito ciosa de sua virgindade. Na mais famosa de suas aventuras, transformou em um cervo o caçador Acteão, que a viu nua durante o banho. Indiferente ao amor e caçadora infatigável, Diana era cultuada em templos rústicos nas florestas, onde os caçadores lhe ofereciam sacrifícios. Na mitologia romana, Diana era deusa dos animais selvagens e da caça, bem como dos animais domésticos. Filha de Júpiter e Latona, irmã gêmea de Apolo, obteve do pai permissão para não se casar e se manter sempre casta. Júpiter forneceu-lhe um séquito de sessenta oceânidas e vinte ninfas que, como ela, renunciaram ao casamento. Diana foi cedo identificada com a deusa grega Ártemis e depois absorveu a identificação de Artemis com Selene (Lua) e Hécate (ou Trívia), de que derivou a caracterização triformis dea ("deusa de três formas"), usada às vezes na literatura latina. O mais famoso de seus santuários ficava no bosque junto ao lago Nemi, perto de Arícia.

Pela tradição, o sacerdote devia ser um escravo fugitivo que matasse o antecessor em combate. Em Roma, seu templo mais importante localizava-se no monte Aventino e teria sido construído pelo rei Servius Tulius no século VI a.C. Festejavam-na nos idos (dia 13) de agosto. Na arte romana, era em geral representada como caçadora, com arco e aljava, acompanhada de um cão ou cervo.

Esculápio; deus da medicina

Esculápio (em grego: Ἀσκληπιός, Asklēpiós; em latim: Aesculapius) era o deus da Medicina e da cura da mitologia greco-romana. Não fazia parte do Panteão das divindades olímpicas, mas acabou por se tornar uma das divindades mais populares do mundo antigo, a ponto de Apuleio dizer dele: Aesculapius ubique (Esculápio por toda parte).[1]

Existem várias versões de seu mito, mas as mais correntes o apontam como filho de Apolo, um deus, e Corônis, uma mortal. Teria nascido de cesariana após a morte de sua mãe, e levado para ser criado pelo centauro Quíron, que o educou na caça e nas artes da cura. Aprendeu o poder curativo das ervas e a cirurgia, e adquiriu tão grande habilidade que podia trazer os mortos de volta à vida, pelo que Zeus o puniu, matando-o com um raio. Seu culto se disseminou por uma vasta região da Europa, pelo norte da África e pelo Oriente Próximo, sendo homenageado com inúmeros templos e santuários, que atuavam como hospitais. Sua imagem permaneceu viva e é um símbolo presente até hoje na cultura ocidental.[1][2]

A história de Esculápio é reconstituída através da coleção de lendas e mitos criados pelo paganismo grego. Sua religião era politeísta, com uma infinidade de divindades e semidivindades associadas a todos os aspectos da vida humana e a vários lugares especialmente sagrados, como alguns rios e fontes, montanhas e florestas. Essa multidão de deuses estava subordinada a um grupo de poderosas deidades principais, cuja maioria habitava, segundo eles, o Monte Olimpo, e estes por sua vez eram presididos por Zeus. Entre os deuses principais estava Apolo, filho de Zeus, deus do sol, da luz, da música e das artes, da profecia e da cura, patrono dos jovens, da palestra e regente das Musas, que foi, segundo algumas versões do mito, o pai de Esculápio.[4]

O mais antigo registro de seu nome é encontrado na Ilíada de Homero, e nessa citação aparentemente ele ainda era considerado um mortal, descrito como o governante de Tricca e também como um médico que havia aprendido a arte do centauro Quíron e a ensinado a seus dois filhos, Podalírio e Macaão. Uma vez que atualmente o relato homérico sobre a Guerra de Tróia é considerado a poetização de um evento possivelmente histórico, Esculápio pode ter existido de fato, vivendo em torno de 1200 a.C., e sido mais tarde divinizado. Dentro da cultura grega não era incomum que heróis célebres fossem objeto de culto após sua morte. Escrevendo no século I, Celso explicou que pelo fato de ter aperfeiçoado as artes médicas, antes primitivas, ele mereceu um lugar entre os imortais. As origens de seu nome são obscuras. É possível que significasse "curador gentil", também foi relatado que a princípio ele se chamava Epios, e que depois de curar Ascles, tirano de Epidauro, passou a se chamar Asclepios. Seu status divino não era unânime entre os antigos, alguns o tinham como um deus, outros como um herói-deus ou como um semideus. Em torno do século V a.C. já havia uma grande quantidade de folclore criado a seu respeito, e Píndaro escreveu dizendo que ele era filho de Apolo com a mortal Corônis, filha de Flégias, o governante da Tessália.[5] O local de seu nascimento era disputado por várias cidades: Lacereia, Tricca e Epidauro.[2]

Bem mais tarde o poeta romano Ovídio deixou um relato sobre sua história em suas Metamorfoses. Segundo a narrativa, não havia donzela mais formosa em toda Tessália do que Corônis. Apolo estava apaixonado por ela e se tornaram amantes, mas o corvo do deus descobriu que ela havia se deitado com o jovem Ischys, filho de Elatus, e voou até seu mestre para relatar o fato. Enfurecido, Apolo tirou uma seta da aljava e disparou contra o peito daquela que que havia abraçado tantas vezes. Arrancando a seta ensanguentada, Corônis bradou: "Oh Febo Apolo, decerto eu mereci esta punição, mas por que não esperaste até que eu desse à luz ao nosso filho? Agora ambos morremos!" E assim dizendo, expirou. Arrependido do que fizera, Apolo sentiu ódio de si mesmo, e o corvo que levara tão nefasta notícia, que era branco, foi amaldiçoado e suas penas se tornaram negras. Então Apolo desceu dos céus e foi para seu lado, tomou o corpo sem vida em seus braços, mas seus poderes não bastaram para devolvê-la ao mundo dos vivos. Quando ela foi posta sobre uma pira para ser cremada, Apolo, tomado pela dor, derramou perfumes sobre seu peito e iniciou a celebração dos ritos fúnebres. Mas antes que as chamas consumissem o corpo de Corônis, retirou o filho ainda vivo do ventre materno e o levou para Quíron, o sábio centauro que havia educado vários heróis, para que o criasse. A filha de Quíron, Ocirroé, que podia prever o futuro, ao chegar à caverna de seu pai, viu a criança e disse: "Menino, tu que trazes a saúde para todo o mundo, que possas crescer e florescer! Os mortais muitas vezes deverão suas vidas a ti, e te será concedido o poder de trazer de novo à vida os que morreram. Mas um dia deixarás os deuses zangados por tamanha ousadia, e o raio de teu avô impedirá que o repitas, e de um deus imortal serás reduzido a um cadáver inerte. Mas depois, deste cadáver mais uma vez serás tornado um deus, e por uma segunda vez, renovarás o teu destino".[6]

Outros autores clássicos acrescentaram detalhes: Apolodoro disse que Quíron o criou e lhe ensinou as artes da cura e da caça. De Atena ele recebeu o sangue mágico da Górgona, por cujo poder o seu próprio sangue que corria pelo seu lado esquerdo podia tirar a vida de alguém, e o do seu lado direito ressuscitava os mortos. Quando Zeus matou Esculápio, Apolo, em vingança, como não podia agir contra seu pai, matou os Cíclopes que forjavam os raios de Zeus, pelo que foi punido e enviado sem seus poderes à Terra para servir o mortal Admeto por um ano. Diodoro explicou o motivo de sua morte dizendo que seu poder curativo era tão grande que restaurava a saúde para muitos desenganados, e que por isso se dizia que ele ressuscitava os mortos. Como Hades, o deus dos mortos, estava tendo seu reino despovoado, exigiu de Zeus uma solução para este ultraje. Outras fontes referem Higéia, Panacéia, Telésforo, Acésio e Iaso como também seus filhos.[7][8]

Teodoreto disse que alguns, como Hesíodo, o tinham como filho de Arsinoé de Messênia, e deu outra versão para o seu nascimento de Corônis, dizendo que ao nascer foi abandonado pela mãe numa montanha e foi achado por um pastor junto de um cão, que lhe dava de comer. Confiado a Quíron, depois de crescido passou a exercer a Medicina em Tricca e Epidauro. Pausânias repetiu versões em que o pastor se chamava Arestanas ou Autolaus, mas que este, vendo uma aura de luz divina ao redor da criança, atemorizou-se, e foi embora. Também referiu que em vez de um cão que o alimentava, teria recebido leite de uma cabra, que Corônis teria sido morta por Ártemis, para punir o ultraje a seu irmão Apolo, e quem o teria tirado do ventre da mãe teria sido Hermes. Cirilo escreveu dizendo que corriam versões de Corônis sendo seduzida por um sacerdote do templo de Apolo, o qual teria ensinado a Esculápio sua arte. Lactâncio disse que o corvo foi tornado negro porque havia sido posto como guardião de Corônis, e falhara em sua função. Além disso, disse que sua alta reputação não era justa, pois só teria curado Hipólito. Outros disseram que ele tinha pais desconhecidos, que ele teve uma esposa, Epione, que seu pai fora Arsipo ou o próprio Zeus, amara Hipólito, tivera uma irmã chamada Eriopis, e que o pai de Corônis teria ficado furioso quando soube que Corônis fora violada por Apolo, teria ateado fogo ao templo do deus e assim matado involuntariamente a filha que lá estava.[7] Também corriam versões, derivadas de Píndaro, que o descreviam como avarento, cobrando em ouro pela sua arte, e arrogante, chamando a si mesmo de um deus, sendo por isso morto por um raio em punição de sua hubris, mas Platão refutou as acusações dizendo que se ele fosse filho de um deus não poderia ter tais defeitos, e se os tivesse, não era filho de um deus. Tertuliano também duvidava delas como sendo indignas.[9] Algumas versões do mito dizem que depois de morto com o raio Zeus o transformou na constelação do Ofiúco, para que Apolo fosse consolado.[10] O oráculo de Delfos foi certa vez consultado sobre quem era a mãe de Esculápio e onde nascera, e a pitonisa disse que era Corônis, e que ele viera ao mundo em Epidauro.[2] Algumas versões do mito dizem que depois de morto Esculápio foi ressuscitado por Zeus, permitindo-lhe continuar sua prática, desde que não mais interferisse no destino final dos mortais, tornando-se conhecido por sua bondade e compaixão no trato dos doentes, e dedicando sua atenção antes para os pobres.[11]

Suas curas

Entre as curas que teria operado, estão as de vários heróis feridos em Tebas, de Filocteto em Tróia, do tirano de Epidauro, Ascles, de uma doença nos olhos, as filhas de Proetus que haviam sido enlouquecidas por Hera, restaurou a visão aos filhos de Fineu, curou com ervas as feridas de Hércules em sua luta contra a Hidra de Lerna, devolveu à vida Orion, Hipólito, Himeneu, Tindareu, Glauco, Capaneu, Panassis e Licurgo.[12] Após sua morte outras curas lhe foram atribuídas. Rufus de Éfeso, um dos grandes médicos em torno de 100 a.C., disse que por intervenção de Esculápio um epilético foi salvo; um médico de Smirna dedicou uma estátua a ele em c. 200 d.C. por ter evitado muitas doenças seguindo o seu conselho; Élio Aristides, depois de buscar a cura para um volumoso tumor na perna junto de muitos doutores, sem sucesso, apelou para ele, teve uma visão do deus e foi curado milagosamente, e assim como estas mais continuaram acontecendo em seus santuários ao longo de séculos, como provam os muitos ex-votos preservados nas ruínas de vários deles.[13] Mas é interessante assinalar algumas mudanças verificadas nesse período de tempo. Enquanto que no santuário de Epidauro, de onde se irradiou seu culto, os médicos não atuavam, mas apenas os sacerdotes, ele aparecia nos sonhos dos pacientes e intervinha diretamente nas doenças, mais tarde ele passou a aparecer de forma mais indireta, dando conselhos e orientando a atuação de médicos convencionais, como as crônicas antigas referem sobre suas curas em Pérgamo, outro grande santuário, já do período helenista. Algumas de suas intervenções em sonhos eram dramáticas. Uma mulher relatou que o deus lhe apareceu em sonho e cortou fora seu olho doente, imergiu-o em uma poção e colocou-o de volta na órbita, e ao acordar ela estava curada. Outro paciente disse que foi buscar a cura para um abcesso no abdômen, sonhou que o deus o amarrou sobre uma prancha e cortou a área, removendo o abcesso, costurando a pele em seguida. Acordando, estava curado, mas o chão em seu redor estava banhado de sangue.[14] Outra pessoa chegou ao templo com a ponta de uma lança cravada dentro de sua mandíbula, onde estava há seis anos. Dormiu e sonhou que Esculápio a removia, e acordou com o ferro entre as mãos, curada. Um que era calvo acordou com cabelos na cabeça, e um que não possuía um dos olhos acordou com ambos. Além dessas curas extraordinárias e de outras mais prosaicas, Esculápio também era invocado para encontrar pessoas desaparecidas ou para resolver problemas de relacionamento ou dificuldades do cotidiano. Um porteiro que havia quebrado um vaso reuniu os fragmentos e se dirigiu ao santuário, e lá chegando abriu o saco onde os trazia e viu o vaso reintegrado. Curiosamente, apesar dos muitos testemunhos sobre suas aparições em sonho, não sobrevive nenhum relato sobre sua aparência física.[15]

Atributos, representações e símbolos

Além de sua ligação direta com a Medicina, Esculápio teve sua imagem transformada e magnificada, assumindo outros significados. Os neoplatônicos acreditavam que Esculápio era a alma do mundo, através da qual a Criação era mantida coesa e organizada com simetria e equilíbrio. Élio Aristides disse que ele era o guia e regente de todas as coisas, o salvador do universo e o guardião dos imortais. Juliano declarou que ele era o curador dos corpos e, com a ajuda das Musas, de Hermes e de Apolo, era o educador das almas. Sua figura foi assimilada sincreticamente à de Imhotep no Egito, a Eshmun na Fenícia, a Zeus em Pérgamo, e a Júpiter em Roma, onde era chamado de Aesculapius Optimus Maximus.[16]

Ele é representado usualmente como um homem maduro, vestido de uma túnica que lhe descobre o ombro direito, e apoiado a um cajado onde se enrola uma serpente. Às vezes aparece a seu lado um menino, símbolo da recuperação da saúde, ou a de Telésforo, uma espécie de elemental da terra encapuzado que levava o processo de cura a bom termo, e que algumas fontes dizem ser seu filho. Também pode ser mostrado junto de algum de seus outros filhos, especialmente Higéia, que se tornou uma figura importante em seu culto e chegou a ter templos próprios. Sobrevivem da Antiguidade várias de suas estátuas e imagens em moedas e camafeus. A estátua de seu principal templo, em Epidauro, fora feita, segundo Pausânias, de ouro e marfim, tinha cerca de seis metros de altura, e ele aparecia sentado em um trono, pousando sua mão direita sobre uma serpente, enquanto que com a esquerda segurava um cajado. Tinha um cão ao seu lado.[8] Esculápio foi representado em moedas cunhadas por 46 imperadores e imperatrizes romanos, e essas moedas circulavam em todo o império romano.[17]

O principal símbolo de Esculápio é um bastão ou cajado com uma serpente enrolada, que muitas vezes tem sido confundido erroneamente com o caduceu, que possui duas serpentes. A origem do símbolo é muito antiga, anterior aos gregos. Mais de 5 mil anos atrás os mesopotâmios usavam um bastão com uma serpente como emblema de Ningizzida, o deus da fertilidade, do matrimônio e das pragas.[18] Para os gregos e romanos a serpente estava associada a Apolo por ele ter matado a Píton de Delfos, e era um símbolo da cura porque periodicamente abandona sua pele velha e aparentemente renasce, da mesma forma que os médicos removem a doença dos corpos e rejuvenescem os homens, e também porque a serpente era um símbolo de atenção concentrada, o que era requerido dos curadores.[19] Era conhecido também dos judeus antes de Cristo, como se lê no relato bíblico de Moisés erguendo um poste com uma serpente de bronze para livrar o seu povo de uma praga de serpentes. Ao longo do desenvolvimento do Cristianismo este símbolo foi transformado, e o poste se tornou um Tau.[18]

A ligação de Esculápio com a serpente deriva de uma das lendas associadas ao seu mito. Chamado para socorrer Glauco, que havia sido morto por um raio, viu uma serpente penetrar no aposento onde estava, e a matou com seu bastão. Logo uma segunda serpente entrou, carregando ervas em sua boca, que depositou sobre a boca da outra morta, fazendo-a voltar à vida. Tomando dessas ervas, Esculápio colocou-as na boca de Glauco, que também ressuscitou, e desde então fez da serpente seu animal tutelar. Seu bastão se tornou o símbolo da Medicina na contemporaneidade em grande número de países do mundo e está presente na bandeira da Organização Mundial da Saúde.[20] O outro animal a ele associado era o cão, presente em uma das versões de seu mito como o animal que lhe trouxe comida ao ser abandonado ainda bebê nas montanhas, e por ser capaz de seguir uma trilha invisível com seu olfato, o que simbolizava a capacidade do médico de identificar a doença através de sintomas invisíveis para os leigos. Finalmente o galo, que era amiúde sacrificado em sua honra, era o símbolo do raiar do sol, o astro regido por Apolo, o seu pai divino.[21]

O culto e o sistema de cura de Esculápio

Foram identificados centenas de santuários antigos de Esculápio em toda a orla do Mediterrâneo e Europa ocidental - desde Mênfis do Egito até Karpow no norte da Europa, desde Ecbátana no Oriente até o País de Gales - através de ruínas arqueológicas, citações literárias, inscrições em monumentos e iconografia numismática. Muitos de seus templos estavam localizados em posições privilegiadas, como nas acrópoles de Atenas e na de Cartago, e na ilha do Tibre em Roma.[16] Alice Walton ofereceu uma listagem com 368 locais de culto, embora para alguns deles as evidências tenham se resumido a um placa votiva, um altar ou uma inscrição, e nem sempre nestes casos é seguro que houve ali um verdadeiro santuário. Ela omitiu as fontes latinas, de modo que ainda existem várias lacunas num mapeamento completo, o que indica que a disseminação de sua influência foi ainda mais vasta. Gerald Hart aumentou a sua lista com mais 96 sítios, Esperandieu indicou mais 29, e outros estudiosos trouxeram evidências de diversos mais na Europa central.[22]

Seu culto iniciou a se irradiar documentadamente a partir de Epidauro em torno do fim do século VI a.C., mas foi a partir da sua invocação pelos atenienses para afastar a peste de Atenas em 420 a.C., que foi bem sucedida, que sua fama rapidamente cresceu, sendo frequentemente associado a Higéia. Segundo Cheng-Hsiung Lü as lendas sobre Higéia e Esculápio simbolizam a perene oscilação entre duas abordagens básicas da Medicina: a profilaxia e a terapêutica. Para os seguidores de Higéia a saúde era o resultado do seguimento das leis naturais, e a função da Medicina era identificar e divulgar quais eram essas leis, responsáveis pela manutenção de um equilíbrio sadio entre mente e corpo, para que as pessoas não as violassem, trazendo-lhes a doença. Em contraste, para os devotos de Esculápio, o papel do médico era curar a doença já instalada através da cirurgia, de medicamentos ou de agências sobrenaturais.[23] Para Ferguson a vasta disseminação do culto de Esculápio foi o fenômeno religioso mais impressionante na Grécia desde o surgimento do culto dionisíaco.[24] Em Atenas seu culto também foi associado a partir de 413 a.C. aos Mistérios de Elêusis.[8] O santuário de Epidauro, o mais famoso e um dos mais importantes monumentos arquitetônicos gregos do século IV a.C., possuía mais de 160 aposentos para os peregrinos, e podia ser comparado a um grande hospital. Outros templos importantes eram os da ilha de Cós, durante o período helenista, e o de Pérgamo durante o império romano. Esculápio foi um dos primeiros deuses gregos a serem assimilados pelos romanos, depois de uma praga em 293 a.C. Dois anos depois já possuía um templo em Roma, na ilha do Tibre, onde séculos depois foi erguida uma igreja cristã dedicada a São Bartolomeu e um hospital, ainda existentes.[24] Sócrates mandou sacrificar um galo a Esculápio na ocasião de sua morte, Alexandre Magno dedicou sua espada e armadura a ele em Gortys, na Arcádia, o imperador Cláudio isentou a ilha de Cós de impostos e a dedicou toda ao seu culto,[16] e o filósofo Apolônio de Tiana preparou-se para sua carreira num templo de Esculápio.[25] O culto de Esculápio determinou certos traços do culto de Serápis, e sua iconografia influenciou as representações de Zeus e também as de Cristo.[24]

Anualmente era celebrado um grande festival em Epidauro, nove dias após os Jogos Ístmicos. O festival combinava cerimônias sacras e confraternizações profanas, e atraía devotos de Esculápio e médicos de toda a Grécia. Havia uma grande procissão desde a cidade até o santuário, quando se cantavam hinos em honra do deus, eram realizados sacrifícios públicos e privados, e depois a festa encerrava com um grande banquete, competições atléticas e representações teatrais.[26]

Platão dizia que ele tratava de doenças localizadas através de uma dieta equilibrada, sangrias, medicamentos e cirurgia, mas se considerasse um homem doente da alma, rebelde e destemperado, e incapaz de seguir seus preceitos, ou se estivesse em estágio terminal, não o tratava.[27] O relato de Platão é colorido pela sua ética e visão política, pois acreditava que uma vida não valia a pena ser vivida se não fosse de acordo com as leis da virtude, e um homem não merecia a atenção da sociedade se sua vida não revertesse para o benefício da coletividade.[28] De qualquer forma essa visão era compartilhada pelos gregos de sua época. Os sacerdotes-curadores de Epidauro, na entrada do seu templo, haviam feito inscrever o dito: "Puro deve ser quem entra no templo odoroso; pureza significa ser sábio nas coisas sagradas", e naquela época no conceito de pureza estava implícito o de arete, virtude.[24]

Santuário de Esculápio em Cós

Em todos os seus santuários havia um templo, uma fonte para purificação e o abaton, um local para dormir. A área do santuário ainda muitas vezes incluía termas, jardins cultivados, um teatro, um ginásio e uma biblioteca, pois se considerava a cura um processo que envolvia a transformação do corpo e do espírito.[24] Roetzel os considera os precursores da medicina holística,[11] e Bergdolt considera o elemento psicossomático um fator determinante na eficácia do tratamento. Mas gestantes perto de darem à luz ou doentes terminais não eram admitidos, pois tanto a morte como o nascimento profanavam a santidade do local. Porém em tempos romanos essa proibição foi anulada. Também havia um canil ou um criadouro de serpentes não venenosas, os símbolos do deus, que eram usados como mediadores de seus poderes através de seu contato com os doentes. O sistema de culto e cura nos santuários de Esculápio se desenvolvia em linhas gerais como segue: O paciente se purificava na fonte do santuário e oferecia um sacrifício. Oferendas comuns eram bolos de mel, bolos de queijo e figos. Preces, meditação, o canto de hinos sacros, banhos medicinais, exposição à luz do sol, caminhadas de pés descalços, uma dieta especial, abstinência de sexo e exercícios físicos também eram muitas vezes parte do ritual e do tratamento. À noite o doente se dirigia para o abaton, a fim de dormir e se produzir a enkoimesis, ou "incubação", ou seja, a revelação do deus em sonhos, o que frequentemente acontecia. O deus ou aparecia e curava diretamente, ou dava instruções sobre um tratamento específico, o que às vezes acontecia ao longo de vários dias em sonhos diferentes. O sonho era então relatado aos sacerdotes, que interpretavam ou complementavam as instruções. O seguimento literal das instruções dadas em sonho era um pré-requisito para a cura. São conhecidos vários relatos sobre o deus aparecendo em sonhos contrariado com a falta de fé do paciente. Ocasionalmente o deus transformava uma doença séria em outra mais branda, e então a deixava ao cuidado dos médicos. Às vezes o sonho não era necessário, e a cura se efetuava imediatamente. Se a pessoa fosse curada, o costume era agradecer com um novo sacrifício, então geralmente era oferecido um galo ou uma soma em dinheiro. Também podia ser um ex-voto, uma obra de arte, ou um poema composto em sua honra. Os registros históricos referem curas surpreendentes, endireitando aleijados e restituindo a visão a cegos, a audição a surdos e a fala aos mudos.[8][24][29]

Tradição e modernidade

A tradição médica derivada de Esculápio foi assimilada por Hipócrates, considerado por muitos o pai da medicina ocidental, que se formou no santuário de Esculápio em Cós. Ele mesmo era descendente dos Asclepíades, uma linhagem de sacerdotes-médicos que se dizia derivada da progênie do próprio deus. Apesar de a medicina hipocrática se desenvolver em uma linha mais científica e empírica, vários aspectos da sua doutrina se basearam no folclore religioso que cercava o culto de Esculápio, e deu grande atenção aos sonhos como elemento de diagnóstico.[8][30]

Depois do surgimento do Cristianismo vários santuários de Esculápio foram transformados em igrejas cristãs, dedicadas a santos ligados à cura, mas ele foi um dos deuses pagãos de maior sobrevida dentro do Cristianismo, em virtude de sua fama de bondade e compaixão. Na época em que o Partenon de Atenas já era uma igreja cristã, no século VI d.C., o templo de Esculápio adjacente ainda era frequentado.[24] Nillson & Kroll afirmam que a liturgia de culto de Esculápio foi uma forte influência sobre a sistematização da ritualística cristã,[31] e Justino, em sua Apologia, escreveu que "Quando dizemos que Jesus curou os aleijados e os paralíticos e os que eram doentes desde o nascimento e que ressuscitou os mortos, estamos relatando feitos que eram idênticos àqueles que se diz Esculápio ter praticado".[32] Hart traçou um paralelo entre as vidas de Esculápio e Cristo, onde apontou várias semelhanças. Ambos eram filhos de um pai divino e de uma mãe mortal e virgem, ligadas a maridos mortais; seu nascimento foi acusado por manifestações sobrenaturais, Cristo com uma estrela que se movia diante dos Reis Magos e por anjos que chamaram os pastores para o adorarem, e segundo Pausânias Esculápio foi achado por um pastor cercado de uma luz divina; ambos nasceram como mortais e depois de viverem uma vida pura dedicada ao socorro da humanidade, operando várias curas miraculosas, morreram uma morte humana, e foram deificados em seguida; Jesus foi perseguido pela sociedade por ameaçar o status quo, e Esculápio foi punido por ressuscitar os mortos e anular o poder de Hades.[33]

Apesar das similaridades entre ambos os personagens, ao longo da Idade Média o papel de deus curador foi atribuído a Cristo, frequentemente através da intercessão de santos ligados à cura, como Cosme e Damião. Mas a lembrança de Esculápio não foi erradicada de todo, sendo preservada em monumentos, em inscrições, e na literatura clássica, copiada pelos monges medievais. No Renascimento ele foi resgatado de seu estado de animação suspensa e sua imagem voltou a aparecer com grande frequência como o supremo patrono da Medicina. Durante a Reforma Protestante a iconografia de Cosme e Damião foi completamente substituída pela de Esculápio entre os países reformados, e o seu bastão com a serpente enrolada se implantou definitivamente como o símbolo da Medicina em todo o ocidente.[34]

Atualmente muitos aspectos das práticas terapêuticas inspiradas por Esculápio, e sistematizadas por Pitágoras, Hipócrates, Galeno e outros médicos da antiguidade, permanecem em vigor. O aborto e a eutanásia continuam cercados de tabus, e a prescrição de drogas que possam auxiliar no suicídio ou ser usadas para envenenemanto é vedada. Durante muito tempo a Medicina permaneceu associada à Religião, e os médicos ainda gozam atualmente de um prestígio social que poucas profissões desfrutam, são autorizados a excercer o ofício somente após uma profissão pública de devoção à sua especialidade em benefício de todos - o Juramento de Hipócrates, que abre com uma invocação a Apolo, Esculápio, Higéia e Panacéia - além de curadores são amiúde conselheiros, e sua relação com os doentes é protegida pelo sigilo, são obrigados a manter um comportamento ético rigoroso, e abusos de todos os tipos sobre os pacientes são punidos com sanções severas pelas associações médicas a que estão vinculados, muitas vezes com a expulsão com desgraça e cancelamento da licença de praticar. A preocupação com a dieta e com a anamnese detalhada recentemente têm ganhado novo relevo entre os médicos, e os métodos hipocráticos tradicionais de diagnóstico não-invasivo, de acordo com algumas pesquisas, são mais eficientes para uma identificação correta de grande número de doenças do que a dependência de um complexo aparato instrumental e laboratorial.[35] Além disso, as práticas terapêuticas que envolvem a reorientação da mente e o emprego da fé também têm recebido a atenção dos pesquisadores, e mostram resultados promissores.[36]

Fortuna; deusa da riqueza e da sorte

Fortuna era a deusa romana da sorte (boa ou má), da esperança. Corresponde a divindade grega Tique. Era representada com portando uma cornucópia e um timão, que simbolizavam a distribuição de bens e a coordenação da vida dos homens, e geralmente estava cega ou com a vista tapada (como a moderna imagem da justiça), pois distribuía seus desígnios aleatoriamente.

Fortuna era considerada filha de Júpiter. Roma dedicava a ela o dia 11 de Junho, e no dia 24 do mesmo mês realiza um festival em sua homenagem, o Fors Fortuna. Seu culto foi introduzido por Sérvio Túlio, e Fortuna possuía um templo nos tempos de Roma republicana próximo ao Capitólio chamado de templo de Fortuna Virilis.

Juno; deusa da força vital, deusa dos deuses

Juno é a esposa de Júpiter e rainha dos deuses. É representada pelo pavão, sua ave favorita. Íris era sua servente e mensageira. Sua equivalente na mitologia grega é Hera. O sexto mês do ano, junho tem esse nome em sua homenagem [1] .

Juno e Júpiter tinham 4 filhos, Lucina (Ilítia), deusa dos partos e gestantes, Juventa (Hebe), deusa da juventude, Marte (Ares), deus da guerra e Vulcano (Hefesto), o artista celestial, que era coxo. Juno sentia-se tão aborrecida ao vê-lo que atirou-o para fora do céu. Outra versão diz que Júpiter o jogou para fora, por este ter participado de uma briga do rei do Olimpo com Juno, deixando-o coxo com a queda.

Juno possuía muitas rivais, entre elas, a bela Calisto, que Juno, por inveja da imensa beleza que conquistara seu marido, transformou numa ursa. Calisto passou a viver sozinha com medo dos caçadores e das outras feras da floresta, esquecendo-se de que agora ela própria era uma.

Um dia, Calisto reconheceu num caçador seu filho Arcas, já homem. Quis correr e abraçá-lo mas Arcas já erguera sua lança para matá-la quando Júpiter, vendo a desgraça que estava por acontecer afastou-os e lançou-os ao céu transformando-os nas constelações de Ursa Maior e Ursa Menor.

Juno, enfurecida por Júpiter ter dado tal privilégio a sua rival, sai à procura de Tétis e Oceanus, as antigas divindades do mar. Conta-lhes toda a injúria que Júpiter fizera a ela, e pede para que eles não deixem as constelações se esconderem em suas águas. Assim a Ursa Maior e a Ursa Menor movem-se em círculo no céu mas nunca descem por trás do oceâno, como as outras estrelas.

Outra de suas rivais foi Io, que Júpiter, ao sentir a presença de Juno, transforma em uma novilha. Juno, desconfiada, pede a novilha de presente. Júpiter não podia negar um presente tão insignificante a sua mulher, então, pesaroso, entrega a novilha a Juno que coloca-a sob os cuidados de Argos Panoptes, um monstro de muitos olhos, e tendo tantos, nunca fechava mais que dois para dormir, vigiando Io dia e noite. Júpiter, perturbado pelo sofrimento da amante, pede a Mercúrio que mate Argos. Com músicas e histórias, Mercúrio consegue fazer com que Argos feche seus 100 olhos e nisso corta sua cabeça fora. Juno entristecida recolhe seus olhos que haviam perdido toda a luz e coloca-os na cauda de seu pavão, onde permanecem até hoje.

Enfurecida, Juno persegue Io por muitas partes da terra até que Júpiter intercede por ela prometendo não dar mais atenção a Io. Juno concorda devolvendo-lhe a aparência humana.

Outro forte inimigo de Juno foi Hércules, filho de Júpiter com a mortal Alcmena. A este declarou guerra desde seu nascimento. Com uma tentativa frustrada de matá-lo quando era apenas um bebê, Juno o submete a Euristeus, que o envolve em muitas aventuras perigosas que ficaram conhecidas como "doze trabalhos".

Júpiter; deus dos deuses, senhor do Universo

Júpiter (em latim, Iuppiter) era o deus romano do dia, comumente identificado com o deus grego Zeus. Também era chamado de Jove (Jovis). Na mitologia romana Júpiter é o pai do deus Marte. Assim, Júpiter é o avô de Rómulo e Remo, os lendários fundadores de Roma. Júpiter é filho de Saturno e Cíbele.

Identificação com Zeus

A identificação entre Júpiter e Zeus não é tão simples quanto vários livros de mitologia sugerem.

Cícero, por exemplo, identificou três deuses de nome "Júpiter"[1]:
Júpiter 1, filho do Éter, pai de Diana 1, Líber, Prosérpina, Hélio 1, e os Anaces: Tritopatreus, Eubuleus, e Dionísio 1

Júpiter 2, filho do Céu, pai de Minerva 4 e das Musas

Júpiter 3, filho de Saturno, pai de Minerva 3, das Nove Musas, dos Dioscuri (Castor e Pólux), e de Mercúrio 3, Apolo 3, Diana 2, Vulcano 3, Dionísio 4 e Vênus 3

O Júpiter associado à ilha de Creta é o terceiro[2].

Nascimento

Os fados tinham comunicado ao seu pai, Saturno, que ele havia de ser afastado do trono por um filho que nascesse dele. Para evitar a concretização da ameaça do destino, Saturno devorava os filhos que mal acabavam de nascer. Quando Júpiter nasceu, a mãe, cansada de ver assim desaparecer todos os filhos, entregou a Saturno uma pedra, que o deus engoliu sem se dar conta do logro.

Sua mãe então o entregou às ninfas da floresta em que o havia parido.[3]

Criado longe, na ilha de Creta, para não ter o mesmo destino cruel dos irmãos, ali cresceu alimentado pela cabra Amalteia. Quando esta cabra morreu, Júpiter usou a sua pele para fazer uma armadura que ficou conhecida por Égide.

Rebelião

Quando chegou à idade adulta enfrentou o pai e, com a ajuda de uma droga, obrigou-o a vomitar todos os filhos que tinha devorado. Após libertar os irmãos do ventre paterno, empreendeu uma revolta (titanomaquia). Saturno procurou seus irmãos para fazer frente ao jovem deus rebelde que, com seus irmãos, reuniram-se no Olimpo. Casou-se com Juno, sua irmã e filha preferida de Cibele.[4]

Filhos

Júpiter teve muitos filhos, tanto de deusas como de mulheres. Marte, Minerva e Vênus são seus filhos divinos, entre outros. Quando se apaixonava por mortais, Júpiter assumia diversas formas para se poder aproximar delas.
Baco era seu filho e da mortal Sémele. A jovem durante a gravidez insistiu que queria ver o pai do seu filho, em toda a glória. Júpiter tentou dissuadi-la, mas sem êxito. Quando o rei dos deuses se apresentou abertamente à sua amante, esta caiu fulminada. Júpiter tomou então o feto e colocou-o na sua barriga da perna, onde terminou a gestação.

Para conquistar a Princesa Europa, transformou-se em touro branco. A jovem aproximou-se e Júpiter mostrou-se meigo. Quando Europa montou sobre o seu dorso, ele elevou-se nos ares e levou a princesa para a ilha de Creta, onde se uniu a ela. Dessa união nasceram Minos, Radamante e Sarpédon.

Noutra altura apaixonou-se por Alcmena, esposa de Anfitrião. Para a conquistar, assumiu a forma do próprio marido e contou com a ajuda de Mercúrio, que tomou a forma do criado Sósia. Dessa união nasceu o semi-deus Hércules.

Marte; deus da guerra

Marte era o deus romano da guerra, equivalente ao grego Ares.

Filho de Juno e de Júpiter, era considerado o deus da guerra sangrenta, ao contrário de sua irmã Minerva, que representa a guerra justa e diplomática. Os dois irmãos tinham uma rixa, que acabou culminando no frente-a-frente de ambos, junto das muralhas de Tróia, cada um dos quais defendendo um dos exércitos. Marte, protector dos troianos, acabou derrotado.

Marte, apesar de bárbaro e cruel, tinha o amor da deusa Vênus, e com ela teve um filho, Cupido e uma filha mortal, Harmonia. Na verdade tratava-se de uma relação adúltera, uma vez que a deusa era esposa de Vulcano, que arranjou um estratagema para os descobrir e prender numa rede enquanto estavam juntos na cama.

O povo romano considerava-se descendente daquele deus porque Rómulo era filho de Reia Sílvia ou Ília, princesa de Alba Longa, e Marte.

Assim como Marte é o deus romano da guerra, bem como seu correspondente Ares na mitologia grega. Há também Cariocecus ou Mars Cariocecus que é o deus lusitano da guerra. O planeta Marte provavelmente recebeu este nome devido à sua cor vermelha, que por ser a cor do sangue era associado à violência e não ao amor, como foi traduzido na cultura popular com associação às rosas.

Mercúrio; deus mensageiro

Na mitologia romana, Mercúrio (associado ao deus Grego Hermes) era um mensageiro e deus da venda, lucro e comércio, o filho de Maia Maiestas, também conhecida como Ops, a versão romana de Reia, e Júpiter. Seu nome é relacionado à palavra latina merx ("mercadoria"; comparado a mercador, comércio etc). Em suas formas mais antigas, ele aparenta ter sido relacionado ao deus Etrusco Turms, mas a maior parte de suas características e mitologia são emprestadas do deus Grego, Hermes.

Mercúrio era o deus romano encarregado de levar as mensagens de Júpiter. Era filho de Júpiter e de Bona Dea e nasceu em Cilene, monte de Arcádia. Os seus atributos incluem uma bolsa, umas sandálias e um capacete com asas, uma varinha de condão e o caduceu. Quando Proserpina foi raptada, tentou resgatá-la dos infernos sem muito sucesso. Era o deus da eloquência, do comércio, dos viajantes e dos ladrões, a personificação da inteligência. Correspondia ao Hermes grego, protetor dos rebanhos, dos viajantes e comerciantes: muito rápido, era o mensageiro. O planeta Mercúrio provavelmente recebeu este nome porque se move rapidamente no céu.

Mercúrio influenciou o nome de uma série de coisas em vários campos da ciência, tais como o planeta Mercúrio e o elemento mercúrio. A palavra mercurial é geralmente usada para se referir a algo ou alguém errático, volátil ou instável, derivado da rapidez dos vôos de Mercúrio de um lugar a outro. O termo vem da astrologia e descreve o comportamento esperado de alguém sob a influêcia do planeta Mercúrio.

Adoração

Mercúrio não aparece entre os numinosos di indigetes da antiga religião romana. Especialmente, ele incluía o antigo Dei Lucrii quando a religião romana foi sincretizada com a religião grega durante o tempo da República Romana, iniciando-se pelo século IV a.C.. No princípio, Mercúrio tinha essencialmente os mesmos aspectos que Hermes, vestindo os sapatos alados talaria e uma petasos alada, e carregando um caduceu, uma baqueta heráldica com duas cobras entrelaçadas que foi o presente de Apolo a Hermes. Ele era frequentemente acompanhado de um galo jovem, mensageiro do novo dia, de um carneiro ou bode, simbolizando fertilidade, e de uma tartaruga, referindo-se à legendária invenção de Mercúrio da lira a partir do casco de uma tartaruga. Como Hermes, ele foi também um mensageiro dos deuses e um deus de mercantilismo, particularmente do mercado de grãos. Mercúrio também foi considerado um deus de abundância e sucesso comercial, particulamente na Gália. Ele foi também, como Hermes, o psicopompo romano, conduzindo almas recém falecidas à vida após a morte. Adicionalmente, Ovídio escreveu que Mercúrio carregou os sonhos de Morfeu do vale dos de Somnus aos humanos dormentes.

O templo de Mercúrio no Circo Máximo, entre os montes Aventino e Palatino, foi construído em 495 a.C.. Esse era um local adequado para adorar um deus rápido do comércio e viagem, já que ele era um grande centro de comércio assim como uma pista de corrida. Já que ele ficava entre a fortaleza dos plebeus no Aventino e o centro patrício no Palatino, isso também enfatizava Mercúrio como um mediador.

Pelo fato de Mercúrio não ser uma das divindades antigas sobrevivendo no Império Romano, a ele não foi atribuído um flamen (“sacerdote”), mas ele tinha uma festividade maior em 15 de maio, a Mercuralia. Durante a Mercuralia, os mercadores aspergiam em suas cabeças a água da sua fonte sagrada próxima a Porta Capena.

Sincretismo

Quando eles descreveram os deuses das tribos Celtas e Germânicas, ao invés de considerá-las deidades separadas, os Romanos as interpretaram como manifetações locais ou aspectos de seus próprios deuses, um traço cultural chamado interpretatio romana. Mercúrio em particular foi reportado como se tornando extremamente popular entre as nações que o Império Romano conquistou; Júlio César escreveu de Mercúrio sendo o Deus mais popular na Britânia e na Gália, considerado como o inventor de todas as artes. Isso é provavelmente porque no sincretismo romano, Mercúrio foi igualado ao deus celta Lugus, e neste aspecto foi comumente acompanhado pela deusa celta Rosmerta. Apesar de que Lugus pode ter sido originalmente uma deidade de luz ou o sol (pesar de que isso é contestado), similar ao Apolo Romano, sua importância como um deus de troca e comércio o fizeram mais comparável com Mercúrio, e Apolo foi ao invés disso igualado com a deidade Céltica Belenus.

Os Romanos associaram Mercúrio com o deus germánico Wotan, por interpretatio romana; O escritor do primeiro século Tacitus identifica os dois como o mesmo, e o descreve como o deus chefe dos povos Germânicos. Júlio César, numa seção de sua Guerras Gálicas, descrevendo os costumes das tribos Germânicas, escreveu "Os Germânicos adoram principalmente Mercúrio", aparentemente identificando Wotan com Mercúrio.

Em áreas célticas, Mercúrio foi às vezes retratado com três cabeças ou faces, e em Tongeren, Bélgica, uma estatueta de Mercúrio com três falos foi encontrada, com os dois extras sobressaindo de sua cabeça e substituindo seu nariz; isto foi provavelmente porque número três era considerado mágico, fazendo de tais estátuas encantos de boa sorte e fertilidade. Os Romanos também faziam extenso uso de pequenas estátuas de Mercúrio, provavelmente pegando emprestado da tradição da Grécia antiga e mercadores de Hermae.

Nomes e Epítetos

Mercúrio era conhecido pelos romanos como Mercurius e ocasionalmente nos escritos antigos como Mercvrivs, Mirqurios ou Mircurios, tinha um número de epítetos representando diferentes aspectos ou funções, ou representando sincretismos com deidades não romanas. Os mais comuns e significantes destes epítetos incluiam:

Mercurius Artaios, uma combinação de Mercúrio com o deus Celta Artaios, uma deidade de ursos e caça que foi adorada em Beaucroissant, França.

Mercurius Arvernus, uma combinação do Célta Arvernus com Mercúrio. Arvernus foi adorado em Rhineland, possivelmente como uma deidade particular da tribo Arverni, apesar de que nenhuma dedicação à Mercurius Arvernus é feita em seu território na região Auvergne da França central.

Mercurius Cassius, uma combinação do deus Celta que é equivalente ao deus romano Bacchus com Mercúrio, adorado como o deus do êxtase religioso que produz frutos.

Mercurius Cissonius, uma combinação de Mercúrio com o deus Celta Cissonius, sobre quem é escrito na área que abrange Cologne, Alemanha até Saintes, França.

Mercurius Esibraeus, uma combinação da deidade Ibérica Esibraeus com a deidade Romana Mercúrio. Esibraeus é mencionado apenas em uma inscrição encontrada em Medelim, Portugal, e é possivelmente a mesma deidade que Banda Isibraiegus, que é invocada em uma inscrição das proximidades da vila de Bemposta.
Mercurius Gebrinius, uma combinação de Mercúrio com o deus Céltico ou Germânico Gebrinius, conhecido por uma inscrição em um altar em Bonn, Alemanha.

Mercurius Moccus, de um deus Celta, Moccus, que foi igualado a Mercúrio, conhecido por evidência em Langres, França. O nome Moccus (“porco”) implica que esta deidade foi conectada com caça de javalis.

Mercurius Visucius, uma combinação do deus celta Visucius com o deus romano Mercúrio, atestado em uma inscrição de Stuttgart, Alemanha. Visucius era adorado primeiramente na área fronteiriça entre o império na Gália e Germânia. Apesar que ele foi primeiramente associado com Mercúrio, Visucius foi também às vezes ligado com o deus romano Mars, como uma inscrição dedicatória a Mars Visucius e Visucia, a "contraparte feminina" de Visucius, foi encontrada na Gália.

Minerva; deusa da sabedoria
Minerva era a deusa romana das artes e da sabedoria. Correspondente à grega Atena.

Origem

Estátua da Deusa Minerva do escultor François Gaspard AdamEquivalente romana da deusa grega Atena, Minerva era filha de Júpiter, após este engolir a deusa Métis (Prudência). Com uma forte dor de cabeça, pediu a Vulcano que abrisse sua cabeça com o seu melhor machado, após o qual saiu Minerva, já adulta, portando escudo, lança e armadura. Era considerada uma das três deusas virgens, ao lado de Diana e Vesta.

Deusa da sabedoria, das artes e da estratégia de guerra, era filha de Júpiter. Minerva e Netuno disputaram entre si qual dos dois daria o nome à cidade que Cécropes, rei dos atenienses, havia mandado construir na Ática. Essa honra caberia àquele que fizesse coisa de maior beleza e significado. Minerva, com um golpe de lança, fez nascer da terra uma oliveira em flor, e Netuno, com um golpe do seu tridente, fez nascer um cavalo alado e fogoso. Os deuses, que presidiram a este duelo, decidiram em favor de Minerva, já que a oliveira florida, além de muito bela, era o símbolo da paz. Assim, a cidade nova da Ática foi chamada Atenas.

Minerva representa-se com um capacete na cabeça, escudo no braço e lança na mão, porque era deusa da estratégia de guerra, tendo junto de si um mocho e vários instrumentos matemáticos, por ser também deusa da sabedoria. A Minerva é o símbolo oficial dos engenheiros.

Minerva era para os ateanienses a deusa da excelência, da misericórdia e da pátria.

Netuno; deus dos mares

Neptuno (português europeu) ou Netuno (português brasileiro) era o deus romano do mar, inspirado no deus grego Posídon. Filho do deus Saturno e irmão de Júpiter e de Plutão. Originariamente era o deus das fontes e das correntes de água.

Plutão; deus do submundo e das riquezas dos mortos

Plutão (do grego antigo Pluto = rico) ou Dis (do latim dives = rico) é como ficou conhecido o deus dos mortos na mitologia romana, após a introdução dos mitos e da literatura gregas; é que, originalmente, não possuíam os romanos uma noção de um reino para a felicidade ou infelicidade pós-morte, como o Hades grego - senão uma imensa cavidade, chamada Orcus, que mais tarde passou a identificar-se com o submundo grego. Ao deus que o comandava, então, incorporaram Hades, sob o seu epíteto de Pluto.[1]

Em sua homenagem era celebrado um grande festival em fevereiro, quando então eram-lhe ofertados sacrifícios de touros e cabras negros (chamados de februationes) por um sacerdote caracterizado por uma coroa de cipreste, e com a duração de doze noites. [2] Não havia, em Roma, templos dedicados a Plutão.[2]

Plutão era casado com a sobrinha Prosérpina, filha de Ceres (equivalentes, respectivamente, às deusas gregas Perséfone e Deméter).

Tellus; deusa da terra - Mãe Terra

Tellus, na mitologia romana, era a deusa da Terra — o solo fértil. Na mitologia grega era Gaia - "terra mater", que quer dizer "terra mãe". Ela representa o solo fértil, e também o fundamento sobre que repousam os elementos que se geram entre si. Existem centenas de outros nomes para o nosso planeta em várias línguas. O nome do planeta Terra na língua inglesa, "Earth", é o único nome de planeta que não tem origem na mitologia greco-romana. O nome provém do alemão e inglês antigos.

Diziam-na mulher do Sol ou do Céu, porque tanto a um como ao outro deve a sua fertilidade. Era representada como uma mulher corpulenta, com uma grande quantidade de peitos. Frequentemente se confundem Telus e Terra com Cibele. Antes de estar Apolo de posse do oráculo de Delfos, era Telus que o possuía e que o divulgava; mas em tudo estava em meias com Netuno. Depois, Telus cedeu os seus direitos a Temis, e Temis a Apolo. Algumas versões dizem que Telo é apenas o nome romano de Gaia, a terra

Venus; deusa da beleza e do amor

Vénus (português europeu) ou Vênus (português brasileiro) é a deusa do panteão (ou panteon) romano, equivalente a Afrodite no panteão grego, cujo nome vem acompanhado, por vezes, de epítetos como "Citereia" já que, quando do nascimento, teria passado por Citera, onde era adorada sob este nome. É a deusa do Amor e da Beleza, tendo sido assimilada à Vênus romana, uma deusa local do mercado[1].

O mito do nascimento conta que surgiu de dentro de uma concha de madrepérola, tendo sido gerada pelas espumas (aphros, em grego). Em outra versão, é filha de Júpiter e Dione. Era considerada esposa de Vulcano, o deus manco, mas mantinha uma relação adúltera com Marte.

Vênus foi uma das divindades mais veneradas entre os antigos, sobretudo na cidade de Pafos, onde o templo era admirável. Tinha um olhar vago, e cultuava-se o zanago dos olhos como ideal da beleza feminina. Possuía um carro puxado por cisnes.

Vénus possui muitas formas de representação artística, desde a clássica (greco-romana) até às modernas, passando pela renascentista. É de uma anatomia divinal, daí ser considerada pelos antigos gregos e romanos como a deusa do erotismo, da beleza e do amor.

Vênus de Milo, Museu do LouvreOs romanos consideravam-se descendentes da deusa pelo lado de Eneias, o fundador mítico da raça romana, que era filho de Vénus com o mortal Anquises.

Na epopeia Os Lusíadas, Luís de Camões apresenta a deusa como a principal apoiante dos heróis portugueses.

Vulcano; deus do fogo

Vulcano (Hefesto na mitologia grega) era o deus romano do fogo, filho de Júpiter e de Juno ou ainda, segundo alguns mitólogos, somente de Juno com o auxílio do Vento.

Foi lançado aos mares devido à vergonha de sua mãe pela sua disformidade, foi, porém, recolhido por Tetis e Eurínome, filhas do Oceanus. Noutras versões, a sua fealdade era tal mesmo recém-nascido, que Júpiter o teria lançado do Monte olimpo abaixo. A esse facto de deveria a sua deformidade, pois Vulcano era coxo.

Sua figura era representada como um ferreiro. Era ele quem forjava os raios, atributo de Júpiter. Este deus, o mais feio de todos, era o marido de Vénus ( a Afrodite grega), a deusa da beleza e do amor, que, aliás, lhe era tremendamente infiel.

No entanto, Vulcano forjou armas especiais para Eneias, filho de Vénus de Anquises de Tróia e para Aquiles quando este havia emprestado para Pátroclo,que por sua vez a perdeu para Heitor.

Em certa altura, Vulcano preparou uma rede com que armadilhou a cama onde Vénus e Marte mantinham uma relação adúltera. Deste modo o deus ferreiro conseguiu demonstrar a infidelidade da sua esposa, que no entanto foi perdoada por Júpiter.

Saturno; deus da agricultura

Saturno (do latim Saturnus) é um deus romano da agricultura, justiça e força, equivalente ao grego Cronos. Era um dos titãs, filho do Céu e da Terra. Com uma foice dada por sua mãe mutilou o pai, Urano, tomando o poder entre os deuses.

Expulso do céu por seu filho Júpiter (Zeus), refugiou-se no Lácio. Lá exerceu a soberania e fez reinar a idade do ouro, cheia de paz e abundância, tendo ensinado aos homens a agricultura. Em Lácio, criou uma família e uma conduta novas, vindo a ser pai de Pico.[carece de fontes?]

Os romanos que, segundo outras tradições, atribuem a origem de Roma a Saturno, construíram-lhe um templo e um altar à entrada do Fórum, no Capitólio. Atribui-se ainda a Saturno a criação de divindades como Juno ou Hércules e de heróis como Rómulo. O sábado é o dia consagrado a Saturno.

O Saturno itálico é representado nas moedas como nas pinturas de Pompeia - testemunho ambivalente da sua actividade agrária e da sua identificação com o castrador Cronos - com a serpente na mão. Um baixo-relevo do museu do Capitólio, réplica de um modelo grego, apresenta-o como Cronos, sentado no trono, recebendo das mãos de sua mulher (por vezes chamada Opes nos textos latinos) a pedra envolvida em panos que ele confundiu com Júpiter recém-nascido.

O Saturno africano é um homem de barba curta, penteado com calátides. Mas o deus chega a figurar, na mesma estela, com três aspectos distintos: deus barbudo com a foice, jovem deus solar com a cabeça ornada de raios e jovem deus lunar coroado com o crescente.

Saturnais

Os romanos, com receio que o deus abandonasse o seu lugar (na República depositava-se no seu templo o tesouro do Estado), prenderam a sua estátua com faixas de lã e não a libertavam senão quando se realizavam as Saturnais. Com efeito, estas festas populares, celebradas anualmente por volta do solstício de inverno, pretendiam ressuscitar por um certo tempo a época maravilhosa em que os homens tinham vivido sem contrariedades, sem distinções sociais, numa paz inviolada. Era uma semana de repouso livre e feliz, durante a qual todas as actividades profissionais eram suspensas - até as campanhas militares eram interrompidas - e se realizavam inúmeros banquetes, onde os cidadãos substituíam a toga pela túnica e serviam os seus escravos que, desobrigados das suas funções habituais, falavam sem papas na língua.

Estas festividades desembocavam, inevitavelmente, em grandes orgias. O culto de Saturno não se propagou com a mesma amplitude em todo o mundo romano, tendo sido objecto de um fervor excepcional junto das populações da África. "Dominus Saturnus" representa para estas o deus fertilizador da terra e, igualmente, o sol, assim como a lua. Espécie de divindade suprema do céu, instalada muitas vezes em substituição dos deuses fenícios, o Saturno africano foi, como Moloque, apreciador de vítimas humanas. Estas práticas cessaram sob o Império Romano e foram substituídas por libações e por sacrifícios de touros e de carneiros.

¨É inútil tentar dissuadir racionalmente um homem de algo que ele não concluiu pela razão¨. Jonathan Swift escritor Irlandês

RELIGIOSIDADE E PSICOTERAPIA

O estudo das religiões pelos Psiquiatras é importante não só por serem elas manifestação de conteúdo puramente emocional mas também por atingirem a todo o ser humano com maior ou menor intensidade desde sua mais primitiva infância.

A fé, base da religiosidade, é puramente irracional. É uma confiança cega em um ou mais deuses ou santos. Ao religioso não é permitida a investigação ou dúvida a respeito de sua crença. E a crença, que nos é incutida desde a tenra idade, é difícil de ser encarada sob o ponto de vista especulativo. A leitura dos textos religiosos só pode ser feita tendo em vista que se trata de uma verdade revelada pelo deus em questão, comumente através de um profeta ou homem santo e a dúvida do crente, por si só, já consiste em uma blasfêmia.

Assim, ao abordarmos o tema devemos levar em conta o que nos dizia Jonathan Swift escritor Irlandês que viveu de 1667 a 1745: ¨É inútil tentar dissuadir racionalmente um homem de algo que ele não concluiu pela razão¨. Na minha opinião o termo ¨inútil¨ poderia ser substituído por ¨dificílimo¨.

Ao nascer, o ser humano se encontra em extremo estado de desamparo e dependência. Sua imaturidade é gritante, falta-lhe a mielinização das fibras nervosas piramidais, o que o deixa incapaz de se locomover e seus movimentos incoordenados são reflexos de automatismo e defesa. Diferentemente é o que ocorre com muitos outros mamíferos que logo ao nascer se levantam e vão em busca da teta para se alimentar e em poucas horas já podem correr fugindo do perigo.

Se não for socorrido por alguém, via de regra sua mãe ou substituta, o recém nascido humano morrerá em pouco tempo. No plano emocional, a necessidade de alguém que o cuide e proteja o acompanhará por toda a vida em maior ou menor grau.

Internamente, o "bicho homem" é um joguete de suas pulsões amorosas (libidinosas), por um lado, e agressivas (de morte), por outro.

Externamente, é cercado ora por uma natureza amorosa que lhe proporcionaágua, alimento, calor, proteção enfim, ora por outra que o ameaça constantemente com secas, enchentes, tremores de terra, vulcões, raios, perdas dos seus queridos, pela doença e pela morte.

A ignorância acerca de onde veio e para onde vai –- o futuro é uma outra incógnita - torna o ser humano carente de respostas que o tranqüilizem e apavorado diante do desconhecido. A falta de conhecimentos calcados na razão, devido à nossa ignorância, nos leva a procurar respostas fundamentadas na emoção, na fé, nas religiões. E poderíamos dizer, no "que bom se fosse assim ! É dificílimo suportar a nossa ignorância, o não saber ou o saber muito pouco sobre o mundo que nos rodeia e sobre nós mesmos. As religiões pretendem nos oferecer respostas ¨certas e indiscutíveis¨ através dos livros sagrados, e as dúvidas deixariam de existir trazendo-nos a ¨segurança e a tranqüilidade¨. Dizer ¨não sei¨, ignoro, é um golpe insuportável para o nosso narcisismo .

Cada cultura tem seus mitos e crenças para responder às interrogações que vão surgindo. Tentamos explicar a nossa origem e o nosso futuro construindo esquemas que nos proporcionem uma maior tranqüilidade frente ao desconhecido. O modelo utilizado é o humano: deve haver um pai e/ou uma mãe celestiais que nos criaram e que nos cuidam e cuidarão, e nos premiarão ou castigarão segundo nosso comportamento durante nossa vida. A incerteza, então, será substituída por um ilusória segurança. A comunicação com esses poderes, agora celestiais, será feita através de oráculos, de preces, através dos astros, das runas, dos búzios, das cartas ou mesmo das linhas das mãos. A maior parte das vezes com o auxílio de intermediários, profetas, sacerdotes ou guias que se comunicariam diretamente com os deuses.

A reação do ambivalente e desvalido ser humano começa por dissociar internamente o bom do mau. Num segundo tempo, se assim podemos dizer, projeta em lugar que julga seguro, para preservá-lo, tudo o que tem de bom e amoroso e, também, muito de sua onipotência narcísica.

A idéia de um ser poderoso, onipotente e sempre presente, que tudo sabe a nosso respeito e está sempre pronto a vir em nosso socorro como uma mãe ou um pai amorosos, encontra na figura de um deus, ou dos deuses, essa necessidade satisfeita.

Criamos então nesse lugar seguro, "nos céus", um ou mais deuses. E, como ficamos esvaziados, cada vez que precisamos de algo bom, pressurosos corremos ao deus para implorar, de volta, o que necessitamos.

O mesmo ocorre com nossos impulsos agressivos e destrutivos, com o que temos de mau: pomos lá fora numa figura de um deus do mal, um demônio, e o colocamos o mais distante possível: nos confins do inferno.

Assim a nossa "criança primitiva, interna" passa a vida a pedir, a implorar coisas boas, em forma de bênçãos, graças, aos céus, a seu deus ou a seus prepostos e a fugir do mal, do demônio, que a ameaça, interna e externamente.

Resumida e esquematicamente, é o que ocorre no psiquismo do ser humano.

Quando um líder poderoso e onipotente toma as rédeas de um clã, de um povo, se identifica com o deus que cria e a religião está em seu nascedouro. Ela corresponde a uma necessidade interna de se sentir seguro, protegido e amado. A mesma necessidade que tínhamos no início de nossas vidas e que continuamos a ter.

Assim, penso eu, a religião deve ser entendida como uma necessidade do plano emocional que encontra na ilusão uma relativa satisfação e segurança, pois, inclusive "consegue explicar" muitas interrogações até então sem resposta, tais como a nossa origem e nosso futuro, por exemplo.

Podemos comparar a necessidade da religião – e aqui vamos nos arriscar à uma analogia - com a necessidade de uma prótese. Ela funciona como funcionam os óculos, a bengala, a muleta para os que deles necessitam. Não há porque criticá-la ou depreciá-la. Na psicoterapia, seja ela de base analítica ou não, ela deve ser tratada como devem ser tratadas todas as inúmeras faces dos problemas vivenciais humanos. Ela deve ser examinada e compreendida mas nunca depreciada ou combatida. Tentar tirar a religião de quem dela necessita é condenar o crente à orfandade.

Além de uma sensação de segurança as religiões criam códigos de comportamento tentando estimular o que há de bom dentro e fora do homem e, assim levá-lo a fugir do mal, do demônio, exorcizando-o.

As religiões auxiliam o processo civilizatório criando obrigações e proibições procurando coibir os impulsos homicidas, os incestuosos, os canibalísticos, etc, com o fim de proporcionar uma vida em sociedade mais tolerável.

Na religião mosaica, por exemplo, base das outras duas maiores religiões do mundo ocidental atual, a cristã e a maometana, nota-se esse cuidado através dos mandamentos. Neles, o que não é proibido é obrigatório. A religião mosaica obriga o crente a cultuar um só deus, guardando o seu dia, e banir tudo que é mau: proíbe adorar outros deuses que não o considerado "único e verdadeiro", não nomeá-lo, a fim de não banalizá-lo. Ordena honrar pai e mãe com vistas à restrição do incesto. Proíbe fazer imagens e adorá-las, levantar falso testemunho, matar, roubar, cobiçar o que é de outrem e cometer adultério.

O homem, ao projetar na figura de um deus suas boas qualidades, também projeta sua onipotência infantil da qual, narcisisticamente, conserva boa dose pelo correr da vida.

O chefe do clã é o deus primitivo, já que se sente tão identificado com ele que fala em seu nome e se comporta frente aos liderados como um onipotente e todo poderoso deus. Assim também eram e são os profetas.

Vejamos o mito da origem do monoteísmo hebreu: Abrahão, patriarca da religião monoteísta, vem de uma cultura politeísta, na baixa Mesopotâmia, onde seu pai Taré era fabricante de ídolos. Abrahão liderava um clã de pastores nômades, e tinha poderes que iam até, se quisesse, matar seu próprio filho, oferecendo-o em holocausto aos deuses , como era usual entre os povos politeístas da região. Era ele o poderoso deus de seu clã. Em suas andanças pelo fértil crescente, rodeado de desertos, teve sua cobiça aguçada, manifestando seu desejo de ter para si e para os seus aquelas férteis terras pertencentes aos cananeus, cineus, ceneseus, cedmoneus, heteus, fereseus, refaim, amorreus, gergeseus e gebuseus. Expressou sua vontade de possuir essas terras, através de "um pacto com seu deus¨ (YHWH, Javé, El Shadai, Eloim, Adonai), mediante o qual a terra desses povos lhe é "prometida" por esse deus. (Gn.15-12-21). Sua parte no pacto era tomar esse deus como único e verdadeiro, banindo os outros deuses através da destruição de suas imagens, seus templos e inclusive de seus fiéis. Lembramos que pacto semelhante fez Constantino, quando adotou a fé e a cruz cristãs ("In hoc signo vinces"), ao receber a "graça" de derrotar Maxêncio, tornando-se senhor do Ocidente.

Voltemos a Abrahão: como selo desse pacto seu deus exigia a circuncisão de todo o macho de sua casa, dali por diante.

A religião entre os cananeus exigia o sacrifício das primícias, ou seja, aos deuses as primeiras colheitas, as primeiras crias do gado e também o primeiro filho homem. Na troca do politeísmo pelo deus único Javé, está incluído no pacto, embora não explicitado, que dali por diante o sacrifício humano seria substituído pela circuncisão, um sacrifício de sangue, mas bem menor. O que foi, indiscutivelmente, um avanço. Mas o monoteísmo se mostrou mais narcísicamente intransigente e despótico contra os outros deuses ordenando sua destruição. Deveriam ser destruídos não só as imagens como os templos dos que passaram a ser chamados ímpios, idólatras, -– como pejorativo — góis ou gentios. Os adoradores de outros deuses também deveriam ser destruídos.

Atitude semelhante e anterior ao monoteísmo hebreu foi a do faraó egípcio da XVIII dinastia, Amenophis IV (Akhnaton) ao tentar impor o monoteísmo a seu povo. Pretendendo substituir Amon, o deus maior entre os Egípcios e o séqüito de outros deuses menores, por Aton, ordenou eliminar todas as marcas dos deuses anteriores, destruindo tudo que os lembrasse.

Assim se apresentam os monoteísmos: ditatoriais e prepotentes em relação ao politeísmo que tolera os deuses alheios. Mesmo em relação aos outros monoteísmos, a intolerância é gritante. O meu monoteísmo é o único e verdadeiro. O teu é falso e merece ser eliminado. Como se pode notar, o monoteísta, por seus traços narcisistas acentuados ¨é o dono da verdade¨.

A construção dos deuses, se assim podemos dizer, segue um esquema bastante humano: lutam os deuses pela supremacia, pelo poder máximo que no monoteísmo fica nas mãos de um só. E este é truculento e despótico com todos os demais destruindo-os na medida do possível.

O deus único dos judeus, Javé, o deus de Abrahão, agora nos derivados, Cristianismo e Islamismo, passa a ser denominado simplesmente Deus, pelos primeiros, e Allah (Alá) pelos segundos.

O uso que o crente faz da religião depende mais dele próprio do que da religião que ele diz professar. Nas mãos de uns e outros o inicialmente mesmo deus torna os três grupos inimigos entre si. Como os chefes guerreiros e políticos na disputa pelo poder.

Na verdade, a representação de deus é diferente segundo o crente. Se o religioso é uma pessoa tolerante, indulgente e amorosa, assim ele vê seu deus. O deus do intolerante, despótico e arrogante tem as características do devoto. E, diga-se de passagem, esta é a imagem das figuras paterna e materna que cada um internalizou através de introjeções e projeções.

Na hierarquia celestial nota-se claramente a projeção dos humanos. O deus tem o seu séqüito de deuses menores, os santos, reliquat do politeísmo, que chefiam certos setores: os que intermediam graças, os que estão mais próximos ou distantes do poder. Enfim, uma organização à imagem das humanas. Isto reforça a idéia de que seja a projeção o mecanismo primordial da organização celestial.

Uma das preocupações do ser humano, causa de muitas angústias, é com a morte. Ela vem sempre como o inevitável fim de todo o fenômeno vital.

O ser humano dificilmente aceita para si essa seqüência como natural, a vida seguida da morte. O medo do fim nos faz buscar uma fuga através da negação da morte: deve haver uma outra vida, uma imortalidade ! Aí também vem em nosso socorro a religião. Algumas religiões prometem também a imortalidade da alma, a ressurreição do corpo, a vida eterna, a reencarnação neste ou em outros planetas. Algumas, a possibilidade de comunicação com os nossos queridos que morreram, o que, indiscutivelmente, é sedutor. Via de regra tudo está conectado com recompensas ou castigos pela conduta que tivermos em nosso período de vida na terra. Novamente, um esquema "divino", mas muito humano.

Dificilmente alguém deixa de levar em conta a religião, mesmo se apercebendo do quão ilusório é o que ela nos oferece. Tudo vai depender da fé, e ela é irracional. A fé é exigida e cobrada do crente. Ele deve aceitar os ditames de uma crença sem questioná-la, como aceitava e obedecia as ordens dos pais. Aquele que põe em dúvida artigos de fé é banido, excomungado, como na infância era punido pelos pais despóticos. Não há tolerância para com o incrédulo. Há períodos na História em que a intolerância vai a extremos de matar o incrédulo. O Judaísmo fez isso, quando tinha poder para fazê-lo. Fez com seus próprios irmãos como Moisés (Ex: XXXII 1 a 28) ao descer do Sinai e surpreender os adoradores do Bezerro de Ouro. Fez com os seguidores de Yoshua Ben Joseph, que eram mortos a pedradas, e com os ¨idólatras¨ com quem disputavam e continuam a disputar as terras da Palestina.

O Cristianismo assim procedeu durante a Inquisição e as Cruzadas, contrariando o que Cristo pregou: amor, perdão, misericórdia. E o Islamismo também matou e mata em nome de seu deus que também prega o amor e a paz.

O não-crente ou o crente que desobedece é considerado um pecador.

Quanto à posição do Psiquiatra, do Psicoterapeuta com relação ao pecado, podemos dizer que, já que pecado é uma infração, uma transgressão da lei de deus ou dos deuses, é portanto uma noção puramente religiosa. Os pecados poderão ocorrer no plano do pensamento, da palavra ou de atos praticados. A psicoterapia se relaciona a esse conceito na medida em que trata dos sentimentos de culpa do paciente que se sente um pecador.

O não saber, a ignorância, nos deixa à mercê de crendices várias. Na medida em que evoluímos, que progredimos no desvendar os mistérios do mundo, teoricamente, deveriam as ¨crenças¨ se atenuar. Freud comparava a religião a uma neurose infantil que seria superada como a criança supera sua neurose. "A humanidade conseguirá superar essa fase neurótica", afirma ele em "O Futuro de uma Ilusão". Peço permissão para divergir do prognóstico otimista do mestre. E não esqueçamos que ele era visto como um pessimista.

Já sabemos que a terra não é plana, nem o centro do universo; já sabemos que somos produto de uma evolução dos seres vivos e mesmo sabendo que não somos tão donos de nós mesmos - pois há um psiquismo inconsciente que nos maneja bem mais do que o nosso "livre arbítrio" gostaria -, devido ‘a ignorância frente aos mistérios de onde viemos, o que ocorrerá conosco nesta vida e a morte a nos aterrorizar, somos levados ao encontro da religião que nos promete respostas tranqüilizadoras. Isto se deve a que todo o ser humano, que facilmente se adapta aos progressos científicos e tecnológicos, parte emocionalmente e invariavelmente de um ponto zero, ao nascer. Continuamos com essa "criança desvalida interna" que todos temos desde o nascimento. Nosso amadurecimento emocional avança muito lentamente, isto quando avança, deixando ilhotas não resolvidas no decorrer da vida.

As religiões são produto humano, tanto é assim que os deuses podem ser usados para o bem como para o mal. Em nome de um mesmo deus são abençoados antagônicos exércitos que partem para a destruição e para a morte. Tudo dependendo do homem que evoca o nome de seu deus na ocasião. A religião pode até tentar, mas dificilmente consegue o que se propõe: o amor e a paz entre os homens.

Posso parecer pessimista, mas me classificaria mais como realista. Basta olharmos em nosso redor para vermos os estupendos progressos tecnológicos e científicos ao lado do maior primitivismo. Ainda vemos naáfrica tribos mutilando e escravizando outras e negociando-as como escravos como faziam há séculos, quando vendiam seus irmãos derrotados para os brancos ou para outras tribos. Vemos, nos dias de hoje ,em nome de um deus, um ataque cruento e destrutivo e o revide igualmente feroz e bárbaro em nome de outro deus, como nas Cruzadas e na Inquisição.

O progresso tecnológico utilizado e direcionado à destruição deixa a capacidade agressiva do passado, restrita às flechas, lanças, porras, espadas e cimitarras, parecer brinquedos de crianças.

Um avião "invisível" de vários milhões de dólares, um míssil de um milhão de dólares e a possibilidade de utilizarmos gazes, bactérias, vírus ou mesmo bombas atômicas, torna a guerra eminente e a civilização à beira da destruição.

Sintetizando, sou de opinião que a religiosidade deve ser respeitada como qualquer sintoma e como tal deve ser tratada.
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Dr. Sérgio Paulo Annes é Membro Didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre – SPPA.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Luke Timothy Johnson, e as ciladas do "Jesus Histórico".


"Conheceremos Jesus melhor, não como o resultado da pesquisa acadêmica de um indivíduo, publicada em um livro, mas como um processo contínuo de transformação pessoal dentro de uma comunidade de discípulos."
Luke Timothy Jonson

Atlanta / Temas – Estes dias segui um grupo de trovadores acadêmicos ambulantes, especialistas que são convidados por congregações para dar palestras como parte de programas de educação para adultos. Com freqüência tenho acompanhado pessoas como Marcus Borg, John Dominic Crossan, N.T. Wright e Bart Ehrman, e com freqüência me convidam como alguém que pode “representar outro ponto de vista”. Em outras palavras, sou uma anotação à margem do menu preferido das oferendas históricas de Jesus.

Quando apresento uma visão alternativa sobre o Jesus dos Evangelhos, sempre há pessoas na congregação que se surpreendem que eu não esteja totalmente de acordo com o que eles consideram o pináculo do ensino bíblico. Em resumo, 25 anos depois que o Jesus Seminar começou uma nova ronda na controvérsia sobre o Jesus histórico e 14 anos depois que tentei mostrar (em The Real Jesus) o falso que é o conhecimento contemporâneo sobre o Jesus histórico, embora haja uma audiência desejosa de escutar os temas que estes trovadores cantam.

E não é difícil entender o porquê. Sem exceção, os trovadores são professores e oradores extraordinários, que têm uma bem ganhada reputação de ensinar de maneira alegre e inclusive divertida.

Borg e o bispo Wright, além disso, manifestam-se explicitamente cristãos e transmitem um sentido positivo do que o conhecimento pode oferecer.

Ehrman é um professor excepcional.

Crossan é uma pessoa especial, um homem com tanto talento, com tanto humor, que pessoalmente estou disposto a ouvi-lo falar de qualquer coisa. O carisma pessoal dos conferencistas é sem dúvida parte do atrativo.

Os conferencistas também foram eficientes, ao apresentar suas palestras como conhecimentos genuínos; afirmam que o que fazem é pôr à disposição de todos o enfoque crítico que, segundo eles, outros acadêmicos também seguem, embora os mantenha dentro do âmbito profissional. As congregações e as paróquias desejosas de estímulos intelectuais são consumidores entusiastas. Poucos são os que seguem de perto o que os estudiosos da Bíblia estão fazendo. Que base de comparação há nos livros que se encontram em Barnes & Noble (N. do T.: trata-se do maior comerciante varejista de livros nos EUA) ? As audiências não têm muita base para rebater a reivindicação dos trovadores de representar o melhor da academia.

De fato, se as congregações estivessem conscientes do caráter desesperadamente trivial do ensino acadêmico, estariam inclusive mais dispostos a aceitar as palavras daqueles que estão demonstrando compreender a figura de Jesus para a igreja, em vez de desenvolver outra metodologia esotérica, a fim de ter credibilidade, como vitais e necessárias.

Acima de tudo, penso que as congregações estão ávidas de aprender sobre o Jesus humano e com muita freqüência encontram que o que escutam nos sermões e nas Escolas Dominicais contém pouca substância intelectual ou alimento espiritual. O que querem é uma fé adulta, e os oradores itinerantes parecem oferecer um caminho mais rápido e interessante para essa maturidade que a que está disponível através das práticas tradicionais da fé. Para aqueles que aprenderam a valorizar muito mais a informação que a compreensão, a oferta de conhecimento histórico sobre Jesus parece cair-lhes como uma luva.

OS LIMITES DA HISTORIA

Não há absolutamente nenhum problema em estudar Jesus como uma figura histórica, e se ele for estudado sob essa perspectiva, é adequado separar os fundamentos da fé. O tipo de projeto efetuado pelo padre J.P. Meier em A Marginal Jew, que prova quais são os relatos do Evangelho que podem ser historicamente constatados, é perfeitamente legítimo e exibe resultados genuínos. Mas assim como o mesmo monsenhor Meier reconheceu, o Jesus empiricamente verificável não é de modo nenhum o Jesus “real”. Ademais, é mais que legítimo aprender o máximo possível de história do mundo no primeiro século de Jesus.

O objetivo deste conhecimento, no entanto, é o de tornar os próprios leitores dos Evangelhos em melhores e mais responsáveis. Não se trata de deconstruir as narrações evangélicas para depois reconstruir um “Jesus histórico” e declarar, desse modo, que se descobriu que eram Jesus realmente. Menos ainda para propor essa reconstrução como regra para os cristãos de hoje em dia.

A história é uma maneira limitada de conhecer a realidade. Dependentes de fragmentos do que se observou, registrou, conservou e transmitiu desde o passado, reconhecendo que todo depoimento humano é parcial e cuidadoso de não especular mais além da evidência disponível, os historiadores responsáveis sabem que só manejam probabilidades, não certezas. Seu trabalho é mais uma arte descritiva que uma ciência prescritiva. E no caso de Jesus e os Evangelhos, os problemas críticos que enfrenta toda reconstrução histórica são extremos, advertindo os pesquisadores de não levar as coisas ao limite.

Portanto, os historiadores podem declarar certos fatos sobre Jesus com maior ou menor probabilidade de acerto (sua morte por crucificação), ou algumas pautas de seu ministério (o falar por meio de parábolas) ou inclusive certos acontecimentos (seu batismo). Mas os historiadores não podem oferecer uma narração ou interpretação alternativa àquelas dos Evangelhos, baseando-se nestas prováveis conclusões.

Contudo, tanto hoje como ontem, é este alongamento dos limites da historiografia responsável, esta apresentação de alternativas aos Evangelhos, que deu um impulso a todo o projeto do Jesus histórico. Há três aspectos do projeto que são objetáveis, inclusive quando se considera legítimo usar a história para Jesus.

Primeiro, a história não pode entregar o prometido pelo projeto do Jesus histórico, principalmente uma versão sólida de Jesus diferente da apresentada pelos Evangelhos.

Segundo, o esforço para reconstruir esse Jesus alternativo leva a uma distorção dos métodos próprios da historiografia formal.

Terceiro, e o mais penoso, o Jesus oferecido como alternativa é com freqüência um reflexo dos ideais próprios do estudioso. Portanto, não resulta estranho que praticamente cada Jesus reconstruído pelos estudiosos nesta geração esteja firmemente baseado no Jesus do Evangelho de Lucas, já que este é o Jesus que mais admiramos —político, público, profético, aquele que inclui os marginais e desafia o status dos poderosos—.

Neste sentido, as múltiplas versões do “Jesus histórico” apresentada hoje em dia em conferências ou em livros, têm exatamente o mesmo status dos Evangelhos apócrifos da Igreja primitiva: podem resultar amenos e às vezes inclusive instrutivos, mas não são alicerces sobre os quais se deva construir a Igreja.

UMA ALTERNATIVA

Nesse caso, o que devo oferecer às congregações que me convidam a compartilhar minha “visão alternativa”? Tento reafirmar seu desejo de uma fé madura e intelectualmente ativa e promovo o estudo da história como um meio para uma leitura mais responsável dos Evangelhos. Tenho certeza de que quanto mais genuíno for o sentido do estudo histórico adquirido por estes cristãos, menor será a probabilidade de cair presa das distorções daqueles que comercializam com o título de historiador, sendo que a única coisa que oferecem é uma versão pessoal, apócrifa.

Mas enfatizo que o objetivo real do conhecimento histórico não é o desmantelamento dos Evangelhos, senão que um compromisso mais completo com a narração evangélica. Indico que talvez um dos resultados surpreendentes do melhor estudo histórico da Palestina do primeiro século, é que a informação incidental que dão os Evangelhos em relação ao contexto político-cultural e o meio religioso de Jesus tende mais a confirmar que desmentir a informação sobre estes temas nos Evangelhos.

E mais importante ainda, tento mostrar como o descobrimento de Jesus como um personagem literário em cada um dos Evangelhos canônicos possibilita um conhecimento mais profundo, satisfatório e mais “histórico” do Jesus humano que o apresentado por reconstruções acadêmicas. Uma vez que os leitores reconhecem e começam a apreciar os diferentes retratos de Jesus nos Evangelhos, não como pobres apresentações de fontes históricas, senão como o grande depoimento de fé, começam a sentir que o Jesus humano é uma realidade muito mais rica e evasiva que aquele de sua crença superficial ou de um ensino histórico superficial pudesse sugerir. Tal apreciação literária dos Evangelhos também leva à compreensão de que apesar de seus temas e perspectivas divergentes, convergem precisamente, de forma assombrosa, em seu caráter, tema histórico de vital importância em relação ao Jesus humano.

Que tipo de pessoa era Jesus? Cada um dos Evangelhos é depoimento da verdade se Jesus como ser humano se definia primeiro por sua absoluta obediência a Deus e em segundo termo por sua absoluta entrega aos demais. Este Jesus dos Evangelhos é o mesmo Jesus que encontramos nas cartas de Paulo e Pedro e na Carta aos Hebreus. O Cristo histórico é o que deu forma à identidade do discipulado cristão, através dos anos e gerou reformas proféticas em todas as etapas da Igreja.

‘ELE VIVE AGORA’

Incentivo minha audiência a lembrar-se de que toda busca do Jesus histórico é um desvio massivo do enfoque correto da consciência cristã: aprender do Jesus vivente —do senhor exaltado e ressuscitado presente para aqueles que crêem, através do poder do Espírito Santo— na vida diária e nas práticas correntes da Igreja. Concentrar-se no “Jesus histórico” como se o ministério de Jesus reconstruido pelos acadêmicos fosse o último em importância para a vida do discipulado, é esquecer a verdade mais importante sobre Jesus, isto é: que agora ele vive como o Senhor na presença total e o poder de Deus que é apresentado para nós a cada instante, não como uma recordação do passado, senão que como uma presença que define nosso presente.

Se Jesus fosse simplesmente um homem do passado que morreu, então conhecê-lo através da reconstrução histórica é necessário e inevitável. Mas se ele vive no presente como nosso poderoso e dominante Senhor, então devemos conhecê-lo, através da obediência da fé.

Conheceremos Jesus melhor, não como o resultado da pesquisa acadêmica de um indivíduo, publicada em um livro, mas como um processo contínuo de transformação pessoal dentro de uma comunidade de discípulos. É verdade que Jesus será conhecido, através da leitura fiel das Escrituras, mas nós o conheceremos também, através dos sacramentos (especialmente da Eucaristia), das vidas dos santos (mortos e vivos) e dos estranhos com os quais o exaltado Senhor se associa com particular preferência. Ao lado desta maneira tão difícil e complexa de conhecer Jesus realmente como ele é —o Espírito doador de vida que dá vida principalmente para toda a assembléia chamada o corpo de Cristo—, as pesquisas dos historiadores, inclusive no melhor dos casos, aparecem como uma distração empobrecida e sem graça.

Este é o tema que vou cantando atrás dos trovadores que dançam nas paróquias e congregações deste país. É uma velha canção, cujo nome foi dado por Santo Agostinho: “canção de aleluia”. Mas também é nova —sempre— está se renovando.
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Luke Timothy Johnson. Robert W. Woodruff Professor de Novo Testamento e Origens cristãos na Candler School of Theology, Emory University, Atlanta, Ga. Publicado na revista America, http://www.americamagazine.org/ / Uma conversa com Luke Timothy Johnson: americamagazine.org/podcast

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

O Polêmico Bispo John Shelby Spong

Spong é bispo aposentado da Igreja Episcopal da diocese de Newark, nos Estados Unidos. Autor, dentre outros, de “A New Christianity for a New World: Why Traditional Faith Is Dying and How a New Faith Is Being Born”, recém publicado na Itália com o título “Un cristianesimo nuovo per un mondo nuovo. Perché muore la fede tradizionale e come ne nasce una nuova” .

Sou um cristão.

Por 45 anos, eu servi a Igreja cristã como diácono, padre e bispo. E continuo servindo essa Igreja hoje em uma ampla variedade de formas em minha aposentadoria oficial. Eu acredito que Deus é real e que eu vivo profunda e significativamente em relação com essa divina realidade.

Proclamo Jesus como meu Senhor. Eu acredito que ele mediou Deus de um modo poderoso e único para a história da humanidade e para mim.

Eu acredito que a minha vida pessoal foi impactada intensa e decisivamente não apenas pela vida de Jesus, mas também pela sua morte e certamente pela experiência pascal que os cristãos conhecem como ressurreição.

Parte da vocação da minha vida foi gasta na busca de uma forma de articular esse impacto e de convidar outros àquilo que eu só posso chamar de “a experiência de Cristo”. Eu acredito que, nesse Cristo, descobri uma base para o sentido, a ética, a oração, o culto e até para a esperança para a vida além das fronteiras da minha mortalidade. Eu quero que os meus leitores saibam quem é que escreve estas palavras. Não quero ser culpado de violar qualquer ato de empacotamento da verdade. Eu me defino, acima de tudo e principalmente, como um crente cristão.

Porém, não defino Deus como um ser sobrenatural. Eu não acredito em uma divindade que possa ajudar uma nação a vencer uma guerra, intervir para curar a doença de uma pessoa amada, permitir que uma equipe esportiva em particular derrote o seu oponente ou modificar as condições climáticas em benefício de alguém. Eu não considero apropriado para mim fingir que essas coisas são possíveis, quando tudo o que conheço sobre a ordem natural do mundo em que eu habito proclama que elas não são.

Como eu não vejo Deus como um ser, não posso interpretar Jesus como a encarnação terrena dessa divindade sobrenatural, nem posso assumir crivelmente que ele possuiu poder divino suficiente a ponto de fazer coisas milagrosas como acalmar a tempestade, expulsar demônios, caminhar sobre a água ou multiplicar cinco pães para fornecer alimento suficiente para alimentar cinco mil homens, mais mulheres e crianças. Se proclamo a natureza divina desse Jesus, devo fazer isso sobre bases diferentes dessas. Os milagres sobre a natureza, estou convicto disso agora, dizem uma grande quantidade de coisas sobre o poder que as pessoas atribuíam a Jesus, mas não dizem nada sobre o que ocorreu literalmente.

Tudo em que não acredito

Eu não acredito que esse Jesus possa ou tenha, em sentido literal, ressuscitado os mortos, vencido uma paralisia física ou restaurado a visão a uma pessoa que nascera cega ou a alguém cujas capacidade de ver havia sido fisiologicamente destruída. Nem acredito que ele tenha tornado capaz de ouvir uma pessoa muda e profundamente surda desde o nascimento. As histórias de curas podem ser lidas de vários modos. Lê-las como eventos sobrenaturais e milagrosos é, em minha opinião, a menos crível dessas possibilidades.

Eu não acredito que Jesus entrou neste mundo por meio do milagre de um nascimento virginal ou que um nascimento virginal ocorra fora da mitologia. Eu não acredito que, literalmente, uma estrela tenha guiado homens sábios que levavam presentes a Jesus ou que literalmente anjos tenham cantado aos pastores do topo de uma colina para anunciar o seu nascimento.

Eu não acredito que Jesus nasceu em Belém ou que fugiu para o Egito para escapar da cólera do Rei Herodes. Eu considero tudo isso como lendas que foram posteriormente historicizadas enquanto a tradição crescia e se desenvolvia e as pessoas procuravam entender o significado e o poder da vida de Cristo.

Eu não acredito que a experiência celebrada pelos cristãos na Páscoa foi a ressuscitação física do corpo de Jesus morto há três dias, nem acredito que alguém literalmente falou com Jesus depois do momento da ressurreição, que lhe deu alimento, tocou em sua carne ressuscitada, ou caminhou de alguma forma física com o seu corpo ressuscitado. Acho interessante que todas as narrações que relatam esses encontros se encontrem só nos evangelhos, que foram escritos mais tarde.

Eu não acredito que a ressurreição de Jesus foi literalmente marcada por um terremoto, pela declaração de um anjo ou por um túmulo vazio. Também considero essas coisas como tradições lendárias de um sistema religioso em maturação.

Eu não acredito que Jesus, no fim da sua estadia terrena, voltou para Deus, ascendendo em sentido literal a um paraíso localizado em algum lugar acima do céu. O meu conhecimento das dimensões do universo reduz esse conceito ao absurdo.

Eu não acredito que esse Jesus fundou uma Igreja ou que estabeleceu uma hierarquia eclesiástica que começou com os 12 apóstolos e que perdura até os nossos dias. Eu não acredito que ele criou os sacramentos como meios especiais de graça ou que esses meios de graça sejam, ou possam ser, de alguma forma controlados pela Igreja e, assim, presididos apenas pelos ordenados. Todas essas coisas representam para mim tentativas, por parte dos seres humanos, de aumentar o poder a si mesmos e à sua instituição religiosa em particular.

Eu não acredito que os seres humanos nasceram no pecado e que, a menos que sejam batizados ou de alguma forma salvos, serão banidos para sempre da presença de Deus. Eu não considero que o conceito mítico da queda da vida humana em um estado negativo constitua uma visão correta das nossas origens ou da origem do mal. Concentrar-se sobre a queda da humanidade em um estado de pecado e sugerir que essa pecaminosidade possa ser superada só por meio de uma iniciativa divina que restabeleça a vida humana a um estado de pré-queda que jamais existiu são, para mim, conceitos verdadeiramente estranhos, que servem acima de tudo, mais uma vez, para construir o poder institucional.

Eu não acredito que as mulheres são menos humanas ou menos santas do que os homens e, por isso, não consigo me imaginar como parte de uma Igreja que discrimine as mulheres de qualquer forma ou até sugira que uma mulher é inapta a qualquer vocação que a Igreja geralmente oferece ao seu povo, do papado ao mais humilde papel de serviço. Eu considero a tradicional exclusão eclesiástica das mulheres das posições de liderança não como uma tradição sagrada, mas sim como uma manifestação do pecado do patriarcado.

Eu não acredito que as pessoas homossexuais são anormais, mentalmente doentes ou moralmente depravadas. Além disso, considero todo texto sagrado que afirme o contrário como errado e mal informado. Os meus estudos me levaram à conclusão de que a sexualidade como tal, incluindo todas as orientações sexuais, é moralmente neutra e pode ser vivida tanto positiva quanto negativamente. Eu considero que o espectro da experiência sexual humana é verdadeiramente amplo. Nesse espectro, um certo percentual da população humana é, em todas as épocas, orientado a pessoas do seu próprio gênero. Esse é simplesmente o modo como a vida é. Eu não posso me imaginar como parte de uma Igreja que discrimine gays ou lésbicas com base em seu “ser”. Nem quero continuar participando de práticas eclesiais que eu considero baseadas em nada mais do que preconceito e ignorância.

Eu não acredito que a pigmentação da pele ou a origem étnica constituam uma questão de superioridade ou de inferioridade e considero toda tradição ou sistema social, incluindo qualquer parte da Igreja cristã que age sobre esse pressuposto, indignos de continuar a viver. Os preconceitos dos seres humanos baseados na raça ou na eticidade são, para mim, nada mais do que uma manifestação de um passado tribal. São preconceitos negativos que os seres humanos desenvolveram em sua luta pela sobrevivência.

Eu não acredito que toda a ética cristã foi inscrita em tábuas de pedra ou nas páginas das Escrituras cristãs e, portanto, está definida de uma vez para sempre. Sou consciente de que “o tempo torna estranho o bem antigo” e que o preconceito baseado em definições culturais negativas ofereceu aos cristãos, ao longo dos séculos, a base para oprimir as pessoas de cor, as mulheres e aqueles cuja orientação sexual não era heterossexual.

Eu não acredito que a Bíblia é a “palavra de Deus” em qualquer sentido literal. Não a considero a fonte primária da revelação divina. Eu não acredito que Deus ditou ou mesmo inspirou integralmente a sua produção. Eu vejo a Bíblia como um livro humano que mistura a profunda sabedorias dos sábios ao longo dos séculos com as limitações das percepções humanas da realidade em um determinado tempo da história humana. Essa combinação marcou as nossas convicções religiosas com testemunhos ambivalentes, combinando escravidão e emancipação, inquisições e progressos teológicos, liberdade e opressão.

O caminho mais árduo

Poderia alongar essa litania de acredito e não acredito ainda por mais páginas, mas esses poucos enunciados deveriam ser suficientes para indicar as questões que quero desenvolver. A questão básica que busco levantar neste livro é a seguinte: pode uma pessoa declarar honestamente ser cristã e, ao mesmo tempo, abandonar, como eu fiz, muito daquilo que foi tradicionalmente definido como o conteúdo da fé cristã? Seria mais sábio e honesto se fizesse aquilo que muitos da minha geração fizeram, isto é, renunciar a ser membro desse sistema de fé dos meus antecessores? (…)

Seguramente, uma escolha dessas tornaria a minha vida muito mais simples e menos complicada, em muitos aspectos. Aos olhos de muitos, seja na Igreja cristã, seja na sociedade secular, representaria também um ato de integridade. Porém, não seria honesto, nem seria conforme às minhas convicções mais profundas. O meu problema jamais foi a minha fé. E sempre foi a forma literal com que os seres humanos optaram por expressar essa fé.

Escolhi, por isso, o caminho mais árduo, o mais complicado, embora em muitas ocasiões isso tenha ameaçado lacerar a minha própria alma. Percorrer o meu caminho me expôs a uma enorme hostilidade religiosa por parte de assustados aderentes à minha própria tradição de fé, assim como a uma apressada despedida por parte de muitos dos meus amigos seculares, que parecem olhar-me como a um resíduo irremediavelmente religioso da Idade Média.

Diante da hostilidade religiosa, de um lado, e do desconfiado desprezo pela minha recusa a rejeitar a minha fé tradicional, de outro, eu continuo insistindo que sou um cristão. Atenho-me resolutamente à verdade da afirmação que Paulo fez por primeiro: “Deus estava em Cristo” (2 Coríntios 5,19).

Eu busco a experiência de Deus que acredito está por trás das explicações bíblicas e teológicas que, através dos tempos, tentaram interpretar Jesus. Penso que é possível separar a experiência da explicação e reconhecer a sempre maior inadequação das palavras antigas para captar a essência de uma experiência qualquer para todos os tempos. Por isso, apelo à Igreja para que faça uma reviravolta radical no modo em que tradicionalmente proclamou a sua mensagem, no modo em que se organizou para ser a depositária dessa reserva de poder espiritual e no modo em que pretendeu falar em nome de Deus na história humana.

A morte do Deus teísta

Eu estou quase certo de que a revisão do cristianismo que estou procurando desenvolver deve ser tão completa que provoque em algumas pessoas o medo de que o Deus que tradicionalmente venerou está, de fato, morrendo.

A reforma que é necessária hoje deve ser, a meu ver, tão global que, em comparação com a Reforma do século XVI, irá parecer uma brincadeira de crianças. Vista retrospectivamente, aquela Reforma enfrentava principalmente os temas da autoridade e da ordem sacra. A nova reforma será profundamente teológica e desafiará necessariamente todo aspecto da nossa história de fé.

Por acreditar que o cristianismo não pode continuar sendo o irrelevante espetáculo religioso ao qual foi reduzido, estou buscando envolver nessa reforma as melhores mentes do novo milênio. Eu espero que nós, cristãos, não vacilemos diante da audácia do desafio. Nós enfrentamos hoje, como procurarei documentar, uma mudança total no modo de perceber a realidade por parte das pessoas modernas. Essa mudança proclama que o modo pelo qual o cristianismo foi formulado tradicionalmente não é mais crível. Esse é o motivo pelo qual o cristianismo como o conhecemos mostra sinais crescentes de “rigor mortis”.

O cristianismo postula um Deus teísta que faz coisas sobrenaturais, muitas das quais não são consideradas morais pelos nossos princípios. Esse Deus, por exemplo, é descrito nas nossas Escrituras ao castigar os egípcios com uma praga depois da outra, uma das quais comporta a morte do primogênito masculino de todas as famílias egípcias, em uma campanha divina para a libertação do povo eleito da escravidão ( Êxodo 7-10).

Depois, esse Deus abriu o Mar Vermelho para permitir que os hebreus fugissem da sua vida de escravidão e o fechou justo em tempo para afogar o exército egípcio que os perseguia (Êxodo 14). É essa a obra de uma divindade moral? Essas ações refletem talvez um Deus que os egípcios pudessem venerar? Qualquer um de nós poderia venerá-lo? Queremos verdadeiramente acreditar em uma tal divindade?

Do Deus teísta das Escrituras, diz-se também que parou o sol no céu (como se o sol girasse verdadeiramente ao redor da terra) para conceder a Josué luz suficiente para fazer um massacre de amorreus em batalha (Josué 10). Esse é um motivo que pode justificar a ação divina? Colocando de lado toda especulação sobre o que poderia ter acontecido com a força da gravidade em resposta a essa mágica alteração do universo, resta saber se os amorreus poderiam venerar um Deus como esse. Poderiam afirmar que a vida humana tem um valor infinito quando os preconceitos tribais eram confundidos a tal ponto com a vontade divina? Quem de nós, hoje, defenderia isso?

Foi esse mesmo trecho bíblico do livro de Josué que permitiu que a hierarquia da Igreja Católica obrigasse, no século XVII, o cientista Galileu a retratar, sob pena de morte, a sua afirmação “inconforme à Escritura” de que a terra não era o centro do universo e que, na realidade, girava em torno do sol. Embora tenham sido as intuições de Galileu que possibilitaram a moderna exploração do espaço, iniciada nos anos 1950, só em 1991 a Igreja cristã, com a voz do Vaticano, admitiu enfim publicamente que Galileu tinha razão e a Igreja estava errada ao condená-lo. Mas nesse ponto nem Galileu nem a maioria da comunidade científica mundial estavam particularmente interessados com aquilo que as vozes oficiais da Igreja declararam acerca do seu trabalho.

Como bservou o físico Paul Davies, ganhador do Prêmio Templeton, o Deus rude que havia conhecido na Igreja não era mais suficientemente grande para ser o Deus do seu mundo. Alguém tem dúvida sobre quem levará a melhor nesse particular conflito com o passar do tempo?

O cristianismo, tomando emprestado o conceito judaico do Dia da Expiação, Yom Kippur, tradicionalmente interpretou a morte de Jesus como um sacrifício oferecido a Deus em reparação dos nossos pecados. Ele se deliciou ao se referir a Jesus como o “cordeiro de Deus que com o seu sangue lava os pecados do mundo”. Um Deus semelhante – que requer o sangue de um sacrifício humano – ainda é digno de veneração hoje, quando finalmente a nossa consciência considera repugnante tal ideia? (…)

O ritual vagamente antropófago de comer a carne de uma divindade morta é cheio de antigas nuances psicológicas que colocam em dificuldades a sensibilidade moderna. A prática litúrgica de reatualizar o sacrifício da cruz e de proclamar que a nossa participação nessa reatualização é necessária para a salvação muito dificilmente pode ser uma moderna fórmula vitoriosa.

Analogamente, a pretensão eclesiástica de que só pessoas propriamente autorizadas e ordenadas podem presidir esses atos soa ridícula aos ouvidos modernos. Esperamos verdadeiramente que essas pretensões ganhem a lealdade das mentes modernas? E se essas pretensões fossem removidas do culto cristão, o que restaria?

Separar o essencial dos acréscimos

Eu acredito que todos esses problemas e dificuldades acima mencionados precisam ser enfrentados abertamente pelos cristãos hoje e, assim, superados com novas imagens. Para aqueles cristãos que identificaram Deus com essas bizarras interpretações primitivas da divindade, a transição não será fácil. Porém, certamente chegou o momento em que todos nós devemos ir além da desconstrução desses símbolos inadequados e rejeitáveis, que historicamente foram tão significativos na vida da Igreja cristã,e voltar a nossa atenção à tarefa de delinear uma visão daquilo que a Igreja pode e deve ser no futuro.

A tarefa apologética básica que a Igreja cristã deve enfrentar hoje é a de separar o essencial dos acréscimos, a experiência de Deus sem tempo das explicações de Deus do passado condicionadas pelo tempo. A desconstrução certamente é um caminho muito mais simples de ser percorrido quando se busca descrever por que alguns modos de compreensão de um sistema religioso do passado são inadequados. É decisivamente mais difícil delinear a visão de algo novo, algo que as pessoas jamais viram, algo que o mundo jamais provou. Mas os reformadores não podem se limitar a combater contra o moinho de vento da antiguidade. Eles devem desenvolver novas visões, propôr novos modelos, traçar novas soluções. Essa é, agora, a tarefa que eu procuro realizar.

Não espero que essa tentativa encontre um público eclesiástico particularmente interessado ou reativo. Não é algo com o qual me preocupe, no entanto, porque as pessoas com as quais procuro me comunicar constituem um público muito específico e é a eles que dirigirei minha mensagem o mais diretamente possível.

Não estou interessado, por exemplo, em confrontar-me ou desafiar aqueles elementos do cristianismo conservadores ou fundamentalistas que são tão predominantes hoje. Acredito que morrerão por causa da sua própria irrelevância, sem nenhuma ajuda de minha parte. Eles legaram a sua compreensão do cristianismo a disposições do passado que estão simplesmente envelhecendo. Em nenhuma parte isso é mais visível do que ao observar o modo com o qual a palavra cristão é usada no nosso mundo contemporâneo. Perguntem-se que imagem lhes vem à mente quando vocês veem um negócio com a frase “livraria cristã” ou quando ouvem um cronista político fazendo referência ao “voto cristão” em uma determinada eleição. (…)

Permitam-me, portanto, ser claro. Eu não procuro me dirigir a esses crentes conservadores, que considero fora da realidade. Eu não quero convertê-los, discutir com eles ou mesmo só procurar contestá-los, a menos que ameacem se tornar voz de uma maioria que busque impôr o seu próprio programa ao nosso mundo. Eu acredito que a difusão do conhecimento irá tornar definitivamente irrelevantes as seus posturas no debate sobre o futuro do cristianismo.

Ao mesmo tempo, não espero que esses esforços de reforma ou a exposição de uma nova visão cristã sejam saudados com algo mais do que um bocejo de indiferença daqueles membros da nossa sociedade que já decidiram que qualquer religião é uma superstição a serviço dos fracos. Essas pessoas que optaram pela vida na cidade secular, mesmo que pertençam membros das suas instituições religiosas, não estão propriamente interessados nos meus esforços, que consideram como uma tentativa de embelezar um cadáver. (…)

Nas principais tradições religiosas, também não será fácil para mim conquistar um ouvido disposto a me ouvir ou a me conceder um ponto de apoio significativo. As principais Igrejas estão muito mais dedicadas a conservar o seu poder institucional do que a se confrontar com esses problemas “de vida ou morte”. O medo que os membros dessas Igrejas sentem lhes levará a dizer coisas do tipo: “Desta vez, ele foi muito longe”. (…)

Cabeça e coração juntos

O público ao qual procuro me dirigir é menor, mais definido e mais específico. São pessoas que se sentem espiritualmente sedentas, mas sabem que não podem mais beber nas fontes tradicionais do passado. Em substância, esse grupo será uma pequena minoria da população, mas se acrescentará a ele um grupo muito mais amplo de companheiros de viagem que irão reagir se lhes for dada a oportunidade de serem ouvidos.

Essas pessoas irão aplaudir, expressando a sua profunda e real apreciação. Algumas delas dirão: “Finalmente alguém me deu a permissão”, como se algum tipo de permissão fosse verdadeiramente necessária, “de olhar as coisas a partir de uma nova perspectiva, além das formulações tradicionais em que as minhas aspirações religiosas foram até agora constrangidas”.

Essas pessoas irão assimilar a ideia de que as suas próprias dúvidas e perguntas sobre Deus ou a religião não as qualificam como loucas ou malvadas. As suas dúvidas e perguntas significam simplesmente que elas respiram o ar do século XXI. Serão felizes por ter finalmente encontrado um modo de unir a sua cabeça e o seu coração.

Esse grupo foi o meu público primeiro durante toda a minha carreira. Possuem ainda uma profunda consciência de Deus, que, porém, não se adapta quase em nada àqueles modelos que as instituições religiosas dizem ser os únicos modos de pensar Deus. Se devemos obter uma nova reforma do cristianismo, então ela começará e encontrará as suas raízes nesse grupo de pessoas: um grupo geralmente não só não visto, mas também nem ouvido pelos líderes religiosos do nosso mundo.

Quando esses vários públicos reagiram e interagirem com as minhas sugestões e as minhas propostas, valerá a pena ter presente a questão decisiva que espero abordar com este livro e que foi posta no início do texto. O cristianismo radicalmente reformado que estou desejando estará suficientemente unido e será suficientemente identificável com o cristianismo do passado a ponto de poder ser reconhecido não só como seu herdeiro, mas também como parte integrante da mesma tradição de fé? (…)

A minha esperança profunda é que a Igreja, nas suas inumeráveis formas institucionais, não faça juízos apressados, mas permite que o tempo decida se eu sou um amigo ou um inimigo, profético na minha visão ou enganado pela arrogância.

Jesus é o Senhor

Permitam-me, porém, declarar desde o começo tanto o meu desejo consciente quanto a minha convicção. Estou procurando reformar e repensar algo que amo. Não tenho a intenção de criar uma nova religião. Eu sou um cristão e descerei ao túmulo como membro dessa família de fé. Eu penso que todas as tentativas de construir novas religiões inevitavelmente se destinam a fracassar desde o início. Nenhuma religião, incluindo o cristianismo, jamais começou a sua existência como algo de novo. Os sistemas religiosos representam sempre um processo evolutivo. O cristianismo, por exemplo, floresceu do judaísmo, que, por sua vez, havia sido em parte moldado pelos cultos do Egito, de Canaã, da Babilônia e da Pérsia. A marcha do cristianismo rumo ao predomínio no mundo ocidental foi marcada pela incorporação de elementos dos deuses do Olimpo, do mitraísmo e de outros cultos misteriosos do Mediterrâneo.

Na medida em que o cristianismo se move atualmente no mundo moderno, começa a espelhar intuições recolhidas pelas outras grandes religiões humanas. A evolução é a modalidade do percurso religioso através da história. O que eu procurarei fazer é simplesmente esboçar a evolução futura dessa tradição de fé. Deixarei que os fiéis ou os críticos de amanhã decidam se o cristianismo que sobreviverá a este século XXI ainda estará ou não em ligação com o cristianismo que irrompeu na cena da Judeia no século I e dali se moveu para conquistar o Império Romano no século IV, dominar a civilização ocidental no século XIII, sofrer a restauração pela Reforma no século XVI, seguir a bandeira da expansão colonial europeia no século XIX e se encontrar drasticamente com o século XX.

Eu permanecerei radicado na minha convicção de que a palavra de Deus representa e significa algo real. De algum modo, continuarei afirmando que a figura de Cristo era e é uma manifestação daquela realidade que eu chamo de Deus, e que a vida de Jesus abriu a todos nós um caminho para entrar nessa realidade. Isto é, buscarei defender que Jesus foi um momento bem definido no caminho humano rumo ao significado de Deus. Delinearei uma visão de como eu acredito que essa força pode transcender as épocas para permitir que as pessoas hoje sejam tocadas por ela e também entrem nela, com a necessária criação de comunidades de culto e de liturgias vivas.

Por fim, para cumprir tal tarefa, foi-me pedido que eliminasse desse cristianismo do futuro toda tentativa de tomar ao pé da letra os mitos interpretativos e as lendas explicativas do passado. Tentarei libertar o cristianismo das suas pretensões de exclusividade e da sua necessidade de poder, que distorceram totalmente a sua mensagem. Tentarei andar dentro do sistema religioso desenvolvido institucionalmente, que caracterizou o cristianismo, e lá explorar o poder que esse mesmo sistema buscou justificar e organizar. Embora deseje fugir desses limites, não tenho nenhum desejo de fugir da experiência que obrigou as pessoas de todas as épocas, até hoje , inclusive eu, a dizer: “Jesus é o Senhor!”.

Esses são os meus objetivos. Podem ser alcançados? Ou essa é a fantasia de uma pessoa que está vendo as brasas moribundas de uma tradição de fé e também de uma vida de trabalho, mas é incapaz de admitir que não podem ser reacesas?

Deixarei que os meus leitores decidam isso. No que se refere a mim, acredito que esse é o único modo para se poder continuar sendo fiel às promessas batismais que eu fiz há muito tempo: “Seguir Cristo como meu Senhor e Salvador, procurar Cristo em todas as pessoas e respeitar a dignidade de todo ser humano”.