segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Honi “o desenhista de círculos”, Hanina ben Dosa e Jesus de Nazaré

O falecido Robert Funk, fundador do radical Seminário Jesus, reclamava amargamente do abismo que existe entre os principais estudos e as crenças populares sobre Jesus. Funk pensava principalmente sobre a distância entre o pietismo popular e o conhecimento histórico sobre Jesus; mas em lugar algum o abismo é tão grande como entre a irreligiosidade popular e os estudos sobre o Jesus histórico.

O movimento do Pensamento Livre, que alimenta a objeção popular que as crenças cristãs sobre Jesus são derivadas da mitologia pagã, está empacado entre os estudos do final do século XIX. De certa forma isso é impressionante, já que existem muitos estudiosos contemporâneos céticos, como os do Seminário Jesus, cuja obra os livre pensadores poderiam utilizar a fim de justificar seu ceticismo sobre a compreensão tradicional de Jesus. Mas isso só serve para mostrar como esses popularizadores não têm contato com o trabalho de estudiosos sobre Jesus. Eles estão um século desatualizados.

Voltando à época da chamada escola de História de Religiões, estudiosos em religiões comparadas encontraram paralelos a crenças cristãs em outras religiões, e alguns pensaram em explicar que essas crenças (incluindo a na ressurreição de Jesus) foram influenciadas por esses mitos. Hoje, no entanto, raramente algum estudioso pensa em mitos como uma categoria importante para se interpretar os Evangelhos. Os estudiosos perceberam que a mitologia pagã é simplesmente o contexto interpretativo errado para se compreender Jesus de Nazaré.

Craig Evans chama essa mudança de o “Eclipse da Mitologia” na pesquisa sobre a vida de Jesus (veja seu artigo excelente “Life-of-Jesus Research and the Eclipse of Mythology”, Thelogical Studies 54 [1993]: 3-36). James D. G. Dunn começa assim seu artigo sobre “Mitos” no Dicionário de Jesus e dos Evangelhos (IVP, 1993) com a clara rejeição: “Mito é um termo de, pelo menos, relevância duvidosa para o estudo de Jesus e dos Evangelhos.”

Algumas vezes essa mudança é referida como a “rejudaização de Jesus”, pois Jesus e Seus discípulos eram judeus do primeiro século, e é contra esse pano de fundo que devem ser compreendidos. A rejudaização de Jesus tem ajudado a tornar injustificada qualquer compreensão do retrato dEle nos Evangelhos como influenciado significativamente pela mitologia.

Essa mudança é proferida em relação à historicidade dos milagres e exorcismos de Jesus. Estudiosos contemporâneos podem não estar mais preparados para acreditar no caráter sobrenatural dos milagres e exorcismos de Jesus do que os estudiosos de gerações anteriores. Mas eles não estão mais dispostos a atribuir essas histórias à influência dos mitos gregos do homem-divino (theios aner). Antes, os milagres e exorcismos de Jesus devem ser interpretados no contexto das crenças e práticas judaicas do primeiro século. O estudioso judeu Geza Vermes, por exemplo, tem chamado a atenção aos ministérios dos realizadores de milagres e/ou exorcistas carismáticos Honi “o desenhista de círculos” (primeiro séc. a.C.) e Hanina ben Dosa (primeiro séc. d.C.) e interpreta Jesus de Nazaré como um judeu hassídico ou um santo. Hoje o consenso dos estudos sustenta que a realização de milagres e exorcismos (apoiando a questão de seu caráter sobrenatural) pertence, sem sombra de dúvida, a qualquer reconstrução historicamente aceitável do ministério de Jesus.

O colapso da antiga escola da História de Religiões ocorreu por principalmente dois motivos. Primeiro, estudiosos perceberam que os paralelos alegados eram ilegítimos. O mundo antigo era um lugar cheio de mitos de deuses e heróis. Estudos comparativos na religião e literatura requerem sensibilidade às suas similaridades e diferenças, ou o resultado será inevitavelmente distorção e confusão. Infelizmente, aqueles que apresentaram paralelos às crenças cristãs falharam em exercer essa sensibilidade. Veja, por exemplo, a história do nascimento virginal, ou, mais precisamente, a concepção virginal de Jesus. Os paralelos pagãos alegados a essa história são sobre lendas de deuses que se materializaram e tiveram relações sexuais com mulheres humanas para gerar uma prole humano-divina (como Hércules). Assim como esta, essas histórias são exatamente o contrário dos relatos dos Evangelhos, nos quais Maria concebeu Jesus sem ter tido nenhuma relação sexual. As histórias dos Evangelhos sobre a concepção virginal de Jesus são, na verdade, únicas no Oriente Próximo antigo.

Ou considere o evento dos Evangelhos que eu acho mais interessante: a ressurreição de Jesus dentre os mortos. Muitas das alegadas similaridades a esse evento são na verdade histórias apoteóticas, a divinização e assunção do herói ao céu (Hércules, Rômulo). Outras são sobre desaparecimentos, afirmando que o herói foi-se para um plano superior (Apolônio de Tiana, Empédocles). Outras ainda são símbolos sazonais do ciclo das colheitas, conforme a vegetação morre na estação seca e volta à vida na estação chuvosa (Tamuz, Osíris, Adônis). Algumas são expressões políticas de adoração aos imperadores (Júlio César, César Augusto). Nenhuma delas é similar à ideia judaica de ressurreição dos mortos. David Aune, especialista em literatura comparada do antigo Oriente Próximo, conclui: “nenhum paralelo a elas [tradições da ressurreição] é encontrado nos escritos greco-romanos” (“The Genre of the Gospels”, em Gospel Perspectives II, ed. R. T. France and David Wenham [Sheffield: JSOT Press, 1981], p. 48).

Na verdade, a maioria dos estudiosos chegou a duvidar se, apropriadamente falando, houve realmente algum mito de deuses que morriam e ressurgiam! No mito de Osíris, um dos mitos sazonais mais conhecidos, ele nem chega a voltar à vida, mas simplesmente continua a existir exilado no sub-mundo. Numa revisão recente da evidência, T. N. D. Mettinger informa: “A partir da década de 30... um consenso se desenvolveu ao significado que os deuses, 'que morriam e ressurgiam', morreram, mas não voltaram a viver novamente... Aqueles que continuam a pensar diferente são vistos como sobreviventes de uma espécie quase extinta” (Tryggve N. D. Mettinger, The Riddle of Resurrection: “Dying and Rising Gods” in the Ancient Near East [Stockholm, Sweden: Almquist & Wiksell International, 2001], p. 4, 7).

O próprio Mettinger acredita que mitos de deuses que morriam e ressurgiam existiram nos casos de Dumuzi, Baal e Melqart; mas reconhece que tais símbolos são bem diferentes da antiga crença cristã na ressurreição de Jesus:
“Os deuses que morriam e ressurgiam estavam muito ligados ao ciclo sazonal. Sua morte e retorno eram vistos como refletidas nas mudanças nas plantas. A morte e ressurreição de Jesus é um evento único, não se repete, e não está ligado às mudanças sazonais... Não existe, pelo o que eu sei, nenhuma evidência clara que a morte e ressurreição de Jesus são uma construção mitológica, baseada nos mitos e ritos dos deuses sazonais das nações vizinhas. Enquanto for estudada com proveito contra o pano de fundo da crença da ressurreição judaica, a fé na morte e ressurreição de Jesus mantém seu caráter único na história das religiões. O mistério continua” (Ibidem, p. 221).

Repare no comentário de Mettinger, que a crença na ressurreição de Jesus pode ser proveitosamente estudada contra o pano de fundo das crenças judaicas da ressurreição (não mitologia pagã). Aqui vemos aquela mudança nos estudos no Novo Testamento que eu apontei acima como a rejudaização de Jesus. A ilegitimidade das similaridades alegadas é apenas uma indicação de que a mitologia pagã é o esquema interpretativo errado para compreender a crença dos discípulos na ressurreição de Jesus.

Segundo, a escola da História de Religiões sucumbiu como uma explicação para a origem das crenças cristãs sobre Jesus, porque não houve nenhuma conexão causal entre os mitos pagãos e a origem das crenças cristãs sobre Jesus. Veja, por exemplo, a ressurreição. Os judeus conheciam os deuses sazonais mencionados acima (Ez 37:1-14) e os acharam repugnantes. Por isso, não há traços de culto a deuses sazonais na Palestina do primeiro século. Para os judeus, a ressurreição à glória e imortalidade não aconteceria antes da ressurreição geral de todos os mortos no fim do mundo. É inacreditável pensar que os discípulos originais teriam súbita e sinceramente acreditado que Jesus de Nazaré ressuscitou dentre os mortos apenas porque ouviram sobre mitos pagãos de deuses que morriam e ressurgiam.

Mas, de certo modo, tudo isso é irrelevante à sua pergunta principal, Kevin. Pois, como você mostrou, as pessoas com que você conversa não têm acesso aos estudos. Quando você mostra a elas a ilegitimidade das similaridades alegadas, então é acusado de “ter trabalhado muito duro para salvar sua religião”. Essa é uma situação que você não pode vencer. Então, estou inclinado a dizer-lhe que você não deveria ocupar-se em “tentar refutar cada similaridade”. Antes, eu acho que uma atitude mais genérica e desinteressada de sua parte pode ser mais eficaz.

Quando eles disserem que as crenças cristãs sobre Jesus vieram da mitologia pagã, acho que você deveria rir. Então olhe para eles com os olhos arregalados e um grande sorriso e diga: “Vocês realmente acreditam nisso?” Aja como se tivesse acabado de conhecer alguém que acredite na terra plana ou na conspiração de Roswell. Você podia dizer algo do tipo: “Cara, essas velhas teorias estão mortas há mais de cem anos! De onde você está tirando isso?” Diga-lhes que isso é apenas lixo sensacionalista e não estudos sérios. Caso insistam, então peça a eles que lhe mostrem as próprias passagens que narram a suposta similaridade. São eles que estão nadando contra o consenso dos estudos, então faça-os trabalhar duro para salvar a religião deles. Eu acho que você descobrirá que eles nem sequer leram as fontes originais.

Se eles chegarem a citar um trecho de uma fonte, acho que você ficará surpreso com o que verá. Por exemplo, no meu debate sobre a ressurreição com Robert Prince, ele dizia que as curas que Jesus fez vieram dos relatos mitológicos de curas, como as de Esculápio. Eu insisti que ele lesse a todos uma passagem das fontes originais mostrando a suposta similaridade. Quando ele leu, o que alegava não tinha nada a ver com as histórias dos Evangelhos sobre as curas de Jesus! Essa foi a melhor prova de que a origem das histórias não estava relacionada.

Lembre-se: qualquer um que insiste nessa objeção tem de suportar o ônus da prova. Ele precisa mostrar que as narrativas são paralelas e, além disso, que são causalmente ligadas. Insista que eles suportem esse ônus, caso você leve as objeções deles a sério.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Negando a historicidade de Jesus

Além de vários cientistas, pensadores, historiadores, filósofos e escritores como Nietzsche, Einstein, Strauss, Emílio Bossi, Ernest Renan, José Saramago, Bertrand Russell, Richard Dawkins..., vários outros também não criam no "Deus" dos Cristãos, nem em Jesus Cristo e muito menos na Bíblia e nos Evangelhos, como "livros sagrados".

E quanto à historicidade de Cristo, muitos foram os que se pronunciaram contrários, escreveram livros, ensaios e até sofreram perseguições em suas vidas, por terem a coragem de assumir publicamente suas posturas. Dentre alguns dos mais notórios que se manifestaram contra a historicidade de Cristo, segue, abaixo, uma relação cronológica, extraida do site Jesus Never Existed (http://www.jesusneverexisted.com/scholars-portuguese.html), na qual e segundo minhas fontes, poderia eu ainda, se quisesse, fazer inúmeras outras inserções, como, por exemplo e para citar só um nome, Bart D. Ehrman, uma lamentável ausência na lista, com 3 excelentes livros sobre o assunto ("Evangelhos Perdidos: As Batalhas pela Escritura e os Cristianismos que não Chegamos a Conhecer (2003)"; " O Que Jesus Disse e o que Jesus Não Disse: Quem mudou a Bíblia e por quê?" (2006); "Pedro, Paulo e Maria Madalena: A verdade e a lenda sobre os seguidores de Jesus (2006)". Só não o fiz por respeitar a autoria e manter os créditos ao artigo original, aqui reproduzido, na íntegra, e apenas reformatado nos grifos.

Veja a matéria e a lista:
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Demolindo o Mito de Jesus – Uma História
Por mais de duzentos anos, uma minoria de corajosos pesquisadores têm ousado questionar a historicidade de Jesus. Apesar dos riscos de ataque físico, ruína profissional e ostracismo, eles duvidaram seriamente da veracidade da saga dos evangelhos, descascaram as camadas de fraude e engano e finalmente desafiaram a própria existência do homem-deus.

Hermann Samuel Reimarus (1694-1768).1778, Sobre a Intenção de Jesus e Seu Ensinamento. Pensador iluminista e professor de línguas orientais do Ginásio de Hamburgo, sua extensa obra -- publicada após sua morte -- rejeita a “religião revelada” e defende um deísmo naturalista. Reimarus acusou os escritores dos evangelhos de fraude proposital e inumeráveis contradições.

Francois Marie Arouet (Voltaire) (1694-1778) A mais influente figura do Iluminismo, foi educado num colégio jesuíta e ainda assim concluiu “O cristianismo é a religião mais ridícula, absurda e sangrenta que jamais infectou o mundo... O verdadeiro Deus não pode ter sido dado à luz por uma garota, nem sido morto num cadafalso e nem ser comido numa porção de hóstia.” Preso, exilado, seus livros banidos e queimados, a grande popularidade de Voltaire na França assegurou-lhe um descanso final no Panteão, em Paris. Extremistas religiosos roubaram seus restos mortais e os atiraram numa pilha de lixo.

Count Constantine Volney, 1787, As Ruínas; ou, Meditação sobre as revoluções dos impérios (Ruína dos Impérios). Pesquisador napoleônico, viu com seus próprios olhos evidências de precursores egípcios do cristianismo.

Edward Evanson, 1792, A Dissonância dos Quatro Evangelistas Geralmente Recebidos e a Evidência de suas Respectivas Autenticidades. Racionalista inglês que contestou a autoria apostólica do Quarto Evangelho e denunciou como espúrias várias epístolas Paulinas.

Charles François Dupuis, 1794, Origem de todos os Cultos ou a Religião Universal. Interpretação astrológico-mítica do Cristianismo (e de toda religião). “Um grande erro é mais facilmente propagado que uma grande verdade, porque é mais fácil crer que raciocinar e porque as pessoas preferem o maravilhoso do romance à simplicidade da História.” Dupuis destruiu a maior parte de seu próprio trabalho por causa das violentas reações que causou.

Thomas Paine, 1795, A Idade da Razão. Panfleteiro que fez o primeiro apelo à independência dos Estados Unidos (Bom Senso, 1776; Direitos do Homem,1791) Paine derramou sátiras virulentas nas contradições e atrocidades da Bíblia. Como muitos revolucionários americanos, Paine era deísta:
"Eu não creio na fé professada pela igreja judaica, pela igreja romana, pela igreja grega, pela igreja turca, pela igreja protestante ou por qualquer outra de que tenha notícia... Cada uma destas igrejas acusa a outra de descrença; e de minha parte eu descreio de todas.” – A Idade da Razão

Robert Taylor, 1828, Sintagma de Provas da Religião Cristã; 1829, Diegesis. Taylor foi aprisionado por afirmar as origens míticas do cristianismo. “Os primeiros cristãos entendiam as palavras como nada mais que a personificação do princípio da razão, da bondade, ou daquele princípio, seja qual for, que pode ser mais benéfico à humanidade durante o curso de uma vida.”

Godfrey Higgins (1771-1834). 1836, Anacalipse – Uma Tentativa de Remover o Véu da Ísis Saíta ou um Inquérito da Origem das Línguas, Nações e Religiões. Pioneiro inglês da arqueologia e maçom.
Bruno Bauer, 1841, Crítica da História Evangélica dos Sinóticos. 1877, Cristo e os Césares. A Formação da Cristandade entre os Romanos Helenizados. O iconoclasta original. Bauer contestou a autenticidade de todas epístolas paulinas (nas quais viu a influência de pensadores estóicos, como Sêneca) e identificou o papel de Fílon no cristianismo emergente. Bauer rejeitou a historicidade do próprio Jesus. "Tudo que se sabe sobre Jesus pertence ao reino da fábula.” Como resultado, em 1842, Bauer foi ridicularizado e removido de sua cátedra de Novo Testamento em Tübingen.

Ralph Waldo Emerson, 1841, Ensaios. Inicialmente cristão trinitário e posteriormente ministro unitário, defendeu que Jesus era um “verdadeiro profeta”, mas que o cristianismo institucionalizado era um “despotismo oriental”: “Nossas escolas dominicais, igrejas e ordens monásticas são jugos sobre nossos pescoços."

Mitchell Logan, 1842, A Mitologia Cristã Revelada. “A opinião predominante, embora infundada e absurda, é sempre a rainha das nações.”

Ferdinand Christian Baur, 1845, Paulo, o Apóstolo de Jesus Cristo. Estudioso alemão que identificou como “inautênticas” não apenas as epístolas pastorais, mas também Colossenses, Efésios, Filêmon e Filipenses (deixando apenas as quatro principais epístolas paulinas consideradas genuínas). Baur foi o fundador da assim chamada “Escola de Tübingen”.

David Friedrich Strauss, 1860, A Vida de Jesus Examinada Criticamente. Vigário luterano que se tornou estudioso, expôs magistralmente os milagres evangélicos como mito e, no processo, reduziu Jesus a um homem comum, o que lhe custou sua carreira.

Ernest Renan, 1863, Vida de Jesus. Educado como padre católico, escreveu uma biografia romanceada do homem-deus, sob a influência dos críticos alemães. Custou-lhe seu emprego.

Robert Ingersoll, 1872, Os Deuses. Extraordinário orador de Illinois, seus discursos atacavam a religião cristã. “Sempre me pareceu que um ser vindo de outro mundo, com uma mensagem de infinita importância para a humanidade, deveria pelo menos ter escrito tal mensagem de seu próprio punho. Não é admirável que nenhuma palavra foi jamais escrita por Cristo?”

Kersey Graves, 1875, Os Dezesseis Salvadores Crucificados da Humanidade. Quacre da Pensilvânia que viu um fundo pagão através das invenções cristãs, embora raramente citasse fontes para suas conclusões avançadas.

Allard Pierson, 1879, O Sermão da Montanha e outros Fragmentos Sinóticos. Historiador de arte, literatura e teologia que identificou o Sermão da Montanha como uma coleção de aforismos da literatura sapiençal judaica. Esta publicação foi o começo da Crítica Radical Holandesa. Não apenas a autenticidade das epístolas paulinas, mas a própria existência histórica de Jesus foi trazida à baila.

Bronson C. Keeler, 1881, Pequena História da Bíblia. Uma exposição clássica das fraudes cristãs.

Abraham Dirk Loman, 1882, "Quaestiones Paulinae," in Theologisch Tijdschrift. Professor de teologia em Amsterdã que declarou que todas as epístolas paulinas datam do segundo século. Loman explicou que o cristianismo era a fusão do pensamento judaico ao helenístico-romano. Ao perder a visão, Loman acabou enxergando através das trevas da história da igreja.

Thomas William Doane, 1882, Os Mitos Bíblicos e seus Paralelos em Outras Religiões. Desatualizado, mas uma revelação clássica dos antecessores pagãos dos mitos e milagres bíblicos.

Samuel Adrianus Naber, 1886, Verisimilia. Laceram conditionem Novi Testamenti exemplis illustrarunt et ab origine repetierunt. Classicista que viu mitos gregos escondidos dentro das escrituras cristãs.

Gerald Massey, 1886, O Jesus Histórico e o Cristo Mítico. 1907, Antigo Egito-A Luz do Mundo. Outro clássico da pena de um inimigo precoce do clero. Esse egiptologista britânico escreveu seis volumes sobre a religião do antigo Egito.

Edwin Johnson, 1887, Antiqua mater. Um Estudo das Origens Cristãs. Teólogo radical inglês, identificou os primeiros cristãos como os primeiros cristãos como os “crestianos”, seguidores de um bom (Chrestos, em grego) Deus que havia se apossado do mito de Dionísio Eleutério (“Dionísio, o Libertador”) para produzir um homem-deus altruísta que se sacrificou. Denunciou que os doze apóstolos eram uma completa invenção.

Rudolf Steck, 1888, A Epístola aos Gálatas investigada quanto à sua pureza e uma Observação Crítica das Principais Epístolas Paulinas. Estudioso radical suíço que classificou todas as epístolas paulinas como falsas.

Franz Hartman, 1889, A Vida de Johoshua: Profeta de Nazaré.

Willem Christiaan van Manen, 1896, Paulus. Professor em Leiden e mais famoso dos Radicais Holandeses, um clérigo que não acreditava na ressurreição física de Jesus Cristo. Depois de resistir à conclusão por vários anos, van Manen admitiu que nenhuma das epístolas paulinas era genuína e que os Atos dos Apóstolos se baseiam nas obras de Josefo.

Joseph McCabe, 1897, Porque Deixei a Igreja. 1907, A Bíblia na Europa: Investigação da Contribuição da Religião Cristã à Civilização. 1914, As Origens da Moral Evangélica. Monge franciscano que se tornou evangélico e depois ateu. McCabe, prolífico autor, destroçou muitas partes da lenda cristã – "Não há uma "figura de Jesus" nos Evangelhos. Há uma dúzia de figuras" – mas continuou a admitir a plausibilidade de um fundador histórico, apesar disso.

Albert Schweitzer, 1901, O Mistério do Reino de Deus. 1906, A Busca pelo Jesus Histórico. O famoso teólogo e missionário alemão (35 Anos nos Camarões) ridicularizou o Jesus humanitário dos liberais e teve, ao mesmo tempo, coragem para reconhecer o trabalho dos Radicais Holandeses. Sua conclusão pessimista foi a de que o super-herói foi um fanático apocalíptico que morreu desapontado. Autor da célebre frase: "aqueles que buscam um Jesus histórico apenas encontram um reflexo de si mesmos."

Wilhelm Wrede, 1901, O Segredo Messiânico. Demonstrou como, no evangelho de Marcos, uma falsa história foi criada pelas crenças dos primeiros cristãos.

George Robert Stowe Mead, 1903, Jesus Viveu em 100 a.C.? Uma discussão das histórias judaicas sobre Yeshu que leva Jesus para uma época mais antiga.

Thomas Whittaker, 1904, Origens da Cristandade. Declarou que Jesus era um mito.

William Benjamin Smith, 1906, O Jesus Pré-Cristão. 1911, Os Ensinamentos Pré-Cristãos do Jesus Pagão. Defende a existência de um culto a um Jesus pré-cristão na ilha de Chipre.

Albert Kalthoff, 1907, Ascensão do Cristianismo. Outro radical alemão que identificou o Cristianismo como uma psicose de massas. Cristo era essencialmente o princípio transcedental da comunidade cristã que buscava uma reforma social apocalíptica.

Gerardus Bolland, 1907, O Josué Evangélico. Filósofo em Leiden, identificou a origem do cristianismo no antigo gnosticismo judaico. O super-astro do Novo Testamento é o “filho de Num” do Velho Testamento, o homem a quem Moisés renomeou como Josué. A virgem nada mais é que um símbolo do povo de Israel. De Alexandria, os "Netzerim" levaram seu evangelho até a Palestina.

Em 1907, o Papa Pio X condenou os Modernistas que estavam “atuando dentro dos limites da Igreja”. Um juramento anti-Modernista foi introduzido em 1910.

Prosper Alfaric (1886-1955) Professor francês de teologia, abalado pela posição de Pio X, renunciou à sua fé e deixou a Igreja em 1909 para trabalhar em prol do racionalismo.

Mangasar Magurditch Mangasarian, 1909, A Verdade Sobre Jesus? Ele É um Mito? Perspicaz ministro presbiteriano que enxergou o mito por trás da farsa.

Karl Kautsky, 1909, As Fundações do Cristianismo. Teórico socialista que interpretou o cristianismo como uma manifestação da luta de classes.

John E. Remsburg, 1909, O Cristo: Uma revisão crítica e análise de Sua existência. Afirmou que os evangelhos estavam cheios de contradições, duvidou que Jesus tenha existido e afirmou que o Cristo sobrenatural é apenas certamente um dogma cristão.

Arthur Drews, 1910, Die Christusmythe (O Mito de Cristo). 1910, Die Petruslegende (A Lenda de Pedro). 1924, Die Entstehung des Christentums aus dem Gnostizismus (A Emergência do Cristianismo a partir do Gnosticismo). Eminente filósofo que foi o maior expoente da Alemanha na argumentação em favor do caráter mitológico de Cristo. Segundo Drews, os evangelhos historicizaram um Jesus mítico pré-existente cujo caráter foi derivado dos profetas e da literatura sapiençal judaica. A Paixão foi baseada em especulações de Platão.
John Robertson, 1910, Christianismo e Mitologia. 1911, Cristos Pagãos. Estudos em Hagiografia Comparativa. 1917, O Problema de Jesus. Robertson chamou atenção para a universalidade de muitos dos elemtnos da biografia de Jesus e para a existência de rituais de crucifixão no mundo antigo. Identificou Jesus/Josué com um antigo deus efraimita em forma de cordeiro.

Gustaaf Adolf van den Bergh van Eysinga, 1912, Visões Radicais sobre o Novo Testamento. 1918, Cristandade Pré-Cristã. O surgimento do Evangelho no mundo helenístico. Teólogo e último dos “radicais holandeses” a ter uma cátedra universitária.

Alexander Hislop, 1916, As Duas Babilônias. Exaustiva exposição dos rituais e parafernálias pagãs do Catolicismo Romano.

Edward Carpenter, 1920, Credos Pagãos e Cristãos. Elaborou uma descrição das origens pagãs do Cristianismo.

Rudolf Bultmann, 1921, A História da Tradição Sinótica. 1941, Novo Testamento e Mitologia. Teólogo luteraon e professor da Universidade de Marburgo, Bultmann foi o expoente da “crítica formal” e fez muito para desmistificar os evangelhos. Identificou as narrativas sobre Jesus como teologia expressa em linguagem mítica. Observou também que o Novo Testamento não é a história de Jesus, mas o registro da crença dos primeiros cristãos. Argumentou que a busca por um Jesus histórico era infrutífera: “Nós não podemos saber praticamente nada a respeito da vida ou da personalidade de Jesus.” (Jesus e a Palavra, 8)

James Frazer, 1922, O Ramo Dourado. Interpretação antropológica do progresso do homem a partir da magia, através da religião, até a ciência. O Cristianismo é um fenômeno cultural.

P. L. Couchoud, 1924, O Mistério de Jesus.1939, A Criação de Cristo. Couchoud era adepto da historicidade de Pedro, mas não de Jesus, e defendeu que a Paixão foi modelada a partir da morte de Estêvão.

Georg Brandes, 1926, Jesus – Um Mito. Identificou o Apocalipse como a parte mais antiga do Novo Testamento.

Joseph Wheless, 1926, Palavra de Deus? Uma Exposição das Fábulas e Mitologia da Bíblia e das Falácias da Teologia. 1930, Falsificações no Cristianismo. Advogado americano, criado no “Cinturão da Bíblia”, destroçou as fantasias bíblicas.

Henri Delafosse, 1927, As Cartas de Inácio de Antióquia. 1928, "Os Escritos de São Paulo" em Cristianismo. Epístolas de Inácio são denunciadas como falsificações tardias.

L. Gordon Rylands, 1927, A Evolução do Cristianismo. 1935, Jesus Viveu?

Edouard Dujardin, 1938, Antiga História do Deus Jesus.

John J. Jackson, 1938, Cristianismo Antes de Cristo, Chamou atenção para precedentes egípcios das crenças cristãs.

Alvin Boyd Kuhn, 1944, Quem É o Rei da Glória? 1970, Renascimento para o Cristianismo. Jesus não foi uma pessoa, mas um símbolo da alma humana que existe em cada ser humano.

Herbert Cutner, 1950, Jesus: Deus, Homem ou Mito? Natureza mítica de Jesus e o sumário do contínuo debate entre os mitologistas e os historicizantes. A hipótese mítica é uma tradição contínua, não nova. Cristo teve origens pagãs.

Georges Las Vergnas, 1956, Porque Deixei a Igreja Romana.

Georges Ory, 1961, Uma Análise das Origens de Cristo.


Guy Fau, 1967, A Fábula de Jesus Cristo.

John Allegro, 1970, O Cogumelo Sagrado e a Cruz. 1979, Os Manuscritos do Mar Morto e o Mito de Cristo. Jesus não foi mais que um cogumelo mágico e a sua vida, a interpretação alegórica de um estado alterado de consciência. Não foi preso, mas sofreu descrédito e teve sua carreira arruinada.

George Albert Wells, 1975, Jesus Existiu? 1988, A Evidência Histórica de Jesus. 1996, A Lenda de Jesus. 1998, Jesus Mito. 2004, Podemos Confiar no Novo Testamento? Considerações sobre a Confiabilidade dos Mais Antigos Testemunhos Cristãos. O Cristianismo surgiu da literatura sapiençal judaica. Em seus livros mais tardios, admite a possibilidade de influência de um pregador real.

Max Rieser, 1979, O Verdadeiro Fundador do Cristianismo e a Filosofia Helenística. O Cristianismo começou com os judeus da Diáspora e depois, retroativamente, ambientado na Palestina de antes de 70. O Cristianismo chegou por último à Palestina, e não primeiro – eis porque achados arqueológicos cristãos aparecem em Roma, mas não na Judéia, até o século IV.

Abelard Reuchlin, 1979, A Verdadeira Autoria do Novo Testamento. Teoria de Conspiração do melhor tipo: o aristocrata romano Arius Calpurnius Pisus (alias, “Flavius Josephus”) conspirou para ganhar o controle de todo o Império Romano através da invenção de uma religião inteiramente nova.

Hermann Detering, 1992, Cartas de Paulo sem Paulo?: As cartas de Paulo segundo os críticos radicais holandeses. Ministro religioso holandês adepto da antiga tradição dos radicais. Nem Jesus nem Paulo existiram.

Gary Courtney, 1992, 2004 Et tu, Judas? Então Caiu Jesus! A Paixão de Cristo é essencialmente a história de César sob um disfarce judaico, mesclada ao culto da morte/ressurreição de Átis. Fãs judaicos de César assimilaram o “salvador da humanidade” ao “servo sofredor” de Isaías.

Michael Kalopoulos, 1995, A Grande Mentira. Historiador grego que descobriu paralelos notavelmente semelhantes entre os textos bíblicos e a mitologia grega. Denunciou a natureza astuta, mentirosa e autoritária da religião.

Gerd Lüdemann, 1998, A Grande Ilusão: E o que Jesus Realmente Disse e Fez. 2002, Paulo: O Fundador do Cristianismo. 2004, A Resurreição de Cristo: Uma Investigação Histórica. Depois de 25 anos de estudo, o professor alemão concluiu que Paulo, não Jesus, iniciou o Cristianismo. Lüdemann foi expulso da faculdade de teologia da Universidade de Göttingen pour ousar dizer que a Ressurreição foi um “pio auto-engano”. Demais para a liberdade acadêmica.

Alvar Ellegard, 1999, Jesus, Cem Anos Antes de Cristo. O Cristianismo visto como originário da Igreja Essênia de Deus, com Jesus sendo um protótipo do Mestre da Virtude.

D. Murdock (“Acharya S”) 1999, A Conspiração Cristã: A Maior Mentira Que Já Foi Vendida. 2004, Sóis de Deus: Krishna, Buda e Cristo Revelados. Adiciona uma dimensão astro-teológica à demolição do mito cristão. Murdds a astro-theological dimension to christ-myth demolition. Murdock identifica Jesus Cristo como uma divindade composta usada para unificar o Império Romano.

Earl Doherty, 1999, O Enigma de Jesus. O Cristianismo Primitivo Começou com um Cristo Mítico? Poderosa afirmação de como o Cristianismo começou como uma seita mística judaica, sem necessidade de Jesus!

Timothy Freke, Peter Gandy, 1999, Os Mistérios de Jesus. 2001, Jesus e a Deusa Perdida: Os Ensinamentos Secretos dos Cristãos Originais. Examina a relação próxima entre a história de Jesus e a de Osíris/Dionísio. Jesus e Maria Madalena são figuras míticas baseadas na dualidade Deus/Deusa do paganismo.

Harold Liedner, 2000, A Criação do Mito Cristão. Anacronismos e erros geográficos dos evangelhos denunciados. O Cristianismo é uma das fraudes mais bem-sucedidas da História.

Robert Price, 2000, Deconstruindo Jesus. 2003 O Incrível Encolhimento do Filho do Homem: Quão Confiável é a Tradição Evangélica? Ex-ministro e estudioso reputado, mostra como Jesus é o amálgama de diversos profetas do primeiro século, redentores de cultos de mistério e “aions” gnósticos.

Hal Childs, 2000, O Mito do Jesus Histórico e a Evolução da Consciência. O ataque de um psicoterapeuta ao deus-homem.

Michael Hoffman, 2000, Filósofo e teórico da “morte do ego” que descartou a existência de um Jesus histórico.

Burton Mack, 2001, O Mito Cristão: Origens, Lógica e Legado. Formação social da criação do mito.

Luigi Cascioli, 2001, A Fábula de Cristo. Indicia o Papado por lucrar com uma fraude!

Frank R. Zindler, 2003, O Jesus que os Judeus Nunca Conheceram: Sepher Toldoth Yeshu e a Busca por um Jesus Histórico em Fontes Judaicas. Sem evidências em fontes Judaicas que corroborem o Messias espectral.

Daniel Unterbrink, 2004, Judas, o Galileu. Carne e Sangue de Jesus. Paralelos entre o líder da revolta fiscal de 6 AD e o fantasma dos Evangelhos explorados em detalhe. “Judas é Jesus”. Bem, pelo menos em parte, sem dúvida.

Tom Harpur, 2005, O Cristo Pagão: Recuperando a Luz Perdida. Estudioso canadense do Novo Testamento e ex-padre anglicano que reafirma as idéias de Kuhn, Higgins e Massey. Jesus é um mito e as idéias originais do Cristianismo se originaram no Egito.

Francesco Carotta, 2005, Jesus Era César: Sobre a Origem Juliana do Cristianismo. Exaustiva lista de paralelos. Estranhamento afirma que César era Jesus.

Joseph Atwill, 2005, O Messias de César: A Conspiração Romana para Inventar Jesus. Outra análise das similaridades entre Josefo e os Evangelhos. Atwil argumenta que os conquistadores da Judéia, Vespasiano, Tito e Domiciano, usaram judeus helenizados para manufaturar os textos “Cristãos” para estabelecer uma alternativa pacífica ao judaísmo militante. Jesus foi Tito? Não creio.

Michel Onfray, 2005, Tratado de Ateologia Filósofo francês que defende o ateísmo positivo, desmistifica a existência histórica de Jesus, entre outras coisas.

Kenneth Humphreys, 2005, Jesus Não Existiu. O livro deste site. Reúne as mais convincentes exposições sobre o suposto super-herói messiânico; O autor ambienta sua exegese dentro do contexto sócio-histórico de uma religião maligna em evolução.

Jay Raskin, 2006, A Evolução de Cristo e dos Cristianismos. Acadêmico e ativo cineasta, Raskin olha além da cortina de fumaça oficial de Eusébio e encontra um Cristianismo fragmentário e um Cristo composto a partir de vários personagens históricos e literários. Especula que a camada mais antiga da criação do mito foi uma peça escrita por uma mulher chamada Maria. Talvez.

Thomas L. Thompson, 2006, O Mito do Messias. Teólogo, deão e historiador da Escola de Compenhague que concluiu que tanto Jesus como Davi são amálgamas de temas mitológicos do Oriente Médio originados na Idade do Bronze.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

João, O Visionário Gnóstico de Patmos

Os últimos 30 anos experimentaram uma verdadeira revolução paradigmática acerca dos estudos do evangelho joanino [1]. Dentre algumas anomalias que engendraram tal revolução, trataremos brevemente de algumas para fins de nossa apresentação aqui. Digno de nota é ressaltar que, relacionado à mesma questão paradigmática, ainda prosseguem debates em relação ao grau de unidade interna e amplitude da audiência visada nele.

Na maior parte do século XX predominou, nos âmbitos de estudo estritamente técnico-acadêmico, a ênfase de que fora um documento compilado tardiamente, no século II, muitos defendendo que seria da segunda metade do século. Entendia-o como um escrito marcado por reflexos de uma matriz predominantemente helenista, mais possivelmente um platonismo tardio, marcado pelo dualismo, bem como refletindo crenças gnósticas; um documento “proto-gnóstico”[2 ]. De fato, podemos ver reflexos na literatura helênica dos temas “luz e trevas” relacionados a uma experiência de conversão espiritual ou que perpassa por conflitos cósmicos entre o caminho do bem e o caminho do mal. Por exemplo, escrevendo na metade do século II, Luciano de Samósata fala da passagem da “luz para as trevas” ao encontrar-se com o platonista Nigrinus[3] .

Contudo, anomalias foram se acumulando de tal forma que o paradigma antigo não conseguia lidar com ela, por mais elasticidade que pudera ter. Em uma delas, os trabalhos com os Manuscritos do Mar Morto, apresentaram que a comunidade de Qunram, provavelmente compartilhando com outros segmentos judaicos mais esotéricos, apresentavam muitos elementos de dualidade “luz/trevas”. Isso provocou muita especulação. Hoje alguns estudos avançaram ao ponto de apresentar que, por elementos sociológicos comuns, comunidades mais marginais no judaísmo compartilharam, independentemente, de tais pontos, que estimularam tal abordagem, com seu fundamento na Bíblia Hebraica [4].
Outras anomalias, especialmente advindas da arqueologia, se acumularam para apresentar a ambientação básica da narrativa do evangelho na Palestina antes de 70 a.C. Um grau considerável do que se considerava como anacronismos nele tiveram de ser revistos, com achados, que descortinaram não apenas elementos de cenários ( Caná da Galiéia, tanques de Betesda e Siloé, o Gábata, o poço de Jacó, etc.), bem como a geografia humana que corroboraram o fio geral da situação no tempo e espaço do narrado [5] .

Desta forma, o evangelho passa a ser julgado - longe de “tecnicamente exato” ou desprovido de qualquer mínimo anacronismo [6], e longe de minimizar o caráter midráshico e sapiencial da apresentação dos sermões de Jesus no evangelho [7]- de relevância para descortinar historicamente o cenário do ministério de Jesus e seu ambiente, na Palestina, especialmente Jerusalém, do século I, e no ideário judaico polissêmico e polimorfo de seus dias [8]. Quanto ao estudo técnico focado no próprio evangelho joanino, hoje a preocupação com fontes e história é menor, dando mais lugar ao debruçar sobre o produto final e sua fixação [9]

Outras questões também se avolumam, de nível textual, etc., mas que viriam ao caso em um empreendimento de maior escopo do que o presente texto.

Algo que tomaremos aqui se refere a um tema joanino importantíssimo. Vamos apresentá-lo por uma passagem emblemática:

Quando a mulher dá a luz, ela sente tristeza, porque a sua hora chegou; mas quando ela deu à luz à criança, não se lembra mais da sua aflição, mas enche-se toda de alegria por ter nascido um homem para o mundo. João 16.21
Versão “Tradução Ecumênica da Bíbla”, Paulinas e Edições Loyola.

O contexto remete a Jesus consolando seus discípulos diante de um panorama que parece assolador, de perseguição e tristeza, os animando a manterem-se perseverantes. E a imagem do parto é evocada.
Em quê, e em onde, podemos reportá-la?

Vamos viajar para uma famosa passagem de outro livro do Novo Testamento. Concedendo que o “Apocalipse” situa-se no mesmo ambiente dos demais escritos joaninos, em comunidades afins e provavelmente da mesma região [10] [quanto a compartilhar autoria ou pelo menos à mesma pessoa que de que o(s) autor(es) se serviu (ram), não vem ao caso e deixo em aberto], podemos retomar uma outra passagem que versa sobre parto/nascimento, de forma igualmente dramática.

Apareceu no céu um sinal extraordinário: uma mulher vestida do sol, com a lua debaixo dos seus pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça. Ela estava grávida e gritava de dor, pois estava para dar à luz. Então apareceu no céu outro sinal: um enorme dragão vermelho com sete cabeças e dez chifres, tendo sobre as cabeças sete coroas. Sua cauda arrastou consigo um terço das estrelas do céu, lançando-as na terra. O dragão colocou-se diante da mulher que estava para dar à luz, para devorar o seu filho no momento em que nascesse. Ela deu à luz um filho, um homem, que governará todas as nações com cetro de ferro. Seu filho foi arrebatado para junto de Deus e de seu trono. Apocalipse 12:1-5
Nova Versão Internacional.

Um breve comentário sobre essa passagem pode nos ajudar a iluminar a ambiência em João.

Vemos a figura do sol, a lua e doze estrelas. Retoma o sonho de José em Gênesis 37.9. No apócrifo “Testamento de Abraão” Abraão e Sara são apresentados como o sol e lua para Isaque.

Agora, confiramos estas passagens:

Portanto o mesmo Senhor vos dará um sinal: Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamará o seu nome Emanuel. Is. 7:14

Canta alegremente, ó estéril, que não deste à luz; rompe em cântico, e exclama com alegria, tu que não tiveste dores de parto; porque mais são os filhos da mulher solitária, do que os filhos da casada, diz o SENHOR. Is. 54:1

Antes que estivesse de parto, deu à luz; antes que lhe viessem as dores, deu à luz um menino. Quem jamais ouviu tal coisa? Quem viu coisas semelhantes? Poder-se-ia fazer nascer uma terra num só dia? Nasceria uma nação de uma só vez? Mas Sião esteve de parto e já deu à luz seus filhos. Abriria eu a madre, e não geraria? diz o SENHOR; geraria eu, e fecharia a madre? diz o teu Deus. Regozijai-vos com Jerusalém, e alegrai-vos por ela, vós todos os que a amais; enchei-vos por ela de alegria, todos os que por ela pranteastes; Is.66:7-10

Portanto os entregará até ao tempo em que a que está de parto tiver dado à luz; então o restante de seus irmãos voltará aos filhos de Israel. Miquéias 5:3

Proclamarei o decreto: o SENHOR me disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei. Salmo 2:7
Na versão Almeida Corrigida e Revisada Fiel.

Temos aí então a referência à tradição profética do “remanescente justo e piedoso de Israel”, com a esperança messiânica brotando de seu purgar. Temos nos Manuscritos do Mar Morto, especialmente no rolo 1QIsª, a evocação também do justo fiel de Israel em trabalhos de parto.

Dragões e monstros marinhos costumavam serem usados pelos israelitas para se referirem às grandes divindades dos povos “pagãos” e assim, simbolizar o poder deles, em um enfrentamento com Deus; mais além também remetia à conflitos cósmicos nos primórdios da criação, com uma revolta contra Deus por parte das forças do caos.

Entre os que me reconhecem incluirei Raabe e Babilônia, além da Filístia, de Tiro, e também da Etiópia, como se tivessem nascido em Sião. Salmo 87:4

Fizeste em pedaços as cabeças do Leviatã, e o deste por mantimento aos habitantes do deserto. Salmo 74:14

Tu dominas o ímpeto do mar; quando as suas ondas se levantam, tu as fazes aquietar. Tu quebraste a Raabe como se fora ferida de morte; espalhaste os teus inimigos com o teu braço forte. Salmo 89:9

Naquele dia o SENHOR castigará com a sua dura espada, grande e forte, o Leviatã, serpente veloz, e o leviatã, a serpente tortuosa, e matará o dragão, que está no mar. Is.27:1

Poderás tirar com anzol o Leviatã, ou ligarás a sua língua com uma corda? Jó 41:2
Versões Almeida Corrigida, Revisada e Fiel.

Deus não refreia a sua ira; até o séquito de Raabe encolheu-se diante dos seus pés. Jó 9.13

Com seu poder agitou violentamente o mar; com sua sabedoria despedaçou Raabe. E isso tudo é apenas a borda das suas obras! Um suave sussurro é o que ouvimos dele. Mas quem poderá compreender o trovão do seu poder? Jó 26.12 Nova Versão Internacional

Fala, e dize: Assim diz o Senhor DEUS: Eis-me contra ti, ó Faraó, rei do Egito, grande dragão, que pousas no meio dos teus rios, e que dizes: O meu rio é meu, e eu o fiz para mim. Ezequiel 29:3 Almeida Corrigida, Revisada e Fiel

Em textos como 2Baruque, Leviatã é morto e servido no banquete messiânico para os justos.

Importante então notarmos como tal passagem reverbera o conflito terreno dos justos do povo de Deus contra as forças opressoras dos grandes poderes geopolíticos, ligado ao conflito cósmico das forças do caos contra o plano de YWHW para a redenção do seu povo e da criação.

Agora, então, temos uma paisagem mais ampla para contemplarmos o tema no evangelho joanino. Diante do quadro de que o mal está vencendo, os fiéis devem lembrar que haverá um julgamento que subverterá a lógica e o poder dos opressores. Esse juizo provocará temor em todos, será assombroso mesmo para os justos que o testemunharão, e terrível para os infiéis dentre o povo. Remetendo o sermão à linguagem profética:

Ali mesmo o pavor os dominou; contorceram-se como a mulher no parto. Salmo 48:6

Ficarão apavorados, dores e aflições os dominarão; eles se contorcerão como a mulher em trabalho de parto. Olharão chocados uns para os outros, com os rostos em fogo. Is 13:8

Diante disso fiquei tomado de angústia, Tive dores como as de uma mulher em trabalho de parto; estou tão transtornado que não posso ouvir, tão atônito que não posso ver. Is. 21:3

Como a mulher grávida prestes a dar à luz se contorce e grita de dor, assim estamos nós na tua presença, ó Senhor. Is. 26:17

Fiquei muito tempo em silêncio, e me contive, calado. Mas agora, como mulher em trabalho de parto, eu grito, gemo e respiro ofegante. Is. 42:14

Ouvi um grito, como de mulher em trabalho de parto, como a agonia de uma mulher ao dar à luz o primeiro filho. É o grito da cidade de Sião, que está ofegante e estende as mãos, dizendo: "Ai de mim! Estou desfalecendo. Minha vida está nas mãos de assassinos! Jeremias 4.:1

O que você dirá quando sobre você dominarem aqueles que você sempre teve como aliados? Você não irá sentir dores como as de uma mulher em trabalho de parto? Jr. 13:21

Você que está entronizada no Líbano, que está aninhada em prédios de cedro, como você gemerá quando lhe vierem as dores de parto, dores como as de uma mulher que está para dar à luz! Jr. 22:23

Pergunte e veja: Pode um homem dar à luz? Por que vejo, então, todos os homens com as mãos no estômago, como uma mulher em trabalho de parto? Por que estão pálidos todos os rostos? Jr. 30:6

Vejam! Uma águia, subindo e planando, estende as asas sobre Bozra. Naquele dia, a coragem dos guerreiros de Edom será como a de uma mulher dando à luz. Jr.49:22-24

Quando o rei da Babilônia ouviu relatos sobre eles, as suas mãos amoleceram. A angústia tomou conta dele, dores como as de uma mulher dando à luz. Jr. 50:43

Agora, por que gritar tão alto? Você não tem rei? Seu conselheiro morreu, para que a dor seja tão forte como a de uma mulher em trabalho de parto? Contorça-se em agonia, ó cidade de Sião, como a mulher em trabalho de parto, porque agora terá que deixar os seus muros para habitar em campo aberto. Você irá para a Babilônia, e lá você será libertada. Lá o Senhor a resgatará da mão dos seus inimigos. Miquéias 4:9-10 N.V.I.

Compartilhando a perspectiva mais ampliada em que esta ideia vem inserida, advém então a redenção messiânica, e a paz advinda do partilhar da vindicação final do Messias e comungar com ele então, que é o ápice da ideia desenvolvida neste capítulo 16.

Assim também agora vós tendes tristeza; mas outra vez vos verei; o vosso coração se alegrará, e a vossa alegria ninguém poderá tirar. vs.22

Estas coisas vos tenho dito para que tenhais paz em mim. No mundo, passas por aflições, mas tenham bom ânimo; eu venci o mundo. vs 33

T.E.B.

Senhor, no meio de aflição te buscaram; quando os disciplinaste sussurraram uma oração. Como a mulher grávida prestes a dar à luz se contorce e grita de dor, assim estamos nós na tua presença, ó Senhor.Nós engravidamos e nos contorcemos de dor, mas demos à luz o vento. Não trouxemos salvação à terra; não demos à luz os habitantes do mundo. Mas os teus mortos viverão; seus corpos ressuscitarão. Vocês, que voltaram ao pó, acordem e cantem de alegria. O teu orvalho é orvalho de luz; a terra dará à luz os seus mortos. Vá, meu povo, entre em seus quartos e tranque as portas; esconda-se por um momento, até que tenha passado a ira dele. Vejam! O Senhor está saindo da sua habitação para castigar os moradores da terra por suas iniqüidades. A terra mostrará o sangue derramado sobre ela; não mais encobrirá os seus mortos. Is.26:16-21

Cante, ó estéril, você que nunca teve um filho; irrompa em canto, grite de alegria, você que nunca esteve em trabalho de parto; porque mais são os filhos da mulher abandonada do que os daquela que tem marido", diz o Senhor. "Alargue o lugar de sua tenda, estenda bem as cortinas de sua tenda, não o impeça; estique suas cordas, firme suas estacas. Pois você se estenderá para a direita e para a esquerda; seus descendentes desapossarão nações e se instalarão em suas cidades abandonadas. " "Não tenha medo; você não sofrerá vergonha. Não tema o constrangimento; você não será humilhada. Você esquecerá a vergonha de sua juventude e não se lembrará mais da humilhação de sua viuvez. Is 54:1-4

Antes de entrar em trabalho de parto, ela dá à luz; antes de lhe sobrevirem as dores, ela ganha um menino. Quem já ouviu uma coisa dessas? Quem já viu tais coisas? Pode uma nação nascer num só dia, ou, pode-se dar à luz um povo num instante? Pois Sião ainda estava em trabalho de parto, e deu à luz seus filhos. Acaso faço chegar a hora do parto e não faço nascer? ", diz o Senhor. "Acaso fecho o ventre, sendo que eu faço dar à luz? ", pergunta o seu Deus. "Regozijem-se com Jerusalém e alegrem-se por ela, todos vocês que a amam; regozijem-se muito com ela, todos vocês que por ela pranteiam. Pois vocês irão mamar e saciar-se em seus seios reconfortantes, e beberão à vontade e se deleitarão em sua fartura.” Pois assim diz o Senhor: "Estenderei para ela a paz como um rio e a riqueza das nações como uma corrente avassaladora; vocês serão amamentados nos braços dela e acalentados em seus joelhos. Assim como uma mãe consola seu filho, também eu os consolarei; em Jerusalém vocês serão consolados". Quando vocês virem isso, o seu coração se regozijará, e vocês florescerão como a relva; a mão do Senhor estará com os seus servos, mas a sua ira será contra os seus adversários. Is. 66:7-14

Por isso os israelitas serão abandonados até que dê à luz a que está em trabalho de parto. Então o restante dos irmãos do governante voltarão para unir-se aos israelitas. Ele se estabelecerá e os pastoreará na força do Senhor, na majestade do nome do Senhor, o seu Deus. E eles viverão em segurança, pois a grandeza dele alcançará os confins da Terra. Mq 5:3-4

Chegam-lhe dores como as da mulher em trabalho de parto, mas ele não é uma criança inteligente; quando chega a hora, não sai do ventre que abrigou. "Eu os redimirei do poder da sepultura; eu os resgatarei da morte. Onde estão, ó morte, as suas pragas? Onde está, ó sepultura, a sua destruição? Oséias 13:13-14
N.V.I.
Tem-se aonde tanto o evangelho de João quanto o Apocalipse combinam com textos da literatura apocalíptica judaica que viam o estabelecimento do advento messiânico e o governo de Deus consumando um período de intensa tribulação, como os “Oráculos Sibilinos” 3.796-808; 2Baruque 70.2-8; 4 Esdras 6.24; 9.1-12; 13.29-31; IQM 12.9; 19.1,2. [11]

Está consoante com Marcos 13 e paralelos, abordando também o remanescente fiel dos dias que precedem o juizo divino e plenificação messiânica; também I Co 15:24,25, com Paulo. Vide também I Pedro 4:12-19. Assim, podemos ver neste ponto uma magnífica orquestra de diferentes e independentes tradições cristãs contemporâneas participando da mesma música escatológica, do mesmo tema e expectativa. Algo que aponta fortemente para sua origem comum, seu epicentro fundamental.

Ainda que em João prevaleça o tratamento da escatologia realizada [12], a tensão já/ainda não, é fortemente afirmada, em que a era redimida está em gestação mas ainda não fora consumada, e ainda se esperavam as “últimas coisas”, e embora a “vida eterna” - Jo.3.16 – esteja disponível ela ainda aguarda se estabelecer – o próprio termo ζωή αἰώνιος literalmente significa “vida do mundo porvir”.
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Bibliografia
[1] Um livro seminal da época, que sistematiza essa Nova Perspectiva em sua emergência, é de Stephen S. Smalley, “John: Evangelist and Interpreter”.
[2] De forma emblemática, tal perspectiva é bem expressa por Rudolff Bulltman em Teologia do Novo Testamento, volume 2, pg. 437-438.
[3] Luciano de Samósata. "Wisdow of Nigrinus", Lucian, v.I
[4] Richard Bauckham. Testimony of the Beloved Disciple, The: Narrative, History, and Theology in the Gospel of John ; no capítulo "The Qunram Community and the Gospel of John" – p.125-135
[5] Para um tratamento da contextualidade cronológica, geográfica e histórica, ver John A. T. Robinson, “The Priority of John” - apesar das necessárias ressalvas a serem feitas quanto ao tratamento que dá às questões de datação do evangelho. Craig Blomberg apresenta a discussão mais atualizada quanto às evidências da fundamentação histórica e uma discussão do pano de fundo arqueológico em “The Historical Reliability of John's Gospel: Issues and Commentary”.
[6] Bauckham, op. Cit., Historiographical Characteristics of the Gospel of John – 93-113
[7] Ben Witherington, “John's Wisdom” p. 18-21
[8] Confira, na obra editada por Richard Bauckham e Carl Mosser, The Gospel of John and Christian Theology, o capítulo “The Historical Reability of John1s Gospel: From What Perspective Should It be Asseded?” de Craig S. Evans, p.92-118
[9] D.A. Carson, Douglas J. Moo e Leon Morris, “Introdução ao Novo Testamento”, p. 537-539.
[10] Ótimas discussões a respeito: quanto a possível alcance do evangelho em seu contexto, Richard Bauckham, no já citado “Testimony of the Beloved Disciple, The: Narrative, History, and Theology in the Gospel of John”, cap. "The Audience of the Gospel of John", p.113-125.
Quanto a especificamente o entremear do ambiente comunitário da composição, e a audiência do livro do Apocalipse em interface com o evangelho joanino, “The Book of Revelation and the Johannine Apocalyptic Tradition”, por John M. Court p.8-14; pelo mesmo estudioso, na obra “The Johannine Literature”, editada por Barnabas Lindars, R. Alan Culpepper, Ruth B. Edwards, John M. Court, "Comentaries on and Studies of the Book Of Revelation” p.283-296
[11] Michael Lattke, “On the Jewish Background of the Synoptic Concept 'The Kingdow of God”, em The Kingdom of God in the teaching of Jesus, editado por Bruce Chilton, p. 72-91
[12] C. H. Dodd, The Interpretation of the Fourth Gospel, p.144-149

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Raymond Brown, John Dominic Crossan, Haim Cohn, e a enigmática Paixão de Cristo

Madrugada de quinta para sexta-feira, arredores de Jerusalém, Palestina ocupada. Lá vem ele. Acompanha-o uma turba armada “de espadas e paus”, segundo um dos principais cronistas do evento. Sua vítima o espera, cheia de angústia. Quando os dois se encontrarem, vai se dar a mais desprestigiosa utilização que uma saudação geralmente tida por amistosa já conheceu. O mesmo cronista informa que o homem vinha chegando combinara com a turba: “É aquele que eu beijar. Prendei-o e levai-o bem guardado”. Num beijo se concentrará a torpeza sem nome da traição! Nosso cronista, conhecido apenas por prenome, Marcos, prossegue: “Tão logo chegou, aproximando-se dele, disse: “ Rabi!” E o beijou. Eles lançaram a mão sobre ele e o prenderam.”

Que havia nesse beijo, o mais escandaloso da História do mundo, ocorrido há mais ou menos 2.000 anos com o qual o vil aventureiro chamado Judas entrega Jesus? Ou, para colocar a questão nos termos de um dos maiores especialistas nos evangelhos, o padre americano Raymond E. Brown, “ no nível da História ou da verossimilitude, como se deve entender o beijo de Judas?” Brown responde:

“Se o beijo era uma saudação normal, que podia ser usado por qualquer conhecido, ou numa saudação costumeira entre Jesus e os discípulos, então ele poderia convir à trama daqueles que tinham pago Judas para evitar uma resistência ruidosa e consequentemente ao desejo de Judas de parecer normal. Se não era uma saudação normal, mas um gesto incomum, implicando especial afeição, então Judas era um hipócrita malévolo”.Em nenhum outro lugar dos evangelhos Jesus e os discípulos são mostrados trocando beijos, mas esse silêncio “pode ser acidental”, escreve Brown. Ele se inclina para a hipótese de que o beijo era uma saudação normal, e Judas o aplicou para não parecer suspeito. Contra essa tese há uma objeção forte: se Judas acabara de estar com Jesus, na última ceia, por que saudá-lo de novo? Mas, conclui Brown, “a freqüência das saudações normais, por exemplo, o aperto de mão, varia grandemente entre os povos; e temos muito pouca idéia de quão freqüentemente os palestinos as trocavam”.

Transcrevem-se aqui as conjeturas sobre o beijo para exemplificar o nível de minúcia a que podem chegar os estudiosos de um texto como o de Marcos. Qualquer texto oferece a possibilidade de discussão. Quanto mais valha a pena, mais fecunda será sua dissecação, seja por que a ótica for - gramatical, literária, histórica, filosófica, sociológica, psicológica, antropológica ou teológica. Ao longo dos últimos vinte séculos, no entanto, nenhum texto foi objeto de tanta dissecação, e tanta discussão, quanto os evangelhos Marcos, Mateus, Lucas e João., os autores canônicos, ou seja “oficiais” da cristandade. E, dentro dos evangelhos, nenhum trecho despertou tanto interesse, tanta emoção e discussão quanto a paixão e a morte de Jesus que os cristãos comemoram a partis de quinta-feira, na Semana Santa.

Não há relato tão longo e detalhado, nos evangelhos. A infância só é abordada por dois evangelistas, Mateus e Lucas, e sumariamente. A parte do ministério de Jesus é uma coleção de pequenos episódios biográficos, milagres e parábolas. Já a paixão tem começo, meio e fim. Cada evangelista apresenta detalhes exclusivos - só Mateus dá conta da morte de Judas, por exemplo, e só João reproduz um longo diálogo entre Jesus e Pilatos. Apesar disso, com ligeiros desvios em João, que é o evangelho mais diferente, há uma seqüência comum delação, prisão, julgamento pelas autoridades religiosas judaicas, julgamento pela autoridade romana, execução e enterro, com episódios de zombaria de Jesus intercalando algumas dessas cenas. Tudo somado, está-se diante de uma peça de insuperável força dramática.

Com o beijo de Judas, estamos entrando nesse universo misterioso. E logo impõe-se a pergunta: o beijo existiu de verdade? Acompanhe-se o raciocínio de um segundo autor, o israelense Haim Cohn. Jesus tomara-se conhecido em Jerusalém, onde tinha entrado triunfalmente, montado num asno. Diariamente estava no Templo, pregando. Então, por que alguém precisaria identificá-lo e entregá-lo? Prossegue Cohn: "A explicação em geral apresentada para tornar plausível a história é a de que os principais sacerdotes tinham muito medo do clamor popular". Por isso, determinaram prendê-lo à noite, e fora da cidade. No entanto, argumenta o autor, o evangelho de Lucas informa que toda noite Jesus ia ao "monte chamado das Oliveiras". O evangelho de João o confirma. As autoridades não precisariam de informante para apanhá-lo. Para Cohn, a história da traição de Judas é "tão improvável, tão incongruente", que merece crédito".

Um terceiro autor, o irlandês radicado nos Estados Unidos, John Dominic Crossan, tem uma posição mitigada. Ele aceita que Jesus tenha tido um seguidor chamado Judas, e que esse seguidor o tenha traído. Mas não aceita a cena do beijo, cuja intenção, a seu ver, é apresentar Judas em cores caricatamente cruéis. Crossan lança uma hipótese: Judas teria sido preso antes de todos, durante uma ação da qual se falará adiante, e teria delatado Jesus.

Judas é o ponto de partida. Este artigo seguirá a paixão e a morte, tendo por baliza três perguntas: quem matou Jesus? por quê? como? Advirta-se de antemão que não há respostas conclusivas. O que se apresentará são as teses dos eruditos. Especificamente, vai-se seguir a trilha de três livros, dos três autores já citados. O primeiro é The Death of the Messiah (A Morte do Messias), um monumental estudo de 1600 páginas e dois volumes lançado no ano passado nos Estados Unidos (Doubleday) pelo padre Raymond Brown, professor da Union Theological Seminary, de Nova York. O segundo é Who Killed Jesus? (Quem Matou Jesus?), que John Dominic Crossan, antigo padre, hoje professor de estudos bíblicos da Universidade DePaul, em Chicago, lançou há poucas semanas, também nos Estados Unidos (HarperSan Francisco), em resposta ao livro de Brown. O terceiro é 0 Julgamento e a Morte de Jesus, de Haim Cohn, um livro de 1967, lançado no ano passado no Brasil (Imago), que apresenta a originalidade de o autor ser judeu e ter ocupado os cargos de procurador-geral e, depois, juiz da Suprema Corte de Israel.

Daquilo que está nos evangelhos, o que realmente aconteceu? Não é à toa que esta é a pergunta mais recorrente, nesta matéria. Tem-se repetido sempre que o cristianismo é uma religião histórica, no sentido de que se apóia não em um deus ou deuses mitológicos, mas numa figura de existência real, que viveu numa determinada parte do globo, num determinado período, e teve sua trajetória condicionada pelas circunstâncias da época e do local. Brown, no entanto, adota uma abordagem que em primeiro lugar investiga o que o evangelista quis exatamente dizer - quais as tradições que inspiraram seu texto e que mensagens ele procura transmitir. Segundo ele, a "obsessão com a história pode constituir uma obstrução ao entendimento dos evangelhos". A intenção dos evangelistas, lembra ele, era evangelizar, e Brown não exclui que, para isso, se tenham utilizado de variados recursos - inclusive a ficção.

Os evangelistas, pessoas que mal se sabe quem são, e onde viveram, não trabalharam com informações de primeira mão. Há um consenso entre os eruditos, hoje, de que seus trabalhos datam de no mínimo quarenta anos depois da morte de Jesus, sendo o mais antigo o de Marcos (escrito por volta do ano 70 a.D.), e o mais novo o de João (cerca de 10 a.D.). Nas narrativas da paixão, os evangelistas incluíram personagens e situações inesquecíveis - as negações de Pedro antes de o galo cantar, os sumos sacerdotes Anãs e Caifás, o bom e o mau ladrão - e uma bomba-relógio. A bomba-relógio são as fortes acusações contra os judeus, tratados como responsáveis pela morte de Jesus. Ela foi estourando com intensidade variada ao longo dos séculos. Na Idade Média, segundo informa o livro de Brown, cultivava-se em Toulouse, na França, uma cerimônia da paixão durante a qual um judeu era trazido à catedral para receber um soco do conde da cidade. Houve práticas mais atrozes, como se sabe.

Crossan escreve: “ O que estava em jogo nas narrativas da paixão no longo curso da história, era o Holocausto judeu.”

A própria figura de Judas tem a ver com o que se está dizendo. Seu nome, nota Brown, é etimologicamente ligado a “judeu”. Na arte, muitas vezes, carregaram-lhe os traços considerados “semitas”. Seu gosto pelo dinheiro foi generalizado para um povo. Santo Agostinho sustentava que, enquanto Pedro representa a Igreja, Judas representa os judeus. A história da Paixão tem duas vítimas, como se mostrará nas páginas seguintes. Jesus é uma. 0 povo judeu é a outra.

Prisão

No jardim de Getsêmani, com o traidor, chega a tropa. Quem se encarregou de prender? E por quê? E quem mandou?

A agonia de Jesus começa num jardim. Ali, no lugar chamado Getsêmani, no Monte das Oliveiras, ele começou a "apavorar-se e angustiar-se” segundo Marcos, e rezou para o Pai: "Afasta de mim este cálice". Os discípulos dormiam, em vez de vigiar. Ele estava só. "A minha alma está triste até a morte", disse. Logo chega Judas, à frente do grupo que o iria prender. Que grupo era esse? Quem prendeu Jesus? Eis uma primeira questão crucial, quando se investiga quem o matou e por quê.

Marcos escreve que, com Judas, vinha "uma multidão trazendo espadas e paus, da parte dos chefes dos sacerdotes, escribas e anciãos". Mateus o acompanha. Lucas acrescenta que, entre os que vieram prender Jesus, estavam “chefes dos sacerdotes, chefes da guarda do Templo e anciãos". João afirma que Judas levava uma “coorte", além de "guardas destacados pelos chefes dos sacerdotes e fariseus". Escreve Brown: "Marcos e Mateus não dão sinal da presença de uma unidade militar ou policial regular no Getsêmani". Mas Lucas, ao acrescentar a presença dos chefes dos sacerdotes e da guarda do Templo, "afasta qualquer tom de uma populaça irregular”, segundo Brown. De todo modo, até aqui se sugere a predominância, se não a exclusividade, da presença de judeus. Já João dá conta de uma "coorte", e assim introduz a presença romana na cena. "Coorte" é uma fração do Exército romano, equivalente a 600 soldados, ou 1 décimo de uma legião.

Começa-se a desenhar a coligação que, segundo os evangelhos, vai encurralar Jesus até a cruz - a dos judeus com os romanos. Que peso atribuir a um e outro grupo, se é que, um e outro realmente merecem arcar com algum, é uma questão crucial. A interpretação convencional e popular, formulada a partir do valor de face dos evangelhos, é de que os romanos foram mais lenientes. A maior autoridade da região, Pôncio Pilatos, até queria soltar Jesus, mas esbarrou na intolerância dos judeus. Brown cita em seu livro o sumário de um autor alemão, J. Blinzler, reunindo os cinco níveis de envolvimento de um ou outro grupo, segundo as diversas conclusões dos eruditos: (1) Judeus totalmente responsáveis pela morte de Jesus, com os romanos reduzidos à sua mera implementação; (2) Judeus tendo um papel decisivo, cabendo aos romanos uma porção menor; (3) Judeus e romanos igualmente envolvidos, (4) Romanos tendo um papel decisivo, cabendo aos judeus uma porção menor; (5) Romanos totalmente responsáveis, sem envolvimento judeu.

Entre os diferentes graus dessa escala tem-se desenrolado a questão mais polêmica da paixão, e uma das mais polêmicas do mundo. Para situar a discussão, recordem-se os pontos fundamentais da situação política na Palestina, na época. Havia cerca de 100 anos, a região havia sido incorporada ao Império Romano. Do ponto de vista administrativo e judicial, porém, a situação era complexa. Na GaliIéia, ao norte, onde Jesus viveu e pregou a maior parte do tempo, reinava, embora devendo obediência à autoridade romana, um judeu, Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande. Na Judéia, onde fica Jerusalém, a autoridade romana era exercida diretamente, por meio de um governador, Pôncio Pilatos. Mas mesmo na Judéia os romanos permitiam a sobrevivência de órgãos judaicos de governo, o principal dos quais era o Sinédrio, do qual muito se ouve falar nos evangelhos. O Sinédrio era uma assembléia com supremo poder sobre questões religiosas, mas também algum poder em questões administrativas e judiciais. A situação confusa, sobre a qual há escassa documentação, é propícia a que se estabeleçam explicações e versões divergentes.

Somados, os evangelhos e as evidências da situação política na Judéia sugerem aos estudiosos que havia romanos na prisão de Jesus. Argumenta Brown que João não inventaria a participação romana, ele que se mostrará tão simpático a Pilatos, no julgamento. Mas teria sido mobilizada uma coorte inteira para a operação no Getsêmani? Os romanos, informa o livro de Brown, não tinham em Jerusalém um número tão grande de soldados que pudessem dispor de 600 deles só para esse fim. "Coorte", supõe Brown, teria sido usada pelo evangelista de uma maneira "popular, inexata", da mesma forma como se fala em "legiões romanas”, sem atenção à precisa quantidade das tropas.

No Getsêmani já se estrutura o Jesus de cada evangelista, na paixão. O de Marcos, seguido por Mateus, é aquele Jesus solitário que se apavora e se angustia. “Para Marcos/Mateus, a paixão é uma descida para o abismo durante a qual Jesus hesitará, ao não encontrar apoio humano”, escreve Brown. Abandonado pelos discípulos, ele atravessará um túnel escuro até, nota Brown, o grito desesperado na cruz: "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?" 0 de Lucas não foi abandonado pelos discípulos nem se confessará "triste até a morte". "Os leitores ficam com a sensação de que Jesus está em comunhão com seu Pai todo o tempo, tanto que, apropriadamente, as últimas palavras do crucificado não são um grito angustiado para seu Deus por quem se sente abandonado, mas um tranqüilo. ‘Pai,em tuas mãos entrego o meu espírito'." 0 Jesus de João é triunfante. Ele estará sempre no controle da situação. Quando enfrenta Pilatos, até parece que ele é que julga o governador romano, não o contrário. No Getsêmani, quando chegam as tropas, Jesus adianta-se e pergunta: "Quem procuras?" Os soldados respondem procuram Jesus de Nazaré, e Jesus responde: "Sou eu". Nesse momento soldados recuam e caem por terra poder de Jesus, mesmo sobre a tropa romana, é o interesse do evangelista”, escreve Brown.Questão seguinte: quem mandou prender, e por quê? Marcos data dos incidentes do Templo, quando Jesus ali entrou, virou as mesas e cadeiras dos comerciantes, e os expulsou do local. O início da conspiração para matá-lo. Jesus passou a ensinar que aquela devia ser uma casa de orações, não um covil de ladrões. "Os chefes dos sacerdotes e os escribas ouviram isso”, prossegue o evangelista, “e procuravam como matá-lo: eles o temiam, pois toda a multidão estava maravilhada com o seu ensinamento”.

Os “chefes dos sacerdotes” e os "escribas”, com freqüência acompanhados dos "anciãos", formam uma tríade sempre ao encalço de Jesus, nas narrativas da paixão. Em certos momentos cruciais, a coroá-los, se mencionará o “sumo sacerdote”. Quem são essas figuras? O sumo sacerdote, no período da ocupação romana, era nomeado pelo governador, que o escolhia entre as famílias judias dominantes. Caifás era então o Sumo Sacerdote, genro de Anãs, cuja influência aparentemente ainda se fazia sentir. Os “chefes dos sacerdotes", segundo Brown, “eram provavelmente antigos sumos sacerdotes, ao lado de preeminentes membros de famílias entre as quais sumos sacerdotes recentes haviam sido recrutados, e algumas pessoas a que tinham sido confiadas especiais missões sacerdotais”. Os “anciãos" seriam patriarcas das famílias “mais ricas e distintas”, e os escribas, pessoas que se destacavam “pela inteligência e cultura", entre as quais se encontrariam os fariseus. Grosso modo, esses três grupos constituiriam o Sinédrio, que no total contava 71 membros.

João apresenta outra versão. Segundo ele, foi o fato de ter ressuscitado Lázaro que desencadeou a conspiração contra Jesus. Esse prodígio lhe atraíra muitos seguidores, informa esse evangelista. Os “chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram então o Conselho ­(Sínédrio) e disseram: “ Quem faremos? Esse homem realiza muitos sinais. Se o deixarmos assim, todos crerão nele, e os romanos virão, destruindo o nosso lugar santo e nação”. Conclui João que “ a partir desse dia decidirão matá-lo”. Segundo Brown, o evangelho de João nesse ponto obedece a imperativos teológicos: ele quer contrastar a vida dada a Lázaro com a morte prometida a Jesus.

Brown é um comentarista tão informado quanto cauteloso. Seu livro, de vocação enciclopédica, resume e aprecia o trabalho e as teorias de mais de 2 000 eruditos, mas não se esperem dele próprio teses audaciosas. Sua tendência é a interpretação conservadora dos evangelhos: as desordens no templo. Marcos situa o início da conspiração em seguida ao incidente no Templo, mas isso no contexto de uma disputa intra-religiosa e do ciúme de seguidores que Jesus vinha arregimentando. Crossan desprega-se da letra do texto evangélico para propor que o problema foi de ordem pública. O quebra-quebra é que incomodou.

O Templo era a expressão visível do judaísmo. “Assim como ha­ via um só Deus, havia um só Templo”, escreve Crossan.
Era o lugar de onde emanava a suprema autoridade religiosa, mas dotada também de ampla autoridade temporal, com seu poder coercitivo de exigir obediência e cobrar taxas, num tempo - e num povo - emque mal se separavam os conceitos deautoridade religiosa e temporal. Era umaexpressão do poder, portanto, e nessaqualidade, segundo Crossan, despertavasentimentos ambíguos entre os pobresfilhos do campesinato como Jesus. “Eraele (o Templo) o lugar das preces e sacrifícios ou o lugar dos dízimos e das taxas?”, escreve Crossan. "Era a morada divina ou o banco central? Era a ligação entre Deus e eles (os camponeses), entreo céu e a terra, ou a ligação entre religião e política, entre os colaboracionistas judeus e o ocupante romano?" Era as duas coisas, conclui o autor.
O ato de Jesus contra o Templo, segundo Crossan, foi "bastante claro". Foi como, nos Estados Unidos, "invadir um centro de recrutamento, durante a Guerra do Vietnã, e virar todas as gavetas e suas fichas.” Teria sido um ato contra o poder e a política dominante, em suma, e acresce que isso ocorreu quando se aproximava, ou já se vivia, a festa do Pessah, a Páscoa do judeu, ocasião em que multidões de peregrinosacorriam a Jerusalém e mais nervosa se tornava a susceptibilidade quanto a pos­síveis desrespeitos à ordem. 0 Pessah comemora a libertação dos judeus da escravidão a que eram submetidos no Egito, "e esta lembrança anual deve ter sido especialmente difícil quando o Egito tinha sido substituído por Roma e a pátria judaica não era mais o lugar da liberdade mas de ocupação colonial”, escreve Crossan. E acrescenta: “Imagine-se um grande número de pessoas reunidas num espaço muito confinado para celebrar sua antiga libertação da escravidão com um reizinho herodiano ou um prefeito romano agora no poder e soldados pagãos vigiando o Templo a partir da Fortaleza Antonina, no seu canto noroeste".

Causar turbulência no Templo era algo que as autoridades não poderiam tolerar, conclui Crossan, e é aqui que ele arrisca uma opinião sobre qual poderia ter sido o papel de Judas: "Minha suposição é de que Judas possa ter sido capturado entre os companheiros de Jesus, durante a ação no Templo, e em seguida contado quem tinha feito aquilo e onde se encontrava". A explicação de Crossan para a prisão e a morte de Jesus é conseqüência lógica de sua visão de que Jesus foi um insubmisso, com um programa de "radical igualitarismo" que, cevado no campesinato insatisfeito da Galiléia, desafiava os poderes constituídos.

Brown não concorda. Sua visão, mais uma vez, segue a letra dos evangelhos, onde Jesus afirma que seu reino "não é deste mundo". Brown alinha um elenco de razões pelas quais Jesus não era um subversivo: "Sua crítica dos ricos, em Lucas, não era parte de um projeto de reestruturação econômica; seus mais íntimos seguidores não eram camponeses mas, até onde sabemos, pessoas com ocupações independentes (inclusive pescadores e coletores de impostos); eles não eram muito numerosos e, certamente, não um grupo organizado e armado, nenhuma campanha militar foi conduzida contra ele; ele foi preso sozinho e desarmado; foi julgado e condenado de uma maneira ordeira, não morto numa batalha, ou depois dela".

Haim Cohn, o terceiro autor que estamos sumariando, começa seu raciocínio a partir das forças que prenderam Jesus, segundo João, “uma coorte romana” e "guardas destacados pelos chefes dos sacerdotes e fariseus". Que guardas seriam estes? Cohn responde: “eram membros da polícia do Templo, uma organização cuja finalidade principal , manter a ordem nas instalações do Templo, não excluía eventuais missões fora. Se havia uma coorte era porque estava desencadeada uma operação romana, operação essa tão do interesse romano que o governador se mobilizara para um julgamento fogo na manhã seguinte. Mas, então, que estaria fazendo nela a polícia do Templo? Responde Cohn: se à polícia do Templo foi permitido estar presente, foi porque ela mesmo o solicitou.

Cohn desfia sua tese salpicando-a de suspense. "Deve ter uma forte razão”, escreve, para que a polícia judia pedisse para estar presente à operação. Ele acrescenta: "Tampouco devemos subestimar a importância de uma decisão de destacar um contingente de polícia do Templo para serviço fora das dependências do Templo numa noite como aquela, quando a cidade e o santuário transbordavam visitantes de todas a spartes do país, toda a força sendo necessária para manter a paz e a ordem. Havia seguramente um grande interesse em jogo”. Que grande interesse era esse? Aguarde-se o próximo capítulo.

Julgamento

Primeiro as autoridades judias, depois Pilatos, condenarão o réu. Quem entre esses dois merece a maior culpa?

Estamos agora no palácio do sumo sacerdote. O preso é levado para dentro. 0 discípulo Pedro, que o acompanhara a distância, fica no pátio, aquecendo-se ao fogo com os criados. A noite é cheia de presságios.

Os quatro evangelhos reportaram que, uma vez preso, Jesus foi levado às autoridades judaicas. Marcos e Mateus, claramente, e Lucas, com menos clareza, dão conta de um julgamento, pelos dignitários judeus, ao fim do qual Jesus será condenado à morte. João relata um interrogatório. sem julgamento, mas já informara antes, quando da ressurreição de Lázaro, que o Sinédrio condenara Jesus à morte. Existiu ou não o julgamento judaico? Este é um dos pontos mais controvertidos da paixão. Haim Cohn aceita que o Sinédrio se tenha reunido, mas não para julgar, e muito menos para condenar. Mas então para quê? Por que razão teriam os membros do mais alto corpo judaico, pessoa, importantes da sociedade, se dado ao trabalho de sair de casa àquela hora da noite, e ainda por cima num dia festivo?

Retomemos a tese cheia de suspense de Cohn.” O fato de que o Sínédrio teria sido convocado naquela noite particular para uma reunião na residência do sumo sacerdote e devesse, em última instância, passar ali longas horas até a manhã seguinte exige explicação muito forte e convincente para ser crível”, escreve ele. A conclusão do autor israelense é que só pode haver uma coisa na qual toda a liderança judia estava interessada: "Impedir a crucificação de um judeu pelos romanos e, mais particularmente, de um judeu que gozava do amor e afeição do povo". Segundo Cohn, o Sinédrio reuniu-se não para condenar, mas para salvar Jesus!

Não que as autoridades judaicas morressem de amores pelo pregador da Galiléia. Mas partindo da premissa de que Jesus era popular, Cohn afirma que o Sinédrio precisava tentar alguma coisa em seu favor, sob pena de cair em desgraça perante o povo. Tendo sabido que ele seria levado na manhã seguinte à máxima autoridade romana. e com toda a probabilidade sofreria uma condenação à morte, resolveu agir rápido. Primeiro conseguiuautorização para que sua polícia participasse da prisão. Depois. que o trouxesse à sua presença. Enfim, trancado com Jesus, tentou duas coisas: instruí-lo sobre o que responder no tribunal do governador e persuadi-lo a colaborar com o alto comando judaico. Jesus recusou-se a aceitar uma parceria com o Sinédrio, porém, o que implicaria a renúncia a seus pontos de vista dissidentes, e todo o esforço foi perdido.

Como encarar a tese de Cohn? Brown, ao referir-se a ela em seu livro, descarta-a como “ficção benevolamente imaginativa”. Não há nenhuma tradição judaica antiga, argumenta ele, que coloque em dúvida o envolvimento de autoridades judias na morte de Jesus. A veracidade do julgamento judeu tem sido contestada por argumentos que vão das questões procedimentais. como a realização de um julgamento noturno, quando a jurisprudência universal os recomenda à luz do dia, até o fato mais desconcertante de os evangelhos darem conta de dois julgamentos, um judeu e outro romano “por que tal sobreposição, com que fim e com que lógica?” Brown responde, quanto ao primeiro ponto, que o julgamento ter sido à noite é coerente com o que dizem os evangelhos - que não foram oferecidas as garantias de praxe ao réu. "Marcos informa que as autoridades judias o queriam preso e levado à morte em segredo, e com tão pouca atenção pública quanto possível", escreve Brown. "Procedimentos noturnos convêm a isso muito bem."

Para a bizarra duplicação dos julga­mentos, alguns oferecem a explica­ ção de que o procedimento judeu teria sido uma investigação preliminar, nãoum julgamento. Outros, no sentido inverso, afirmam que coube aos romanos apenas executar uma sentença judia. A chave para o entendimento da questão estaria num diálogo reportado por João, quando Pila­tos, não encontrando razões para assumir o caso de Jesus, diz aos judeus: "Tomai-ovós mesmos e julgai-o conforme a vossa lei". Os judeus respondem: "Não nos é permitido condenar ninguém à morte”.Será que os judeus não podiam executar penas de morte? Estamos no intrincado, território das competências entre a Justiça romana e a judaica. Brown argumenta que em alguns casos de clara inspiração na lei, religiosa, como a proibição de circular em determinadas dependências do Templo, e talvez adultério, os judeus poderiam executar eles mesmos a sentença. Em outros,de interesse para a sociedade como um todo, eles teriam de repassar o “caso à autoridade romana, que resolveria se caberia ou não a pena de morte.

As acusações contra Jesus, no julgamento judeu foram as de proferir ameaças de destruição do Templo e proclamar-se o Messias. Brown comenta, sobre a primeira das acusações, que "o Templo era a instituição-chave da vida cívica e religiosa na Judéia e o tesouro da nação". Portanto, ações contra ele iam além do interesse teológico, para atingir os reinos da sócio economia e da política, e é bastante plausível que provocasse nas autoridades letal hostilidade. Estamos a alguns passos da tese de Crossan, de que Jesus caiu em desgraça por promover desordens no Templo, mas Brown não dará esses passos.

O fato é que apenas dois evangelistas, Marcos e Mateus, referem-se claramente à acusação pertinente ao Templo, e todos reportam a segunda acusação “a pretensão de Jesus a ser o Messias, ou o Filho de Deus. E é por admitir sê-lo”, segundo Marcos, acompanhado por Mateus, que Jesus será conde­nado pelo tribunal judeu, pois sua proteção messiânica foi considerada blasfê­mia. Cohn afirma que blasfêmia, para os judeus, era apenas, e estritamente, pronunciar o tetragrama, o nome proibido de Deus, e se não há notícia de que Jesus o tenha feito, então ele não pode ter sido condenado por esse crime. Além do mais, blasfêmia é crime puramente reli­gioso, que poderia ser punido pelos pró­prios judeus - e por apedrejamento, como impõe a Bíblia, não na cruz. Já Brown considera verossímil que Jesus tenha sido condenado por blasfêmia, cri­me que, para ele, neste caso tipificou-se pela "reivindicação arrogante de prerrogativas ou status mais propriamente associados a Deus.

Encerrados os procedimentos judeus, Jesus foi levado pela manhã a Pilatos. Quem era esse governador romano, tão célebre que entrou no Credo, garantindo-se, com sua participação nesse episódio uma memória histórica com que nem de longe na carreira mediana lhe faria supor? Um documento que se tem sobre ele é uma carta do dirigente judeu Herodes Agripa ao imperador Calígula, cerca de dez anos depois da morte de Jesus. Diz Agripa que Pilatos era "naturalmente inflexível e implacável", e cometia atos de corrupção, de insulto, de rapina, de ultrajes ao povo, de arrogância, assassinatos de vítimas inocentes e da mais violenta selvageria”. Haim Cohn considera esse documento 6 mais fidedigno entre os que dão conta da personalidade de Pilatos.

Brown, mais uma vez, oferece uma visão inversa, a partir de um episódio relatado pelo historiador judeu antigo Flávio Josefo. Uma vez Pilatos enviou a Jerusalém uma tropa levando estandartes com a efígie do imperador Tibério, algo considerado sacrílego pelos judeus. Estes organizaram expedições à cidade costeira de Cesaréa, onde residia o governador, para protestar e exigir que ele removesse os estandartes. As manifestações se sucederam dia após dia. No sexto, Pilatos ameaçou matar os manifestantes. Estes deitaram-se no chão, dispostos a morrer. Admirado com a determinação dos judeus, Pilatos voltou atrás e mandou remover os estandartes. Brown comenta que o incidente "não sugere um tirano teimoso até a selvageria", e conclui que os evangelhos podem ter pintado um Pilatos não distante da realidade, ao mostrá-lo como um juiz tolerante, disposto a dar uma chance ao réu.

Perante o governador romano, a acusa­ção messiânica transmuda-se para o plano temporal. Agora Jesus é acusado de pretender-se "o rei dos judeus”. "Sob a lei romana, isso devia parecer sedição”, escreve Brown. Muitos eruditos concordam que Jesus pode ter sido enquadrado na famosa Lex lulia de Maiestate, ou seja, considerado culpado de crime de lesa-majestade.

A cruel questão da culpa judaica não se exprime apenas na condenação pelo Sinédrio. Mais polêmica ainda é a participação que é conferida à "multidão", incitada pelos "chefes dos sacerdotes e os anciãos", segundo Marcos e Mateus, ou os "judeus", pura e simplesmente, como quer João, no julgamento romano, interferindo agressivamente, e levando um relutante Pilatos a condenar o réu. "Que farei de Jesus, que chamam de Cristo?", pergunta Pilatos. As "multidões", segundo Mateus, respondem: "Crucifiquem-no”. Em João, em cenas de elaborada dramaturgia, Pilatos alterna diálogos filosóficos com Jesus, sobre a verdade e o reino deste mundo e do outro, com exortações ao populacho para que perdoe o réu. Não adianta, os "judeus” estavam-se inflexíveis: "À morte! À morte! Crucifica-o!"

Cohn aponta várias estranhezas, no episódio. Primeira: que fez com que os "judeus" ficassem tão hostis a Jesus, eles que o haviam recebido em triunfo em Jerusalém havia alguns dias? Segunda: como aceitar que um "onipotente governador romano?' se sujeitasse a ficar pedindo aos nativos "conselho sobre como tratar um criminoso preso", e ao tomar a decisão se deixasse arrastar pelos "apelos populares histéricos"? Cohn considera o episódio "demasiado grotesco" para merecer crédito, mas Brown acredita em sua plausibilidade. 0 padre americano traça o cenário seguinte: "Pilatos suspeita que a verdadeira questão seja assunto religioso judaico, de que a verdadeira questão seja um assunto religioso judaico de interesse interno, e não um crime político contra a majestade do imperador. A multidão pressiona Pilatos; e ele não deseja que o caso resulte num outro tumulto em Jerusalém, ainda mais no contexto de festival de Páscoa". Daí ele ter-se sujeitado à pressão popular, da mesma forma que o fizera no caso dos estandartes com efígie do imperador.

Momento mais célebre da trajetória de Pilatos na história e no imaginário universais é quando ele lava as mãos. “ estou inocente desse sangue. A responsabilidade é vossa”, diz. Trata-se de um não romano, mas judeu. Está na Bíblia que, quando morre um inocente que não se sabe quem matou, os principais do lugar devem lavar as mãos e declarar-se inocentes daquele sangue. Brown, que geralmente tende a dar plausibilidade à letra dos evangelhos, dessa vez não vai por esse caminho. O pagão Pilatos, nesse momento, escreve ele “ age e fala como se fosse um leitor do Antigo Testamento e um seguidor dos costumes legais judaicos”. Outro momento ao qual Brown não empresta seu veredito deplausibilidade é quando Pilatos oferece a opção soltar Jesus ou o bandido Barrabás, ,segundo um suposto costume de soltar um preso na Páscoa. Não havia tal costume, conclui Brown, de acordo com a quase­ unanimidade dos eruditos, e mesmo se houvesse seria pouco sensato que o governador soltasse um homem que acabara de ser preso por homicídio durante um tumulto, caso de Barrabás.

No evangelho de Mateus, depois que Pilatos lava as mãos e diz “ A responsabilidade é vossa “, o povo responde: “ O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos”. Ter o “sangue sobre”, segundo ensina Brown, é um expressão bíblica indicando quem é responsável por uma morte aos olhos de Deus. A frase é a mais terrível dos evangelhos, no que se refere ao antijudaísmo. Orígenes, no século III, deu o tom de como a frase de Mateus ecoaria séculos afora: “Portanto, o sangue de Jesus derramou-se não só sobre os que existiam naquele tempo, mas também sobre todas as gerações de judeus que se seguiriam, até o fim dos tempos".

Brown reconhece a trilha de preconceito e de tragédias aberta com o tratamento dado aos judeus nas narrativas da paixão. "A observação de que efetivas autoridades judaicas (e algumas multidões de Jerusalém) tiveram um papel na execução de Jesus ( ... ) teve efeitos duráveis." O pensamento cristão, segundo Brown, “chegou atrasado ao reconhecimento de que uma atitude hostil para com os judeus por causa da crucificação é religiosamente injustificável e moralmente repreensível".

O irlandês Crossan considerou insuficientes as justificativas de Brown e é por isso que escreveu um livro em resposta. O ponto de partida de Crossan é que Brown tende a aceitar demais a "verossimilhança", ou a plausibilidade", dos fatos nos evangelhos, sem arriscar contestar-lhes a historicidade. Com isso, endossa uma narrativa da paixão que, diz Crossan, "foi a sementeira do antijudaísmo cristão”. Sem esse antijudaísmo, acrescenta, “o letal e genocida anti-semitismo europeu seria impossível, ou pelo menos não tão bem-sucedido”. Para Crossan, as narrativas da paixão são peças de ficção. "E bastante possível entender e simpatizar com uma pequena seita judaica sem poderes, escrevendo ficção para se defender. Mas, uma vez que essa seita judaica se torna o Império Romano Cristão, a estratégia defensiva se toma a mais longa das mentiras.

A propósito, se Crossan aceita a historicidade de Jesus, que ele tenha sido preso e crucificado, mas não aceita a historicidade da paixão, o que teria acontecido, então? Simples. Jesus foi preso por promover desordens no Templo e executado sumariamente. Ele escreve: "A eliminação de um estorvo perigoso representado por um camponês como Jesus não precisaria envolver nenhum julgamento oficial nem consultas entre o Templo e as autoridades romanas. O caso foi, a meu ver, administrado de acordo com os procedimentos gerais de manutenção do controle das massas durante a Páscoa. Se alguém causa sério distúrbio no Templo, que se o crucifique imediatamente, como exemplo”.

Execução

De que forma era a cruz? Jesus carregou-a até o alto do calvário? Foi pregado ou amarrado a ela?

“Então o crucificaram”. É assim, dessa forma econômica e singela que Marcos dá conta desse momento tão capital da história que vem contando. Mateus escreve: “ E após crucificá-lo, repartiram entre si as suas vestes, lançando a sorte”. Como nota Brown, a frase que dá conta da crucificação é subordinada à informação sobre a repartição das vestes. Lucas e João não são mais mais loquazes. "Alguma vez um momento tão crucial foi expresso de maneira tão breve e pouco informativa?", pergunta Brown. Nada é dito sobre o formato da cruz, ou como o condenado foi fixado nela.
A erudição de Brown nos servirá de guia na subida ao Calvário. Os quatro evangelistas informam que, encenado o julgamento perante Pilatos, Jesus foi levado por soldados romanos para a execução. Versão diferente aparece num texto apócrifo (isto é, não reconhecido pela Igreja), o chamado Evangelho de Pedro, do qual só nos chegou um fragmento, descoberto no século passado no Egito. Nesse texto os judeus têm todo o controle do processo, inclusive a execução do condenado na cruz.

Jesus carregou ele mesmo a cruz? João diz que sim, mas só ele. Os demais relatam que um certo Simão Cirineu, "que passava por ali vindo do campo", segundo Marcos, foi requisitado para fazer o serviço, Brown estranha. O costume impunha que o condenado levasse a cruz ao local da crucificação, o que é atestado pelo historiador Plutarco: “Todo malfeitor que vai para a execução carrega sua própria cruz". A versão de João parece então mais verossímil. A menos, nota Brown, que Jesus estivesse tão debilitado pelos flagelos que lhe foram impostos que não lhe fosse possível suportar o peso.

Mas o peso de quê? O que, exatamente, se carregava? Não era a cruz inteira, informa Brown. Normalmente, a parte vertical ficava fixa no lugar da execução. O que o condenado carregava era a parte horizontal, patibulum em latim. Segundo Lucas, "uma grande multidão do povo' o seguia, inclusive as mulheres a que Jesus se referirá como "filhas de Jerusalém". Brown considera plausível que houvesse gente a segui-lo, com base na cínica observação de outro autor antigo, Luciano, segundo a qual "aqueles que eram levados à cruz ( ... ) tinha um grande número de pessoas em seus calcanhares".O local da execução é o lugar chamado GóIgota em hebraico ou aramaico, que tem 'Calvário" como equivalente latino, ou "Lugar da Caveira”, segundo traduzem os quatro evangelhos. O nome indica um monte arredondado na forma de uma caveira, ou crânio. Lá chegados, "então o crucificaram", para retomar Marcos. Mas crucificaram como? Para começar, não há informação precisa sobre a forma da cruz, e ela variava. A palavra "cruz", informa Brown, chegou às línguas modernas com o sentido de uma linha que cruza outra, mas nem o grego stauros nem o latim crux necessariamente têm esse significado. Ambas essas palavras, acrescenta Brown, "referem-se a uma estaca à qual as pessoas podiam ser atadas de várias maneiras: empaladas, penduradas, pregadas ou amarradas". 0 empalamento produziria uma morte rápida. A crucificação, uma morte lenta.

Originário da Pérsia, o método da crucificação era reservado no Império Romano em princípio às classes baixas, os escravos e os estrangeiros. Há pouca informação sobre ele, na literatura latina ou helenístíca, e isso se deve, segundo Brown, ao fato de que "os romanos educados o consideravam uma punição bárbara, da qual se devia falar o menos possível". Em qualquer período da História, acrescenta Brown, aqueles que praticam a tortura não são muito comunicativos sobre os detalhes. Para Cícero, era "a mais cruel e revoltante penalidade”, que devia ser reservada só para os escravos, e em último caso. "A própria palavra cruz devia não apenas ficar longe do corpo de um cidadão romano, mas também de seus pensamentos, seus olhos e seus ouvidos", escreveu o mesmo autor.

A pena de Jesus não foi de empalamento nem de enforcamento, mas resta saber a forma da cruz e a maneira com que ele foi fixado a ela. A cruz podia ser em forma de "X” ou de “T”, além da que normalmente se imagina. O condenado podia ser fixado nela de cabeça para baixo. Ocasionalmente, informa ainda Brown, uma estaca única, vertical, seria utilizada. O condenado seria pregado nela com os braços estendidos para cima. Se Jesus carregou a barra transversal até o local da execução, ou se a carregaram para ele, então é porque não foi crucificado nem na estaca vertical nem na cruz em "X", que ficavam fixas no solo. Era cruz com barra, portanto, mas essas poderiam ser também em forma de 'T'. Presume-se que não era 0 caso porque, segundo Mateus, "colocaram acima da sua cabeça, por escrito, 0 Motivo da sua condenação”. Isso significaria que sobrava um pedaço de estaca onde colocar a inscrição geralmente representada com a sigla “INRI”.

Os evangelhos não informam de maneira direta que Jesus foi pregado. Mas Lucas, ao relatar a aparição aos apóstolos, depois da ressurreição, escreve que ele disse ao incrédulo Tomé: “Vede minhas mãos e meus Pés", dando a entender que havia sinais perfuração. João, mais claro, ao relatar mesmo episódio, diz que Tomé queria colocar o dedo "no lugar dos cravos”. Os pregos não poderiam ter sido aplicados à mãos, no entanto, pois elas se rasgariam. O crucificado tinha de ser pregado à transversal pelos pulsos. Feito isso, a barra seria erguida por duas forquilhas até um encaixe talhado na barra vertical.

Jesus foi pregado também pelos pés? Fora dos evangelhos, não havia documento algum a atestar que se pregavam crucificados também pelos pés, até a descoberta, em 1968, em Jerusalém, de um túmulo contendo, entre outros, os ossos de um homem que se aproximava dos 30 anos. Tratava-se de um homem morto por Crucificação, e uma crucificação mais ou menos na mesma época de Jesus, pois esses ossos apresentavam sinais de que o homem fora pregado com dois pregos em baixo, cada prego num calcanhar. Pelos furos, imagina-se que ele foi fixado à cruz com as pernas abertas, cada uma colada a um lado da barra vertical. Os pregos foram-lhe então aplicados no lado do pé, à altura do osso do calcanhar. No caso de Jesus, a tradição atribui a Helena, a mãe do imperador Constantino, a descoberta de três pregos que o teriam pregado - só três. Daí o fato de os artistas ao redor do mundo passarem a representar a crucificação com um prego só prendendo os dois pés, um sobre o outro.

Sobre a cruz, resta acrescentar que algumas apresentavam a variante de ter um pequeno assento, outras um apoio para os pés. Não se tratava de misericórdia. Antes, de permitir que, tendo onde se sustentar, o crucificado durassemais, e portanto sofresse mais. A inscrição que os evangelhos afirmam ter sido afixada à Cruz com as palavras "O Rei dos Judeus" (Marcos) ou “Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus” (João), é o titulus - uma placa indicando o crime cometido pelo executado. Em nenhum dos evangelhos, nota Brown, sugere-se que se tratasse de zom­baria contra Jesus. O titulus, ao informar aopúblico o crime cometido, reforça o caráter intimidatório das execuções públi­cas. Como observa magistralmente Brown, são as únicas palavras que se afirma ter sido escritas sobre Jesus, em sua vida.

“Jesus, então, dando um grande grito, expirou", informa Marcos. Era a hora nona, ou 3 da tarde, e assim esta história vai chegando ao rim. Ou melhor seria dizer assim começa esta longa história. O que se colecionou nesta parte é apenas uma pequena amostra do torrencial volume de informações do livro de Brown. O que se transcreveu, desde o início, das pesquisas, concordâncias e discordâncias dos três autores citados é apenas uma pequena amostra dos infinitos caminhos a que tem levado o estudo e a reflexão sobre o assunto. Ele é tão vasto quanto o mundo, este assunto, tão vasto quanto a História e quanto qualquer vã filosofia. Só não é tão vasto quanto a que começa com a ressurreição e para a qual nem no controvertido tratamento do povo judeu, nem nas dúvidas históricas, nem em nada, há obstáculo.