segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A Busca pelo poder no Cristianismo Primitivo

A corrida pelo poder no cristianismo primitivo: A função política das aparições do Jesus ressurreto.

"[...] ao examinarmos o efeito prático, paradoxal, no movimento cristão, podemos ver como a doutrina da ressurreição do corpo também serve a uma função política essencial: legitima a autoridade de certos homens que reivindicam o exercício da liderança sobre as igrejas como sucessores do apóstolo Pedro. Desde o século II, a doutrina serviu para validar a sucessão apostólica dos bispos; base, até hoje, da autoridade papal" - Elaine Pagels Ph.D, professora de religião na Universidade de Princeton.

A crença cristã da ressurreição de Jesus de Nazaré, assim como na morte redentora de Cristo, constitui-se o núcleo da fé querigmática cristã apresentadas nas comunidades paulinas, e sua antiguidade é bem atestada. Essa crença começou a ser espalhada nas origens cristãs pelas comunidades do "querigma da morte" mediante o relato de experiências epifânicas em que os discípulos alegaram terem presenciado aparições de Jesus.

Na sua primeira epístola aos Coríntios (15.3-11), Paulo nos apresenta a relação dessas aparições com outros fatores que se combinaram para formar a fé cristã primitiva:

"Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi: Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas, e depois aos doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez [...]. Posteriormente, apareceu a Tiago, e, depois, a todos os apóstolos. Em último lugar, apareceu também a mim como a um abortivo. [...] tanto eu como eles, eis o que proclamamos. Eis também o que acreditastes".

Esses anúncios de aparições ajudaram a fundamentar a crença de que Jesus havia ressuscitado dos mortos. Desse modo, o cristianismo, como qualquer outra religião, tem início com um acontecimento mítico e sobrenatural.

No entanto, há uma outra questão implícita dentro das alegações de aparições sobrenaturais de Jesus ressuscitado. Era uma questão política, ligada ao poder dentro da igreja primitiva. De acordo com Pagels (2006, p. 7), logo nos primórdios do cristianismo, muitos cristãos compreenderam as possíveis conseqüências políticas de terem "visto o Senhor ressuscitado".

Pedro (Cefas), de acordo com a tradição paulina (1Co 15.5) e com a tradição lucana (Lc 24.34), foi o primeiro discípulo a experimentar uma epifania de Jesus ressuscitado – o que lhe daria o direito de ser o "líder".

Várias igrejas católicas e algumas igrejas protestantes ainda conservam a tradição de que foi Pedro "a primeira testemunha da ressurreição", e por isso o líder de direito da igreja. De fato, logo após a morte de Jesus, foi Pedro quem assumiu o grupo como líder e porta-voz. Segundo João, ele recebera autoridade da única fonte reconhecida pelo grupo – do próprio Jesus, falando agora além do túmulo.

Deve-se ter em mente que a questão da "liderança petrina" insere-se em um contexto mais amplo, numa época em que floresciam diversas formas de cristianismo, já nos primeiros anos do movimento cristão. Nesse contexto, centenas de pregadores rivais reivindicavam, todos, pregar a "verdadeira doutrina do Cristo" e denunciavam uns aos outros como impostores. Os cristãos dispersos em igrejas da Ásia Menor à Grécia, Jerusalém e Roma dividiam-se em facções, disputando a liderança da igreja. Todos pleiteavam representar "a autêntica tradição".

Como Pedro, Paulo também era um desses pregadores que reivindicavam pregar a "verdadeira doutrina do Cristo".

Pagels (ibid., p. 6) assinala o fato de que as supostas aparições de Cristo ressuscitado possuem mais implicações políticas do que verídicas, e que se os cristãos alegavam que Jesus realmente havia ressuscitado é porque eles possuíam motivos bastantes políticos para isso.

Um desses motivos seria que, se o Cristo Ressuscitado poderia delegar a liderança do movimento a este ou aquele discípulo. No Evangelho de Lucas se diz que os discípulos ouviram que "O Senhor ressuscitou, de fato, e apareceu a Simão [Pedro]!" (Lc 24:34). O que ele disse a Pedro? O relato de Lucas sugere aos cristãos das gerações posteriores que ele nomeou Pedro seu sucessor, outorgando-lhe a liderança. O Evangelho de Mateus diz que, durante a vida, Jesus já havia decidido que Pedro, a "pedra", seria o fundador de sua futura instituição. Evangelho de João, por sua vez, sustenta que o Cristo ressuscitado teria dito a Pedro que ele deveria tomar o lugar de Jesus como "pastor" do seu rebanho.

Paulo, por sua vez, era apenas um representante de uma facção diferente – aquela que certamente "venceu" todas as demais mais tarde.

Paulo, um dos grandes líderes cristãos dos primórdios, nos fala de pelo menos três grandes "líderes" na igreja primitiva: Pedro, Tiago e João (Gl 2.9). De acordo com a tradição, estes três grandes líderes na igreja primitiva, ao contrário de Paulo, haviam sido discípulos diretos de Jesus, juntamente com o grupo denominado "Os Doze" e outros discípulos. No entanto, existe algo que tanto Paulo como esses outros líderes cristãos e discípulos de Jesus tinham em comum: todos haviam visto Jesus Cristo ressuscitado, ou alegavam tê-lo visto (1Co 15.3-7).

Paulo, ao disputar autoridade com diversos outros "líderes" das comunidades cristãs primitivas, chega a indagar: "Não sou apóstolo? Não vi Jesus nosso Senhor?" (1Co 9.1).
Paulo havia sido o último a receber a visão do "nosso Senhor ressuscitado". De acordo com Vermes (ibid., p. 80), o calcanhar-de-aquiles de Paulo era a natureza questionável do seu status como apóstolo. Ele estava convencido de que era um "apóstolo de Jesus Cristo".

Paulo, em 1Coríntios 15, versículo 10, alega que trabalhou "muito mais do que todos eles", ou seja, do que todos a quem o Jesus ressurrecto havia aparecido. Por essa e outras razões, Paulo se considerava apóstolo tal ou até mais do que Pedro, Tiago e os demais.

Vermes (ibid., p. 82) também afirma que, como resultado da visão de Jesus ressuscitado, Paulo sentiu-se plenamente autorizado por Jesus, sem precisar de nomeação. De fato, um vínculo entre "autoridade apostólica" e "visão de Jesus ressuscitado" começa a se tornar explícita dentro desse contexto, não apenas para Paulo, mas de modo geral.

No contexto religioso-político das primeiras comunidades cristãs querigmáticas, o melhor modo dos cristãos primitivos resolverem as diversas disputas teológicas, estabelecerem a ortodoxia dos ensinamentos sobre os "heréticos" e firmarem sua autoridade era através de alegações sobre aparições em que o Jesus ressuscitado, aquele que foi a "única autoridade reconhecida por todos", delegava o poder (ibid., p. 6).

Foi isso que Paulo fez. Paulo contesta a autoridade dos "Três Pilares", alegando que o Jesus ressuscitado havia "aparecido" para si e lhe dado revelações específicas.

Paulo enfatiza tais aparições não para ressaltar o aspecto sobrenatural da religião cristã, mas para se designar como alguém chamado e escolhido por Deus e por Jesus para tomar um papel de liderança na igreja primitiva.

Por isso, Crossan (1995, p. 237) afirma que Paulo precisou, em 1Coríntios 15.1-11, igualar sua própria experiência com aquela dos apóstolos precedentes – igualar, a sua validade e legitimidade, mas não necessariamente o seu modo ou maneira.

Pagels (op.cit. p. 9-10) afirma que o círculo de liderança se restringe a um pequeno grupo de pessoas cujos membros estão em posição de autoridade incontestável. Desse modo, apenas os apóstolos têm direito a ordenar futuros líderes como sucessores.

Ou seja: Jesus, após morrer e ressuscitar no terceiro dia aparece para um número limitado de discípulos, sendo que primeiro aparece a Pedro. Logo após essas aparições, a tradição evangélica nos conta que Jesus foi elevado ao céu. Sua elevação ao céu fecharia o leque de aparições a um número limitado de discípulos após a ressurreição. Desse modo, a autoridade eclesiástica fornecida pela aparição de Jesus se concentrava nas mãos de poucos indivíduos.

A estratégia de Paulo para alcançar poder dentro das comunidades cristãs primitivas não foi apenas alegar que Jesus havia aparecido para ele também – vários anos depois das aparições pós-pascais –, mas também tentar equiparar sua experiência epifânica com a dos demais apóstolos e, da mesma forma, tentar minar a autoridade do número reduzido de discípulos que tiveram experiências de aparição pós-pascal alegando que um número bastante ampliado de pessoas ("mais de quinhentos irmãos", segundo 1Co 15.6) também haviam tido experiências epifânicas com o Jesus ressuscitado. De fato, este era um excelente argumento a favor Paulo para tornar a situação política mais favorável para si mesmo. 1Co 15.5-9 não deixa implícito que tais aparições tenham ocorrido nos dias posteriores a alegada ressurreição de Jesus ou se ocorreram bem mais tarde, como a sua própria. Essa indefinição também exerceu importante papel na busca de Paulo pelo poder.
Não apenas Paulo contesta o poder de Pedro e dos demais apóstolos; também o faz o autor do Evangelho de Marcos e o autor do Evangelho de João décadas depois.

Enquanto Pedro se firmava como autoridade na igreja primitiva por causa da primazia na ressurreição, Tiago tentava enfatizar a sua importância por causa de sua revelação e de seu laço de sangue com Jesus, e Paulo corria atrás da mesma autoridade ao afirmar que o "Senhor" havia aparecido a ele também. Marcos, por sua vez, de acordo com Crossan (1995), era um "crítico ferrenho de Pedro, João e Tiago" (este último incorporado, em seu evangelho, como "filho de Zebedeu" e não como o "Irmão do Senhor"), e por isso tenta minar essa autoridade destacando mulheres no sepulcro e omitindo por completo as aparições.

De forma alguma Marcos nega a ressurreição. Para deixar isso explicito, ele coloca um "jovem" no sepulcro quando ocorre a visita das três mulheres. O que Marcos, implicitamente, nega é a autoridade dos apóstolos, a qual foi concebida nas comunidades cristãs primitivas por meio das aparições. Marcos, de fato, percebe a "jogada política" existente do uso de alegadas "aparições de Jesus".
Pagels (2006, p. 7) afirma que existiam, em contrapartida, outras tradições cristãs primitivas que tentavam minar a autoridade e primazia de Pedro ao colocar outro personagem como a primeira testemunha da ressurreição: os evangelhos de Marcos e de João nomeiam ambos Maria Madalena, e não Pedro, como a primeira testemunha da ressurreição.

Meier (1998, p. 199), afirma que, de acordo com Hengel, a menção as três mulheres em Mc 16,1 e Lc 24,10 é uma justaposição aos três homens considerados líderes das comunidades cristãs primitivas: Pedro, Tiago e João. Esses eram conhecidos como os "três pilares" da comunidade de Jerusalém em Gl 2,9. Nesse sentido, Hengel sugere que a lista de três mulheres, sempre encabeçada por Maria Madalena, indica autoridade ou prestígio na primitiva comunidade cristã.

Crossan (2004, 582) também nota esse paralelo incomum, ao afirmar que, enquanto a tradição pré-paulina fala de Pedro e os Doze e de Tiago e os apóstolos, os textos evangélicos canônicos enfatizam muito mais o papel de Maria e as mulheres.

Colocar Maria Madalena e outras mulheres – figuras sem papel de liderança na igreja primitiva – como sendo as primeiras testemunhas da ressurreição, de fato, contrariaria o poder de Pedro no cristianismo primitivo.

De acordo com Crossan (1995, p. 242), as aparições de Jesus a determinados indivíduos relatadas nos evangelhos nada têm a ver, absoltamente, com as experiências em êxtase ou revelações em transe. São questões de autoridade que estão sob discussão nessas passagens. Há um grupo de liderança dentro da comunidade? Deverá haver alguém encarregado da comunidade e do grupo? Que tipo de pessoa deve ser? Quem deverá ser? As respostas vêm do que o Jesus ressuscitado diz e, especialmente, para quem o Jesus ressuscitado fala.

Lucas 24.12 narra que Pedro correu até o túmulo de Jesus e, olhando para dentro, o viu vazio, apenas com os lençóis. E depois "voltou pra casa, admirado do que acontecera".

Lucas 24.33-35 nos diz que "O Senhor ressuscitou de verdade e apareceu a Simão [Pedro]". Lucas, apesar de não narrar essa aparição, mas somente a alude de forma vaga na boca dos discípulos, coloca Pedro como o primeiro a ver o "Senhor".

Crossan (ibid., p. 240) afirma que um membro de outra comunidade ou tradição cristã, que conhecesse muito bem aquela ênfase na liderança de Pedro, mas que desejasse se opor a ela em favor do seu próprio líder específico, deveria criar um relato alternativo sobre uma aparição de Jesus ressuscitado, ao alterar e/ou acrescentar detalhes que coloquem em primazia determinado personagem.

Desse modo, Crossan (ibid., loc. cit.) ressalta que a corrida para o túmulo tornou-se um duelo de autoridade. O autor do Evangelho de João faz Pedro entrar primeiro, conforme Lucas 24:12 exige. Mas diz que o Discípulo Amado acredita. Ele não diz que Pedro acredita ou não acredita, mas enfatiza que o Discípulo Amado o fez.

De fato, a seguinte pergunta é bastante pertinente: "como poderiam aqueles que preferiam a liderança de Pedro reagir contra essa narrativa?" (ibid., loc. cit.). A reação, naturalmente, foi contra-atacar. Tal como fizeram com o Evangelho de Marcos, cristãos posteriores acrescentaram no Evangelho de João, que terminada no capítulo 20, um capítulo a mais. O capítulo inteiro é sobre a aparição do Jesus ressurrecto no mar de Tiberíades. Pedro é o personagem principal desse capítulo. De fato, Pedro é colocado acima do Discípulo Amado.

Da mesma forma como Pedro nega Jesus três vezes em João 18.15-18,25-27, no capitulo 21 – versículos 9,15-17 do evangelho de João, mais uma vez diante de uma "fogueira", – ele reafirma Jesus três vezes. Pedro, então, é encarregado de "apascentar" os cordeiros e as ovelhas de Jesus, isto é, a comunidade geral e o grupo de liderança da igreja. De fato, podemos perceber disputas políticas influenciando até mesmo na confecção dos evangelhos! A mesma disputa que Paulo já praticava nos anos 50, é a mesma que aparece nos anos 80-90 (Lucas), em João (100-110) e nos séculos seguintes (Capítulo 21 de João).

Em todo o caso, tais alusões sobre aparições post-morten de Jesus aos seus discípulos, encontradas em várias camadas da tradição evangélica e paulina, a despeito de suas conseqüências políticas, sugerem o quanto revelações sobrenaturais, visões, epifanias, e outras experiências semelhantes eram importantes para a comunidade cristã primitiva.

Desde o início, o cristianismo buscou orientação sobrenatural em sua missão, sendo que a intensa reverência cristã aos eventos carismáticos constitui uma boa indicação disso. O fato é que essas revelações de caráter supostamente divino abriram espaço para novas concepções, idéias e interpretações, motivando a formação das lendas que atualmente sustentam o imaginário e o dogma da fé cristã.
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Bibliografia
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. 4ª impressão. São Paulo: Ed. Paulus, 2006.
CROSSAN, John Dominic. Quem matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus. Tradução: Nádia Lamas. Rio de Janeiro: Imago ed., 1995.
______________________. O nascimento do Cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2004.
MEIER, John P. Um judeu marginal: Repensando o Jesus Histórico: Milagres. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Vol. II, livro III.
PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
VERMES, Geza. As várias Faces de Jesus. Rio de Janeiro: Record, 2006.
(Obs.: O presente artigo faz parte de um trabalho publicado com direitos autorais. O uso indevido desse material por terceiros, sem a autorização do autor, acarretará em punição legal).

O Manifesto do Ceticismo


Que valor tem tudo isto?
Algum estudioso do cristianismo poderia nos explicar qual é o valor do Gênesis?
Sabemos que não é verdadeiro – que se contradiz. Há duas versões da criação, uma no primeiro e outra no segundo capítulo.
Na primeira, os pássaros e bestas foram criados antes do homem.
Na segunda, o homem é criado antes dos pássaros e bestas.
Na primeira, as aves são feitas a partir da água.
Na segunda, as aves são feitas a partir da terra.
Na primeira, Adão e Eva são criados juntos.
Na segunda, primeiramente Adão foi feito; depois as bestas e os pássaros, e então Eva foi criada a partir de uma das costelas de Adão.
Essas histórias são muito mais antigas que o Pentateuco.
Versão persa: Deus criou o mundo em seis dias, um homem chamado Adama, uma mulher chamava Eva, e então descansou.
As histórias dos etruscos, babilônios, fenícios, caldeus e egípcios são muito parecidas.
Os persas, gregos, egípcios, chineses e hindus têm seu Jardim do Éden e sua Árvore da Vida.
Assim, os persas, os babilônios, os núbios, o povo do sul da Índia, todos tinham sua história da sucumbência do homem e da serpente astuciosa.
Os chineses dizem que o pecado veio ao mundo através da desobediência da mulher. E mesmo os taitianos acreditam que o homem foi criado da terra, e a primeira mulher de um de seus ossos.
Todas essas histórias são igualmente autênticas e de idêntico valor ao mundo, e todos os seus autores estavam igualmente inspirados.
Sabemos também que a história do dilúvio é muito mais antiga que o livro do Gênesis; além disso, sabemos que não é verdadeira.
Sabemos que a história do Gênesis é copiada da versão caldéia. Nela você também encontra tudo sobre a chuva, a arca, os animais, a pomba que foi enviada três vezes e a montanha na qual a arca repousa.
Ou seja, hindus, chineses, persas, gregos, mexicanos e escandinavos têm essencialmente a mesma história.
Também sabemos que o relato sobre a Torre de Babel é uma fábula ignorante e infantil.
Então o que resta neste inspirado livro do Gênesis? Contém alguma palavra que visa o desenvolvimento do coração ou da mente? Contém algum pensamento elevado – qualquer grande princípio, alguma poesia –, qualquer palavra que conduza à prosperidade?
Contém algo além de uma enfadonha e detalhada descrição de coisas que nunca aconteceram?

Há algo no Êxodo que pretende tornar os homens generosos, bondosos e nobres?

O que há de bom em ensinar a crianças que Deus torturou o gado inocente dos egípcios – ferindo-os mortalmente a pedradas – por culpa dos pecados do faraó?
Será que nos tornaríamos compassivos se acreditássemos que Deus matou os primogênitos dos egípcios – primogênitos de um povo pobre e sofrido, da pobre moça trabalhando nos moinhos – por causa da maldade do rei?
Podemos acreditar que os deuses egípcios fizeram milagres? Transformaram água em sangue e bastões em serpentes?
No Êxodo não há sequer uma idéia original ou uma linha que tenha valor.
Sabemos – se é que sabemos alguma coisa – que este livro foi escrito por selvagens – selvagens que acreditavam na escravidão, na poligamia e nas guerras de extermínio. Sabemos que a história contada é impossível e que os milagres relatados nunca ocorreram. Este livro admite que há outros deuses além de Jeová. No 18º capítulo há este verso: “Agora sei que o Senhor é maior que todos os deuses; até naquilo em que se houveram arrogantemente contra o povo”.
Neste livro sagrado ensina-se o dever do sacrifício humano – do sacrifício de bebês.
No 22º capítulo há este comando: “Não tardarás em trazer ofertas da tua ceifa e dos teus lagares. O primogênito de teus filhos me darás”.
O Êxodo foi um trampolim ou uma travanca à espécie humana?
Subtraindo-se do Êxodo as leis comuns às outras nações, o que resta nele de valor?

Há algo de importância em Levítico?

Há algum capítulo que mereça ser lido? Que interesse temos nas roupas dos padres, nas cortinas e velas dos tabernáculos, nas pinças e pás do altar ou no óleo utilizado pelos levitas?
Para que serve o código cruel, as punições amedrontadoras, as maldições, as falsidades e os milagres deste livro ignorante e infame?
E o que há no livro de Números?

Com seus sacrifícios e água de ciúmes, seus pães e colheres, suas crianças e flor de farinha, seus óleos e castiçais, seus pepinos, cebolas e manás – que ajuda e instrui a humanidade?
Que interesse temos na rebelião de Corá, na água da amargura, nas cinzas da novilha vermelha, na serpente de bronze, na água que seguiu o povo para cima e para baixo por quarenta anos e na jumenta inspirada do profeta Balaão?
Acaso essas absurdidades e crueldades – essas superstições pueris e selvagens – ajudaram a civilizar o mundo?
Há qualquer coisa em Josué?

Em suas guerras, em seus assassinatos e massacres, em suas espadas gotejando sangue de mães e bebês, em suas torturas e mutilações, em sua fraude e fúria, em seu ódio e vingança – cuja finalidade é melhorar o mundo?
Cada capítulo deste livro não é um verdadeiro choque ao coração de um homem bondoso? Será um livro que crianças deveriam ler?
O livro de Josué é impiedoso como a fome, feroz como o coração de uma besta selvagem. É uma história, uma justificativa, uma santificação de praticamente qualquer tipo de atrocidade.

O livro de Juízes?

trata do mesmo assunto, nada além de guerra e matança; a horrível história de Jael e Sísera; de Gideão e suas trombetas e cântaros; de Jefté e sua filha, que ele matou para agradar Jeová.
Nele encontramos a história de Sansão, na qual um deus-sol é transformado em um hebreu gigante.

Leiam este livro de Josué, leiam sobre morticínio de mulheres, esposas, mães e bebês, leiam seus milagres impossíveis, leiam seus crimes cruéis – e tudo feito de acordo com os Dez Mandamentos de Jeová –, e então me digam se este livro foi feito para nos tornar compreensivos, generosos e bondosos.

Admito que a historia de Rute, em alguns aspectos, é bela e tocante; que é contada com naturalidade, e que seu amor por Noêmi era profundo e puro. Mas em matéria de namoro, dificilmente aconselharíamos nossas filhas a seguir o exemplo de Rute. Devemos lembrar que Rute era uma viúva.

Há algo que valha a pena ser lido no primeiro e segundo livros de Samuel?

Deveria um profeta de Deus despedaçar um rei cativo? A história da arca, de sua captura e recuperação, tem qualquer importância para nós? É uma atitude correta, justa e clemente matar cinqüenta mil homens porque olharam uma caixa? Qual a utilidade das guerras de Saul e Davi e das histórias de Golias e da feiticeira de Endora? Por que Jeová deveria ter matado Uzá por ter estendido a mão para firmar a arca e perdoado Davi por assassinar Urias e roubar sua esposa?
De acordo com “Samuel”, Davi fez um censo do povo. Isso suscitou a ira de Jeová, que como punição permitiu a Davi escolher sete anos de fome, três meses fugindo da perseguição de seus inimigos ou três dias de pestilência. Davi, tendo confiança em Deus, escolheu os três dias de pestilência; e então Deus – o misericordioso – matou setenta mil homens pelo pecado de Davi.
Ante as mesmas circunstâncias, o que um diabo teria feito?

Há algo no primeiro e segundo livros de Reis que sugere a idéia de inspiração?

Quando Davi está morrendo, diz ao seu filho Salomão para matar Joabe – que não deixasse suas cãs descerem à sepultura em paz. Com seu último suspiro, ordena que seu filho faça com que as cãs de Simei desçam à sepultura com sangue. Após proferir essas amáveis palavras, o bom Davi, o homem do coração de Deus, dormiu com seus pais.
Seria necessária inspiração para que um homem escrevesse a história da construção do templo, a história da visita da rainha de Sabá ou relatasse o número de esposas de Salomão?
Que nos importa mão seca Jeroboão, a profecia de Jeú ou a história de Elias e os corvos?
Como podemos acreditar que Elias trouxe chamas do céu ou que foi até o último Paraíso em um carro de fogo?
Podemos acreditar na multiplicação do azeite por Eliseu, que um exército foi ferido com cegueira ou que um machado flutuou na água?
Será que ler sobre a decapitação dos setenta filhos de Acabe, sobre o vazamento dos olhos de Zedequias e o assassinato de seus filhos nos torna mais civilizados? Há uma palavra sequer no primeiro e segundo livros de Reis que se destina a melhorar o homem?

O primeiro e segundo livros de Crônicas não passam de uma repetição do que é dito no primeiro e segundo livros de Reis. As mesmas velhas histórias – com algumas reduções, algumas adições, mas que não as tornam nem melhores nem piores.

O livro de Esdras é irrelevante. Conta-nos que Ciro, o rei da Pérsia, emitiu uma proclamação para a construção do templo de Jerusalém, e que declarou ser Jeová o único e verdadeiro Deus.
Nada poderia ser mais absurdo. Esdras nos fala sobre o retorno do cativeiro, a construção do Templo, a dedicatória, umas poucas orações, e isso é tudo. Esse livro não tem qualquer importância, é inútil.

Neemias trata do mesmo assunto, apenas fala sobre a construção do muro, as reclamações do povo quanto aos impostos, a lista daqueles que retornaram da Babilônia, um catálogo daqueles que habitavam Jerusalém e a dedicatória dos muros.
Nenhuma palavra do livro de Neemias merece ser lida.

Então vem o livro de Ester: nele é dito que o rei Assuero estava embriagado; que ordenou à sua rainha, Vasti, que se mostrasse a ele a aos convidados. Mas ela recusou-se.
Isso enfureceu o rei, e este ordenou que de cada província fossem trazidas as moças mais bonitas, para que ele pudesse escolher uma para ocupar o lugar de Vasti.
Entre outras, foi trazida Ester, uma judia. Ela foi escolhida, tornando-se a esposa do rei.
Um cavalheiro chamado Hamã desejava que todos os judeus fossem destruídos, e o rei, não tendo conhecimento de que Éster era uma judia, assinou um decreto para que os judeus fossem mortos.
Através dos esforços de Mordecai e Ester o decreto foi anulado e os judeus salvaram-se.
Hamã preparou uma forca para a execução de Mordecai, mas a boa Ester conseguiu fazer com que Hamã e seus dez filhos fossem enforcados na forca que ele havia construído, e os judeus foram autorizados a matar mais de setenta e cinco mil súditos do rei.
Essa é a história inspirada de Ester.

No livro de Jó encontramos alguns sentimentos elevados, alguns pensamentos sublimes e alguns tolos, algo sobre a maravilha e a perfeição da natureza, as alegrias e tristezas da vida; mas a história é infame.

Alguns Salmos são bons, muitos são indiferentes e poucos são infames. Neles estão misturados vícios e virtudes. Há versos que elevam e versos que degradam. Há orações de perdão e orações de vingança. Em toda a literatura mundial não existe nada mais inumano e infame que o 109º salmo.

Nos provérbios há muita sagacidade, muitas máximas expressivas e prudentes, muitos dizeres sábios. As mesmas idéias são exprimidas de várias maneiras – a sabedoria da economia e do silêncio, os perigos da vaidade e da ociosidade. Alguns são triviais, alguns são tolos e muitos são sábios. Esses provérbios não são generosos – não são altruísticos. Dizeres de mesma natureza podem ser encontrados em todas nações.

Eclesiastes é o livro mais profundo da Bíblia. Foi escrito por um descrente – um filósofo –, um agnóstico. Retire-se dele as interpolações, e estará de acordo com o pensamento do século XIX. Nesse livro estão as passagens mais filosóficas e poéticas da Bíblia.

Após atravessar o deserto de mortes e crimes – após ler o Pentateuco, Josué, Juízes, Samuel, Reis e Crônicas –, é um encanto encontrar esse jardim de poesia chamado “Cântico dos Cânticos”. Um drama de amor – de amor humano –, um poema sem Jeová, um poema nascido do coração e verdadeiro para os instintos divinos da alma.
“Eu dormia, mas o meu coração velava.”

Isaías é o trabalho de vários. Suas palavras pomposas, sua imagética vaga, suas profecias e maldições, seus devaneios contra reis e nações, seu escárnio da sabedoria humana e seu ódio à alegria não possuem a menor tendência de promover o bem-estar do homem.
Neste livro encontra-se o mais absurdo de todos os milagres. A sombra no relógio volta dez graus como sinal de que Jeová havia adicionado quinze anos à vida de Ezequias.
Com este milagre o mundo – que gira de oeste para leste a mais de mil milhas por hora – não apenas para, mas de fato retrocede até que a sombra do relógio tenha voltado dez graus!
Há em todo o mundo algum indivíduo inteligente que acredite nesta mentira grosseira?
Jeremias não contém nada de importância – nenhum fato de valor.

Nada além de procura por erros, lamentações, resmungos, gemidos, maldições e promessas; nada além de fome e oração, da prosperidade do mal, da ruína dos judeus, do cativeiro e o retorno, e finalmente Jeremias, o traidor, no tronco e na prisão.

O livro de Lamentações é simplesmente a continuação dos delírios do mesmo pessimista insano; nada além de pó, trapos, cinzas, lágrimas, uivos, xingamentos e insultos.

E Ezequiel – comendo manuscritos, profetizando cerco e desolação, com visões de brasas de fogo, de querubins, da figura da caldeira fervente e da ressurreição de ossos secos – também não possui qualquer valor, nenhum valor imaginável.
Assim como Voltaire, digo que se há alguém que admira Ezequiel, então deveria ser compelido a jantar com ele.

Daniel é um sonho conturbado – um pesadelo.

Que utilidade tem este livro, com sua imagem com cabeça de ouro, com peito e braços de prata, com ventre e coxas de bronze, com pernas de ferro e com pés em parte de ferro e em parte de barro; com suas escrituras na parede, sua cova dos leões e sua visão do carneiro e do bode?

Há algo e ser aprendido de Oséias e sua esposa?
Há algo proveitoso em Joel, em Amós, em Obadias?
Há algo a ser extraído da história de Jonas e o peixe que o engoliu?

Será possível que Deus é realmente o autor de Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Malaquias e Zaracias, com seus cavalos vermelhos, seus quatro chifres, seus quatro ferreiros, seu rolo voador, seus montes de bronze e sua pedra com sete olhos?

Estes livros “inspirados” trouxeram qualquer benefício ao homem?

Nos ensinaram como cultivar a terra, construir casas, tecer roupas ou preparar alimento?

Nos ensinaram a pintar quadros, talhar estátuas, construir pontes, navios ou qualquer coisa bela ou útil? Foi do Velho Testamento que derivamos nossas noções de governo, de liberdade de culto, de liberdade de pensamento?

Colhemos destes livros qualquer idéia que contribuiu à ciência? Há nestas “sagradas escrituras” uma palavra, uma linha que tenha contribuído à riqueza, à inteligência ou à felicidade da humanidade?

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O Problema das Evidências Extra-Bíblica Sobre Jesus

Eu acredito que uma das principais funções dos biblioblogs é prestar, por assim dizer, um serviço público. Ser fonte de informação confíável em relação aos temas de historia bíblica e estudo das religiões, de forma a permitir o acesso do público leigo. A Internet torna possível compartilhar e transmitir informação com muita facilidade, boa ou má. Permite, com frequência que se desimforme e se deseduque, que se ressuscite teses estapafúrdias, há muito refutadas.

É problemático porque as pessoas lêem, e de boa fé acham que estão aprendendo, passam adiante, e estão recebendo informação, na melhor da hipóteses desatualizada, e na maioria das vezes errada.

Por exemplo, o filme feito para internet, Zeitgeist, muito popular no youtube, faz as seguintes afirmações.

"Além disso, há alguma evidência extra-bíblica de um certo Jesus, o Filho de Maria, que viajou com 12 seguidores, curando pessoas e tudo mais? Existiram numerosos historiadores que viviam no Meidterrâneo e arredores, tanto durante, quanto logo após a presumida vida de Jesus. Quantos desses historiadores se referiram a esta figura? Nenhum. Entretanto para ser justo, não quer dizer que os defensores do Jesus Histórico não tenham dito o contrário. Quatro historiadores são tipicamente citados para demonstrar a existência de Jesus. Plínio o Jovem, Suetonio, Tacito são os três primeiros. Cada um dessas referências consiste de um poucas frases e na melhor hipóteses referem apenas a Christus ou Cristo, o que de fato não é um nome, mas um título. Significa "ungido". A quarta fonte é Josephus, e esta já foi provado ser uma fraude a centenas de anos. Tristemente, é ainda citado como verdade".[1]

Esse argumento é apresentado as vezes de outra forma, apresenta-se uma lista de autores, (em uma das versões chega a 31), que viviam no Império Romano nos 100 ou 150 anos seguintes a morte de Jesus, e pergunta-se "se Jesus existiu, se realizou tão grandes feitos, como pode não ter sido notado por esses escritores? Como pode ter sido mencionado apenas por 4 ou 5 autores, em textos que não maiores que um parágrafo?"

Uma dessas listas, encontrada em inúmeros sites, foi elaborada no final do séc. XIX pelo escritor Jonh Remsburg, afirmando que só uns quatro ou cinco mencionaram Jesus (deve ser observado que o próprio Remsburg, acreditava na existência histórica de Jesus de Nazaré).

Lista de Remsburg: Josefo, Filo, Seneca, Seneca, Plínio Velho, Suetônio, Juvenal, Martial, Persius, Plutarco, Justo de Tiberias, Apolônio, Plínio o Moço, Tacito, Quintiliano, Lucano, Epicteto, Silius Italicus, Statius, Ptolemy, Hermogones, Valerius Maximus, Arrio, Petronio, Dion Pruseus, Veleio Paterculo, Apio, Teon de Esmirna, Flegon, Pompon Mela, Quintius Curtius, Luciano, Pausanias, Valerius Flaccus, Florus Lucius, Favorinus, Faedro, Damis, Aulus Gellius, Columella, Dio Crisostomo, Lisias, Apio de Alexandria.

Antes de tudo, vamos pensar: dos autores citados por Remsburg, alguns escreveram fábulas (como Faedro), outros eram poetas (como Marcial e Statius), outros escreveram sobre mitologia, e filosofia. Quantos deles mencionaram os assuntos da Judéia do sec. I? A maioria escrevia para um público da elite grega e romana, senadores, magistrados, nobres de cidades como Roma, Atenas ou Alexandria. Lugares como Galiléia eram tão remotos como o sertão da Paraíba ou do Ceará para um alemão ou canadense. E como se eu fosse a Nova York, entrasse em um livraria, pegasse aleatoriamente livros de 40 autores diferentes (de filosofia, politica, geografia, ciências e historia) e se 4 ou 5 mencionassem Padre Cícero, Antônio Conselheiro, Tiradentes ou o Negro Cosme, eu concluisse que eles não existiram, ou foram irrelevantes.

Sessenta milhões de pessoas viviam no Império Romano no sec. I DC, e como a esmagadora maioria delas não foi citada por nenhum historiador, ou não aparece em artefatos arqueológicos, eu posso concluir então que elas não existiram?

A propósito, quem foram os comandantes de todas as legiões do Império no sec. I?

Quem foram os 600 membros do Senado Romano ou os 71 do Sinédrio Judaico, em digamos, 50 DC?

São perguntas que nós, com os registros disponíveis e fontes que chegaram até nós, não temos como responder, embora saibamos que foram pessoas influentes e poderosas.

Para se ter uma idéia, o historiador Jona Lendering observa"As mais de quarenta províncias do Império Romano eram administradas por um governador, cujo mandato durava de 12 a 36 meses. Estes homens poderosos são virtualmente desconhecidos para os historiadores modernos, que se consideram afortunados quando acontece de conhecer a identidade do oficial responsável por uma provincia em um determinado momento".[2]

Ou seja, apesar desses homens terem governado provincias com dezenas, centenas de milhares de habitantes e comandado exercítos de milhares de soldados, por anos a fio, terem construido monumentos, registrado seus feitos em inscrições, cunhado moedas, muitas vezes não sabemos o seu nome, e, em outros casos, mesmo que saibamos são apenas nomes em uma lista. Casos como Plínio, o Jovem, por sua coleção de cartas com o Imperador Trajano e uma longa inscrição que descreve sua carreira, ou de Pôncio Pilatos, que é mencionado nos evangelhos, Filo, Josefo e Tácito (ironicamente a única menção de Pilatos por uma fonte romana, mesmo assim como aquele que executou Jesus de Nazaré), além de aparecer em um inscrição fragmentária e algumas moedas, são excessões que confirmam a regra. Isso ocorre porque apenas um pequena parte dos textos escritos no período e dos potenciais artefatos arqueólogicos sobreviveram até nosso tempo.

Em 24 de agosto do ano de 79 DC, o Monte Vesúvio, nas proximidades de Nápoles, entrou em erupção. A região, como hoje, era densamente povoada, e a cidade de Pompéia (onde viviam cerca de 20 mil pessoas) e a vizinha Herculano foram completamente destruidas. O célebre escritor e magistrado romano Plínio, o Velho, morreu naquela tragédia, tentando resgatar sobreviventes. Uma tragédia. Milhares morreram, e os sobreviventes ficaram sem teto. Mas quantos relatos de testemunhas oculares, de fontes primárias ou secundárias, nós temos disponíveis. UM. ISSO MESMO UM. Plínio, o Jovem, sobrinho do outro Plínio que morreu na erupção, que descreveu a tragédia a pedido de seu amigo Tácito (a parte em que o relato foi provavelmente inserido esta perdida) [3] . Temos algumas outras referências, escritas algumas décadas depois do fato, pelo poeta Statius (95 DC), o historiador Flávio Josefo ( 93-95 DC), e Suetônio (125 DC) [4], geralmente curtas e não maiores que alguns parágrafos, ainda que dezenas de escritores tenham vivido no período. Isso porque foi um evento que, se fosse hoje, faria o "breaking news" da CNN e meses depois viraria filme para televisão "baseado em uma história real". Felizmente, erupções vulcânicas deixam para trâs uma quantidade enorme de artefatos arqueológicos, que permitem não só entender o evento, mas reconstruir a vida de uma cidade romana do sec I DC.

Outro exemplo de como esse modus operandi em relação a Jesus no âmbito da história antiga pode levar a conclusões absurdas é a do próprio Imperador Trajano. Trajano governou o Império entre 98-117 DC, e em seus vinte anos de reinado foram talvez os mais gloriosos da História de Roma, de tal forma que, mesmo no final do IV século, os novos imperadores recebiam os votos "felicior Augusto, melior Traiano", ("que seja mais bem afortunado que Augusto e melhor que Trajano"). Herbert W. Benario, Professor Emérito de História Clássica da Emory University, observa que:
"Trajano foi das figuras mais admiráveis da Roma Antiga. Um homem que mereceu o reconhecimento e renome que gozou em sua vida e das gerações seguintes [5].

No entanto, surpreendentemente,
"as fontes para o homem e seu principado são desapontadoramente escassas. Não há um historiador contemporâneo que possa iluminar o período. Tácito o menciona apenas ocasionalmente, Suetônio não escreveu sua biografia, e nem mesmo o autor da muito posterior e largamente fraudulenta História Augusta. (...) Plínio, o Jovem, é nossa principal fonte literária, em seu Pannegyricus - seu longo discurso de agradecimento ao Imperador, após assumir o Consulado no final do ano 100 DC - e suas cartas (...) Cassio Dio, que escreveu na decada de 230 DC, elaborou uma longa história imperial a qual, para o periodo Trajanico, sobreviveu somente em forma abreviada no livro LXVIII. O retoricista Dio de Prusa, um contemporâneo do Imperador, oferece muito pouco de valor. As epitomes de Aurélio Vitor e Eutrópio, do IV século, oferecem algumas informações úteis. Inscrições, moedas, papiros, e textos legais são os mais importantes. Uma vez que Trajano construiu muitos projetos de significância, a arqueologia contribui poderasomente para nossa compreensão do homem [5].

Ou seja, ainda que "numerosos historiadores vivessem no, e em volta do Mediterrâneo" no tempo do Imperador Trajano, nossas fontes literárias sobre seus 20 anos de reinado são extremamente escassas, e não temos disponível nenhuma biografia escrita por um autor contemporâneo, embora tenhamos dezenas de escritores no período. No entanto, sabemos da existência e importância de Trajano pelas menções breves de Suetônio e Tácito, a correspondência de Plínio, a biografia escrita por Cassio Dio mais de 100 anos depois de sua morte, e principalmente, moedas, inscrições, monumentos e obras públicas. Se essas são as fontes para o Imperador, que regia os destinos de 60 milhões de pessoas, o que devemos esperar do carpinteiro galileu, que segundo os próprios discipulos "foi crucificado pelos poderes da época, que não o compreenderam" e cujo movimento cerca de 100 anos após sua morte, contava, no maximo, com cerca de 10 a 15 mil seguidores (que não cunhavam moedas, nem elaboravam documentos oficiais, nem construiam estradas, pontes, ou monumentos) ?.

(Também aqui vale observar que apenas uma "pequena parte do que foi escrito na Antiguidade chegou até nós, e que muito do que foi escrito sobre Trajano (ou da destruição de Poméia), por seus contêmporâneos foi perdido. Da mesma forma, o mesmo ponto se aplica a Jesus).

Mas, já que comecei a escrever, podemos aproveitar para avançar para coisas mais úteis. Além de analisar os relatos (ou falta deles) para pessoas e eventos contemporâeos a Jesus (um século antes e depois de sua morte), vamos comparar o impacto e atestação deixado por esses eventos e pessoas nas fontes literárias, com aquele deixado por Jesus de Nazaré. Uma espécie de "Escala Richter de Impacto Histórico". Veremos que o mais surpreendente não foi Jesus ter sido mencionado por apenas quatro ou cinco escritores mas o fato dele ter sido citado, e por tantos autores não cristãos. Mas, antes, abordaremos algumas questões preliminares, como o (quase) consenso da comunidade acadêmica favorável a historicidade de Jesus, sobre as menções a Jesus nos autores não-cristãos (mostrando, por exemplo, que a posição dominante entre os estudiosos é que Josefo se referiu a Jesus), e o porque da maioria dos escritos da Antiguidade não terem chegado até nós.

1ª Preliminar: Como os estudiosos analisam a historicidade de Jesus

Jesus de Nazaré é objeto de devoção e fé de centenas milhões de seguidores no mundo inteiro.

a) Os historiadores e Jesus

Não obstante, muitos fazem de sua vida o seu ganha-pão. Milhares de historiadores, arqueólogos, estudiosos bíblicos e especialistas em judaísmo antigo, buscam nos textos bíblicos e extra-bíblicos, nos escritos dos primeiros cristãos, na análise do contexto social, político e econômico da Judéia e do Império Romano no século I, e se propõem a chamada "busca" pelo Jesus Histórico.

Alguns desses estudiosos são cristãos, liberais ou conservadores, outros são judeus, outros ateus, outros místicos, "espirituais mas não religiosos". Suas interpretações como a visão mais próvavel do curso do Ministério de Jesus e início do cristianismo variam bastante. Mas, existem algum as certezas compartilhadas por todos, ou quase todos, entre elas é que a muito poucos motivos para duvidar da existência histórica de Jesus:

Professor judeu Geza Vermes, Professor de Judaismo Antigo na Universidade de Oxford, com cerca de 60 anos de dedicação a pesquisa do judaismo do 2° Templo, Jesus Histórico e Cristianismo primitivo afirma:
"Na verdade, com excessão de um punhado de céticos inveterados, a maioria dos estudiosos de hoje parte para o extremo oposto e considera existência de Jesus tão garantida que não se dá ao trabalho de questionar o significado de historicidade" [6].

Também o Professor da Universidade Hebraica David Flusser (1917-2000), que foi membro da Acadêmia de Ciências de Israel por sua contribuição no campo da História Clássica e Judaísmo Antigo, em cinquenta anos de trabalho, escreve:
"Realmente, possuimos registros mais completos sobre a vida dos imperadores seus contemporâneos e de alguns poetas romanos. Entretanto a excessão do historiador judeu Flávio Josefo, e possivelmente de São Paulo, Jesus é o judeu, de épocas posteriores ao Antigo Testamento, sobre quem nós mais sabemos" [7]

John Dominic Crossan, Professor da DePaul University, e uma das principais figuras a frente do Jesus Seminar, fez as seguintes observações, em um Seminário On-line na lista acadêmica de discussão "Crosstalk", quando perguntado em relação a tese da não existência de Jesus, faz a comparação (muito exagerada, ao nosso ver) entre essa tese com aqueles que negam que os americanos pousam na lua:
"(...) Eu não estou certo, como já havia dito antes, que alguém possa persuadir outras pessoas que Jesus nunca existiu se não for capaz de explicar todo o fenômeno de Jesus histórico e cristianismo primitivo, seja como um trapaça ou uma parábola santa. Eu tinha um amigo na Irlanda, que não acreditava que os americanos pousaram na lua, mas que tinham criado a coisa inteira para reforçar sua imagem de guerra fria contra os comunistas. Eu não consigo argumentar com ele. Portanto, não estou de todo certo que eu possa provar que o Jesus histórico existiu contra esse tipo de hipótese e, provavelmente, para ser honesto, não estaria mesmo interessado em tentar. No entanto, tomei a hipótese não como uma conclusão pré-estabelecida , mas como uma simples questão que estava por trás das primeiras páginas de BofC [Birth of Christianity] quando eu mencionei Josefo e Tácito. Eu não acredito que tanto um quanto o outro tenham checado os arquivos romanos ou judaicos sobre Jesus. Eu creio que eles expressaram o conhecimento público, comum, sobre aquele estranho grupo chamdo cristãos, e seu não menos estranho fundador chamado Cristo. A existência, não apenas dos textos cristãos mas destas fontes não cristãs é suficiente para me convencer que estamos lidando com um indíviduo que existiu na história. Além disso, a despeito das inúmeras formas em que os oponentes criticaram o cristianismo, ninguém nunca sugeriu que tudo tinha sido inventado. Isso é suficiente para mim.
e (...) que esta pessoa existiu é uma conclusão histórica para mim, e não um postulado dogmático ou pressuposição teológica. De modo geral, meus argumentos são: (1) a existência é dada em fontes cristãs, pagãs e judaicas; (2) Não é negada até mesmo pelos críticos mais hostis do cristianismo primitivo (Jesus é um bastardo e um tolo mas nunca uma ficção ou um mito!); (3) Até onde eu sei, não há paralelo daquela época e período que me permita compreender uma invenção desse tipo [8].

A grande questão é que independente dos testemunhos não-cristãos, sempre bem-vindos pelos estudiosos, a grande maioria das informações sobre Jesus virá, sempre, do Novo Testamento, e de alguns outros textos considerados antigos, como o evangelho de Tomé e de Pedro. Como observa o Professor Steve Mason, da Universidade York [9], se por um lado não se deve esperar do historiador "tratamento especial" para as narrativas evangélicas, o ceticismo radical que agressivamente recusa, a priori, qualquer informação histórica é equivocado. Segundo Mason, devem ser utilizados os mesmos critérios de análise crítica adotados para reconstruir o passado a partir de narrativas de historiadores antigos como Livio, Josefo e Tacito.

b) Critérios de autenticidade e fontes cristãs primitivas: estabelecendo um esboço da figura de Jesus

De fato, durante quase 200 anos de pesquisa, os acadêmicos criaram critérios para analisar os evangelhos como fontes historicas, e os ditos e feitos atribuídos a Jesus. Para exemplificar, podemos utilizar um desses critérios, como o do embaraçamento, se refere a ditos e feitos atribuidos a Jesus que criariam dificuldade para igreja primitiva, e enfraqueceriam sua posição diante de oponentes, e que dificilmente teriam sido inventados. Um exemplo de fato autenticado por este critério é a crucificação de Jesus sob a acusação de ser o Rei dos Judeus.

O próprio Paulo diz aos Corintíos que a cruz era escândalo para os judeus e loucura para os gregos (I Cor. 1:23). De fato, os evangelhos usam intensamente as escrituras para provar que Jesus era o Cristo, mas esta diz "Se um homem tiver cometido um pecado digno de morte, e for morto, e o tiveres pendurado num madeiro, o seu cadáver não permanecerá toda a noite no madeiro, mas certamente o enterrarás no mesmo dia; porquanto aquele que é pendurado é maldito de Deus. Assim não contaminarás a tua terra, que o Senhor teu Deus te dá em herança.(Dt 21:22-23)". Os oponentes e adversários dos cristãos usavam a crucificação como a maior prova de que Jesus não foi o Messias, como o judeu Trifo, rebatendo o uso de Dan. 7 por Justino Martir "Estas mesmas escrituras, meu caro, nos ordenam esperar aquele que, como Filho do Homem, receberá do Ancião de Dias o Reino Eterno. Mas este que vocês chamam de Cristo não teve honra ou glória, tanto assim que a maldição contida na Lei de Deus caiu sobre ele, porque foi crucificado" (Dialogo com Trifo, Capítulo 32). Também os rabinos, no Talmude, mostram como a crucificação poderia acabar com a "carreira" de pretendente messiânico "Rabi Meir costumava ensinar 'Qual o significado (do verso), "Aquele que for pendurado no madeiro é maldito de Deus" (Dt 21:23)? Havia dois irmaos gêmeos que eram parecidos. Um reinava sobre o mundo todo e outro se tornou um ladrão. Após um tempo, o que era bandido foi pego e então crucificado em um madeiro. Todos que passavam e viam, diziam "parece que o Rei foi crucificado" (bTalmude, Sinédrio 9:7). A cruz era escândalo, porque um Messias digno de seu "cargo" não poderia ser crucificado.

Tanto é que Celso, o fílosofo pagão de sec. II que escreveu contra Cristo e os Cristãos, os acusa de serem culpados de um sofisma ao afirmarem que o "Filho de Deus é o próprio Logos", porque ao dizerem "que o Logos é o Filho de Deus, não apresentam um Logos puro e imaculado, mas um homem dos mais degenerados, pois foi açoitado e crucificado" (Contra Celso, II.31), ridicularinzando-os por transformarem um criminosos em Deus "Se, após inventar defesas que são absurdas, e pelas quais vocês são ridiculamente enganados, ainda que imaginando que vocês realmente fizeram uma boa defesa, porque vocês não consideram aqueles outros individuos que também foram condenados, e sofreram uma morte miserável, como maiores e mais divinos mensageiros dos céus (que Jesus) ? (Contra Celso, II.44)

"O fato de que a cruz era escândalo e loucura, é evidenciado ainda na forma como alguns grupos cristãos chegaram a afirmar que Jesus não foi realmente crucificado. O Professor AKM Adam, da Universidade de Glasgow, observa que Irineu, em seu Tratado "Contra Todas as Heresias" critica os seguidores de seguidores de Cerinto, que acreditavam que Cristo desceu ao mundo e entrou no corpo do homem Jesus em seu batismo, mas o deixou em sua crucificação, de forma que embora Jesus tenha nascido, sofrido e morrido, Cristo permaneceu espiritual e intocado pelo sofrimento. Relata que os discípulos de Simão, o Mago, afirmavam que embora parecesse que Jesus havia padecido na cruz, ele não havia sofrido de fato. Basilides, pregava que Jesus não poderia realmente sofrer ou morrer, mas trocou de lugar com Simão de Cirene, que foi transfigurado para parecer com Jesus e crucificado, enquanto o verdadeiro Jesus via de longe e ria. Marcião e outros ensinavam que Logos/Cristo desceu sobre Jesus em forma de pomba e ascendeu aos céus antes de sofrer na cruz. Cristo apenas parecia ter um corpo físico, e ter sofrido e sido crucificado, mas ele era na verdade incorpóreo, um espírito puro, e assim não poderia sofrer [10]. Os próprios cristãos, percebiam quanto a crucificação era degradante e embaraçosa, tanto que que alguns deles chegaram a afirmar que Cristo, o Messias, não poderia ser realmente submetido a ela, e seu suplício só poderia ter sido aparente, ou ele teria sido substituído por alguém que foi transfigurado para parecer com ele. Isso reforça a percepção que a crucificação de Jesus não foi inventada pelos cristãos, mas um fato traumático que eles buscaram lidar de diferentes formas.

Por fim, a crucificação de Jesus e sob a acusação de ser o Rei dos Judeus era muito perigosa para os primeiros cristãos dado seu status legal precário no Império Romano. Os evangelhos foram escritos, provavelmente, entre a 1ª Guerra Judaica (66-73 DC) e 2ª Guerra Judaica (132-135 DC). No primeiro século DC e início do secundo, houveram inúmeras revoltas, provocadas por auto-proclamados "Reis dos Judeus" e "Messias", que causaram a morte de (dezenas de) milhares de pessoas, dentre os quais milhares de bons soldados e cidadãos de Roma. No mesmo período, a igreja era perseguida e o cristianismo era uma seita ilegal, sendo que alguns oficiais e magistrados suspeitavam que o grupo era formado por agitadores, desleias a Cesar e a Roma. De fato, Aristides, Quadrato, Justino Martir, Melito, Apolinario, e outros, escreveram ao Imperador da época buscando incessantemente provar que os cristãos eram leais, pacíficos e produtivos e perfeitos súditos do Império. Porque, nessas circunstâncias, os cristãos inventariam que seu líder tinha sido um Messias Crucificado, executado como um criminoso político, por magistrados romanos, sob a acusação de Alta Traição? Certamente porque Jesus foi realmente crucificado, por ter sido acusado (justa ou injustamente) de se auto-proclamar "Rei dos Judeus", e essas coisas eram fatos bem conhecidos (e problemáticos) que os cristãos tinham que explicar.

Os critérios como embaraçamento, dissimilaridade, múltipla atestação e outros apresentam limitações, mas permitem, no caso de Jesus, estabelecer, no mínimo, um esboço de sua figura. E o que observa o Prof. Alan Segal, da Universidade de Colúmbia:
"Desde o Iluminismo, as histórias do Evangelho sobre a vida de Jesus tem sido postas em dúvida. Intelectuais, naquele tempo e agora, perguntam: "O que torna as histórias do Novo Testamento historicamente mais prováveis do que fábulas de Esopo ou contos de Grimm?" Os críticos podem ser respondidos de forma satisfatória, mas os argumentos que eles apresentam são corrosivos à fé ingênua"[11]

Segal observa que muitos estudiosos são céticos quando as narrativas de infância de Jesus, considerando como lendários os relatos dos anjos aparecendo aos pastores, a matança dos inocentes, a estrela de Belém e os magos do oriente. Pondera a falta de registros históricos escritos durante a vida de Jesus. No entanto, ele afirma, isso não invibiabiliza a pesquisa histórica sobre a vida de Jesus, pois entre os critérios estabelecidos pelos historiadores, o do embaraçamento estabelece um padrão muito rigoroso que, se por um lado, é tão severo que vai lançar fora até mesmo ditos e feitos de Jesus autênticos, por outro, justamente por seu rigor, dá aos estudiosos fatos indisputáveis que permite verificar que as narrativas são, pelo menos em parte, históricas. Segal então continua:
"Pelo grande rigor com que foi definido, o critério [do embaraçamento] demonstra que Jesus existiu. Aqui estão alguns fatos nos evangelhos que a igreja foram embaraçosos para a Igreja Primitiva: Jesus foi batizado por João (um grande problema teológico). Ele pregou o fim do mundo (que não veio). Ele se opôs ao Templo de alguma forma (e esta oposição o levou diretamente para a morte). Ele foi crucificado (uma maneira desonrosa de morrer). A inscrição na cruz "Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus" (a Igreja nunca pregou este título para Jesus e logo perdeu o interesse em converter judeus). Ninguém, de fato, viu quando ele ressuscitou (embora, evidentemente, seus discípulos, quase que imediatamente perceberam que ele estava vivo). Ironicamente, é a natureza embaraçosa desses fatos que nos garante que são autenticos (...).O critério de dissimilaridade nos coloca em uma posição melhor no que diz respeito à vida de Jesus no que estamos no que se refere aos grandes acontecimentos da história israelita [11].

O Prof. James McGrath, da Butler University, disponibilizou em seu site, uma compilação de listas dos Prof. Norman Perrin, E.P Sanders, e N.T Wright, que apresentam ditos e feitos de Jesus que são considerados como (quase) indisputavelmente autênticos.

c) Avaliação dos evangelhos como relatos históricos, data de autoria e genero literário.

Segundo a posição amplamente dominante entre os historiadores do cristianismo primitivo os quatro evangelhos foram compostos pelas 2ª e 3ª geração de cristãos, entre 70 e 110 DC, havendo possibilidade de variação de 15 ou 20, para mais ou para menos, para um ou outro evangelho individual [12]. É uma distância comparavel, em nossa perspectiva, a acontecimentos como a ida do homem a lua (1968) e Copa do Mundo de 1970, de um lado, e a crise de 1929 ou a subida de GetúlioVargas ao poder (1930) de outro. Ou seja, é bem provável que pelo menos Marcos (65-80 DC) ou Mateus (80-100 DC), tenham sido finalizados em uma época que testemunhas oculares de Jesus ainda estivessem vivas. Lembrando sempre que essa é a data de composição final, uma vez que os estudiosos identificam fontes escritas mais antigas, como Q (fonte de ditos), como servindo como base a composição evangélica.

Ainda, do ponto de vista do gênero literário, muitos, se não a maioria dos estudiosos atualmente aceitam a tese proposta pelo Prof. Charles Talbert, (Baylor University) e desenvolvida pelo Prof. Richard Burridge (Kings College), - de que cada um dos quatro evangelhos podem ser classificados na categoria das biografias greco-romanas (bioi ou vitae, que apresentam características bem distintas das atuais biografias), como Vidas Paralelas de Plutarco e Agrícola de Tácito -, a partir da analise das caracteristicas mais importantes desse tipo de trabalho (apresentação, assunto, características internas e externas, além de próposito e recepção pelos leitores), no periodo entre 500 AC a 300 DC [13]. Conforme Burridge, existiria, por convenção um contrato informal entre as partes, que "define uma série de expectativas no leitor a respeito das intenções do autor, ajudando na construção do significado do texto, bem como na reconstrução do significado original do autor, assim como na interpretação e avalaição da comunicação contida na obra literária".

A definição de genero é importante, pois, certamente, usando um exemplo atual, nossas expectativas e nossa forma de compreender uma narrativa são diferenciadas, digamos, diante de uma descrição de um assassinato numa página policial de um jornal ou o notíciário na TV, em comparação a de um livro de Agatha Christie ou numa série de ficção como CSI Miami. Ao situarmos os evangelhos na mesma categoria de escritos como as biografias de Alexandre, O Grande e Julio César, a implicação é que Marcos, Mateus, Lucas e João buscaram relatar os ditos, feitos e a significância de Jesus, e, como era extremamente comum entre as bioi, tinham a intenção de que suas obras tivessem finalidade didática em relação as crenças dos cristãos e seu fundador. Obviamente, o reconhecimento em um certo gênero literário diz mais sobre a intenção presumida do autor do que o resultado final de sua obra. O fato de serem bioi ou vitae não "prova" que a "Bíblia tinha Razão" ou estabelece o nível de confiabilidade historica dos evangelhos - ponto diverso que deve ser analisado separadamente - pois também para Cesar, Alexandre e Augusto existiram bons e maus biografos - apenas indica ao estudioso a intenção pela qual foram escritos e forma como foram originalmente lidos.

Outros, como Geza Vermes [14], acreditam que os evangelistas, embora não fossem historiadores profissionais atuaram como narradores populares da história de Jesus de Nazaré. Em ambos os casos, seja como for, os evangelistas teria buscado narrar a vida, idéias, atividades, magistério e morte de Jesus, e usaram estes acontecimentos para compartilhar sua Fé na sua ressureição e de que ele era o Cristo, conforme as escrituras. Observe-se que, mesmo aqueles estudiosos que não concordam com a classificação dos evangelhos como escritos históricos ou bioi, stricto-sensu, como John Dominic Crossan, acreditam que é possivel utiliza-los como fontes históricas, obtendo informações sobre Jesus e os primeiros cristãos [15].

d) Resultados. Como os estudiosos avaliam os evangelhos

Os resultados variam muito, havendo aqueles como F.F Bruce e Craig Bloomberg que defendem a aceitação da tradição evangélica como confíavel até aqueles como Burton Mack que defende uma visão muito mais cética, considerando que cerca de 10 % do que é atribuido a Jesus nos evangelhos teria sido provavelmente dito ou realizado por ele [16]. Seja como for - uma vez que, segundo John D. Crossan, são atribuidos pouco mais de 500 ditos e feitos de Jesus nos evangelhos e outras fontes cristãs escritas até cerca de 100 anos após a morte de Jesus [17] - mesmo nessa visão bem minimalista teriamos por volta de 50 feitos e ditos de Jesus considerados como provavelmente autênticos, mesmo utilizando os critérios históricos de forma extremamente rigorosa. Considerando que, temos apenas quatro ditos associados a uma figura da importância de Hanina Ben-Dosa [18], por exemplo, mesmo antes de qualquer análise crítica, não é díficil entender porque o Professor Flusser nos diz que sabemos mais sobre Jesus do que quase todos seus outros contemporâneos. Alías se considerarmos que existem dezenas de evangelhos e outros textos cristãos, além do NT, tais como os de Nag Hammadi, ai que percebemos que o problema não é a falta de fontes, mas justamente seu excesso.

É que nos diz, em outras palavras, Michael Grant (1914-2004), Professor de História Antiga da Universidade de Edinburgo, ateu, e uma das mais respeitadas figuras em história romana:
"Se nos aplicarmos ao Novo Testamento, como nós devemos, a mesma sorte de critérios que nós devemos utilizar para outros escritos da antiguidade contendo material histórico, nós não podemos mais rejeitar a existência de Jesus sem o fazer o mesmo com um grande número de personagens pagãos cuja realidade de sua figuras históricas nunca é questionada. Certamente, existem todas aquelas discrepancias entre um evangelho e outro. Mas nós não negamos que um evento aconteceu apenas porque alguns historiadores pagãos como, por exemplo, Livio e Polibio, o descreveram de maneiras diferentes. Que houve um rápido crescimento de lendas em volta de Jesus não pode ser negado, e isso aconteceu muito rápido. No entanto, também houve um rápido desenvolvimento de lendas em torno de figuras pagãs como Alexandre o Grande, ainda que ninguém o considere completamente mítico ou fictício. No fim das contas, os métodos críticos modernos não dão suporte a teoria do Cristo Mítico. E, de novo, mais uma vez, ela foi "refutada e rejeitada pelos estudiosos de primeira linha". Nos anos recentes "nenhum estudioso sério ousou levantar a tese da não historicidade de Jesus", ou muito pouco o fizeram, e mesmo assim não conseguiram ser bem-sucedidos frente a forte e abundante evidência contrária" [19]

Por fim, observamos que tanto Vermes quanto Grant observam que existe um "punhado" ou uns "poucos" estudiosos que questionaram a historicidade de Jesus. Na atualidade, podemos citar, por exemplo, o Prof. Robert Price e o Dr. Richard Carrier, entre outros. Estes estudiosos acreditam que existem evidências que sugerem que Jesus possivelmente não teria existido, e uma das suas principais reclamações é justamente que o consenso histórico é tão forte, que suas teses não são consideradas com a seriedade devida, não sendo possível a eles sequer começar o debate acadêmico. Seja como for, não há problema em se questionar a existência de Jesus, ou seu significado, que é uma questão histórica como outra qualquer. O problema, como em casos como o do filme citado, é não informar aos leitor, principalmente os leigos no assunto, a situação atual do campo, dando a entender que justamente a situação contrária é a que ocorre.

CONTINUA
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Referências Bibliograficas:
[1] Peter Joseph, "Zeitgeist, O Filme", transcrição parte 1, acessado em 30.12.2009[2] Jona Lendering: "Pontius Pilate"http://www.livius.org/pi-pm/pilate/pilate01.htm., acessado em 28.12.2009[3] ver John J. Butt, Greenwood Dictionary of World History (2006), "Pliny the Younger", fl. 266; Ronald Mellor (1999), Roman Historians, fl. 89. Este exemplo foi utilizado anteriormente por Gakusei Don, na analise do documentário "God who Wasn't there"[4] Statius, Silvae 4.4; Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas 20:7.2; Suetônio, A Vida dos Doze Césares, Tito 8:3-4.[5] Herbert W. Benario (2000), Trajan In: De Imperatoribus Romanis:An Online Encyclopedia of Roman Rulers and their Families (http://www.roman-emperors.org/) , acessado 28.12.2009[6] Geza Vermes (2005), Quem e Quem na Época de Jesus, fl. 23, Ed. Record, 1ª Edição[7] David Flusser (1998), Jesus, fl .01, Ed. Perspectiva[8] John D. Crossan (2000), Seminar on Materials & Methods in Historical Jesus Research, Seminário On-line realizado de 11 de fevereiro a 4 de março de 2000, ver mensagens 146 e 159, e também 167, de 28/02, 01/03 e 02/03/2000, respectivamente (acessado em 04.01.2010)[9] Steve Mason, Where Jesus Was Born? O Little Town of…Nazareth?, Bible Review, Fevereiro de 2000.[10] A.K.M. Adam, Docetism, The Ecole Initiative, http://ecole.evansville.edu/articles/docetism.html, as passagens citadas de Contra as Heresias, de Irineu de Lyon, são os Livros I capítulos 23, verso 2, e 26, verso 4; II; e Livro II 24.4, acessado 04.01.2010.
[11] Alan F. Seagal (2005), Jesus and the Gospels-What Really Happened - [1]: Believe only the Embarrassing, Slate, 21.12.2005 http://www.slate.com/id/2132974/entry/2132989/, acessado em 04.01.2010.
[12] ver Geza Vermes (2005), A Paixão, fl. 15, Editora Record, 1ª edição; John D. Crossan, Jesus, Uma Biografia Revolucionária, fl. 14, Ed. Imago, 1ª Edição; Gerd Thiessen, O Novo Testamento, fls. 71-92 e fls. 111-122; 1ª Edição.[13] Burridge, Richard (2004): What Are the Gospels, A Comparison with Graeco-Roman Biography, 2ª edição;ver também o review por James Morrison (Bryan Mawr Classical Review 2005.05.31) e Mitchell G. Reddish (Mitchell Reddish, review of Richard A. Burridge, What Are the Gospels?: A Comparison with Greco-Roman Biography, Review of Biblical Literature). Quanto a avaliação da tese, o Professor Bart Erhmann afirma que, recentemente "tem sido aceita por muitos estudiosos" (Bart Ehrman, The New Testament: A Historical Introduction to the Early Christian Writings. 3ª edição, fl. 64-65, 2004). O próprio Burridge afirma ter ficado surpreso com a aceitação de sua tese, parecendo-lhe que a maioria dos estudiosos já classificava os evangelhos entre as bioi ou vitae no final da década de 1990 (What Are the Gospels.... fl. 253). Andrew T. Lincoln fala em consenso na comunidade acadêmica em torno da tese de Burridge (A.T. Lincoln, 'Reading John, The Forth Gospel under Modern and Post-Modern Interrogation In Stanley Porter (ed.) : Reading the Gospels Today), percepção compartilhada pelo Prof. Mitchell Reddish no review já citado.[14] Geza Vermes (2001), As Várias Faces de Jesus, fl.177[15] John Dominic Crossan (2004); Texto e Contexto na Metodologia dos Estudos do Jesus Histórico In Chevitarese, Corneli & Selvatici; Jesus de Nazaré, Uma outra História, fls. 169-170.[16] Burton L Mack (1993), The Lost Gospel: The Book of Q and Christians Origins, especialmente fls. 71-105 e fls. 260-263; ver também o sumário extremamente útil de Cris Zeichmann, "Q and The Historical Jesus, Pt. 2" http://neonostalgia.com/weblog/?p=551[17] John Dominic Crossan (1999) Birth Of the Christianity, fls. 587-596. Disponível online em http://www.jesusdatabase.org/index.php?title=Crossan_Inventory, acessado em 30.12.2009[18] Geza Vermes (2001), As Várias Faces de Jesus, fl.[19] Michael Grant (1979), Jesus: An Historian's Review of the Gospels, pagina 200.



segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O réu: Jesus de Nazaré

O julgamento de Jesus

As 12 horas que separam a prisão da morte de Jesus guardam uma série de mistérios. Por que ele foi detido? Do que foi acusado? Como o condenaram? Quem o matou?

O prisioneiro caminha lentamente para a execução. Seu sangue escorre pelas feridas em carne viva. O fim está próximo. Em poucas horas o homem que irá mudar a história da humanidade morrerá pendurado em uma cruz. Está para começar uma das maiores polêmicas de todos os tempos. Quase 2 mil anos após a morte de Jesus de Nazaré, os detalhes sobre o julgamento que o levou à crucificação ainda são capazes de provocar debates explosivos.

Primeiro, porque os únicos relatos daqueles momentos são os textos religiosos contidos na Bíblia. “Não bastasse isso, os quatro evangelhos (os livros que contam a vida de Jesus atribuídos a Mateus, Marcos, Lucas e João) divergem entre si em diversos pontos da narrativa. Não se conhece a seqüência dos fatos e de como ocorreram, o que contribui para que sejam suscitadas tantas polêmicas”, diz o historiador André Chevitarese, professor de história antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Segundo, porque os evangelhos impingem grande parte da responsabilidade pela prisão e condenação de Jesus aos sacerdotes judeus que o julgaram em primeira instância, livrando o romano Pôncio Pilatos, a autoridade máxima na Palestina na época, de qualquer vestígio de culpa. O cristianismo moderno rebate essa versão e nega que os judeus da época de Jesus tenham sido os únicos culpados. Já os historiadores discutem se os fatos narrados na Bíblia têm base nas leis judaicas e romanas antigas, à procura de esclarecer a verdade. “Mas os cristãos fundamentalistas ainda interpretam os evangelhos de forma anti-semita”, diz o padre e teólogo Antônio Manzatto, da Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo. “É o que faz Mel Gibson em seu filme A Paixão de Cristo.”

As polêmicas provocadas pelo filme, que está batendo recordes de bilheteria nos Estados Unidos e estreou no Brasil sob ameaças de proibição, têm o mérito de levar ao público questões normalmente restritas aos meios acadêmicos. Afinal, quem matou Jesus? Como se deu o processo que levou à sua condenação? Qual foi a responsabilidade do povo judeu, das pessoas comuns? Para responder a essas perguntas, primeiro é preciso entender o contexto histórico em que esses fatos extraordinários teriam ocorrido.

O réu: Jesus de Nazaré

Atualmente, estuda-se cada vez mais sobre Jesus. Contudo o que a história sabe sobre ele não avançou muito nos últimos 2 mil anos. Além da Bíblia, são raríssimas as referências a Jesus. Há os chamados Evangelhos de Nag Hammadi, encontrados no Egito em 1945. São mais de 60 textos escritos em copta (idioma falado no Egito bizantino) e que faziam parte de uma coleção de textos cristãos do século 4. Esses livros revelam um Jesus místico, milagreiro, mas muito pouco somaram ao personagem histórico.

Já os chamados Manuscritos do Mar Morto, escritos em aramaico (a língua falada na Palestina na época de Jesus), entre 152 a.C. e 68, pelos essênios (uma seita judaica contemporânea de Jesus), tinham um ótimo potencial para renovar o conhecimento histórico sobre Jesus. Encontrados em 1947, em Qumram, Israel, só foram completamente decifrados em 2002 e não citam Jesus nenhuma vez.

A historiografia grega e judaica tão pródiga em personagens da Antiguidade também ignora Jesus. Restam-nos os textos romanos, escritos todos depois da morte de Jesus. Entre eles, os de Flávio Josefo, autor de Antiguidades Judaicas. Porém uma dúvida paira sobre o trecho em que cita Jesus. Josefo afirma que Jesus “fazia milagres e que “apareceu três dias depois da sua morte, de novo vivo”. Para Angelo Chaniotis, do Centro de Estudos de Documentos Antigos da Universidade de Oxford, é discutível que esse trecho seja realmente de Josefo. “Um judeu que se tornou cidadão romano não acreditaria que Jesus era o Messias.” Para ele, o trecho deve ter sido adicionado pelos monges cristãos que tiveram acesso ao texto a fim de copiá-lo, entre os séculos 6 e 11.

Se são raras as vozes da história sobre a vida de Jesus, o silêncio é ainda maior quando se procuram vestígios arqueológicos. Em 2002, anunciou-se o que seria a redenção dos que acreditam nos evangelhos: uma urna funerária com o nome de Jesus escrito. Meses depois provou-se que era uma falsificação. Até hoje não se descobriu nenhum traço arqueológico diretamente associado a Jesus.

No entanto, a arqueologia tem tido sucesso em fornecer subsídios para reconstruirmos o momento histórico no qual teria vivido Jesus. Um exemplo é o trabalho nas imediações de Nazaré. Escavações encontraram grande número de construções romanas do século 1. O fato jogou nova luz sobre a profissão Jesus. A palavra usada na Bíblia para designar o que Jesus fazia é tekton, que tanto pode significar carpinteiro como biscateiro. “As novas descobertas mostram que a Galiléia, e em particular a região de Nazaré, era um verdadeiro canteiro de obras na época de Jesus. Praticamente todos os homens adultos estavam envolvidos com alguma atividade ligada à construção civil”, diz Gabriele Cornelli, professor de teologia e filosofia da Universidade Metodista de São Paulo. Mas como esse camponês que ajudava a erguer paredes para os romanos acabou condenado e morto alguns anos depois?

A Acusação: Blasfêmia

A Galiléia da época de Jesus vivia um período de extrema pobreza. “A região, ao norte da Judéia, sempre havia sido pobre. Mas não miserável, como durante a dominação romana”, escreveu John Dominic Crossan, professor da DePaul University, de Chicago, Estados Unidos e autor de O Jesus Histórico, a Vida de um Camponês no Mediterrâneo. Segundo ele, os camponeses tinham de pagar impostos ao Império Romano, que havia tomado Jerusalém em 63 a.C., aos sacerdotes do Templo em Jerusalém, e ao rei Herodes Antipas. Isso deveria consumir pelo menos dois terços de toda a produção, segundo os cálculos de Crossan. Como resultado de tripla tributação, a população empobrecia e perdia a esperança em tempos melhores.

Também havia uma crescente desconfiança em relação aos sacerdotes do templo. “Em várias passagens dos evangelhos, Jesus critica duramente os sacerdotes por desprezarem os pobres e darem importância excessiva ao ouro”, diz o teólogo Fernando Altemeyer, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Esse descontentamento geral explodiria na guerra dos judeus contra Roma, que durou do ano 66 ao 70. Uma das primeiras ações dos rebeldes foi invadir o templo e rasgar todas as listas de devedores, os maus pagadores de impostos, que ficavam guardadas no local. Roma acabaria vencendo, e o templo foi destruído. “Mas o fato mostra que a revolta contra a cobrança de impostos e a política da elite sacerdotal era imensa”, diz André Chevitarese.

Era o cenário propício para que líderes como Jesus fossem ouvidos. A visão mais aceita hoje em dia é que Jesus, que vinha da parte mais afastada do Império Romano, era mais um entre tantos pregadores. Essa interpretação é sustentada por estudiosos como o padre católico John P. Meier, autor de Um Judeu Marginal, Repensando o Jesus Histórico, e professor da Universidade Católica da América, em Washington, Estados Unidos. “É um fato que na época de Jesus devia haver pelo menos outras cinco ou seis pessoas que se diziam o Messias”, afirma Antônio Manzatto.

O poder local, formado por uma aliança entre a elite judaica e os romanos, via esse movimento de líderes messiânicos com desconfiança. “O discurso era revolucionário, o que poderia abalar as estruturas do poder”, diz André. O de Jesus era seguramente bombástico. Ele pregava a igualdade, o respeito aos pobres, o amor.

Mas se Jesus era apenas um dentre tantos pregadores messiânicos, tudo mudou quando ele chegou a Jerusalém, pouco antes da Páscoa judaica, por volta do ano 30. Naquela época, Jerusalém triplicava de tamanho. Apesar de não ser a capital romana do território ocupado (os romanos preferiam governar de Haifa, de frente para o mar Mediterrãneo), lá ficava o Sinédrio, instituição judaica que funcionava como tribunal e poder legislativo, além do palácio de Pôncio Pilatos, a casa de Herodes Antipas, o rei e, é claro, o Templo Sagrado.

Segundo os evangelhos, Jesus já era conhecido na Galiléia por suas pregações, seus milagres e pela cura de enfermos quando chegou a Jerusalém. De acordo com as leis e tradições judaicas, isso bastava para ser considerado um blasfemo. A cura, na época, era um monopólio divino. No entanto, sua chegada a Jerusalém foi ainda mais recheada de provocações à ordem. Ao entrar na cidade a uma semana da Páscoa, sentado em um jumento, ele comparou-se ao Messias, invocando deliberadamente a profecia do livro de Zacarias sobre a sua chegada (“Aí vem o teu rei, justo e salvador, montado num burrinho”). A ofensa final, no entanto, foi invadir o templo e expulsar fariseus e saduceus. Se isso tiver ocorrido como dizem os evangelhos, ele acabava de comprar uma briga e tanto.

Os juízes: Judeus ou Romanos?

Segundo a Bíblia, Jesus estava reunido com seus seguidores no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, quando foi preso, à noite, depois de ser traído por Judas. Jesus teria sido detido pelos guardas do templo, por ordem do Sinédrio – o conselho formado pela elite judaica que controlava o santuário. Mas há controvérsias. Segundo o próprio evangelho de Mateus, a população da cidade estranhou uma patrulha àquela hora na rua. De fato, isso seria pouco comum. “Para operar além das paredes do templo, os guardas devem ter contado com o apoio de soldados romanos”, diz a historiadora Norma Musgo Mendes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Os evangelistas discordam quando relatam os fatos após a prisão de Jesus. Em comum, eles trazem a versão de que os sacerdotes do templo decidem não condená-lo à pena capital. Se fosse sentenciado à morte pelo Sinédrio, provavelmente seria apedrejado. O prisioneiro é então enviado para a autoridade suprema local, o procurador romano na Palestina, Pôncio Pilatos, a quem cabia julgar questões de interesse do Império.

Aqui, começa outra grande polêmica sobre a narração bíblica. Não haveria nenhuma razão para Jesus não ser condenado sumariamente por Pilatos, mas os evangelhos, única fonte escrita do processo, contam que o governador teria hesitado em sentenciar Jesus e tentado libertá-lo pelo menos duas vezes. Numa, após interrogar Jesus e, tendo-o considerado inocente, resolveu soltá-lo, mas voltou atrás quando foi vaiado pelo povo que acompanhava o julgamento. Em outra, teria pedido que o povo escolhesse entre Jesus e Barrabás, um criminoso conhecido, para que ele soltasse um deles, em um perdão especial devido à Páscoa. O povo teria escolhido Barrabás para ser salvo. No fim, Pilatos teria lavado as mãos, para simbolizar sua inocência em relação ao veredicto. Segundo um dos evangelhos, o de Lucas, o governador ainda teria mandado Jesus para o rei Herodes, mas esse não aceitou julgá-lo e o enviou de volta.

Para alguns historiadores, todo o julgamento é inverossímil, distante das práticas das autoridades romanas na Palestina. “Jesus não era uma pessoa importante na época, era mais um pregador que vinha da distante Galiléia. O mais provável é que ele nem sequer tenha sido julgado, mas, em vez disso, condenado sumariamente à morte”, afirma Gabriele Cornelli. Segundo ele, a passagem do julgamento no Novo Testamento foi escrita com o propósito de orientar os primeiros cristãos a como se portar diante dos sacerdotes e dos romanos.

André Chevitarese concorda. “Os evangelhos devem ser lidos não como uma reportagem, mas como um programa teológico com fundo histórico”, diz. Ele defende que os autores dos evangelhos, que foram escritos entre 40 e 80 anos após a morte de Jesus (e, portanto, depois que os romanos destruíram Jerusalém), utilizaram a narração do julgamento de Jesus para reforçar a cisão entre cristãos e judeus. “Isso era fundamental para afirmar os preceitos da nova religião, e, ao mesmo tempo, não cutucar o Império Romano, com o qual o cristianismo teria de conviver”, afirma André.

Essa análise dos relatos explicaria porque Pilatos é retratado de modo tão brando nos quatro evangelhos. “Até a mulher dele, Cláudia, tenta influenciar o julgamento, a favor de Jesus. Tudo para construir a imagem de um Pilatos bonzinho e não o típico governante romano que estava lá para fazer valer a lei e a ordem”, diz André. No entanto, Filão, o Judeu, historiador que viveu entre 20 a.C e o ano 50 menciona a crueldade de Pilatos e seu autoritarismo em centenas de casos de julgamentos de rebeldes e escravos (aliás, Filão também não se refere a Jesus).

O teólogo Paul Winter, autor de Sobre o Processo de Jesus, aponta outras passagens conflitantes. Para ele, a cena em que o povo escolhe Jesus para morrer no lugar de Barrabás não faz sentido do ponto de vista histórico. Primeiro, havia quatro prisioneiros para serem julgados, incluindo os dois ladrões que morreram na cruz ao lado de Jesus. Nesse caso, de acordo com Winter, não faria sentido o povo escolher um entre dois prisioneiros, e não entre quatro. Em segundo lugar, o hábito de se libertar um preso na Páscoa era raro, e não um fato comum como fazem crer os textos bíblicos.

O veredicto: Cupaldo de Sedição

Outro dedo a apontar para Pilatos e os romanos, quando se procura um culpado pela morte de Jesus, é o debate sobre por qual crime, afinal, ele foi condenado. Vimos que, segundo os evangelhos, os judeus do templo de Jerusalém o acusaram de blasfêmia, mas o historiador Geza Vermes, da Universidade de Oxford, Inglaterra, duvida disso. “Casos de pessoas que se autoproclamavam messias eram comuns naquela época e não espantavam mais ninguém”, afirma. “Jesus foi levado à morte por crime de sedição, de rebeldia política contra os interesses romanos. Só isso justificaria o fato de ter sido julgado por Pilatos e condenado à crucificação.”
Para a historiadora Norma Mendes, é possível que tenha havido uma aliança entre os sacerdotes judeus e os romanos para que Jesus fosse condenado à morte. Aí faria sentido que o Sinédrio o acusasse de blasfêmia e o apresentasse a Pilatos como agitador político, para que fosse morto sem a participação direta da elite judaica.

A pena: Crucificação

“Uma vez que Jesus foi condenado por Pilatos, como aparece na Bíblia, a pena podia ser uma só: crucificação, precedida de açoitamento”, diz o historiador e arqueólogo Pedro Paulo Funari, da Universidade Estadual de Campinas, no interior de São Paulo. Essa era uma pena bastante comum nos territórios ocupados pelos romanos. No ano que Jesus nasceu, por exemplo, mais de 2 mil condenados foram mortos dessa forma. A crucificação era considerada a mais degradante e brutal pena capital. Primeiro, o condenado era violentamente espancado, chicoteado e flagelado. Depois disso, uma pesada tora de madeira era colocada sobre suas costas e seus braços presos às extremidades. Assim ele carregava sua cruz até o local onde seria erguida. O condenado podia ter o calcanhar preso com pregos à madeira, ou as mãos, se não fossem amarradas com cordas.
O teólogo Antônio Manzatto acredita que o sofrimento de Jesus descrito na Bíblia seja fiel ao que realmente ocorria em casos de crucificação. Para ele, não haveria interesse dos evengelistas de exagerar na narrativa dos sofrimentos de Jesus. “O mais importante naquele momento era ressaltar a mensagem do fundador da nova religião. Jesus deve ter sofrido como todos que eram crucificados. Nem mais, nem menos”, afirma.

Segundo Pedro Paulo Funari, a morte na cruz advinha da sede e da asfixia causada pela posição em que o corpo ficava pendurado. O suplício poderia levar dias. No caso de Jesus que, segundo os evangelhos, morreu em poucas horas, isso poderia ser explicado pela perda excessiva de sangue, já que ele teve as mãos pregadas à cruz. Guardas romanos tomavam conta o tempo todo do lugar, não permitindo que dessem água ao condenado ou o tirassem da cruz. A agonia era assistida por familiares e a população em geral.

A falta de sepulturas para os milhares de crucificados daquela época levou os historiadores e arqueólogos a uma conclusão surpreendente: os corpos crucificados não eram retirados da cruz, mas deixados expostos aos elementos até serem devorados pelos abutres e cães. “É a única explicação plausível. O que teria sido feito dos restos mortais dos condenados crucificados que jamais foram encontrados?”, diz o historiador Gabriele Cornelli. Segundo ele, fazia parte da pena a humilhação pública, mesmo depois da morte.

No caso dos familiares de Jesus, é possível que tenham obtido autorização para levar seu corpo. “Os romanos concediam essas autorizações às vezes”, afirma Norma Mendes. Três dias depois que Maria recolheu os restos mortais de seu filho, tem início o maior relato de fé até então conhecido, a ressureição. Está para nascer não só o Cristo (o ungido, em grego), mas uma religião que abraçaria todo o mundo ocidental a ponto de hoje, dois milênios após os fatos analisados nesta reportagem, o cristianismo ser o credo de mais de 2 bilhões de pessoas e influenciar o modo de pensar e agir de grande parte da humanidade. “Direitos humanos, amor ao próximo, perdão, são todos preceitos morais que regem a vida da maioria das pessoas, sejam elas cristãs ou não”, diz o teólogo Antônio Manzatto. “Faz todo o sentido que sua vida seja objeto de tantos estudos e polêmicas.”
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Saiba mais
Livros
Bíblia de Jerusalém, Editora Paulus, 2002, Reúne os quatro evangelhos que relatam a Paixão de Cristo
O Jesus Histórico, a Vida de um Camponês no Mediterrâneo, John Dominic Crossan, Imago, 1994, Um dos maiores estudiosos do tema, Crossan elabora um retrato de Jesus por meio de análises históricas, antropológicas e literárias
Um Judeu Marginal, Repensando o Jesus Histórico, John P. Meier, Imago, 1992, Outra grande obra de referência, que analisa Jesus no contexto de seu tempo
Sobre o Processo de Jesus, Paul Winter, Imago, 1998, O autor discute o passo-a-passo do julgamento de Jesus à luz da história.