terça-feira, 20 de setembro de 2011

O SAGRADO


EM BUSCA DA TRANSCENDÊNCIA

O QUE É RELIGIÃO? QUAL A DIFERENÇA DE SEITA?

MITOLOGIA É RELIGIÃO? O QUE É HERESIA?

RELIGIÃO deriva do termo latino "Re-Ligare", que significa "religação" com o divino. Essa definição engloba necessariamente qualquer forma de aspecto místico e religioso, abrangendo seitas, mitologias e quaisquer outras doutrinas ou formas de pensamento que tenham como característica fundamental um conteúdo Metafísico, ou seja, de além do mundo físico.

Sendo assim o hábito, geralmente por parte de grupos religiosos de taxarem tal ou qual grupo religioso rival de seita, não têm apoio na definição do termo. SEITA, derivado da palavra latina "Secta", nada mais é do que um segmento minoritário que se diferencia das crenças majoritárias, mas como tal também é religião.

HERESIA é outro termo mal compreendido. Significa simplesmente um conteúdo que vai contra a estrutura teórica de uma religião dominante. Sendo assim o Cristianismo foi uma Heresia Judáica assim como o Protestantismo uma Heresia Católica, ou o Budismo uma Heresia Hinduísta.

A MITOLOGIA é uma coleção de contos e lendas com uma concepção mística em comum, sendo parte integrante da maioria das religiões, mas suas formas variam grandemente dependendo da estrutura fundamental da crença religiosa. Não há religião sem mitos, mas podem existir mitos que não participem de uma religião.

MÍSTICA pode ser entendida como qualquer coisa que diga respeito a um plano sobre material. Um "Mistério".

PRESENÇA DA RELIGIÃO EM TODA A CULTURA HUMANA

Não há registro em qualquer estudo por parte da História, Antropologia, Sociologia ou qualquer outra "ciência" social, de um grupamento humano em qualquer época que não tenha professado algum tipo de crença religiosa. As religiões são então um fenômeno inerente a cultura humana, assim como as artes e técnicas.

Grande parte de todos os movimentos humanos significativos tiveram a religião como impulsor, diversas guerras, geralmente as mais terríveis, tiveram legitimação religiosa, estruturas sociais foram definidas com base em religiões e grande parte do conhecimento científico, "filosófico" e artístico tiveram como vetores os grupos religiosos, que durante a maior parte da história da humanidade estiveram vinculados ao poder político e social.

Hoje em dia, apesar de todo o avanço científico, o fenômeno religioso sobrevive e cresce, desafiando previsões que anteveram seu fim. A grande maioria da humanidade professa alguma crença religiosa direta ou indiretamente e a Religião continua a promover diversos movimentos humanos, e mantendo estatutos políticos e sociais.

Tal como a Ciência, a Arte e a Filosofia, a Religião é parte integrante e inseparável da cultura humana, é muito provavelmente sempre continuará sendo.


TIPOS DE RELIGIÕES

Há várias formas de religião, e são muitos os modos que vários estudiosos utilizam para classificá-las. Porém há características comuns às religiões que aparecem com maior ou menor destaque em praticamente todas as divisões.

A primeira destas características e cronológica, pois as formas religiosas predominantes evoluem através dos tempos nos sucessivos estágios culturais de qualquer sociedade.

Outro modo é classificá-las de acordo com sua solidez de princípios e sua profundidade filosófica, o que irá separá-las em religiões com e sem Livros Sagrados.

Pessoalmente como um estudioso do assunto, prefiro uma classificação que leva em conta essas duas características, e divide as religiões nos seguintes 4 grandes grupos distintos.


PANTEÍSTAS

POLITEÍSTAS

MONOTEÍSTAS

ATEÍSTAS

Nessa divisão há uma ordem cronológica. As Religiões PANTEÍSTAS são as mais antigas, dominando em sociedades menores e mais "primitivas". Tanto nos primórdios da civilização mesopotâmica, européia e asiática, quanto nas culturas das Américas, África e Oceania.

As Religiões POLITEÍSTAS por vezes se confundem com as Panteístas, mas surgem num estágio posterior do desenvolvimento de uma cultura. Quanto mais a sociedade se torna complexa, mais o Panteísmo vai se tornando Politeísmo.

Já as MONOTEÍSTAS são mais recentes, e atualmente as mais disseminadas, o Monoteísmo quantitativamente ainda domina mais de metade da humanidade.

E embora possa parecer estranho, existem religiões ATEÍSTAS, que negam a existência de um ser supremo central, embora possam admitir a existência de entidades espirituais diversas. Essas religiões geralmente surgem como um reação a um sistema religioso Monoteísta ou pelo menos Politeísta, e em muitos aspectos se confunde com o Panteísmo embora possua características exclusivas.

Essa divisão também traça uma hierarquia de rebuscamento filosófico nas religiões. As Panteístas por serem as mais antigas, não têm Livros Sagrados ou qualquer estabelecimento mais sólido do que a tradição oral, embora na atualidade o renascimento panteísta esteja mudando isso. Já as politeístas muitas vezes possuem registros de suas lendas e mitos em versão escrita, mas Nenhuma possui uma REVELAÇÃO propriamente dita. Isto é um privilégio do Monoteísmo. TODAS as grandes religiões monoteístas possuem sua Revelação Divina em forma de Livro Sagrado. As Ateístas também possuem seus livros guias, mas por não acreditarem num Deus pessoal, não tem o peso dogmático de uma revelação divina, sendo vistas em geral como tratados filosóficos.

Vejamos alguns quadros comparativos.


ÉPOCAS DE SURGIMENTO E PREDOMÍNIO.

PANTEÍSMO:

As mais antigas, remontando a pré-história onde tinham predominância absoluta, e também presentes em muitos dos povos silvícolas das Américas, África e Oceania.

POLITEÍSMO:

Surgem num estágio posterior de desenvolvimento social, tendo sido predominantes na Idade Antiga em todo o velho mundo, e mesmo nas civilizações mais avançadas das Américas pré-colombianas.

MONOTEÍSMO:

Mais recentes, surgindo a partir do último milênio aC e predominando da Idade Média até a atualidade.

ATEÍSMO:

Surgem a partir do século V aC, tendo vingado somente no Oriente e no Ocidente ressurgindo somente após a renascença numa forma mais filosófica que religiosa.

Neo PANTEÍSMO:

Embora possuam representantes em todos os períodos históricos, popularizam-se ou surgem a partir do século XVIII.





BASE LITERÁRIA

PANTEÍSMO:

Próprias de culturas ágrafas, não possuem em geral qualquer forma de base escrita, sendo transmitidas por tradição oral.

POLITEÍSMO:

Nas sociedades letradas possuem frequentemente registros literários sobre seus mitos, e mesmo nas ágrafas possuem tradições icônicas mais elaboradas.

MONOTEÍSMO:

Possuem Livros Sagrados definidos e que padronizam as formas de crença, servindo como referência obrigatória e trazendo códigos de leis. São tidos como detentores de verdades absolutas.

ATEÍSMO:

Possuem textos básicos de conteúdo predominantemente filosófico, não possuindo entretanto força dogmática arbitrária ainda que sendo também revelados por sábios ou seres iluminados.

Neo PANTEÍSMO:

Seus textos são em geral filosóficos, embora possuam mais força doutrinária, não incorrendo porém em dogmas arbitrários.





MITOLOGIA

PANTEÍSMO:

Deus é o próprio mundo, tudo está interligado num equilíbrio ecossistêmico e místico. Crê-se em espíritos e geralmente em reencarnação, é comum também o culto aos antepassados. Procura-se manter a harmonia com a natureza, e o mundo comummente é tido como eterno.

POLITEÍSMO:

Diversos deuses criaram, regem e destroem o mundo. Se relacionam de forma tensa com os seres humanos, não raro hostil. As lendas dos deuses se assemelham a dramas humanos, havendo contos dos mais diversos tipos.

MONOTEÍSMO:

Um Ser transcendente criou o mundo e o ser humano, há uma relação paternal entre criador e criaturas. Na maioria dos casos um semi-deus se rebela contra o criador trazendo males sobre todos os seres. Messias são enviados para conduzir os povos, profetiza-se um evento renovador violento no final dos tempos, onde a ordem será restaurada pela divindade.

ATEÍSMO:

O Universo é uma emanação de um princípio primordial "vazio", um Não-Ser. Crê-se na possibilidade de evolução espiritual através de um trabalho íntimo, crê-se em diversos seres conscientes dos mais variados níveis, e geralmente em reencarnação.

Neo PANTEÍSMO:

Acredita-se em geral no Monismo, um substância única que permeia todo o Universo num Ser único. São em geral reencarnacionistas e evolutivas. A desatribuição de qualidades do Ser supremo por vezes as confunde com o Ateísmo.





SÍMBOLOS

PANTEÍSMO:

Utilizam no máximo totens e alguns outros fetiches, é comum o uso de vegetais, ossos, ou animais vivos ou mortos.

POLITEÍSMO:

Surgem os ídolos zoo ou antropomórficos na forma de pinturas e esculturas em larga escala. A simbologia icônica se torna complexa em alguns casos resultando em formas de escrita ideográfica.

MONOTEÍSMO:

O Deus supremo geralmente não possui representação visual, mas os secundários sim. Utilizam símbolos mais abstratos e de significados complexos.

ATEÍSMO:

O Não-Ser supremo não pode ser representado, mas há muitas retratações dos seres iluminados. Há vários símbolos representativos da natureza e metafísica do Universo.

Neo PANTEÍSMO:

Diversos símbolos e mitos de diversas outras religiões são resgatados e reinterpretados, também não há representação específica do Ser Supremo mas pode haver de outros seres elevados.





RITUAIS

PANTEÍSMO:

Geralmente ligados a natureza e ocorrendo em contato com esta. É comum o uso de infusões de ervas, danças, oráculos e cerimônias ao ar livre.

POLITEÍSMO:

Passam a surgir os templos, embora em geral não abandonem totalmente os rituais ao ar livre. Em muitos casos ocorrem os sacrifícios humanos, oráculos e as feitiçarias de controle ambiental.

MONOTEÍSMO:

Geralmente restritas ao templos, as hierarquias ritualistas são mais rígidas, não há oráculos pessoais mas sim profecias generalizadas com base no livro sagrado. Não há rituais de controle ambiental.

ATEÍSMO:

Embora ainda comuns nos templos são também frequentes fora destes. Desenvolvem-se técnicas de concentração, meditação e purificação mais específicas, baseadas antes de tudo no controle dos impulsos e emoções.

Neo PANTEÍSMO:

Em geral baseados no uso de "energias" da natureza. Não mais têm influência nos processos civis, sendo restritos a curas, proteção contra ameaças físicas e extrafísicas.





EXEMPLOS

PANTEÍSMO:

Religiões silvícolas, xamanismo, religiões célticas, druidismo, amazônicas, indígenas norte americanas, africanas e etc.

POLITEÍSMO:

Religião Grega, Egípcia, Xintoísmo, Mitologia Nórdica, Religião Azteca, Maia etc.

MONOTEÍSMO:

Bhramanismo, Zoroastrismo, Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, Sikhismo.

ATEÍSMO:

Orientais: Taoísmo, Confucionismo, Budismo, Jainismo.
Ocidentais: Filosofias NeoPlantônicas, Ateísmo Filosófico (Não Religioso)

Neo PANTEÍSMO:

Espiritsmo Kardecista*, Racionalismo Cristão, Neo-Gnosticismo, Teosofia, Wicca, "Esotéricas", etc.


*Apesar do Kardecismo não se considerar Panteísta e sim antes Monoteísta.

PANTEÍSMO

As religiões primitivas são PANTEÍSTAS, acredita-se num grande "Deus-Natureza". Todos os elementos naturais são divinizados, se atribuí "inteligências" espirituais ao vento, a água, fogo, populações animais e etc.

Há uma clara noção de equilíbrio ecossistêmico, onde é comum ritos de agradecimento pelas dádivas naturais e pedidos às divindades da natureza, em alguns casos requisitando autorização mesmo para o consumo da caça que embora tenha sido obtida pelo esforço humano, seria na verdade permitida, se não ofertada, pelos entes espirituais.

A relação de dependência do ser humano com o ecossistema é clara, assim como a de parentesco e de submissão. As entidades elementais da natureza estão presentes em toda a parte, conferindo a onisciência do espírito divino. Embora haja a tendência da predominância de um presença mística feminina, a "mãe-terra", o elemento masculino também é notável a partir do momento que os seres humanos passam a compreender o papel do macho na reprodução. Ocorre então a presença de dois elementos divinos básicos, o Feminino e Masculino universal.

É um domínio de pensamento transcendente, mais compatível com a subjetividade e a síntese, não sendo então casual que este seja o tipo religioso onde as mulheres mais tenham influência. A presença de sacerdotisas, bruxas e feiticeiras é em muitos casos, muito mais significativa que a de seus equivalentes masculinos.

Todas essas religiões são ágrafas, sem escrita, com exceção é claro dos NeoPanteísmos contemporâneos. Portanto são as mais envoltas em obscuridade e mistérios, não tendo deixado nenhum registro além da tradição oral e de vestígios arqueológicos.

POLITEÍSMO

Com o tempo e o desenvolvimento as necessidades humanas passam a se tornar mais complexas. A sobrevivência assume contornos mais específicos, o crescimento populacional hipertrofiado graças a tecnologia que garante maior sucesso na preservação da prole e da longevidade, gera um série de atividades competitivas e estruturalistas nas sociedades, que se tornam cada vez mais estratificadas.

Nesse meio tempo a influência racional em franca ascensão tenta decifrar as transcendentes essências espirituais da natureza. Surge então o POLITEÍSMO, onde os elementos divinos são então personificados com qualidades cada vez mais humanas. O que era antes apenas a Água, um ser de essência espiritual metafísica e sagrada, agora passa a ser representada por uma entidade antropomórfica ou zoomórfica relacionada a água.

No princípio as características dessas divindades não são muito afetadas, mas com o tempo, a imaginação humana ou a tentativa de se adequar as religiões às estruturas sociais, elas ficam cada vez mais parecidas com os seres humanos comuns, surgindo então entre os deuses relacionamentos similares aos humanos inclusive com conflitos, ciúmes, traições, romances e etc. E cada vez mais os deuses perdem características transcendentes até que a "degeneração" chegue a ponto destes se relacionarem sexualmente com seres humanos, o que significa a perda da natureza metafísica, da característica invisível, ou mais, de haver relações físicas e pessoais de violência entre humanos e divindades, sem qualquer caráter transcendente.

Em muitos casos é difícil distinguir com clareza se determinadas religiões são Pan ou Politeístas. Mesmo no estágio Panteísta por vezes pode-se identificar com muita evidência algumas personificações das entidades divinas, mas algumas características como as citadas no parágrafo anterior são exclusivas do politeísmo. É possível que os elementos que contribuam ou realizem essa transição sejam o Animismo, Fetichismo e Totemismo.

Ocorre também uma relativa equivalência entre deidades femininas e masculinas, embora as masculinas mostrem sinais de predominância a medida que o sistema de crenças se torne mais mundano, características de uma fase mais racional e técnica onde muitas vezes a religião politeísta caminha junto com filosofias da natureza.

É sempre nesse estágio também que as sociedades desenvolvem escrita, ou pelo menos passa a utilizar símbolos abstratos e códigos visuais mais elaborados, no caso do politeísmo asiático, egípcio e europeu por exemplo, evoluiu para um sistema de escrita complexo.

Muitas destas religiões têm então, narrativas de seus mitos em forma escrita, mas tais não possuem o valor e a significância de uma Revelação propriamente dita.

Num estágio final tende a ocorrer o fenômeno da Monolatria, onde a adoração se concentra numa única divindade, o que pode ser o ponto de partida para o Monoteísmo.

MONOTEÍSMO

Chega um momento onde o Politeísmo está tão confuso, que parece forçar o "inconsciente coletivo", ou a "intuição global" a buscar uma nova forma de crença. Alguém precisa pôr ordem na casa, surge então um poderoso Deus que acaba com a confusão e se proclama como o Único soberano. Acabam-se as adorações isoladas e hierarquiza-se rigidamente as deidades, de modo a se submeter toda a autoridade do universo a um ente máximo.

O MONOTEÍSMO não é a crença em uma única divindade, mas sim a soberania absoluta de uma. A própria teologia judáico-cristã-islâmica adota hierarquias angélicas que são inclusive encarregadas de reger elementos específicos da natureza.

Um elemento que caracteriza mais claramente o MONOTEÍSMO mais específico, Zoroastrista, Judáico, Cristão, Islâmico e Sikh, é antes de tudo a ausência ou escassez de representações icônicas do Deus supremo, e sua desatribuição parcial de qualidades humanas, nem sempre bem sucedida. Já as entidades secundárias são comumente retratadas artisticamente.

A própria mitologia grega através da Monolatria, já estaria a dar sinais de se dirigir a um monoteísmo similar ao que chegou a religião Hindu, ou a egípcia com a instituição do deus único Akhenaton, embora ainda impregnadas fortemente de Politeísmo a até de reminiscências Panteístas no caso do Bhramanismo. Zeus assomava-se cada vez mais como o regente absoluto do universo. Entretanto um certo obstáculo teológico impedia que tal mitologia atingisse um estágio sequer semi-Monoteísta. Zeus é filho de Chronos, neto de Urano, essa descendência evidencia sua natureza subordinada ao tempo, ele não é eterno ou sequer o princípio em si próprio, que é uma característica obrigatória de um Deus Uno e absoluto como Bhraman ou Jeová.

Um fator complicador é que todas essas religiões apesar de seu princípio Uno, são também Dualistas, pois contrapõem um deus do Bem contra um do Mal. Entretanto não se presta "Sob Hipótese Alguma!", qualquer culto ao deus maligno, como ocorre nas Politeístas. Saber se o deus maligno está ou não sujeito afinal ao deus supremo é uma discussão que vem rendendo há mais de 3.000 anos.

Diferente do estado Panteísta original não ocorre harmonia entre os opostos, e um deles passa a ser privilegiado em detrimento do outro. Sendo assim onde antes ocorria a divinização dos aspectos Masculinos e Femininos do Universo, e a sacralidade da união, aqui ocorre a associação de um com o maligno, fatalmente do elemento Feminino uma vez que todas as religiões monoteístas surgiram na fase patriarcal da humanidade.

O Bhramanismo sendo o mais antigo, ainda conserva qualidades tais como veneração a manifestações femininas da divindade, não condena a relação sexual e ainda detém a crença reencarnacionista que é uma quase constante no Panteísmo. Do Politeísmo guarda toda um miríade de deuses personificados, com estórias bastante humanas que envolvem conflitos e paixões. Mas a subordinação a um Uno supremo, no caso representado pela trindade Bhrama-Vinshu-Shiva, é clara. O panteão anterior Hindu foi completamente absorvido pelo monoteísmo Bhraman, e conservou até mesmo a deusa Aditi, que outrora fora a divindade suprema.

Já os monoteísmos posteriores, mais afastados do fenômeno panteísta, entram em choque mais evidente com o Politeísmo que geralmente está em estado caótico. Ocorre um abafamento da religião anterior pela nova e seu caráter patriarcal e associado a violência, especialmente a partir do Judaísmo, se impõe de forma opressiva. As divindades femininas são erradicadas ou demonizadas, sendo então obrigatoriamente associadas ao elemento maligno do universo. Esse fenômeno acompanha a queda da condição social feminina na sociedade.

Embora as teologias monoteístas, especialmente na atualidade, se esforcem para afirmar o contrário, o deus único Hebreu, Cristão e Islâmico, basicamente o mesmo, assim como o do anterior Zoroastrismo e posterior Sikhismo, são nitidamente masculinos, aparentemente renegando o aspecto feminino divino do universo, mas na verdade o absorvendo, uma vez que ao contrário de deuses "supremos" Politeístas como Zeus, Osíris e Odin, eles são carregados de atribuições de amor e compaixão, embora ainda conservem sua Ira divina e seus atributos violentos, o que resulta em entidades complexas, que possuem aspectos paternos e maternos simultâneamente.

Tal como a própria emocionalidade, esse é o período mais contraditório da evolução do pensamento Teológico. Apesar de estar sob o domínio de uma característica de predominância subjetiva, é o momento onde as sociedades se mostraram paradoxalmente mais androcráticas. Os elementos femininos são absorvidos pelo Deus Único dando a ele o poder de atrair e seduzir as massas pela sua bondade, mostrando sua face benevolente, mas por outro lado a espada da masculinidade está sempre pronta a desferir o golpe fatal em quem se opuser a sua soberania.

Tal união, confere aos deuses monoteístas um poder supremo inigualável, e tal contradição, tal desarmonia intrínseca, resultou não por acaso no período religiosamente mais violento da história. As religiões monoteístas, especialmente o trio Judaísmo-Cristianismo-Islamismo, são as mais intolerantes e sanguinárias da história.

ATEÍSMO

As religiões aqui caracterizadas como Ateístas negam simplesmente a existência de um Ser Supremo central, que tudo tenha criado e a tudo controle, e talvez seja nesse grupo que se sinta mais radicalmente a ruptura entre Ocidente e Oriente, mas basicamente o Ateísmo religioso tende a funcionar da seguinte forma.

Se o Monoteísmo tenta acabar com o "pandemonium" Politeísta e estabelecer uma nova ordem por algum tempo, acaba por também se mundanizar. As autoridades religiosas interferindo fortemente na política e na estruturação social, enfraquecem como símbolos transcendentes. A inflexibilidade fundamentalista do sistema se revela injustificável ante a problemática social e as conquistas e descobertas filosóficas e científicas e num dado momento o sentimento de descrença é tal que deixa-se de acreditar num deus. Surge o ATEÍSMO.

Esse é o ponto crucial, a razão pela qual de fato não acredito que existam Ateus no sentido mais profundo do termo, no máximo "agnósticos".

Geralmente o ateu não é aquele que desacredita do "invisível", de qualquer forma de Téos, mas sim o que descrê dos deuses personificados e corrompidos. Afinal até o mais materialista e cético dos cientistas trabalha com forças invisíveis! Fenômenos da natureza ainda inexplicáveis.

Gravitação Universal, Lei de Entropia, Mecânica Quântica e etc. não podem ser vistas! Apenas seus efeitos. Tal como sempre se alegou com relação aos deuses.

No que se refere a uma visão do Princípio, não creio fazer diferença acreditar que um corpo é atraído para o centro da Terra por uma força invisível da natureza ou pela vontade de um deus também invisível. Há apenas uma maior compreensão racional do fenômeno, com maiores resultado práticos, mas de um modo ou de outro, a explicação possui um certo caráter de fé, tão racionalmente satisfatório para o cientista quanto para o religioso, capaz de explicar com clareza o funcionamento do mundo e mesmo quando isso não ocorre, admiti-se como mistérios divinos, ou causas científicas ainda desconhecidas.

No caso do Oriente, o Ateísmo religioso surge principalmente na Índia, sob a forma do Budismo e do Jainísmo, e na China, sob o Taoísmo e o Confucionismo. Todas essas religiões possuem textos base com certo grau de respeitabilidade mística ou filosófica, mas o grau de liberdade com que se pode reinterpretar ou mesmo discordar destes textos é incomparável em relação aos livros sagrados Monoteístas.

E nesse nível que muitas posturas passam a ser desconsideradas como religiões, sendo tidas em geral como filosofias. No Ocidente, tal movimento ocorreu também na Grécia Antiga, através de Filósofos da Natureza que estabeleciam como princípio primário universal alguma "substância" completamente impessoal. Mais especificamente, Aristóteles colocava o MOTOR IMÓVEL como o princípio primário, e PLOTINO, estabelecia o UNO. Porém essa breve ascensão do Ateísmo filosófico e científico ocidental foi logo minada pelo sucesso do Monoteísmo cristão.

O Ateísmo no Ocidente só surgiu novamente após a renascença, no Iluminismo, onde outras formas filosóficas se desenvolveram, mas a mistura destas com os Neo Panteísmos e o avanço científico em geral resulta num quadro difícil de se diferenciar.

Mas o ponto mais complexo na verdade, e que Ateísmo e Panteísmo se confundem.

Religiões ATEÍSTAS e NEO-PANTEÍSTAS

As religiões Ateístas não crêem numa entidade suprema central, mas pregam a interdependência harmônica do Universo, da mesma forma que o Panteísmo.

Pregam a harmonia dos opostos como Yin e Yang, da mesma forma que a harmonia entre a Deusa e o Deus no Panteísmo, e constantemente adotam um posição de neutralidade em relação aos eventos.

Provavelmente não por acaso TAOÍSMO e BUDISMO são as mais avançadas das grandes religiões num sentido metafísico, racional e mesmo científico. São imunes a contestação racional pois seus conceitos trabalham num plano mais abstrato mas ao mesmo tempo capaz de explicar a realidade, e fartos de paradoxos escapistas, sendo extremamente mais flexíveis que as religiões monoteístas por exemplo. Não há casos significativos de atrocidades cometidas em nome destas religiões em larga escala como as monoteístas ou nas politeístas monolátricas.

Porém, barreiras intransponíveis impedem que essas religiões sejam nesse esquema de divisão, classificadas como Panteístas. TAOÍSMO e CONFUCIONISMO que são chinesas equanto o BUDISMO e o JAINISMO Indianos, são religiões letradas. Possuem seus escritos fundamentais como os Sutras Budistas, o Tao Te-King Taoísta e os Anacletos Confucianos e os textos dos Tirthankaras Jainistas. Todas possuem seus mentores, Buda, Lao-Tsé, Confúcio e Mahavira. E todas são muito desenvolvidas filosoficamente, por vezes sendo consideradas não religiões, mas filosofia. Todas essas características inexistem no Panteísmo primitivo.

Portanto isso me leva a classificá-las como RELIGIÕES ATEÍSTAS, por declararem a inexistência de um Ser Supremo. Pelo contrário, o TAO ou o NIRVANA, o centro de todo o Universo segundo o Taoísmo e Confucionismo, e o Budismo, são uma espécie de Vazio, um Não-Ser.

Já o Neo-Panteísmo possui sim seus textos. É o caso do Espiritismo Kardecista, do Bahaísmo, do Racionalismo Cristão e etc. Embora muitos insistam em negar-se como Panteístas se inclinando para o Monoteísmo, porém uma série de fatores a distanciam muito deste grupo. Tais como:

A ênfase atenuada dada ao livro base da doutrina, que embora seja uma revelação, não tem o mesmo peso dogmático e em geral se apresenta de forma predominantemente racional. A postura passiva e não proselitista, e muito menos violenta, do Monoteísmo tradicional. A caraterização de seu fundador que mesmo sendo dotado de dons supra-naturais, não reivindica deificação e nem mesmo reverência especial. E o mais importante, diferenciando-as principalmente do Monoteísmo "Ocidental", o tratamento totalmente diferenciado dado a questão da existência do "Mal". Esses são alguns exemplos que tendem a afastar essas novas religiões, que prefiro agrupar na categoria Neo-Panteísmo, do grupo das Monoteístas.

PANTEÍSMO

=>

Deus é Tudo

POLITEÍSMO

=>

Deus é Plural

MONOTEÍSMO

=>

Deus é Um

ATEÍSMO

=>

Deus é Nada


Evidentemente, afirmar que DEUS é TUDO é muito similar a afirmar que é NADA. O ZERO é tão imensurável e incalculável quanto o INFINITO. Eles não podem ser medidos ou divididos, assim como não se divide por eles.

Vale lembrar que não se pode também rotular tal ou qual religião como meramente Pan, Poli ou Monoteísta. Muitas passaram pelas várias fases nem sempre de maneira perceptível e consensual. O próprio Budismo tem várias escolas bastante diferentes entre si, e mesmo o Cristianismo tem suas variantes com direito a reencarnação e sexo tântrico, e cujas atribuições de Deus o afastam das características monoteístas. Mas o processo macro, inconsciente, me parece ser esse! O de fases "psicohistóricas" que vão na forma:

?-PANTEÍSMO-POLITEÍSMO-MONOTEÍSMO-ATEÍSMO-?PANTEÍSMO

Outro ponto importante é que jamais uma dessas formas religiosas deixou de existir totalmente, principalmente na atualidade onde a intolerância religiosa não é mais "tolerada" na maior parte do mundo. Esses tipos de religiões se misturam e se confundem, o que explica porque qualquer tentativa de se classificar as religiões é tão complexa.

Até mesmo essa divisão esquemática apresenta problemas, como a notável diferença entre o Monoteísmo "Ocidental", Judaísmo-Cristianismo-Islamismo, fortemente interligadas, o Monoteísmo Oriental, Hindu, Bhramanismo e Sikhismo, e o sempre complexo Zoroastrismo, de características fortemente Maniqueistas, o que viria por vezes a suscintar a questão de se o Maniqueísmo, que tem forte influência sobre o Gnosticismo e o Catolicismo, poderia ser considerado Monoteísta.

SÍMBOLOS

O mantra sagrado "OM" ou "AUM" Hindu. Representa o "Som" primordial.

A Roda do DHARMA budista, ou "Roda da Vida".

O Tei-Gi do Taoísmo. Simbolizando a interdependência dos princípios universais Yin e Yang.

A estrela de Davi. Um dos símbolos do Judaísmo e do estado de Israel.

A cruz do Cristianismo. Encruzilhada entre o material e o espiritual.

A Lua e Estrela Muçulmana, oriunda de um dos mais antigos estados a adotar o Islã.

Nenhuma religião em especial mas algumas igrejas protestantes costumam usar um livro como símbolo.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Robert Funk e o polêmico Seminário de Jesus

Como o pão, massa que toma a forma e a consistência de quem a manipula, Jesus Cristo moldou-se ao imaginário dos povos e se tornou a figura mais importante da história da humanidade.

Seminário de Jesus é uma organização internacional, centrada nos Estados Unidos, que reúne cerca de uma centena de acadêmicos e estudiosos da Bíblia. Em debates frenéticos, o grupo procura atestar a veracidade do que foi escrito nos evangelhos do Novo Testamento sobre a vida e as palavras de Jesus. Funciona, portanto, como uma espécie de cartório, onde se autenticam documentos. São implacáveis nesta função. Enfurecendo cristãos de todas as correntes, os membros do seminário já classificaram de falsas passagens como a Natividade, a Ressurreição, o Sermão da Montanha, a traição de Judas Iscariotes e boa parte das máximas atribuídas a Cristo. Mas nem mesmo esta brigada de agnósticos põe em dúvida o fato de que o profeta de Nazaré comparou o vinho a seu sangue e o pão a seu corpo. Essa metáfora, reconheça-se, tem propriedades particularmente primorosas. Não apenas serve à liturgia cristã, como também ajuda a explicar a longevidade e resistência de uma figura que, em circunstâncias normais, teria sido relegada ao pó há muito tempo. É assombroso que um carpinteiro dos confins do Império Romano tenha se transformado na pessoa mais importante e influente da história da humanidade. Jesus Cristo é o pão: a massa que toma a forma e consistência desejada por quem a manipula. Molda-se ao imaginário de cada um para preencher necessidades. Este é o mistério de sua permanência na vida dos homens e o milagre de sua multiplicação.

Assim como na Ressurreição, Cristo extrapolou os limites exteriores da matéria e ganhou, na crença dos homens, várias configurações. São feitios distintos que competem entre si. O Cristo cultuado hoje já foi em outros tempos, por exemplo, a divindade tripartite da barroca mitologia maniqueísta, que postou um de seus três Jesus, cheio de esplendor, vivendo na Lua. É bom lembrar, para aqueles que acham maluca esta concepção, que Santo Agostinho, um dos maiores filósofos da Igreja Católica, acreditava piamente nesta versão antes de abandonar o maniqueísmo e se converter ao cristianismo. A filosofia maniqueísta, que propunha a eterna luta entre as forças da luz e da escuridão, foi inspirada por Manu – um cristão da Mesopotâmia do terceiro século. Seus adeptos se espalharam do Norte da África ao Sul da China. Na Ásia Central, por exemplo, Jesus foi imortalizado ao fundir-se com a deidade budista Maitreya, numa metamorfose que gerou o futuro Budhisatva – que, igual a Cristo, voltará no final dos tempos. Essa figura entusiasmou os chineses a ponto de provocar a rebelião que derrubou o poderoso Kublai Khan, no século XIV. A dinastia resultante – talvez a mais famosa da China – dedicou seu nome, Ming, a seus soldados da “Luz” – como eram conhecidos os devotos da seita Ming-chiao, seguidores desta espécie de Cristo budista. E a luminosa dinastia Ming, centenas de anos depois, serviria de inspiração aos filósofos europeus do Iluminismo, com suas idéias seculares que questionavam os ensinamentos de Cristo. Neste caso, Deus escreveu certo por linhas tortas: Jesus está no coração dos incréus iluministas.

No entanto, a gênese de toda esta influência é uma figura da qual se tem escassas provas sobre a autenticidade de sua existência real, para além da fé. “Não há confirmação irrefutável de que o homem Jesus tenha vivido”, diz Robert Funk, teólogo da Universidade de Montana e um dos bravos acadêmicos do Seminário de Jesus. “Existem argumentos propondo que Jesus é a somatória de várias personagens, ou que sua pessoa possa ter sido inflada até chegar à condição de mito”, diz. De fato, é preciso se entregar a uma formidável devoção ao fundamentalismo para se acreditar piamente no que a Bíblia contém sobre o assunto. As Escrituras são contraditórias e incompletas. Na verdade, mais simbólicas do que documentais.

Evangelhos – De todo modo, desde o século III, a história de Jesus se baseia principalmente nos quatro textos canônicos que constam do Novo Testamento. Os Evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João, escritos em grego, são relatos de quem supostamente teria conhecido Jesus pessoalmente. Em 1945, seriam descobertos no Egito os manuscritos Nag Hammadi, que contêm um segmento que é chamado Escrituras de Tomás. O texto é desprovido de narrativa biográfica de Jesus, mas forma uma coleção de máximas e pensamentos do profeta. Passou a ser, desde então, considerado como o quinto Evangelho. Além destes, existem outros textos cristãos que falam de Jesus, sendo o mais importante as Epístolas de São Paulo. E entre todos há passagens contraditórias. Para tornar ainda mais nebuloso o perfil do Cristo, estas páginas foram modificadas em traduções e interpretações. O resultado disso é a polêmica. A própria divisão da Bíblia em Velho e Novo Testamento é fruto de ferozes debates, ocorridos no início da era cristã, sobre a natureza de Jesus.

As disputas sobre a história de Cristo vão fincar raízes em eventos que antecedem seu nascimento. A própria concepção – um dos dogmas do cristianismo – é colocada em dúvida. Várias correntes de pensadores acreditam que Maria gerou um filho ilegítimo. “É claro que não há provas sobre isso”, diz o teólogo americano James Strange, do Seminário de Jesus. “Há muito tempo foram lançadas suspeitas de que a história da concepção de Maria, sem um marido, seria apenas um recurso para encobrir um romance espúrio. Surgiram depois textos apócrifos propondo uma relação de Maria com um legionário romano de nome Panthera. Em alguns textos judaicos, Jesus é até chamado de mamzer, que significa ‘filho da fornicação’, ou seja: um bastardo. Mas esses são textos polêmicos que emergiram somente depois do divórcio entre judaísmo e cristianismo. Parece que visam apenas desmistificar um dos maiores dogmas do cristianismo”, diz Strange.

Mas as virtudes da Virgem não são moldadas apenas por detratores. A própria Igreja Católica complicou a questão quando, séculos depois do nascimento de Cristo, resolveu perpetuar a virgindade de Maria. Assim, ela teria subido aos céus sem ter tido relações sexuais e, portanto, Jesus seria seu único filho. Mas em Marcos 6:3 são dados nomes de irmãos de Jesus e há menções até mesmo de irmãs. Um dos irmãos – e o mais importante – seria Tiago, que liderou a comunidade cristã de Jerusalém. É importante notar que o Evangelho de Marcos é considerado o primeiro, sendo que os de Mateus e Lucas seriam revisões deste texto (as três versões são chamadas “sinóticas”). “Os teólogos datam as escritas do Novo Testamento no último quarto do primeiro século. Algo em torno de 40 anos depois da morte de Jesus. Imagina-se que Marcos escreveu logo depois da queda de Jerusalém, no ano 70”, diz Strange. Já o Evangelho de João é considerado obra do final do século I ou início do século II.

Golgota/c.1900/Munch
Munch Museum, Oslo
O sepultamento c.
1602-4 caravaggio óleo sobre tela (360x202cm) pinacoteca do vaticano, roma
Cristo cai com a cruz /Grüne Wald (195x152,5cm) Pinacoteca do estado, Karlsruhe, Alemanha
A figura de Cristo sempre exerceu um poderoso fascínio sobre os artistas,
fossem eles realistas, barrocos ou expressionistas

Jesus a.C. – Um dos pontos onde parece que todos concordam é que Jesus nasceu no ano 4 antes de Cristo. A discrepância desta data se deve ao famoso erro na elaboração do calendário, feito por um monge no século VI. Nem todos, porém, aceitam a idéia de que o profeta é de Belém. “Há controvérsias: alguns estudiosos acham que Jesus nasceu em Nazaré. Alegam que o nome Nazareno não se deve ao fato de Jesus ter morado boa parte de sua vida na cidade de Nazaré, mas, sim, por ter nascido naquele local”, diz o padre Luke Timothy Johnson, um expert em Novo Testamento, professor da Emory University. “O mais aceito é que Maria, grávida, e José teriam ido a Belém para cumprir um edital de Roma e se inscrever no censo local. Não conseguiram pousada e a criança nasceu numa caverna que servia de estábulo nos arredores da cidade”, diz o professor Johnson. Somente Mateus (2:13-23) descreve uma fuga da sagrada família para o Egito para escapar do infanticídio ordenado por Herodes, o rei da Judéia. “Mateus usou um mosaico de lendas para compor este quadro. Os paralelos entre o recém-nascido Jesus e o infante Moisés são inegáveis, com Herodes cumprindo o papel do déspota amedrontado com o surgimento de outro rei, da mesma forma que o faraó Seti na história de Moisés”, diz o teólogo John Dominic Crossan, membro do Seminário de Jesus.

Os biógrafos da antiguidade geralmente começavam seus textos a partir da vida pública dos protagonistas que perfilavam. O que fosse anterior aos eventos públicos era deixado de lado. Assim, também no caso de Jesus, seus biógrafos dão ênfase às atividades públicas. Mateus e Lucas, por exemplo, falam da infância de Jesus apenas como prefácio da narrativa principal. Em Mateus a história começa mesmo com o Sermão da Montanha, com um Cristo já adulto. Esta é uma das razões do “desaparecimento” de Jesus da idade de 12 anos até os 29.

Desse modo, fica muito difícil retratar o garoto Jesus. Existem textos esparsos creditados a São Pedro e São Paulo – e considerados mera ficção –, que falam de um menino travesso, cheio de humor e predisposto a brincadeiras um tanto perigosas. O que se dá como certo é que o nome Jesus (Yeshu) é uma abreviatura que deriva da interpretação grega do nome hebreu “Yoshua”, que por sua vez é uma corruptela de “Yehoshuah” (que significa Jeová é Redenção). Já Cristo não era nome, mas um título. Vem do grego Christós, e é uma tradução do hebraico Mashiakh (O Escolhido), ou Messias. Cristo foi agregado ao nome de Jesus por seus seguidores que acreditavam ser ele o Messias da salvação de Israel. O título foi definitivamente incorporado ao nome de Jesus por decisão da Igreja.

Assim como esta decisão da Igreja, outros acréscimos foram sendo feitos na vida de Cristo. “A rigor, a história de Jesus deveria ser formada apenas pelos quatro Evangelhos, mais as escrituras de Tomás. Elas são como peças de um quebra-cabeça incompleto, que não mostra o quadro todo, mas delimita com alguma clareza a figura principal da composição”, diz o padre Johnson. “Acredite-se ou não nesta história, nos milagres, nos ensinamentos, nas passagens relatadas nas escrituras, o que me parece importante é não perder de vista que apenas aquilo que está nos Evangelhos pode ser tomado como fonte sobre a vida de Cristo. Tudo mais são improvisações sobre o tema e especulações que obedecem a interesses políticos”, diz.

Sob esta ótica, os debates sobre a existência ou não de Jesus acabam por se transformar em uma questão meramente acadêmica. “Nós o pensamos, logo ele existe”, como diz o padre Johnson. Nos atos mais cotidianos – como consultar um calendário para se saber que dia é hoje –, passando pela irresistível expansão da cultura ocidental pelo mundo até o fato de pelo menos 1,9 bilhão de pessoas acreditarem numa ética forjada por este homem extraordinário, está a prova de que Jesus Cristo existiu e existe. Como o pão, ele faz parte da história da humanidade.


sábado, 17 de setembro de 2011

John Dominic Crossan e Marcus Borg: O Messias e seus seguidores


O estudo histórico de Jesus de Nazaré e de seus primeiros seguidores apresenta já larga trajetória no âmbito mundial. Durante muitos séculos, Jesus e o Cristianismo foram objeto de reflexões teológicas, a partir de denominações confessionais cristãs. Com o período moderno, tanto o catolicismo como as igrejas reformadas debruçaram-se sobre tais temas, fundamentais para as querelas entre as diferentes correntes religiosas. Eram tempos de guerras de religião, com a Europa dilacerada por conflitos sangrentos. Com o avanço do Iluminismo, em suas diversas facetas, surgiram novas preocupações, menos afeitas às contendas religiosas. Iniciava-se a busca pela historicidade. Nessa longa caminhada, o positivismo, com sua ênfase na reconstrução do que realmente aconteceu, marcou um momento importante de inflexão. A intervenção de Deus, de forma direta, nos afazeres humanos foi descartada, em benefício das explicações que fizessem redundar em causas racionais e mundanas. O século XIX testemunhou, nesse afã, um florescimento crescente da literatura científica que buscava explicar os movimentos religiosos, em geral, e o cristianismo, em particular, à luz da objetividade.


Nem por isso Jesus e o cristianismo deixaram de ser objeto preferencial daqueles dedicados à religião. A História, como disciplina nascente, voltou-se para os grandes temas, relevantes para os estados nacionais e impérios nascentes, com sua ênfase na política, nas guerras e nos estados. Os influxos da Filosofia, da Sociologia e da Antropologia, nas primeiras décadas do século XX, viriam a criar novas perspectivas e interesses no campo propriamente historiográfico. Marc Bloch, com seus reis taumaturgos, mostrava que as representações culturais, também de caráter religioso, eram tanto ou mais relevantes do que as visões tradicionais, do ponto de vista da ciência histórica. Abertas as portas das mentalidades, as religiosidades adquiriam novos estatutos também no âmbito da historiografia. Multiplicaram-se os estudos sobre os sentimentos e representações religiosas não apenas das elites, como das pessoas comuns, em sua imensa diversidade e variedade.


O Jesus histórico e a historicidade do movimento em torno do Galileu tornaram-se objeto pleno iure da historiografia. Multiplicaram-se as vertentes interpretativas, caracterizadas tanto por sua diversidade, como não poderia deixar de ser, como por seu rigor metodológico. As ferramentas básicas da pesquisa historiográfica, a partir do estudo das fontes, foram desenvolvidas de forma acurada. A tradição literária foi esmiuçada, de modo a buscar nos textos oriundos da ortodoxia todo o seu universo de composição, datação, autoria e muito mais. As pesquisas arqueológicas foram, também, essenciais para redimensionar o estudo das fontes históricas. As investigações pela Arqueologia produziram uma pletora de novos documentos, na forma de sítios arqueológicos, edifícios, artefatos de uso quotidiano, mas também inscrições. A paleografia foi, neste âmbito, de relevância particular, pela diversidade de documentos que ajudaram a iluminar a vida à época de Jesus e de seus seguidores. O estudo do Jesus Histórico e do cristianismo dos primeiros tempos tornou-se um campo historiográfico consolidado.


No âmbito internacional, publicações recentes atestam essa vitalidade, como a produção recente de John Dominic Crossan traduzida e publicada no Brasil, como BORG, Marcus J.; CROSSAN, John Dominic. O Primeiro Natal, o que podemos aprender com o nascimento de Jesus. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008, Tradução de Vera Ribeiro. Primeiro, convém tratarmos da abordagem adotada pelos autores. Eles a definem com duas características ou aspectos: em termos históricos e parabólicos. A abordagem histórica das narrativas trata de situar as antigas simbologias em seu contexto do século I d.C.: são textos antigos em um contexto antigo. A historicidade está na imersão nas concepções de mundo que são outras, diferentes das nossas, filhas do Iluminismo e do Positivismo dos últimos dois séculos. Em seguida, e como resultado dessa busca pelas circunstâncias culturais e simbólicas antigas, a abordagem parabólica procura superar a dicotomia iluminista entre fato e fábula, acontecimentos e invenções. Parábolas, como os mitos, apresentam estruturas arquetípicas e representam não fatos, com sua irrelevância, mas mensagens perenes. A morte de uma pessoa é apenas a extinção de uma vida. O nascimento de um bebê não passa do início. O Natal e a Ressurreição, como metáforas do nascimento e do renascimento, revestem-se de relevância por sua significação não como fato irrepetível, mas como presença na reinterpretação constante do ciclo da vida.


A partir destas premissas teóricas, descortinam as especificidades de Mateus e Lucas. Este enfatiza, em seu relato, as mulheres, os marginalizados e o Espírito Santo. São Maria e Isabel, assim como, no decorrer da vida de Jesus, muitas que são mencionadas, algumas nomeadas, outras não. Dentre os marginalizados, estão os pastores já no nascimento e, depois, os pobres, os néscios, os aleijados, os coxos, os cegos. Por fim, o Espírito Santo, que caracteriza o relato da trajetória dos seguidores de Jesus após sua morte, nos Atos dos Apóstolos do mesmo Lucas. Já Mateus apresenta uma narrativa fundada na referência, sempre simbólica, às escrituras hebraicas, como na ênfase em cinco elementos, como no Sermão da Montanha, que retoma, por assim dizer, os cinco livros do Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio): concepção virginal de Maria, Belém como local de nascimento de Jesus, Sagrada Família parte do Egito, após o infanticídio de Herodes em Belém e sobre Nazaré.


Mateus e Lucas compartilham, segundo Borg e Crossan, da uma contraposição bem marcada entre o reino da violência do Império Romano e o Reino de Deus, fundado na justiça e na igualdade. Propõem que a simbologia da fé cristã e do Natal, em particular, seja uma contraposição ao poder imperial. Os epítetos teológicos do imperador são transpostos para Jesus: se o imperador é chamado de senhor, divino, filho de Deus, Deus, Deus de Deus, Redentor, Libertador, também Jesus, assim também com as expressões Salvador, Evangelho, Paz, todas usadas para se referirem ao governante romano. O nascimento divino de Augusto, reportado por Suetônio (Augusto, 94,4) não podia deixar de servir de parâmetro, ou de ponto de partida, em negativo, para o relato dos primeiros seguidores de Jesus. Eles não sabiam muito sobre o tema e nem se preocupavam com isso, pois consideravam sua vinda ao mundo como uma dádiva divina, oposta à opressão imperial romana, este o argumento central de Borg e Crossan. Outro grande elemento de inspiração parabólico está na leitura metafórica dos livros da Bíblia hebraica. Assim, Jesus aparece como novo Moisés em seqüências triádicas: separação, revelação, reunião; sonho/revelação, temor e interpretação.


O volume apresenta, de forma muito clara e didática, como a narrativa dos Evangelhos estava preocupada com dois aspectos: a crítica social e a luta pela justiça terra, por meio de uma apresentação metafórica desses objetivos. Consideram, portanto, o movimento dos primeiros seguidores de Jesus como parte de uma ampla e variada resistência ao domínio romano. Neste aspecto, os autores inserem-se entre as múltiplas tomadas de posição recentes, por parte da historiografia sobre o mundo romano, interessadas em estudar o mundo romano em sua diversidade e contradições. Em seguida, a leitura metafórica do relato bíblico está bem envolvida nas interpretações da História da Cultura como um campo de representações sociais. Em ambos os aspectos, portanto, os autores fazem parte de movimentos muito mais amplos e que alguns designam como pós-modernos e outros preferem chamar apenas crítica cultural. Haveria aqueles que se queixariam da pouca ênfase, nas abordagens de ambos os autores, na experiência religiosa, com seus aspectos variados, que vão dos contatos com o mundo espiritual – a apocalíptica, mas também outras sensações e interações metafísicas.


Outra obra importante merece ser mencionada: Marcus J. Borg e John Dominic Crossan, A Última Semana. Um relato detalhado dos dias finais de Jesus. Rio de Janeiro, Ediouro, 2010, tradução de Alves Calado. A Semana Santa é o ápice do calendário cristão, toda a fé está fundada nos dias finais de Jesus, que culminam no Domingo de Páscoa. Como disse Paulo de Tarso, se Jesus não ressuscitou, não há salvação cristã (I Cor. 15:14: “Se Cristo não ressuscitou, nossa proclamação e a fé de vocês foram em vão”). Os estudiosos do cristianismo inicial Borg e Crossan procuram, neste belo volume, explicar o caráter simbólico do relato da vida de Jesus e, em particular, dos seus últimos dias, como sumário de sua trajetória terrena. Não estão nem um pouco interessados em estabelecer, restabelecer, o que efetivamente aconteceu, buscar distinguir fato de ficção. Ao contrário, mostram, de maneira magistral, como apenas uma leitura alegórica, ou parabólica, como eles preferem designar, permite entender a lógica e profundidade do relato de Marcos sobre os dias finais de Jesus. Convém explicar o que eles entendem por parábola e como ela se diferencia da concepção moderna de verdade. Contrapõem a verdade positivista de algo que ocorreu e todos podem constatar de forma objetiva à subjetividade que está subjacente a uma narrativa verossímil, possível. A parábola do filho pródigo é, nesta perspectiva, prenhe de verdade, por conter uma lição: o filho gastador se afasta, gasta tudo e, quando volta para casa, é recebido pelo pai com júbilo.


Ninguém se pergunta se existiu um filho chamado tal, que tenha vivido em tal cidade, em tal época: o que importa é seu caráter universal. O mesmo é aplicado pelos autores a todos os relatos do Evangelho de Marcos e, em particular, no que se refere à sua entrada em Jerusalém, no Domingo de Ramos, até sua ressurreição no Domingo de Páscoa.


Seus argumentos são simples e claros. O relato de Marcos é grande parábola, não precisa ter nenhuma relação muito direta com os acontecimentos que uma câmera de gravação teria podido captar, se isso fosse possível àquela época. Interpretam toda a semana como uma contraposição de dois mundos, ou de duas concepções de mundo: a imperialista romana, baseada na força, e a messiânica hebraica, fundada no amor, na paz e na justiça na terra. A primeira representa a sociedade de classes, opressora, por oposição à visão camponesa da comunidade que tudo compartilha. Jesus entra montado num burrico, numa contra-parada, em relação à entrada de Pilatos e suas tropas, no Domingo de Ramos. Há dois reinos de deus em disputa: o de Roma, do imperador, aclamado como deus e filho de deus, fundado na paz resultante da violência e da dominação. E há outro reino de Deus, também nesta terra, com Jesus como Deus e filho de Deus, um caminho para a paz resultante do amor pelo próximo.


Em Marcos, nada busca descrever o que aconteceu. Tudo que se menciona tem um propósito simbólico. Assim, na terça-feira santa, Jesus, perguntado sobre o primeiro dos mandamentos, responde que “amarás o teu próximo como a ti mesmo” está junto com o amor a Deus, na frente de todos. Borg e Crossan não dizem que Jesus disse isso na terça: pouco importa. Ressoa o ensinamento de Jesus, de toda sua vida, tal como entendida por volta de 70 d.C., quando da redação do Evangelho de Marcos. E acrescentam: “amar o próximo significa recusar-se a aceitar as divisões entre respeitados e marginalizados, justos e pecadores, ricos e pobres, amigos e inimigos, judeus e gentios”.


A Páscoa, nesta leitura simbólica, representa que Jesus vive: não está entre os mortos, e sim entre os vivos. Jesus é o Senhor deste mundo e, portanto, os senhores deste mundo não o são. A Páscoa mostra que os sistemas de dominação deste mundo, como o romano e o americano, nos dias de hoje, não são obras de Deus e não persistirão. Nem todos os leitores compartilharão dessa perspectiva geral do volume, que interpreta as narrativas do Evangelho de Marcos e a vida de Jesus como entendida por seus seguidores iniciais como uma contestação da dominação de classe. No entanto, há um aspecto muito importante, bem explorado pelos autores: as diferenças de concepção do mundo dos antigos, sempre atentos à magia do mundo e alheios à noção moderna de fatos empíricos e de verdades objetivas que não dependam do observador. Os antigos, tanto gregos, romanos com hebreus, consideravam o mundo embebido em espiritualidade. O Salvador do mundo, com poderes divinos, podia ser o imperador ou Jesus, mas ambas as concepções eram religiosas e simbólicas. Por isso mesmo, a ressurreição de Jesus era tão crível quanto a ascensão do imperador morto ao mundo dos deuses. Por outro lado, a mensagem dos autores vai contra a leitura literal da Bíblia por fundamentalistas, uma leitura positivista, como eles afirmam, que busca apenas comprovar que tudo ocorreu como descrito, a despeito das contradições e divergências nos próprios textos antigos.


No Brasil, o estudo da Antiguidade tardou para desenvolver-se de forma profissional. A Universidade brasileira é tardia. Enquanto a América hispânica teve suas universidades em período colonial inicial, a universidade brasileira data do século XX e apenas começou a generalizar-se depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Os cursos de História surgiram aos poucos, com ênfase na História do Brasil, ainda que a História Antiga tenha constado dos currículos desde o início. A pesquisa só viria a consolidar-se aos poucos, com os cursos de mestrado e doutoramento, a partir da década de 1970. A História Antiga iniciou-se pela garra de aficionados que se interessavam pelo tema, mas que não tiveram, em grande parte, a oportunidade de conhecer a documentação antiga no original. A partir da década de 1980, o estudo histórico da Antiguidade torna-se mais profissional, com a crescente capacitação dos estudiosos, tanto no conhecimento dos idiomas antigos, como das outras fontes, em particular arqueológicas. O contato com a ciência internacional e a inserção na pesquisa mundial torna-se mais corrente, em especial a partir da década de 1990.


Nesta perspectiva, entende-se a trajetória dos estudos sobre a historicidade do cristianismo, no âmbito historiográfico brasileiro. Amadureceram as condições para o florescimento de pesquisas originais e isto por alguns motivos muito particulares. Por um lado, desde o período militar (1964-1985) as denominações cristãs passaram a ter uma influência crucial nos movimentos sociais. Multiplicaram-se as comunidades eclesiais de base, assim como as associações religiosas cristãs independentes. A alfabetização crescente dos segmentos populares, assim como as religiosidade emergentes, levaram à maior difusão não apenas da Bíblia, como de variada literatura espiritual. Com o restabelecimento das liberdades e do estado de direito, tudo isso levou à consolidação de um ambiente caracterizado pela diversidade religiosa, embora sempre em sua imensa maioria no espectro do cristianismo.


Estas mudanças formam o pano de fundo para o aumento exponencial de interesse, em seus diversos aspectos, por Jesus, os apóstolos e o cristianismo em geral. Surgiram produções brasileiras, tanto televisivas, como cinematográficas, voltadas para a vida de Jesus e seus seguidores, assim como programas radiofônicos, livros, revistas, CDs, DVDs, e muito mais. Marchas por Jesus, jogadores de futebol com camisetas cristãs, rezas em estádios, como nunca antes o cristianismo tornou-se tema não apenas de fé ou tradição, como de busca espiritual e de conhecimento. Tudo isto pode parecer distante da seara acadêmica, mas não convém esquecer que a ciência se faz a partir das ruas, das inquietações e dos movimentos sociais. Uma história da ciência que ultrapasse a História das Idéias, de cunho internalista, reconhece que o cerne das interpretações e compreensões científicas surge como resultante dos embates sociais. Costuma-se chamar a esta perspectiva de externalista, pois coloca a ênfase nas transformações científicas na sociedade, não no interior da ciência mesma, como se as idéias tivessem uma vida própria.


Assim, entende-se que a historiografia brasileira tenha se voltado, cada vez mais, para a religiosidade, de períodos mais recentes e mais distantes. A área de História Antiga, ao consolidar-se como campo de investigação especializado, não escapou a essa tendência. O reconhecimento da diversidade como valor, tanto no mundo como no Brasil, contribuiu, também, para que o estudo da religiosidade antiga ganhasse reconhecimento. O tempo das escolas monolíticas, das ortodoxias interpretativas e dos temas canônicos passara. Com isso, floresceram as pesquisas historiográficas sobre identidades, sentimentos, emoções, representações. O cristianismo antigo encontrou, neste ambiente, condições particularmente favoráveis. O interesse dos estudiosos pôde ser direcionado para a pesquisa acadêmica, ao corrente da literatura internacional, equipada com o comando do instrumental acadêmico, a partir do domínio da documentação escrita, material e iconográfica e das questões teóricas e metodológicas. Multiplicaram-se os centros de pesquisa historiográfica dedicados a estudos da temática cristã antiga.


John J.Collins: Flávio Josefo, a literatura apocalíptica e a revolta de 70 na Judéia


Este artigo discute as relações entre escatologia e concepção de história na obra do historiador judeu Flávio Josefo, tomando-se por eixos de análise tanto a relação por ele estabelecida entre as expectativas messiânicas dos judeus quanto às concepções meta históricas de sua obra, em si mesmas credoras da literatura apocalíptica.


Entre 74 e 79 d.C., o historiador judeu Flávio Josefo redigiu uma obra que teria lugar assegurado postumamente como um dos textos historiográficos mais famosos da Antigüidade - a Guerra dos judeus.

Pretendendo dar à Judéia do séc. I o mesmo tratamento historiográfico que Tucídides deu à Grécia do séc. V a.C., Josefo acabou indo além da mera cópia, fornecendo um quadro muito mais diversificado, em termos de abordagens explicativas, do que a mera imitação de Tucídides poderia supor. Este artigo pretende ser uma reflexão sobre uma das conexões causais estabelecidas por Josefo para explicar a guerra; farei aqui apenas considerações gerais que deverão ser aprofundadas oportunamente.

A Guerra dos judeus, daqui para frente apenas BJ, compõe-se de sete livros, que lhe conferem um tamanho comparável ao da Guerra do Peloponeso de Tucídides. Foi redigida, na forma em que nos chegou, em grego, ainda que tenha tido um original aramaico hoje perdido (BJ 1.1). Josefo deixou-nos ainda outras três obras, que serão de escasso interesse para o tema deste artigo: as Antigüidades judaicas (AJ, 20 livros, escritas após 93-94), o Contra Apião (CA, obra de apologética judaica em molde grego, posterior a 95), e uma Autobiografia (V, também escrita depois de 95). O peso da literatura apocalíptica na revolta judaica de 67 d.C. tem sido objeto de pouca discussão, ainda que as citações ligeiras abundem. Com exceção de um artigo importante de Per Bilde, o tema ainda não foi tratado de modo independente, ainda que sejam freqüentes referências ligeiras à relação apocalíptica / guerra da Judéia, tanto em autores antigos como modernos.

Este não é o lugar indicado para um tratamento da discussão moderna acerca da literatura apocalíptica; na verdade, não há o mínimo consenso sobre os termos essenciais de sua definição. Todavia, os elementos levantados por John J.Collins parecem suficientemente amplos para cobrir uma definição operacional útil da apocalíptica judaica. Segundo ele,

Apocalipse é um gênero de literatura revelatória com uma estrutura narrativa, na qual a revelação é mediada por um ser do outro mundo a um receptor humano, revelando uma realidade transcendente que é simultaneamente temporal, na medida em que busca salvação escatológica, e também espacial, na medida em que envolve outro mundo.

Collins pretende assim definir a apocalíptica tanto em termos da forma quanto do gênero. Nesse sentido, os apocalipses podem ser, na qualidade de textos literários, de dois tipos básicos:

1. Apocalipses com viagem ao outro mundo (extramundanos);

2. Apocalipses históricos.

Como gênero, é impróprio falar-se de “apocalipses”; somente poucos textos recebem esse rótulo nos manuscritos. Convém ainda distinguir entre “apocalipses” (textos de um gênero literário identificado tardiamente), “apocalipsismo” (movimentos religiosos que têm por base de identificação elementos encontráveis na literatura apocalíptica, mas que não se utilizam necessariamente da leitura dos textos apocalípticos) e “escatologia apocalíptica” (o conteúdo escatológico dos textos, i.e. sua composição teológica.

Não há acordo quanto aos elementos constitutivos da apocalíptica: no séc.XX foram feitas várias tentativas de sistematização, nenhuma delas totalmente satisfatória - como de resto não pode ser exaustiva ou perfeita qualquer classificação de elementos constitutivos de um gênero literário. Mesmo assim a definição de Collins parece a menos excludente e arbitrária.

Seja a apocalíptica entendida como gênero literário ou como movimento religioso, sua importância no mundo judaico do séc. I d.C. e no Mediterrâneo oriental como um todo é inegável. Josefo identifica o ardor messiânico com grupos políticos rebeldes da Judéia, ainda que freqüentemente de modo confuso. Os preconceitos do historiador judeu evidenciam-se de modo especialmente claro no mais eloqüente discurso de toda a sua obra, onde vincula um grupo político em particular à disseminação do crime pela Judéia:

[...] como poderíamos nós [os zelotes, grupo particularmente belicoso] esperar sermos os únicos sobreviventes de toda a nação dos judeus, como se diante de Deus fôssemos inocentes e isentos de crime - nós, que o ensinamos aos demais? (BJ 7.330)

Além disso, Josefo identifica um grupo particularmente violento de ativistas, os sicarii, com a militância religiosa, ao descrevê-los em termos semelhantes e consecutivamente:

[...] uma nova espécie de bandidos estava surgindo em Jerusalém, os chamados sicarii, que cometiam assassinatos à luz do dia, dentro da cidade [e, tendo cometido seus crimes com adagas curtas que traziam escondidas], juntavam-se ao choro e indignação gerais, nunca sendo descobertos [...] E além desses havia outro grupo de malfeitores, de mãos mais puras e intenções mais ímpias, que contribuíram tanto quanto os assassinos para o fim da paz na cidade. Mentirosos e impostores fingiam inspiração divina ao pretenderem mudanças revolucionárias, e persuadiram a multidão a agir de modo insensato, guiando-a ao deserto sob a crença de que lá Deus lhes mostraria os sinais da salvação. Félix, considerando isso o prenúncio de uma insurreição, enviou contra eles cavalaria e infantes pesadamente armados, e matou muitos (BJ 2.254-260).

A repulsa de Josefo pela apocalíptica ou inspiração profética manifesta-se de modo intenso quando se trata de denegrir indivíduos das camadas mais baixas da população, como no trecho subseqüente ao anterior:

Um golpe ainda mais duro foi dado aos judeus pelo falso profeta egípcio. Um charlatão, que tinha obtido para si próprio a reputação de profeta, esse homem apareceu no país e reuniu atrás de si uns 30 mil tolos, e liderou-os por um caminho tortuoso do deserto até o monte denominado das Oliveiras. Dali pretendeu entrar à força em Jerusalém e, após dominar a guarnição romana, tornar-se tirano do povo, empregando os que o tivessem acompanhado na invasão como sua guarda pessoal [...] Como resultado, o egípcio escapou com alguns de seus seguidores, a maior parte da força que o acompanhava foi morta ou tomada como prisioneira; o restante dispersou-se e voltou discretamente aos seus lares (BJ 2.261-263).

Estas são algumas das passagens de BJ mais importantes para a relação que Josefo estabelece entre o ardor messiânico e a guerra contra Roma. Neste artigo, discuto as relações entre a literatura apocalíptica e Josefo em torno de dois eixos centrais - a presença da apocalíptica como elemento constitutivo na obra de Josefo, e o que ele tem a dizer sobre a apocalíptica como combustível para a revolta. Na verdade o próprio Josefo não tem essa distinção posta com tanta clareza, uma vez que ele tanto se compara, envaidecido, a Daniel como repudia os rebeldes pela pretensão de interpretarem oráculos e trechos apocalípticos. Uma questão adicional se coloca pelo fato de que, como vimos acima, “literatura apocalíptica” como gênero é uma categoria moderna (e das mais recentes); não é sinônimo de expectativa messiânica, mas torna-se impossível distinguir uma de outra no mundo que Josefo descreve. É bem verdade também que nem todo líder com pretensões religiosas à realeza era necessariamente um líder messiânico - por exemplo, os casos do pastor Atronges em 4 a.C. (BJ 2.60-5 e AJ 17.278-84) e o do “falso profeta” egípcio surgido durante o governo de Félix, citado acima.


Em suma, mesmo não sendo categorias idênticas, profetas falsos e verdadeiros, livros apocalípticos, oráculos sibilinos e o texto bíblico reconhecido como sagrado na época de Josefo misturam-se. Longe de indicar confusão mental por parte de Josefo, essa mescla sublinha apenas a artificialidade das categorias que nós impomos à religiosidade judaica da época da revolta - artificialidade que, se não temos como evitar podemos ao menos olhar com suspeição.

As dificuldades que as afirmações de Josefo sobre o peso dos apocalipses e assemelhados nos colocam são muitas, mas não são de forma alguma incontornáveis. Devemos ter em conta, antes de tudo, duas coisas: Josefo não concebe a apocalíptica como gênero literário próprio, e nem leva em conta a noção de pseudepigrafia - i.e. não aborda Daniel criticamente, considerando-o um profeta do séc.VI a.C. e não como um apocalipse redigido em nome do personagem Daniel, muito posteriormente (séc.II a.C.). Mas são dificuldades que não se pode evitar; vejamos dois artigos que tratam mais detidamente da relação Josefo-apocalíptica, os de Per Bilde e de Arnaldo Momigliano.

Começemos pela análise do artigo de Momigliano, “What Josephus did not see”. A idéia central do autor é a de que o judaísmo de Josefo é apenas retórico, sendo “insosso e sem cor”, já que Josefo ignora duas das principais instituições judaicas da época, a sinagoga e a literatura apocalíptica.

Quanto à sinagoga, ela aparece efetivamente na obra de Josefo, ainda que en passant: ao ter de visitar uma na Galiléia, subitamente Josefo se vê ameaçado de morte e tem de fugir (V 293 ss.). Mas para a outra ausência, que nos interessa mais detidamente, não há como defender o ponto de vista de Momigliano.

Josefo não discute a literatura apocalíptica (seria excessivo pedir que o fizesse), mas a conhece, e de modo bastante completo: cita um apocalipse extensamente (Dn) e dá indicações de conhecer bem o livro 3 dos Oráculos sibilinos, que não são propriamente um apocalipse, mas têm muito em comum com eles (e que repetem um tema clássico na Antigüidade, o da vingança da Ásia sobre o Ocidente). A questão da ausência de referências precisas dos apocalipses em Josefo não deve conduzir à idéia de que ele os desconhecia. Momigliano opta aqui pelo caminho mais fácil, não levando em conta as complexidades do problema.

O artigo de Per Bilde é, sob todos os aspectos, melhor informado que o de Momigliano. Bilde pretende um exame mais criterioso dos termos relacionados aos apocalipses, tal como aparecem na obra de Josefo.

O termo apokalypsis não aparece na obra de Josefo, embora o verbo apokalyptein surja em quatro oportunidades (BJ 1.297, 5.350; AJ 12.90, 14.406 = BJ 1.297). Josefo usa outros termos para falar das revelações do oculto que lhe são feitas por Deus; Para a “revelação” do divino usa outros termos (p.ex. a)dh/lwn para falar de Dn, em AJ 10.210 ou deiknymi - e)pideiknu\j - em AJ 10.271; 277; no mesmo sentido apocalíptico, dhlw=n é usado em AJ 4.105; 10.177, 195, 198, 201, 202, 205, 208, 272. Mesmo quando se trata da revelação por meio de sonhos (algo que Josefo e Daniel têm em comum), o termo utilizado pelo historiador é proesêmanen para indicar aquilo que Deus havia lhe mostrado em sonhos.

Convém ressaltar aqui uma das afirmações do artigo de Bilde: Momigliano parece entender por apocalíptica apenas a escatologia militante que supõe ter sido combustível na revolta contra Roma. Se ela foi determinante na eclosão da revolta ou não, é questão que deixo em aberto; todavia, não se pode tratá-la de modo tão uniforme. O fato de a apocalíptica ser prolífica em imprecações anti-gregas ou anti-romanas não faz dela um gênero panfletário, ou pelo menos não a reduz a isso. Na verdade, ao colocar tanta ênfase na correção das mazelas terrenas por meios sobrenaturais, a apocalíptica pode conduzir antes ao quietismo místico do que à ação política direta. Além disso, a apocalíptica é solidária do desenvolvimento da idéia da ressurreição dos mortos (logo, da possibilidade de salvação individual); não se tem como avaliar o impacto da mudança de expectativa com a idéia de uma ressurreição individual - mas o gerado pela noção de era messiânica foi enorme. É de se supor, no entanto, que a precipitação do Juízo por meio da ação direta contra Roma não fosse a única via de atuação aberta aos apocalípticos. Retomarei o tema adiante.

Josefo possui três grandes “modelos” estilísticos e de conduta, que ele busca imitar: Tucídides, Daniel e Jeremias. A comparação de si mesmo aos profetas inspirados surge em vários pontos de BJ, destacando-se 3.350-354; 400-402. Posta sob a luz da imitação de profetas e personagens bíblicos em geral por Josefo, a relação entre ele e a apocalíptica reveste-se de outros problemas - o das concepções metahistóricas em geral na historiografia antiga, ou mais simplesmente do peso do judaísmo na formação da idéia de história em Josefo. Mas isso já nos leva além do escopo deste artigo e nos faria incorrer nas mesmas falhas de Momigliano e Bilde - não se trata aqui de discutir a natureza das relações entre apocalíptica e historiografia e Josefo do ponto de vista da estrutura da obra, mas de verificar o peso da apocalíptica nos eventos que Josefo descreve - e não na forma pela qual eles são descritos. Vista como a atividade profética viva no tempo de Josefo, a apocalíptica acaba por envolvê-lo também, na medida em que ele possui certos dons em comum com os heróis dos apocalipses - recebe a missão de revelar segredos por parte de Deus, é exímio em interpretar sonhos e tem a chave para o entendimento da história dos homens.

Dentro da indistinção que Josefo mantém entre profecia e apocalipses, um elemento soa particularmente estranho. Nos livros proféticos, as nações dos gentios são instrumentos divinos para a punição dos judeus (ex. Is 41; Jr 25); nos apocalipses, pelo contrário, são adversários da divindade. Josefo une esses dois pontos de vista, aparentemente contraditórios entre si, ao afirmar que Roma é potência mundial pela graça de Deus (ponto de vista profético), ao mesmo tempo em que evita falar da interpretação de Dn que define Roma como a quarta e última monarquia (ponto de vista apocalíptico). Portanto, mesmo pretendendo seguir Tucídides tão de perto quanto possível, Josefo repete o padrão de compreensão da história deuteronômico - pecado - punição - perdão.

De todo modo, misturar os elementos apocalípticos com os historiográficos em Josefo só faz adicionar complicadores à questão: apocalipses tratam da história em termos de seu sentido geral e não da análise racional de eventos particulares do passado. Um texto historiográfico, ainda que não tenha como se isentar de concepções metahistóricas, religiosas ou seculares, apóia-se nas evidências de que o historiador dispõe, e que lhe impõem limites. Nesse sentido, não há como considerar Josefo, Daniel ou o apocalipse siríaco de Baruch (2Br) como semelhantes. Foi feita uma tentativa particularmente desastrada nesse sentido por parte de Pierre Vidal-Naquet, o qual afirma que o discurso de Eleazar ben Yair aos defensores de Masada (última fortaleza a ceder aos romanos) seria um apocalipse. O discurso consiste numa longa e erudita exortação ao suicídio, tido por Eleazar como preferível à desonra da captura; sob qualquer ângulo que se analise, um discurso típico da historiografia antiga. Não se tem como levar a sério a afirmação de Vidal-Naquet - a menos que esvaziemos o termo “apocalipse” de qualquer significação precisa, e o utilizemos em sentido vulgar. Nesse caso, qualquer texto de tom mais sombrio passa a ser um “apocalipse”; tal é a conseqüência lógica do raciocínio de Vidal-Naquet, que no entanto admite a semelhança essencial do discurso de Masada com outros na historiografia antiga.

Para o outro aspecto da discussão (o da culpa que Josefo atribui à expectativa messiânica), faz-se necessária uma análise das relações que Josefo estabelece entre a dissensão civil na Judéia (stasis), a guerra contra Roma e a referida literatura apocalíptica produzida até o final do séc.I d.C., já que por vezes todo esse conjunto de referências parece se entrecortar na perspectiva de Josefo. Apesar do esforço para fazer dialogar entre si conceitos tão diferentes como stasis e messianismo, deve-se ter em mente que Josefo foi virtualmente ignorado tanto pelo público greco-romano quanto pelos judeus, tendo sido catapultado para a divulgação universal pela patrística; o público judeu a que Josefo parece endereçar-se no começo de BJ acabou lendo-o de modo imprevisto, em termos de exortação à piedade religiosa e resistência cultural. Um fenômeno de difícil explicação a esse respeito é o fato do único manuscrito completo do Apocalipse siríaco de Baruch (2Br), o Ambrosiano, ter junto de si o livro 6 de BJ - que trata da queda de Jerusalém. Mais bizarro ainda é o fato desse trecho de Josefo ser apresentado, no Ambrosiano, com o título de Quinto livro dos Macabeus (5Mc).

As primeiras referências que encontrei para o estudo do tema deste artigo surgiram com as leituras das obras de Martin Goodman, Mireille Hadas-Lebel e Norman Cohn, autores que tratam, todos, dos vínculos entre apocalíptica e a guerra. O ponto de vista de Hadas-Lebel e Cohn é o mais comum, escusando de maiores discussões: para eles, a apocalíptica possui inequivocamente uma parcela de responsabilidade nos eventos que culminarão com a destruição do Templo.

Todos os autores que tratam do tema têm, com pequenas variações, admitido a análise de Josefo relacionando a eclosão da revolta à expectativa apocalíptica como verdadeira e sincera. A exceção notável é a obra de Martin Goodman supracitada. Para ele, a revolta foi apenas uma tentativa de golpe das elites judaicas sobre Roma; Josefo, ele próprio mais comprometido com a revolta do que gostaria de admitir aos seus novos amigos romanos, trata simplesmente de isentar a elite judaica da responsabilidade pela guerra, preferindo atribuí-la às camadas mais baixas da população e aos líderes rebeldes que, em seu desvario, inflamaram o populacho contra Roma. Em linhas gerais, a tese de Goodman consiste em relativizar a importância da apocalíptica como instrumento de propaganda política anti-romana - e apóia-se para isso no argumento lógico de que, ao supor uma salvação transcendente, a apocalíptica revela-se muito mais quietista do que revolucionária.

Outro caminho para a avaliação do peso das expectativas de iminência escatológica presentes na revolta de 70 é o estudo comparativo dos diversos personagens proféticos, leigos ou sacerdotais, que surgem na obra de Josefo, mas a indistinção que o historiador mantém entre gêneros literários diferentes não diminui a relevância do estudo da presença apocalíptica na sua obra.

Um tema correlato que merece tratamento individual é a relação que Josefo estabelece entre a chamada “Quarta Filosofia” e a revolta. Para efeitos didáticos, Josefo oferece aos seus leitores um quadro sinótico da religiosidade judaica de seu tempo, afirmando existirem quatro “filosofias” - fariseus, saduceus, essênios e a “Quarta Filosofia”. As definições dos três primeiros segmentos não nos dizem respeito aqui, mas esse último grupo, segundo Josefo, iguala-se aos fariseus em suas concepções teológicas – com a diferença importante de nutrir um amor à liberdade extremado e não aceitar, em hipótese alguma, a dominação romana.

Mas além da honestidade de Josefo ser questionável (aqui como em todas as passagens em que ele descreve seus opositores, ou os que não compartilham de suas idéias), há um argumento adicional a ser considerado, levantado por Martin Goodman. A expectativa messiânica e seu veículo de divulgação, a literatura apocalíptica, não foram “inventados” nos anos que antecederam a revolta. Em 70, ambos já têm mais de dois séculos de desenvolvimento atrás de si, sem contar suas raízes mais distantes no AT. Tudo isso sugere que a expectativa messiânica que envolvia as tribulações da era imediatamente anterior ao Messias não era o principal fator de agitação das massas - antes baseava-se na aceitação plena e passiva dos males do momento como etapas antecipadoras da vinda do Messias.

Fervorosa expectativa milenar podia coexistir com lealdade completa à ordem política: como em círculos cristãos do século II, assim também na Judéia tais esperanças poderiam provocar apenas quietismo político.

Contra essa tese, pode-se objetar que a formulação teológica de um conceito não exige sua aplicação prática imediata, e que teriam sido necessários todos os demais fatores étnicos, econômicos e administrativos citados por Josefo para fazer com que a apocalíptica se tornasse, finalmente, uma força explosiva na Judéia do séc.I.

Os “falsos profetas”, denunciados com tanto vigor por Josefo, podem igualmente constituir um canal para se entender a penetração popular da literatura apocalíptica no seio dos revoltosos (AJ 17.278-284;20.171 e BJ 2.60-65,262,263;6.283-285); novamente coloca-se a indistinção, pelo historiador, entre profetas, apocalípticos e divinadores em geral. Como elemento diferenciador básico entre literatura profética e apocalíptica, modernamente adota-se o critério de considerar a primeira um tipo de literatura originário da tradição oral e a segunda, um gênero que desde o seu surgimento veicula-se sob a forma de livro. Outras características da apocalíptica, como a pseudonímia, as viagens pelos céus etc. não têm como ser analisadas em detalhe aqui. Mas algumas das referências de Josefo aos falsos profetas merecem ser consideradas ainda que brevemente, uma vez que o tipo de atitude que descrevem está muitas vezes em conformidade com outras evidências para o profetismo da época (NT, Qumran, apocalíptica). Um caso dos mais notáveis em sua obra é o dos judeus mortos no Templo, aguardando o Messias (BJ 6.283-285):

Eles devem sua destruição a um falso profeta, que naquele dia proclamou ao povo da cidade que Deus lhes mandara subir ao Monte do Templo, para receber os sinais de sua salvação. Vários profetas, naquela época, foram subornados pelos tiranos [termo pelo qual Josefo designa ofensivamente os líderes rebeldes] para iludir o povo, exortando-o a aguardar o socorro divino, com o intuito de desencorajar as deserções e exortar os que estavam acima do medo e da precaução a terem esperança. Na adversidade os homens são persuadidos com facilidade; mas quando o impostor promete alívio das tribulações, então os que sofrem entregam-se por completo à expectativa (BJ 6.285-287).

Esse é um tema que merece atenção especial. Com todo o seu cinismo, Josefo não chega ao extremo de Políbio, que diz explicitamente que a religião é um instrumento de controle das massas; porém, a vinculação feita por Josefo entre oportunismo político e ativismo messiânico é única entre os grandes historiadores antigos. Em casos mais recentes, essa associação é moeda-comum - em seu estudo sobre movimentos milenaristas e messiânicos no norte da Europa ao longo da Idade Média e até o séc.XVII, Norman Cohn fornece exemplos à exaustão de indivíduos que buscaram, na predição do milênio, o proveito pessoal. O testemunho de Josefo, todavia, deve ser tomado com grande reserva, uma vez que sua parcialidade para com os líderes rebeldes é notória e a alegação de suborno pode ser apenas mais um insulto lançado sem cuidado ou compromisso com as evidências lançado por Josefo contra os revoltosos. Talvez seja apenas, como resmunga Vidal-Naquet, o “feroz espírito de classe de Josefo” em ação.

Outro aspecto que se manifesta tanto na apocalíptica strictu sensu quanto nas formulações metahistóricas de Josefo é o da adivinhação onírica; têm sido publicados diversos estudos acerca do papel das práticas divinatórias ligadas ao sono e aos sonhos. Eles representam elementos fundamentais da cadeia explicativa concebida por Josefo para explicar tanto o curso da história em geral como sua deserção individual para o campo romano - o episódio do sonho que o historiador teve em Jotapata é decisivo; nele, fica claro que o “governante do mundo” de que falam certos textos - Josefo não nos diz quais, talvez os Oráculos sibilinos 3.350-380 - é o imperador Vespasiano, e não o messias de Israel:

Refletindo sobre essas coisas [a morte de um certo Jesus, tido como louco e que passava os dias a apregoar aos berros a ruína de Jerusalém] vemos que Deus se importa com os homens, mostra ao Seu povo, por meio de todo tipo de sinais, o caminho da salvação, enquanto a sua destruição é devida à loucura e calamidades geradas por eles mesmos [...] Mas o que os incitou à guerra mais do que tudo foi um oráculo ambíguo, encontrado em seus livros sagrados, que dizia que naquele tempo alguém do seu país tornar-se-ia governante do mundo. Eles entenderam isso como dizendo respeito a alguém de sua própria raça, e muitos sábios se perderam com essa interpretação. O oráculo, na verdade, dizia respeito à ascensão de Vespasiano, proclamado imperador em solo judaico. Por tudo isso, é impossível aos homens escaparem ao próprio destino, mesmo quando podem antevê-lo (BJ 6.310-315).

Na literatura apocalíptica a referência a sonhos e processos onírico-divinatórios é também freqüente; o próprio Josefo tem pelo menos um sonho de importância crucial para a obra e para o desenvolvimento de sua concepção providencial de história:

[...] subitamente vieram à sua mente aqueles sonhos noturnos, nos quais Deus lhe tinha revelado o destino iminente dos judeus e dos soberanos romanos. Ele [Josefo] era um intérprete de sonhos e hábil em adivinhar os proferimentos ambíguos da divindade; ele mesmo era sacerdote, e descendente de sacerdotes, e ele não ignorava as profecias dos livros sagrados. Naquele momento teve a inspiração de ler seu significado, e, lembrando-se das imagens recentes de sonhos terríveis, rezou em silêncio a Deus. ‘Já que Te agrada’, ele disse, ‘a Ti que criaste a nação dos judeus, destruir a Tua obra, já que a fortuna passou para os romanos, e já que Escolheste meu espírito para anunciar o que está por vir, rendo-me de boa vontade aos romanos e me permitirei viver; mas És testemunha de que não vou como traidor, mas como Teu ministro (BJ 3.352-354).

Mais do que isso, Josefo possui uma concepção meta-histórica semelhante à do livro de Daniel - mesmo a divergência no que respeita à interpretação de Roma como a última monarquia não pode ser computada como diferença quanto a Daniel, já que a identificação com Roma é tardia e não da época da redação efetiva do livro. Ambas supõem que o governo do mundo só pode ser exercido por consentimento ou comando divino - embora a coexistência da “fortuna” com Deus forneça um toque exótico à argumentação de Josefo.

Não obstante, não são apenas algumas tradições recentes que associam Roma à quarta monarquia; é o entendimento corrente em São Jerônimo e na patrística, embora a interpretação que nega que o quarto reino seja Roma e sim a Grécia seja mais antiga (e correta) - 4Esd 12:10-12 e OrSib 3.397. É também a da versão siríaca (Dn 7:7 peshitta).


O papel de Roma como potência estrangeira, pagã, inimiga de Deus etc. é virtualmente eliminado pelo historiador judeu como elemento causador ou potencializador da revolta, uma vez que Josefo não está particularmente interessado nas causas da guerra, mas antes no que conduziu à destruição do Templo; nesse sentido, Josefo lista os erros dos rebeldes, responsáveis pela queda da cidade: essencialmente a crueldade, o pecado e o autoritarismo. E por “pecado” os apologetas cristãos entenderam tratar-se da morte de Jesus - um trecho de AJ que, interpolação parcial ou total, merece atenção mínima de Josefo (AJ 18.63-64).

A ênfase na herança clássica de Josefo, minimizando as conexões judaicas de sua formação e de sua obra, pode ainda levar o pesquisador a questões errôneas ou mal formuladas, como a da aparente incompatibilidade da noção pagã de tyché (empréstimo de Políbio) e o papel de Deus na história; nesse caso não há qualquer complicação maior, já que, ainda que o historiador judeu use os dois termos indistintamente, a ação da Fortuna permanece sempre subordinada aos planos divinos, e não chega a haver contradição, na ótica de Josefo, em se servir simultaneamente do instrumental clássico da historiografia grega e da tradição judaica. Mas o uso do termo grego não deixa de manter o monoteísmo essencial de sua reflexão sobre a história, veiculado muitas vezes sob a forma de discursos postos na boca de generais romanos.

Evidentemente, é mais fácil discutir a presença de concepções apocalípticas em Josefo do que definir o papel da apocalíptica e da expectativa messiânica que lhe corresponde como fatores decisivos na guerra (na realidade a escassez documental é tão grande que o máximo que se pode tentar fazer é aquilatar o papel da apocalíptica como elemento explicativo em Josefo, e não na guerra em si. A limitação do objeto é tanto mais necessária pelo fato de Josefo ser muitas vezes a única evidência de que dispomos para a revolta de 70).

A questão da relevância da literatura apocalíptica na eclosão e desenvolvimento da guerra contra os romanos insere-se no âmbito mais geral das condições de leitura dos apocalipses no mundo antigo. E à semelhança da questão inicial que motivou este artigo, esta última também é de difícil encaminhamento.

Um exame inicial dos textos apocalípticos que chegaram até nós leva à conclusão de que se trata de textos consumidos oralmente, segundo alguns por grupos marginais dentro do cristianismo e/ou do judaísmo. Mesmo Qumran, onde os textos de teor apocalíptico são tão comuns, muitas vezes é definida como “seita apocalíptica”. A princípio nada de falso ao definir os qumranitas e cristãos primitivos desse modo, mas ao mesmo tempo é um modo demasiado simplista de colocar a questão.

Enxergamos a apocalíptica como marginal na época de Josefo por vermos seu desenvolvimento à luz de exclusões sucessivas, tanto para a formação do cânon judaico quanto do cristão. Para o que se denomina Antigo Testamento entre os cristãos e Tanak para os judeus resta, como evidência da enorme produção apocalíptica, apenas o livro de Daniel (significativamente não incluído entre os Profetas no cânon judaico, mas posto entre os Escritos); e no Novo Testamento, apenas o Apocalipse de João. No entanto, os processos de exclusão desses textos (que se pode presumir tivessem efetivamente potencial explosivo no séc.I) não conduzem à conclusão de que fossem consumidos por grupos sectários. Na verdade qualquer conclusão sobre quem consumia, e em que condições se dava o consumo da literatura apocalíptica entre judeus e cristãos é extremamente arriscada.

À medida que avançamos no tempo, torna-se relativamente mais fácil tratar da questão das condições de consumo da apocalíptica. Particularmente notável, nesse sentido, é o artigo recente de David Frankfurter, “The legacy of Jewish Apocalypses in early Christianity: regional trajectories”. O autor começa perguntando-se se a questão das condições específicas de leitura dos apocalipses não estaria mal formulada, posto que talvez não diferissem muito das condições de leitura da Bíblia em geral; em 4Esd 14:45-47 há evidências de que alguns apocalipses eram mais reverenciados do que a torah. Não sendo possível resolver a questão do consumo da apocalíptica “no atacado”, i.e. em todo o Mediterrâneo, Frankfurter opta pelo approach regional, tratando basicamente de Ásia Menor e Egito, locais onde a documentação é mais abundante para o problema.

Talvez a contribuição mais original de Frankfurter resida no fato de que, ao contrário de Bilde (que considera a apocalíptica uma apresentação literária de conhecimento esotérico) e de Collins (para quem a apocalíptica é, antes de tudo, um gênero literário com características bem definidas), ele trata a apocalíptica como uma experiência visionária. Ao fazê-lo, questões como a da interpolação de trechos, remissões ao AT ou NT ou da identificação do grupo consumidor básico tornam-se secundárias, e nosso ângulo de observação torna-se mais cômodo.

Frankfurter trata basicamente da sobrevivência da apocalíptica em grupos cristãos do séc.II em diante, o que nos afasta do tema deste artigo. No entanto, o raciocínio geral do autor pode ser transposto para o universo específico que nos interessa aqui, o da Judéia de Flávio Josefo. Segundo Frankfurter, a propaganda milenarista anterior a 116 deve ter circulado muito mais como tradição oral do que como literatura. O mesmo autor nos lembra ainda que a freqüência com que ocorre o termo “apocalipse” na biblioteca de Nag Hammadi não deve nos iludir, pois o termo só entrou em uso corrente no séc.II d.C. e é utilizado apenas retrospectivamente para tratar da apocalíptica judaica. O termo surge em Nag Hammadi como mais um elemento na tendência mediterrânea de nomear textos e bibliotecas.

Em suma, não se pode afirmar categoricamente que a apocalíptica judaica do tempo de Josefo fosse um complexo fechado e acabado de textos, leitores e militantes; nem a leitura atenta dos apocalipses nem Josefo permitem tirar essa conclusão, muito próxima do raciocínio preconceituoso que enxerga a apocalíptica à luz de sua exclusão canônica. A analogia com os apocalípticos de Frankfurter ou de Cohn leva-nos à mesma conclusão, favorável à diversidade de leitores, condições de consumo e à possibilidade de opção militante ou quietista. Resta um problema apontado por Josefo, ao qual nem sempre se tem prestado a devida atenção e que pode ser decisivo para um melhor entendimento do papel da apocalíptica nos eventos que conduziriam à destruição do Templo em 70.

Embora adote um ponto de vista teológico quanto ao sentido da história, como investigador Josefo fornece explicações absolutamente racionais para a eclosão da revolta; poderíamos sintetizar no seguinte quadro as causas listadas pelo historiador judeu como responsáveis pela guerra:

1. A malignidade dos governadores romanos;

2. A opressão anormal do domínio romano (as rebeliões de 57, 55 e 49 a.C seriam prova disso); lembremos que em 40 a.C., a invasão parta foi bem vista pelos judeus. Tácito registrou queixas graves contra os impostos em 17 d.C. (Anais. 2.42);

3. As suscetibilidades religiosas dos judeus

4. As tensões de classe (Josefo refere-se a uma “doença” que teria feito pobres e ricos se antagonizarem de modo nunca antes visto nos anos que antecederam a revolta (BJ 7.260-261);

5. As desavenças com os não-judeus locais; os asmoneus não conseguiram converter seus súditos gregos, ao contrário do que ocorria na Galiléia e na Iduméia, onde foram feitas inúmeras conversões ao judaísmo.

Devemos sempre ser cautelosos quando Josefo coloca a culpa nos ombros de outrem; como bem lembra Martin Goodman, “[...] Josefo, quando quer enganar [mente] com mentiras não sobre os fatos, mas sobre a interpretação dos mesmos”. Portanto, atacar os procuradores romanos é demasiado fácil para Josefo (não são senadores, mas membros da ordem eqüestre, parvenus e arrivistas que Josefo adora ofender); questionar os valores gregos justificando as peculiaridades religiosas dos judeus também é simples (na verdade Josefo já faria isso de modo exímio no Contra Apião); resta a questão de classe que, em última análise, é apenas uma forma diferente de definir quem é o público consumidor da literatura apocalíptica. Josefo, ao responsabilizar os radicais judeus (“Quarta Filosofia”, zelotes, sicarii), joga para as camadas mais baixas da população a responsabilidade pelo desvario da guerra - manifestando mais uma vez o “feroz espírito de classe” de que fala Vidal-Naquet e procurando isentar as elites da Judéia de culpa no episódio (tese geral de Goodman).

A maior parte da teologia judaica no período nutria a esperança de independência política em alguma época futura indefinida, e não considerava obrigatória qualquer ação concreta para alcançar tal liberdade. Nesse sentido os judeus eram semelhantes a outras civilizações antigas, que pretendiam que seus deuses nacionais as defendiam de outros povos. É portanto difícil relacionar as críticas apocalípticas ao helenismo com a revolta, pois a helenização sob Roma não estava sendo mais intensa do que a que já vinha sendo praticada anteriormente. Prova disso é que inúmeros elementos gregos foram incorporados à vida judaica, deliberadamente e sem traumas; mesmo os textos que narram a epopéia judaica de resistência ao helenismo estão redigidos em grego (os livros dos Macabeus).

Mas ainda que Josefo tenha exagerado em seus ataques aos procuradores romanos, ou retratado de modo demasiado ofensivo os que interpretavam os apocalipses em termos de redenção nacional judaica, o quadro de anomia por ele descrito não deve, em seu conjunto, ser falso; supor que seja torna obrigatório nutrir a mesma desconfiança com relação a todo e qualquer historiador da Antigüidade. Não temos como saber com exatidão quais eram as condições de consumo da apocalíptica em sua época, nem quem se servia desses textos, nem mesmo qual a proporção de judeus que alimentava a expectativa messiânica ao tempo da guerra. Também aqui podemos proceder por analogia com movimentos posteriores que possuem elementos em comum com os fornecidos por Josefo. O quadro que emerge, tomando-se por base as considerações estabelecidas por inúmeros autores de peso no campo dos estudos ligados ao messianismo - como Queiroz, Cohn, Lanternari e Worsley, para citar apenas quatro - é francamente favorável à sinceridade de Josefo; condições de anomia são o solo ideal para o surgimento e desenvolvimento de expectativas de transformação súbita, completa e sobrenatural do mundo em que se vive.

Os apocalípticos, ao interpretarem os sinais de modo equivocado, efetuaram uma operação em tudo muito semelhante à que o próprio Josefo fez e descreveu em BJ 6.315 - obtendo, em seu otimismo, um resultado tão desastroso quanto o que os índios americanos de Tzvetan Todorov conseguiram ao interpretar pessimisticamente seus próprios oráculos, face à invasão espanhola.

Este