segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Robert Funk e o polêmico Seminário de Jesus

Como o pão, massa que toma a forma e a consistência de quem a manipula, Jesus Cristo moldou-se ao imaginário dos povos e se tornou a figura mais importante da história da humanidade.

Seminário de Jesus é uma organização internacional, centrada nos Estados Unidos, que reúne cerca de uma centena de acadêmicos e estudiosos da Bíblia. Em debates frenéticos, o grupo procura atestar a veracidade do que foi escrito nos evangelhos do Novo Testamento sobre a vida e as palavras de Jesus. Funciona, portanto, como uma espécie de cartório, onde se autenticam documentos. São implacáveis nesta função. Enfurecendo cristãos de todas as correntes, os membros do seminário já classificaram de falsas passagens como a Natividade, a Ressurreição, o Sermão da Montanha, a traição de Judas Iscariotes e boa parte das máximas atribuídas a Cristo. Mas nem mesmo esta brigada de agnósticos põe em dúvida o fato de que o profeta de Nazaré comparou o vinho a seu sangue e o pão a seu corpo. Essa metáfora, reconheça-se, tem propriedades particularmente primorosas. Não apenas serve à liturgia cristã, como também ajuda a explicar a longevidade e resistência de uma figura que, em circunstâncias normais, teria sido relegada ao pó há muito tempo. É assombroso que um carpinteiro dos confins do Império Romano tenha se transformado na pessoa mais importante e influente da história da humanidade. Jesus Cristo é o pão: a massa que toma a forma e consistência desejada por quem a manipula. Molda-se ao imaginário de cada um para preencher necessidades. Este é o mistério de sua permanência na vida dos homens e o milagre de sua multiplicação.

Assim como na Ressurreição, Cristo extrapolou os limites exteriores da matéria e ganhou, na crença dos homens, várias configurações. São feitios distintos que competem entre si. O Cristo cultuado hoje já foi em outros tempos, por exemplo, a divindade tripartite da barroca mitologia maniqueísta, que postou um de seus três Jesus, cheio de esplendor, vivendo na Lua. É bom lembrar, para aqueles que acham maluca esta concepção, que Santo Agostinho, um dos maiores filósofos da Igreja Católica, acreditava piamente nesta versão antes de abandonar o maniqueísmo e se converter ao cristianismo. A filosofia maniqueísta, que propunha a eterna luta entre as forças da luz e da escuridão, foi inspirada por Manu – um cristão da Mesopotâmia do terceiro século. Seus adeptos se espalharam do Norte da África ao Sul da China. Na Ásia Central, por exemplo, Jesus foi imortalizado ao fundir-se com a deidade budista Maitreya, numa metamorfose que gerou o futuro Budhisatva – que, igual a Cristo, voltará no final dos tempos. Essa figura entusiasmou os chineses a ponto de provocar a rebelião que derrubou o poderoso Kublai Khan, no século XIV. A dinastia resultante – talvez a mais famosa da China – dedicou seu nome, Ming, a seus soldados da “Luz” – como eram conhecidos os devotos da seita Ming-chiao, seguidores desta espécie de Cristo budista. E a luminosa dinastia Ming, centenas de anos depois, serviria de inspiração aos filósofos europeus do Iluminismo, com suas idéias seculares que questionavam os ensinamentos de Cristo. Neste caso, Deus escreveu certo por linhas tortas: Jesus está no coração dos incréus iluministas.

No entanto, a gênese de toda esta influência é uma figura da qual se tem escassas provas sobre a autenticidade de sua existência real, para além da fé. “Não há confirmação irrefutável de que o homem Jesus tenha vivido”, diz Robert Funk, teólogo da Universidade de Montana e um dos bravos acadêmicos do Seminário de Jesus. “Existem argumentos propondo que Jesus é a somatória de várias personagens, ou que sua pessoa possa ter sido inflada até chegar à condição de mito”, diz. De fato, é preciso se entregar a uma formidável devoção ao fundamentalismo para se acreditar piamente no que a Bíblia contém sobre o assunto. As Escrituras são contraditórias e incompletas. Na verdade, mais simbólicas do que documentais.

Evangelhos – De todo modo, desde o século III, a história de Jesus se baseia principalmente nos quatro textos canônicos que constam do Novo Testamento. Os Evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João, escritos em grego, são relatos de quem supostamente teria conhecido Jesus pessoalmente. Em 1945, seriam descobertos no Egito os manuscritos Nag Hammadi, que contêm um segmento que é chamado Escrituras de Tomás. O texto é desprovido de narrativa biográfica de Jesus, mas forma uma coleção de máximas e pensamentos do profeta. Passou a ser, desde então, considerado como o quinto Evangelho. Além destes, existem outros textos cristãos que falam de Jesus, sendo o mais importante as Epístolas de São Paulo. E entre todos há passagens contraditórias. Para tornar ainda mais nebuloso o perfil do Cristo, estas páginas foram modificadas em traduções e interpretações. O resultado disso é a polêmica. A própria divisão da Bíblia em Velho e Novo Testamento é fruto de ferozes debates, ocorridos no início da era cristã, sobre a natureza de Jesus.

As disputas sobre a história de Cristo vão fincar raízes em eventos que antecedem seu nascimento. A própria concepção – um dos dogmas do cristianismo – é colocada em dúvida. Várias correntes de pensadores acreditam que Maria gerou um filho ilegítimo. “É claro que não há provas sobre isso”, diz o teólogo americano James Strange, do Seminário de Jesus. “Há muito tempo foram lançadas suspeitas de que a história da concepção de Maria, sem um marido, seria apenas um recurso para encobrir um romance espúrio. Surgiram depois textos apócrifos propondo uma relação de Maria com um legionário romano de nome Panthera. Em alguns textos judaicos, Jesus é até chamado de mamzer, que significa ‘filho da fornicação’, ou seja: um bastardo. Mas esses são textos polêmicos que emergiram somente depois do divórcio entre judaísmo e cristianismo. Parece que visam apenas desmistificar um dos maiores dogmas do cristianismo”, diz Strange.

Mas as virtudes da Virgem não são moldadas apenas por detratores. A própria Igreja Católica complicou a questão quando, séculos depois do nascimento de Cristo, resolveu perpetuar a virgindade de Maria. Assim, ela teria subido aos céus sem ter tido relações sexuais e, portanto, Jesus seria seu único filho. Mas em Marcos 6:3 são dados nomes de irmãos de Jesus e há menções até mesmo de irmãs. Um dos irmãos – e o mais importante – seria Tiago, que liderou a comunidade cristã de Jerusalém. É importante notar que o Evangelho de Marcos é considerado o primeiro, sendo que os de Mateus e Lucas seriam revisões deste texto (as três versões são chamadas “sinóticas”). “Os teólogos datam as escritas do Novo Testamento no último quarto do primeiro século. Algo em torno de 40 anos depois da morte de Jesus. Imagina-se que Marcos escreveu logo depois da queda de Jerusalém, no ano 70”, diz Strange. Já o Evangelho de João é considerado obra do final do século I ou início do século II.

Golgota/c.1900/Munch
Munch Museum, Oslo
O sepultamento c.
1602-4 caravaggio óleo sobre tela (360x202cm) pinacoteca do vaticano, roma
Cristo cai com a cruz /Grüne Wald (195x152,5cm) Pinacoteca do estado, Karlsruhe, Alemanha
A figura de Cristo sempre exerceu um poderoso fascínio sobre os artistas,
fossem eles realistas, barrocos ou expressionistas

Jesus a.C. – Um dos pontos onde parece que todos concordam é que Jesus nasceu no ano 4 antes de Cristo. A discrepância desta data se deve ao famoso erro na elaboração do calendário, feito por um monge no século VI. Nem todos, porém, aceitam a idéia de que o profeta é de Belém. “Há controvérsias: alguns estudiosos acham que Jesus nasceu em Nazaré. Alegam que o nome Nazareno não se deve ao fato de Jesus ter morado boa parte de sua vida na cidade de Nazaré, mas, sim, por ter nascido naquele local”, diz o padre Luke Timothy Johnson, um expert em Novo Testamento, professor da Emory University. “O mais aceito é que Maria, grávida, e José teriam ido a Belém para cumprir um edital de Roma e se inscrever no censo local. Não conseguiram pousada e a criança nasceu numa caverna que servia de estábulo nos arredores da cidade”, diz o professor Johnson. Somente Mateus (2:13-23) descreve uma fuga da sagrada família para o Egito para escapar do infanticídio ordenado por Herodes, o rei da Judéia. “Mateus usou um mosaico de lendas para compor este quadro. Os paralelos entre o recém-nascido Jesus e o infante Moisés são inegáveis, com Herodes cumprindo o papel do déspota amedrontado com o surgimento de outro rei, da mesma forma que o faraó Seti na história de Moisés”, diz o teólogo John Dominic Crossan, membro do Seminário de Jesus.

Os biógrafos da antiguidade geralmente começavam seus textos a partir da vida pública dos protagonistas que perfilavam. O que fosse anterior aos eventos públicos era deixado de lado. Assim, também no caso de Jesus, seus biógrafos dão ênfase às atividades públicas. Mateus e Lucas, por exemplo, falam da infância de Jesus apenas como prefácio da narrativa principal. Em Mateus a história começa mesmo com o Sermão da Montanha, com um Cristo já adulto. Esta é uma das razões do “desaparecimento” de Jesus da idade de 12 anos até os 29.

Desse modo, fica muito difícil retratar o garoto Jesus. Existem textos esparsos creditados a São Pedro e São Paulo – e considerados mera ficção –, que falam de um menino travesso, cheio de humor e predisposto a brincadeiras um tanto perigosas. O que se dá como certo é que o nome Jesus (Yeshu) é uma abreviatura que deriva da interpretação grega do nome hebreu “Yoshua”, que por sua vez é uma corruptela de “Yehoshuah” (que significa Jeová é Redenção). Já Cristo não era nome, mas um título. Vem do grego Christós, e é uma tradução do hebraico Mashiakh (O Escolhido), ou Messias. Cristo foi agregado ao nome de Jesus por seus seguidores que acreditavam ser ele o Messias da salvação de Israel. O título foi definitivamente incorporado ao nome de Jesus por decisão da Igreja.

Assim como esta decisão da Igreja, outros acréscimos foram sendo feitos na vida de Cristo. “A rigor, a história de Jesus deveria ser formada apenas pelos quatro Evangelhos, mais as escrituras de Tomás. Elas são como peças de um quebra-cabeça incompleto, que não mostra o quadro todo, mas delimita com alguma clareza a figura principal da composição”, diz o padre Johnson. “Acredite-se ou não nesta história, nos milagres, nos ensinamentos, nas passagens relatadas nas escrituras, o que me parece importante é não perder de vista que apenas aquilo que está nos Evangelhos pode ser tomado como fonte sobre a vida de Cristo. Tudo mais são improvisações sobre o tema e especulações que obedecem a interesses políticos”, diz.

Sob esta ótica, os debates sobre a existência ou não de Jesus acabam por se transformar em uma questão meramente acadêmica. “Nós o pensamos, logo ele existe”, como diz o padre Johnson. Nos atos mais cotidianos – como consultar um calendário para se saber que dia é hoje –, passando pela irresistível expansão da cultura ocidental pelo mundo até o fato de pelo menos 1,9 bilhão de pessoas acreditarem numa ética forjada por este homem extraordinário, está a prova de que Jesus Cristo existiu e existe. Como o pão, ele faz parte da história da humanidade.


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