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terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

...gente ignorante, que pertence à mais vil população...(A prece dos mártires cristãos)

A Perseguição aos cristãos

As perseguições do Império Romano aos cristãos durante o segundo e terceiro séculos eram cruéis. Mesmo quando havia paz, a perseguição podia recomeçar a qualquer momento, cada vez mais violenta.

O governo imperial se incomodava com o crescimento e com os “mistérios” que envolviam os cristãos, que se negavam a participar das cerimônias religiosas regulares realizadas pelos romanos, bem como aceitar que o imperador fosse adorado como um deus. Este foi o principal motivo das perseguições. Mas, também existiam outros motivos, como por exemplo:

Religiosos: As reuniões dos cristãos despertavam suspeitas, por isso foram acusados de praticarem atos imorais e criminosos durante a celebração da Ceia do Senhor. Eles se reuniam antes do nascer do sol, ou então à noite, quase sempre em cavernas ou nas catacumbas subterrâneas. Eram acusados de incesto, de canibalismo e de praticas desumanas, a ponto de serem acusados de infanticídio em adoração ao seu Deus. A saudação com o ósculo santo (beijo) foi transformado em forma de conduta imoral.

Políticos: Os cristãos rejeitavam a escravidão e a adoração ao imperador. A adoração ao imperador era considerada prova de lealdade. Havia estátuas de imperadores reinantes nos lugares mais visíveis para o povo adorar. Só que os cristãos não faziam essa adoração. Pelo fato de cantarem hinos e louvores e adorarem a “outro Rei, um tal Jesus”, eram considerados pelo povo como desleais e conspiradores de uma revolução. Dentro da igreja misturavam escravos com o povo. E o que era considerado mais absurdo, o escravo podia tornar-se líder da igreja. Não havia dentro da igreja a divisão: senhor e escravo, os dois eram tratados de forma igual.

Primeiras perseguições

A primeira tomada de posição do Estado Romano contra os Cristãos remonta ao imperador Cláudio (41-54 d.C). Os historiadores Suetônio e Dione Cássio referem que Cláudio mandou expulsar os judeus porque estavam continuamente em litígio entre si por causa de um certo Chrestos. «Estaríamos diante das primeiras reações provocadas pela mensagem cristã na comunidade de Roma», comenta Karl Baus.

O historiador Gaio Suetônio Tranquilo (70-140 c.), funcionário imperial de alto nível sob Trajano e Adriano, intelectual e conselheiro do imperador, justificará a decisão e as sucessivas intervenções do Estado contra os Cristãos definindo-os como «superstição nova e maléfica»; palavras muito pesadas. Como superstição, o cristianismo é relacionado com as mágicas. Para os romanos ela é aquele conjunto de práticas irracionais que magos e feiticeiros de personalidade sinistra usam para enganar a gente ignorante, sem educação filosófica.

Magia é o irracional contra o racional, o conhecimento vulgar contra o conhecimento filosófico. A acusação de magia (como também de loucura) é uma arma com que o Estado Romano timbra e submete ao controle os novos e duvidosos componentes da sociedade como o cristianismo.

Com a palavra maléfica (= portadora de males) é encorajada a obtusa suspeita do povinho que imagina essa novidade (como qualquer novidade) impregnada dos delitos mais inomináveis e, portanto, causa dos males que de vez em quando se desencadeiam inexplicavelmente, da peste aos aluviões, da carestia à invasão dos bárbaros.

Corpo aberto mas etnia fechada e desconfiada

O Império Romano é (e manifestar-se-á especialmente nas perseguições contra os Cristãos) como um grande campo aberto, disposto a assimilar qualquer novo povo que abandone a própria identidade, mas também uma etnia fechada e desconfiada. Com a palavra etnia, grupo étnico (éthnos em grego) indicamos um agregado social que se distingue pela língua e cultura, desconfiada em relação a qualquer outra etnia.

Roma, com sua organização social de livres com todos os direitos e escravos sem qualquer direito, de patrícios ricos e de plebeus miseráveis, de centro explorador e periferia explorada, vive persuadida de ter realizado o sonho de Alexandre Magno: fazer a unidade da humanidade, fazer de cada homem livre um cidadão do mundo, e do império uma "assembléia universal" (oikuméne) que coincide com a "civilização humana".

Quem quiser viver fora dela, manter a própria identidade para não se confundir com ela, é excluído da civilização humana. Roma tinha um grande temor dos "estrangeiros", dos "diferentes" que poderiam pôr em discussão a sua segurança. E assim como estabeleceu a "concórdia universal" com a feroz eficiência de suas legiões, entende mantê-la também a golpes de espada, crucifixões, condenações aos trabalhos forçados, exílios. Numa palavra: Roma usa a "limpeza étnica" como método para tutelar a própria tranqüila segurança de ser "o mundo civil".

Nero e os Cristãos vistos pelo intelectual Tácito

Um incêndio devastou 10 dos 14 bairros de Roma no ano 65. O imperador Nero, acusado pelo povo de ser o seu autor, lançou a culpa sobre os Cristãos. Inicia, assim, a primeira grande perseguição que durará até 68 e verá perecer, entre outros, os apóstolos Pedro e Paulo.

O grande historiador Tácito Cornélio (54-120), senador e cônsul, descreverá esse acontecimento em seus "Anais", escrito no tempo de Trajano. Ele acusa Nero de ter injustamente culpado os Cristãos, mas declara-se convencido de que eles merecem as mais severas punições porque a sua superstição os leva a cometer infâmias. Não compartilha nem mesmo da compaixão que muitos experimentaram ao vê-los torturados. Eis a célebre página de Tácito:

«Para acabar logo com as vozes públicas, Nero inventou os culpados, e submeteu a refinadíssimas penas aqueles que o povo chamava de cristãos, e que eram mal vistos pelas suas infâmias. O nome deles provinha de Cristo, que sob o reinado de Tibério fora condenado ao suplício por ordem do procurador Pôncio Pilatos.

Momentaneamente adormecida, essa superstição maléfica prorrompeu de novo, não só na Judéia, lugar de origem daquele flagelo, mas também em Roma onde tudo que seja vergonhoso e abominável acaba confluindo e encontrando a própria consagração.

«Foram inicialmente aprisionados os que faziam confissão aberta da crença. Depois, denunciados por estes, foi aprisionada uma grande multidão, não tanto porque acusados de terem provocado o incêndio, mas porque eram tidos como acesos de ódio contra o gênero humano.

Os que se encaminhavam à morte estavam também expostos à burla: cobertos de pele de feras, morriam dilacerados pelos cães, ou eram crucificados, ou queimados vivos como tochas que serviam para iluminar as trevas quando o sol se punha. Nero tinha oferecido seus jardins para gozar desse espetáculo, enquanto oferecia os jogos do circo e, vestido como cocheiro misturava-se ao povo ou mantinha-se hirto sobre o coche.

«Embora os suplícios fossem contra gente culpada, que merecia tais tormentos originais, nascia por eles, um senso de piedade, porque eram sacrificados não em vista de um vantagem comum, mas pela crueldade do príncipe» (15,44).

Os cristãos eram, portanto, tidos também por Tácito como gente desprezível, capaz de crimes horrendos. Os crimes mais infames atribuídos aos cristãos eram o infanticídio ritual (como se na renovação da Ceia do Senhor, quando alimentavam-se da Eucaristia, sacrificassem uma criança e comessem suas carnes!) e o incesto (clara deformação do abraço da paz que se dava na celebração da Eucaristia "entre irmãos e irmãs"). As acusações, nascidas do mexerico do povo simples, foram assim sancionadas pela autoridade do Imperador, que perseguia os cristãos e os condenava à morte.

A partir daquele momento (testemunha Tácito) acrescentou-se à conta dos Cristãos um novo crime: o ódio contra o gênero humano. Plínio o Jovem escreverá, ironicamente, que daquele momento em seguida poder-se-ia condenar qualquer um à morte.

Acusados de ateísmo

São muito poucas as notícias da perseguição que atingiu os Cristãos no ano 89, sob o imperador Domiciano. É, de particular importância, a notícia trazida pelo historiador grego Dione Cássio, que foi pretor e cônsul em Roma. Ele afirma no livro 67 da sua História Romana que sob Domiciano foram acusados e condenados "por ateísmo" (ateòtes) o cônsul Flávio Clemente e sua mulher Domitila, e com eles muitos outros que «tinham adotado os costumes judaicos».A acusação de ateísmo, nesse século, dirige-se a quem não considerava a majestade imperial como divindade absoluta. Domiciano, duríssimo restaurador da autoridade central, pretende o culto máximo à sua pessoa, centro e garantia da "civilização romana".

É admirável que um intelectual como Dione Cássio chame de "ateísmo" a recusa do culto ao imperador. Significa que em Roma não se admite nenhuma idéia de Deus que não coincida com a majestade imperial. Quem tem uma idéia diversa é eliminado como gravemente perigoso à "civilização romana".

Plínio o Jovem, governador da Bitínia no Mar Negro, estava voltando em 111 de uma inspeção em sua populosa e rica província quando um incêndio devastou a capital, Nicomédia. Muito poderia ter sido salvo se houvessem bombeiros. Plínio relata ao imperador Trajano (98-117): «Cabe-te, senhor, avaliar a necessidade criar uma associação de bombeiros de 150 homens. De minha parte, farei com que essa associação não acolha senão bombeiros…».Trajando responde recusando a iniciativa: «Não esqueças que a tua província está nas mãos de sociedades desse tipo. Qualquer que seja o seu nome, qualquer que seja a destinação que quisermos dar a homens reunidos em corporação, isso permite, sempre e rapidamente as hetérias. O temor das hetérias (nome grego das "associações") prevaleceu sobre o medo dos incêndios.

O fenômeno era antigo. As associações de qualquer tipo que se transformavam em grupos políticos tinham levado César a interditar todas as associações no ano 7 a. C.: «Quem quer que forme uma associação sem autorização especial, é passível das mesmas penas dos que atacam à mão armada os lugares públicos e os templos». A lei estava sempre em vigor, mas as associações continuavam a florescer: dos barqueiros do Sena aos médicos de Avenches, dos mercantes de vinho de Lion aos trombeteiros de Lamesi. Todas defendiam os interesses de seus inscritos fazendo pressões sobre os poderes públicos.

Plínio não demorou em aplicar a interdição das hetérias num caso particular que lhe foi apresentado no outono de 112. A Bitínia estava cheia de Cristãos: «É uma multidão de gente de todas as idades, de todas as condições, espalhada pelas cidades, nas aldeias e nos campos», escreve ao Imperador. Continua dizendo que recebeu denúncias dos construtores de amuletos religiosos, perturbados pelos Cristãos que pregavam a inutilidade de tais bugigangas.

Instituíra uma espécie de processo para conhecer bem os fatos, e tinha descoberto que eles costumavam «reunir-se num dia fixo, antes do levantar-se do sol, cantar um hino a Cristo como a um deus, empenhar-se com juramento a não cometer crimes, a não cometer nem roubos, nem assaltos, nem adultérios, e a não faltar à palavra dada. Eles têm também o hábito de reunir-se para tomar a própria refeição que, apesar dos boatos, é alimento ordinário e inócuo».Os cristãos não tinham cessado as reuniões nem mesmo depois do edito do governador que insistia na interdição das hetérias. Continuando a carta (10,96), Plínio refere ao Imperador que nada vê de mal nisso tudo. A recusa, porém, de oferecer incenso e vinho diante das estátuas do Imperador parece-lhe um ato sacrílego de desprezo. A obstinação dos Cristãos parece-lhe «irracional e tola».

Parece claro, da carta de Plínio, que caíram as absurdas acusações de infanticídio ritual e incesto. Permanecem a de «recusarem a oferecer culto ao Imperador» (portanto de lesa majestade), e da formação de hetérias.

O Imperador responde: «Os cristãos não devem ser perseguidos por ofício. Sendo, porém, denunciados e reconhecidos culpados, é preciso condená-los». Em outras palavras: Trajano encoraja a fechar um olho sobre eles: são uma hetéria inócua como os barqueiros do Sena e os vendedores de vinho de Lion. Uma vez, porém, que estão praticando uma «superstição irracional, tola e fanática» (como é julgada por Plínio e outros intelectuais do tempo, como Epíteto, e continuam a recusar o culto ao imperador (e portanto consideram-se «estranhos» à vida civil), não se pode fazer de conta que não há nada. Quando denunciados, sejam condenados.

Continua então (embora de forma menos rígida) o "Não é lícito ser cristão". Vítimas desse período são seguramente o bispo Simeão de Jerusalém, crucificado quando tinha 120 anos de idade, e Inácio Bispo de Antioquia, levado a Roma como cidadão romano, e aí justiçado. A mesma política, em relação aos Cristãos, é exercida pelos imperadores Adriano (117-138) e Antonino Pio (138-161).

Marco Aurélio: o cristianismo é uma loucura

Marco Aurélio (161 - 180), imperador filósofo, passou guerreando 17 dos seus 19 anos de império. Em suas Memórias, em que anotava todas as noites alguns pensamentos «para si mesmo», nota-se um grande desprezo pelo cristianismo. Considerava-o uma loucura porque propunha à gente comum, ignorante, uma maneira de comportar-se (fraternidade universal, perdão, sacrifício pelos outros sem esperar recompensa) que só os filósofos como ele podiam compreender e praticar ao final de longas meditações e disciplinas.

Ele proibiu, num rescrito de 176-7, que sectários fanáticos, com a introdução de cultos até então desconhecidos, pusessem em perigo a religião de Estado. A situação dos cristãos, sempre difícil, endureceu-se ainda mais com ele.

As comunidades florescentes da Ásia Menor, fundadas pelo apóstolo Paulo foram submetidas dia e noite a roubos e saques por parte da ralé. Em Roma, o filósofo Justino e um grupo de intelectuais cristãos foram condenados à morte. A florescente comunidade de Lion foi destruída sob a acusação de ateísmo e imoralidade. Pereceram entre torturas refinadas, também, a muito jovem Blandina, e Pôntico de quinze anos.

Os relatórios que chegaram até nós dão a entender que a opinião pública foi endurecendo em relação aos cristãos. Grandes calamidades públicas (das guerras à peste) despertaram a convicção de que os deuses estivessem encolerizados contra Roma. Quando percebeu-se que os cristãos ficavam ausentes das funções expiatórias, ordenadas pelo Imperador, o furor popular encontrou pretextos para excitar-se contra eles. A mesma situação continuou nos primeiros anos do imperador Cômodo, filho de Marco Aurélio. Sob o reinado de Marco Aurélio, a ofensiva dos intelectuais de Roma contra os Cristãos atingiu o auge.

«Freqüente e erroneamente - escreve Fábio Fuggiero - acredita-se que o mundo antigo tenha combatido a nova fé com as armas do direito e da política. Numa palavra, com as perseguições. Se isso pode ser verdade (embora apenas em parte) para o primeiro século da era cristã, já não o é a partir de meados do segundo século. Seja o mundo da "gentios" (= pagãos) seja a Igreja compreendem, mais ou menos na mesma época, a necessidade de combater-se e de dialogar no terreno da argumentação filosófica e teológica.

«A cultura antiga, treinada por séculos em todas as subtilezas da dialética, pode opor armas intelectuais refinadíssimas ao complexo doutrinal cristão e, logo, a própria Igreja, tomando consciência da força que o pensamento clássico exerce como freio da expansão do evangelho, vê a necessidade de elaborar um pensamento filosófico e teológico genuinamente cristão, mas capaz ao mesmo tempo, de exprimir-se numa linguagem e em categorias culturais inteligíveis por parte do mundo greco-romano, no qual se vem inserindo sempre mais».

As argumentações dos intelectuais anticristãos

As argumentações de Marco Aurélio (121-180), Galeno (129-200), Luciano, Pelegrino Proteo e, especialmente, Celso (que escreveram suas obras na segunda metade do século segundo) podem-se condensar assim:

«A 'salvação' da insignificatividade da vida, da desordem dos acontecimentos, do aniquilamento da morte, da dor, só pode ser encontrada numa 'sabedoria filosófica' por parte de uma elite de raros intelectuais. Trata-se de uma loucura o fato de os cristãos colocarem esta 'salvação' na 'fé' num homem crucificado (como os escravos) na Palestina (uma província marginal) e declarado ressuscitado.

«O fato de os cristãos crerem na mensagem do crucificado, que se dirige preferencialmente aos marginalizados e pobres (à 'poeira humana') e que pregue a fraternidade universal (numa sociedade bem escalonada em pirâmide e considerada como 'ordem natural') é outra loucura intolerável, que incomoda, que revira tudo. É preciso eliminar os Cristãos como transgressores da civilização humana».

A crítica dos intelectuais anticristãos volta-se contra a própria idéia de "revelação do alto", não baseada numa "sabedoria filosófica"; contra as Escrituras cristãs, que têm contradições históricas, textuais, lógicas; contra os dogmas "irracionais"; contra o fato do LOGOS de Deus fazer-se carne (Evangelho de João) e submeter-se à morte dos escravos; contra a moral cristã (fidelidade no matrimônio, honestidade, respeito pelos outros, ajuda recíproca), que pode ser alcançada por um pequeno grupo de filósofos, mas não certamente pela massa intelectualmente pobre.

Toda a doutrina cristã, para esses intelectuais, é loucura, como é loucura a pretensão da ressurreição (ou seja, da prevalência da vida sobre a morte), como é loucura a preferência de Deus pelos humildes e a fraternidade universal. É tudo irracional.

O filósofo grego Celso, em seu Discurso sobre a verdade, escreve: «Recolhendo gente ignorante, que pertence à mais vil população, os cristãos desprezam as honras e a púrpura, e chegam até mesmo a chamar-se indistintamente de irmãos e irmãs… O objeto de sua veneração é um homem punido com o último dos suplícios e, do lenho funesto da cruz, eles fazem um altar, como convém a depravados e criminosos».

As primeiras reações dos Cristãos

Por decênios, os cristãos permaneceram calados. Difundem-se com a força silenciosa da proibição. Opõem amor e martírio às acusações mais infamantes. É no segundo século que seus primeiros apologistas (Justino, Atenágoras, Taciano) negam, com a evidência dos fatos, as acusações mais infamantes, e procuram exprimir a própria fé (nascida em terra semítica e confiada a "narrações") em termos culturalmente aceitáveis por um mundo embebido de filosofia greco-romana. Os "tijolos" bem alinhados da mensagem de Jesus Cristo começam a ser organizados segundo uma estrutura arquitetônica que possa ser valorizada pelos greco-romanos. Serão Tertuliano, no Ocidente, e Orígenes, no Oriente (terceiro século), a darem uma forma sistemática e imponente a toda a "sabedoria cristã". Com os "tijolos" da mensagem de Jesus Cristo tentar-se-á delinear a harmonia da basílica romana, como depois, com o passar dos séculos, tentar-se-á delinear a ousadia da basílica gótica, a sólida pacatez da catedral românica, o fasto da igreja barroca…

A grave crise do terceiro século (200-300)

O século terceiro vê Roma em gravíssima crise. As relações entre Cristianismo e império romano transformam-se, embora nem todos o percebam. A grande crise é assim descrita pelo historiador grego Herodiano: «Jamais houve, nos duzentos anos passados, um tão freqüente suceder-se de soberanos, nem tantas guerras civis e contra os povos limítrofes, nem tantos movimentos de povos. Houve uma quantidade incalculável de assaltos a cidades no interior do Império e em muitos países bárbaros, de terremotos e pestilências, de reis e usurpadores. Alguns deles exerceram o comando longamente, outros mantiveram o poder por brevíssimo tempo. Algum deles, proclamado imperador e glorificado, permaneceu um só dia e logo desapareceu».

O Império Romano estendera-se progressivamente com a conquista de novas províncias. A conquista continuada permitira a exploração de sempre novas vastíssimas terras (o Egito era o celeiro de Roma, a Espanha e as Gálias, a sua vinha e o seu olival). Roma apossara-se de sempre novas minas (a Dácia tinha sido conquistada pelas suas minas de ouro). As guerras de conquista tinham providenciado multidões infinitas de escravos (prisioneiros de guerra), mão-de-obra gratuita.

Em meados do século terceiro (por volta de 250) percebeu-se que a festa acabara. A Leste, formara-se o poderoso império Sassânida, que fez duríssimos ataques aos Romanos. Em 260 foram capturados o imperador Valeriano e todo o seu exército de 70 mil homens, e devastadas as províncias do Leste. A peste acabou com as legiões supérstites e espalhou-se por todo o Império. Ao Norte formara-se um outro aglomerado de povos fortes: os Godos. Espalharam-se pela Mésia e pela Dácia. O Imperador Décio e o seu exército tinham sido massacrados em 251. Os Godos desceram devastando do Norte até Esparta, Atenas, Ravena. Eram terríveis os amontoados de destroços que deixavam. A maior parte das pessoas cultas, que não puderam ser substituídas, perderam a vida ou tornaram-se escravas. A vida regrediu ao estado primitivo e selvagem. A agricultura e o comércio foram aniquilados.

Nesse tempo de grave incerteza cai a segurança garantida pelo Estado. Agora são os gentios (=pagãos) que se tornam "irracionais", a confiar não mais na ordem imperial mas na proteção das divindades mais misteriosas e estranhas. Surge no Quirinal, em Roma, um templo à deusa egípcia Isis, o imperador Heliogábalo impõe a adoração do deu Sol, o povo recorre a ritos mágicos para manter a peste distante. Entretanto, mesmo no século terceiro dão-se anos de terríveis perseguições contra os cristãos. Não mais por causa da sua "irracionalidade" (num mar de gente que se entrega a ritos mágicos, o cristianismo é agora o único sistema racional), mas em nome da renascida limpeza étnica. Muitos imperadores, mesmo sendo bárbaros de nascimento, vêem no retorno à unidade centralizada a única via de salvação. E decretam a extinção dos cristãos, sempre mais numerosos, para lançar fora da etnia romana esse "corpo estranho", que se apresenta sempre mais como uma nova etnia, pronta a substituir aquela que já declina do império fundado nas armas, na rapina, na violência.

Setímio Severo, Maximino, Décio e Galo

Com Setímio Severo (193-211), fundador da dinastia siríaca, parece anunciar-se ao cristianismo uma fase de desenvolvimento não perturbado. Muitos cristãos ocupam posições influentes na corte. Só no décimo ano de seu reinado (202), o imperador muda radicalmente de atitude.

Em 202 surge um edito de Setímio Severo, que comina graves penas à passagem ao judaísmo e à religião cristã. A repentina mudança do imperador pode ser compreendida apenas pensando que ele percebera que os cristão estavam se unindo sempre mais fortemente numa sociedade religiosa universal e organizada, dotada de uma íntima forte capacidade de oposição que a ele, por considerações de política estatal, parece suspeita. As devastações mais vistosas foram sofridas pela célebre escola cristã de Alexandria e pelas comunidades cristãs da África.

Maximino Trace (235-238) teve uma reação violenta e brutal contra o que tinham sido amigos do seu predecessor, Alexandre Severo, tolerante com os cristãos. A igreja de Roma foi devastada com a deportação às minas da Sardenha dos dois chefes da comunidade cristã, o bispo Ponciano e o presbítero Hipólito.

A atitude para com os Cristãos não fora alterada entre a gente simples; demonstra-o a verdadeira caça aos cristãos desencadeada na Capadócia quando se acreditava ver neles os culpados de um terremoto. A revolta popular diz-nos o quanto os cristãos ainda fossem considerados "estranhos e maléficos" pelo povo. (Cf. K. Baus, Le origini, p. 282-287).

Sob o imperador Décio (249-251) desencadeia a primeira perseguição sistemática contra a Igreja, com a intenção de desenraiza-la para sempre. Décio (sucessor de Filipe o Árabe, muito favorável aos cristão, se não ele mesmo cristão), é um senador originário da Panônia, e muito apegado às tradições romanas. Sentindo profundamente a desagregação política e econômica do império, acreditou que podia restaurar a sua unidade recolhendo todas as energias ao redor dos protetores do Estado. Todos os habitantes são obrigados a sacrificar aos deuses e recebem, depois disso, um certificado.

As comunidades cristãs estão abaladas pela tempestade. Quem recusa-se ao ato de submissão é preso, torturado, justiçado: como o bispo Fabiano em Roma e, com ele, muitos sacerdotes e leigos. Em Alexandria houve uma perseguição acompanhada de saques. Na Ásia, os mártires foram numerosos; entre eles, os bispos de Pérgamo, Antioquia, Jerusalém. O grande estudioso Orígenes foi submetido a uma tortura desumana, e sobreviveu quatro anos aos suplícios, reduzido a uma larva humana.

Nem todos os Cristãos suportam a perseguição. Muitos aceitam sacrificar. Outros, mediante suborno, obtêm escondidamente os famosos certificados. Entre eles, segundo a carta 67 de Cipriano, estão pelo menos dois bispos espanhóis. A perseguição, que parece golpear até à morte a Igreja, termina com a morte de Décio em batalha contra os Godos na planície de Dobrug (Romênia). (Cf. M. Clèvont, I Cristiani e il potere. P. 179s).

Os setes anos seguintes (250-257) são de tranqüilidade para a Igreja, perturbada apenas em Roma por uma breve onda de perseguição quando o imperador Trebônio Galo (251-253) manda prender o chefe da comunidade cristã Cornélio, mandando-o em exílio a Centum Cellae (Civitavecchia). Sua conduta foi devida, provavelmente, à condescendência aos humores do povo, que atribuía aos cristãos a culpa pela peste que assolava o império. O cristianismo continuava a ser visto como "superstição" estranha e maléfica! (Cf. K. Baus, Le origini, p. 292).

Valeriano e as finanças do império

No quarto ano do reino de Valeriano (257) tem-se um improvisa, dura e cruenta perseguição dos cristãos. Não se tratou contudo de assunto religioso, mas econômico. Diante da precária situação do império, o conselheiro imperial (depois usurpador) Macriano induziu Valeriano a tentar tapar o rombo seqüestrando os bens dos cristãos ricos. Houve mártires ilustres (do bispo Cipriano ao papa Sisto II, ao diácono Loureço). Foi, porém, apenas um furto encoberto por motivos ideológicos, que terminou com o trágico fim de Valeriano. Em 259, ele caiu prisioneiro dos persas com todo o seu exército, foi obrigado à vida de escravo e morreu com tal.Os quarenta anos de paz que se seguiram, favoreceram o desenvolvimento interno e externo da Igreja. Muitos cristãos acederam a altos cargos do Estado e demonstraram-se homens capazes e honestos.

O desastre financeiro cai nos braços de Diocleciano

Em 271 o imperador Aureliano ordenou aos soldados e cidadãos romanos que abandonassem aos Godos a vasta província da Dácia e suas minas de ouro: a defesa daquelas terras já tinha custado muito sangue.

Como não existiam mais províncias a conquistar e explorar, todas as tenções voltaram-se para o cidadão comum. Sobre eles abateram-se taxas, corvéias (= manutenção de aquedutos, canais, esgotos, estradas, edifícios públicos…) sempre mais onerosos. Já não se sabia, literalmente, se o trabalho realizado era para sobreviver ou para pagar as taxas.

Em 284, depois de uma brilhante carreira militar, Diocleciano, de origem dálmata, foi aclamado imperador. Desde então as taxas seriam pagas per capita e per jugero, ou seja, um tanto por cada pessoa e por cada pedaço de terra cultivável.

A coleta das taxas foi confiada a uma atilada e imensa burocracia, que tornava impossível fugir ao fisco, punia de modo desumano quem conseguia fazê-lo e custava muitíssimo ao estado.

As taxas eram tão pesadas que tiravam a vontade de trabalhar. A solução foi proibir que se abandonasse o lugar de trabalho, o pedaço de terra que se cultivava, a oficina, o uniforme militar.

«Teve início, dessa forma - escreve F. Oertel, professor de história antiga na Universidade de Bonn - a feroz tentativa do Estado de espremer a população até à última gota… Sob Diocleciano é realizado um socialismo integral de estado: terrorismo de funcionários, fortíssima limitação da ação individual, progressiva interferência estatal, pesadas taxações».

Perseguições de Galério em nome de Diocleciano

Os primeiros vinte anos do reino de Diocleciano não molestaram os cristãos. Em 303, como um golpe de cena, desencadeou-se a última perseguição contra eles. «É obra de Galério, o "César" de Diocleciano», escreve F. Ruggiero. «Ele pôs fim em 303 à política prudente de Diocleciano, que se abstivera, embora nutrisse sentimentos tradicionalistas, de atos intransigentes e intolerantes». Quatro editos consecutivos (fevereiro de 303 - fevereiro de 304) impuseram aos cristãos a destruição das igrejas, o confisco dos bens, a entrega dos livros sagrados, a tortura até à morte para quem não sacrificasse em honra do imperador.

Como sempre, é difícil determinar os motivos que levaram Diocleciano a aprovar uma política do gênero. Pode-se supor que tenha sido objeto de pressões por parte de ambientes pagãos fanáticos, que estavam por detrás de Galério. Numa situação de "angústia difusa" (como diz Dodds), só o retorno à antiga fé de Roma poderia, segundo Galério e seus amigos, unificar o povo e persuadi-lo a enfrentar tantos sacrifícios. Era preciso retornar às vetera instituta, isto é, às antigas leis e à tradicional disciplina romana.

A perseguição atingiu a sua máxima intensidade no Oriente, especialmente na Síria, Egito e Ásia Menor. A Diocleciano, que abdicou em 305, sucedeu como "Augusto" Galério, e como "César" Maximino Daia, que se demonstrou mais fanático do que ele.Só em 311, seis dias antes de morrer de câncer na garganta, Galério emanou um irritado decreto com que detinha a perseguição. Com o decreto (que marcou historicamente a definitiva liberdade de ser cristão), Galério deplorava o obstinação, a loucura dos cristãos, que em grande número se tinham recusado a retornar à religião da antiga Roma; declarava que perseguir os cristãos tornara-se inútil; e exortava-os a rezar ao próprio Deus pela saúde do imperador.

Comentando o decreto, F. Ruggiero escreve: «Os cristãos foram um inimigo extremamente anômalo. Por mais de dois séculos Roma tinha procurado assimilá-los ao próprio tecido social… estavam fisicamente no interior da civitas Romana, mas por motivos diversos eram-lhe estranhos»; tinham finalmente determinado «uma radical transformação da própria civitas em sentido cristão».

A profunda revolução

As últimas perseguições sistemáticas do terceiro e quarto séculos resultaram ineficazes como aquelas esporádicas do primeiro e segundo séculos. A limpeza étnica invocada e apoiada pelos intelectuais greco-romanos não fora realizada. Porque?

Porque, à distância, as acusações indignadas de Celso resultaram o melhor elogio aos Cristãos: «recolhendo gente ignorante, pertencente à população mais vil, os cristãos desprezam as honras e a púrpura, e chegam até mesmo a chamar-se indistintamente de irmãos e irmãs».

O apelo à dignidade de toda pessoa, mesmo a mais humilde, a igualdade diante de Deus (o ponto mais revolucionário da mensagem cristã) tinha feito silenciosamente o seu caminho na consciência de tantas pessoas e de tantos povos, que os Romanos tinham relegado a posições miseráveis de nascidos escravos e de lixo humano.

As perseguições só se encerram totalmente depois do edito de Constantino I, em 321D.C..

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O Problema das Evidências Extra-Bíblica Sobre Jesus

Eu acredito que uma das principais funções dos biblioblogs é prestar, por assim dizer, um serviço público. Ser fonte de informação confíável em relação aos temas de historia bíblica e estudo das religiões, de forma a permitir o acesso do público leigo. A Internet torna possível compartilhar e transmitir informação com muita facilidade, boa ou má. Permite, com frequência que se desimforme e se deseduque, que se ressuscite teses estapafúrdias, há muito refutadas.

É problemático porque as pessoas lêem, e de boa fé acham que estão aprendendo, passam adiante, e estão recebendo informação, na melhor da hipóteses desatualizada, e na maioria das vezes errada.

Por exemplo, o filme feito para internet, Zeitgeist, muito popular no youtube, faz as seguintes afirmações.

"Além disso, há alguma evidência extra-bíblica de um certo Jesus, o Filho de Maria, que viajou com 12 seguidores, curando pessoas e tudo mais? Existiram numerosos historiadores que viviam no Meidterrâneo e arredores, tanto durante, quanto logo após a presumida vida de Jesus. Quantos desses historiadores se referiram a esta figura? Nenhum. Entretanto para ser justo, não quer dizer que os defensores do Jesus Histórico não tenham dito o contrário. Quatro historiadores são tipicamente citados para demonstrar a existência de Jesus. Plínio o Jovem, Suetonio, Tacito são os três primeiros. Cada um dessas referências consiste de um poucas frases e na melhor hipóteses referem apenas a Christus ou Cristo, o que de fato não é um nome, mas um título. Significa "ungido". A quarta fonte é Josephus, e esta já foi provado ser uma fraude a centenas de anos. Tristemente, é ainda citado como verdade".[1]

Esse argumento é apresentado as vezes de outra forma, apresenta-se uma lista de autores, (em uma das versões chega a 31), que viviam no Império Romano nos 100 ou 150 anos seguintes a morte de Jesus, e pergunta-se "se Jesus existiu, se realizou tão grandes feitos, como pode não ter sido notado por esses escritores? Como pode ter sido mencionado apenas por 4 ou 5 autores, em textos que não maiores que um parágrafo?"

Uma dessas listas, encontrada em inúmeros sites, foi elaborada no final do séc. XIX pelo escritor Jonh Remsburg, afirmando que só uns quatro ou cinco mencionaram Jesus (deve ser observado que o próprio Remsburg, acreditava na existência histórica de Jesus de Nazaré).

Lista de Remsburg: Josefo, Filo, Seneca, Seneca, Plínio Velho, Suetônio, Juvenal, Martial, Persius, Plutarco, Justo de Tiberias, Apolônio, Plínio o Moço, Tacito, Quintiliano, Lucano, Epicteto, Silius Italicus, Statius, Ptolemy, Hermogones, Valerius Maximus, Arrio, Petronio, Dion Pruseus, Veleio Paterculo, Apio, Teon de Esmirna, Flegon, Pompon Mela, Quintius Curtius, Luciano, Pausanias, Valerius Flaccus, Florus Lucius, Favorinus, Faedro, Damis, Aulus Gellius, Columella, Dio Crisostomo, Lisias, Apio de Alexandria.

Antes de tudo, vamos pensar: dos autores citados por Remsburg, alguns escreveram fábulas (como Faedro), outros eram poetas (como Marcial e Statius), outros escreveram sobre mitologia, e filosofia. Quantos deles mencionaram os assuntos da Judéia do sec. I? A maioria escrevia para um público da elite grega e romana, senadores, magistrados, nobres de cidades como Roma, Atenas ou Alexandria. Lugares como Galiléia eram tão remotos como o sertão da Paraíba ou do Ceará para um alemão ou canadense. E como se eu fosse a Nova York, entrasse em um livraria, pegasse aleatoriamente livros de 40 autores diferentes (de filosofia, politica, geografia, ciências e historia) e se 4 ou 5 mencionassem Padre Cícero, Antônio Conselheiro, Tiradentes ou o Negro Cosme, eu concluisse que eles não existiram, ou foram irrelevantes.

Sessenta milhões de pessoas viviam no Império Romano no sec. I DC, e como a esmagadora maioria delas não foi citada por nenhum historiador, ou não aparece em artefatos arqueológicos, eu posso concluir então que elas não existiram?

A propósito, quem foram os comandantes de todas as legiões do Império no sec. I?

Quem foram os 600 membros do Senado Romano ou os 71 do Sinédrio Judaico, em digamos, 50 DC?

São perguntas que nós, com os registros disponíveis e fontes que chegaram até nós, não temos como responder, embora saibamos que foram pessoas influentes e poderosas.

Para se ter uma idéia, o historiador Jona Lendering observa"As mais de quarenta províncias do Império Romano eram administradas por um governador, cujo mandato durava de 12 a 36 meses. Estes homens poderosos são virtualmente desconhecidos para os historiadores modernos, que se consideram afortunados quando acontece de conhecer a identidade do oficial responsável por uma provincia em um determinado momento".[2]

Ou seja, apesar desses homens terem governado provincias com dezenas, centenas de milhares de habitantes e comandado exercítos de milhares de soldados, por anos a fio, terem construido monumentos, registrado seus feitos em inscrições, cunhado moedas, muitas vezes não sabemos o seu nome, e, em outros casos, mesmo que saibamos são apenas nomes em uma lista. Casos como Plínio, o Jovem, por sua coleção de cartas com o Imperador Trajano e uma longa inscrição que descreve sua carreira, ou de Pôncio Pilatos, que é mencionado nos evangelhos, Filo, Josefo e Tácito (ironicamente a única menção de Pilatos por uma fonte romana, mesmo assim como aquele que executou Jesus de Nazaré), além de aparecer em um inscrição fragmentária e algumas moedas, são excessões que confirmam a regra. Isso ocorre porque apenas um pequena parte dos textos escritos no período e dos potenciais artefatos arqueólogicos sobreviveram até nosso tempo.

Em 24 de agosto do ano de 79 DC, o Monte Vesúvio, nas proximidades de Nápoles, entrou em erupção. A região, como hoje, era densamente povoada, e a cidade de Pompéia (onde viviam cerca de 20 mil pessoas) e a vizinha Herculano foram completamente destruidas. O célebre escritor e magistrado romano Plínio, o Velho, morreu naquela tragédia, tentando resgatar sobreviventes. Uma tragédia. Milhares morreram, e os sobreviventes ficaram sem teto. Mas quantos relatos de testemunhas oculares, de fontes primárias ou secundárias, nós temos disponíveis. UM. ISSO MESMO UM. Plínio, o Jovem, sobrinho do outro Plínio que morreu na erupção, que descreveu a tragédia a pedido de seu amigo Tácito (a parte em que o relato foi provavelmente inserido esta perdida) [3] . Temos algumas outras referências, escritas algumas décadas depois do fato, pelo poeta Statius (95 DC), o historiador Flávio Josefo ( 93-95 DC), e Suetônio (125 DC) [4], geralmente curtas e não maiores que alguns parágrafos, ainda que dezenas de escritores tenham vivido no período. Isso porque foi um evento que, se fosse hoje, faria o "breaking news" da CNN e meses depois viraria filme para televisão "baseado em uma história real". Felizmente, erupções vulcânicas deixam para trâs uma quantidade enorme de artefatos arqueológicos, que permitem não só entender o evento, mas reconstruir a vida de uma cidade romana do sec I DC.

Outro exemplo de como esse modus operandi em relação a Jesus no âmbito da história antiga pode levar a conclusões absurdas é a do próprio Imperador Trajano. Trajano governou o Império entre 98-117 DC, e em seus vinte anos de reinado foram talvez os mais gloriosos da História de Roma, de tal forma que, mesmo no final do IV século, os novos imperadores recebiam os votos "felicior Augusto, melior Traiano", ("que seja mais bem afortunado que Augusto e melhor que Trajano"). Herbert W. Benario, Professor Emérito de História Clássica da Emory University, observa que:
"Trajano foi das figuras mais admiráveis da Roma Antiga. Um homem que mereceu o reconhecimento e renome que gozou em sua vida e das gerações seguintes [5].

No entanto, surpreendentemente,
"as fontes para o homem e seu principado são desapontadoramente escassas. Não há um historiador contemporâneo que possa iluminar o período. Tácito o menciona apenas ocasionalmente, Suetônio não escreveu sua biografia, e nem mesmo o autor da muito posterior e largamente fraudulenta História Augusta. (...) Plínio, o Jovem, é nossa principal fonte literária, em seu Pannegyricus - seu longo discurso de agradecimento ao Imperador, após assumir o Consulado no final do ano 100 DC - e suas cartas (...) Cassio Dio, que escreveu na decada de 230 DC, elaborou uma longa história imperial a qual, para o periodo Trajanico, sobreviveu somente em forma abreviada no livro LXVIII. O retoricista Dio de Prusa, um contemporâneo do Imperador, oferece muito pouco de valor. As epitomes de Aurélio Vitor e Eutrópio, do IV século, oferecem algumas informações úteis. Inscrições, moedas, papiros, e textos legais são os mais importantes. Uma vez que Trajano construiu muitos projetos de significância, a arqueologia contribui poderasomente para nossa compreensão do homem [5].

Ou seja, ainda que "numerosos historiadores vivessem no, e em volta do Mediterrâneo" no tempo do Imperador Trajano, nossas fontes literárias sobre seus 20 anos de reinado são extremamente escassas, e não temos disponível nenhuma biografia escrita por um autor contemporâneo, embora tenhamos dezenas de escritores no período. No entanto, sabemos da existência e importância de Trajano pelas menções breves de Suetônio e Tácito, a correspondência de Plínio, a biografia escrita por Cassio Dio mais de 100 anos depois de sua morte, e principalmente, moedas, inscrições, monumentos e obras públicas. Se essas são as fontes para o Imperador, que regia os destinos de 60 milhões de pessoas, o que devemos esperar do carpinteiro galileu, que segundo os próprios discipulos "foi crucificado pelos poderes da época, que não o compreenderam" e cujo movimento cerca de 100 anos após sua morte, contava, no maximo, com cerca de 10 a 15 mil seguidores (que não cunhavam moedas, nem elaboravam documentos oficiais, nem construiam estradas, pontes, ou monumentos) ?.

(Também aqui vale observar que apenas uma "pequena parte do que foi escrito na Antiguidade chegou até nós, e que muito do que foi escrito sobre Trajano (ou da destruição de Poméia), por seus contêmporâneos foi perdido. Da mesma forma, o mesmo ponto se aplica a Jesus).

Mas, já que comecei a escrever, podemos aproveitar para avançar para coisas mais úteis. Além de analisar os relatos (ou falta deles) para pessoas e eventos contemporâeos a Jesus (um século antes e depois de sua morte), vamos comparar o impacto e atestação deixado por esses eventos e pessoas nas fontes literárias, com aquele deixado por Jesus de Nazaré. Uma espécie de "Escala Richter de Impacto Histórico". Veremos que o mais surpreendente não foi Jesus ter sido mencionado por apenas quatro ou cinco escritores mas o fato dele ter sido citado, e por tantos autores não cristãos. Mas, antes, abordaremos algumas questões preliminares, como o (quase) consenso da comunidade acadêmica favorável a historicidade de Jesus, sobre as menções a Jesus nos autores não-cristãos (mostrando, por exemplo, que a posição dominante entre os estudiosos é que Josefo se referiu a Jesus), e o porque da maioria dos escritos da Antiguidade não terem chegado até nós.

1ª Preliminar: Como os estudiosos analisam a historicidade de Jesus

Jesus de Nazaré é objeto de devoção e fé de centenas milhões de seguidores no mundo inteiro.

a) Os historiadores e Jesus

Não obstante, muitos fazem de sua vida o seu ganha-pão. Milhares de historiadores, arqueólogos, estudiosos bíblicos e especialistas em judaísmo antigo, buscam nos textos bíblicos e extra-bíblicos, nos escritos dos primeiros cristãos, na análise do contexto social, político e econômico da Judéia e do Império Romano no século I, e se propõem a chamada "busca" pelo Jesus Histórico.

Alguns desses estudiosos são cristãos, liberais ou conservadores, outros são judeus, outros ateus, outros místicos, "espirituais mas não religiosos". Suas interpretações como a visão mais próvavel do curso do Ministério de Jesus e início do cristianismo variam bastante. Mas, existem algum as certezas compartilhadas por todos, ou quase todos, entre elas é que a muito poucos motivos para duvidar da existência histórica de Jesus:

Professor judeu Geza Vermes, Professor de Judaismo Antigo na Universidade de Oxford, com cerca de 60 anos de dedicação a pesquisa do judaismo do 2° Templo, Jesus Histórico e Cristianismo primitivo afirma:
"Na verdade, com excessão de um punhado de céticos inveterados, a maioria dos estudiosos de hoje parte para o extremo oposto e considera existência de Jesus tão garantida que não se dá ao trabalho de questionar o significado de historicidade" [6].

Também o Professor da Universidade Hebraica David Flusser (1917-2000), que foi membro da Acadêmia de Ciências de Israel por sua contribuição no campo da História Clássica e Judaísmo Antigo, em cinquenta anos de trabalho, escreve:
"Realmente, possuimos registros mais completos sobre a vida dos imperadores seus contemporâneos e de alguns poetas romanos. Entretanto a excessão do historiador judeu Flávio Josefo, e possivelmente de São Paulo, Jesus é o judeu, de épocas posteriores ao Antigo Testamento, sobre quem nós mais sabemos" [7]

John Dominic Crossan, Professor da DePaul University, e uma das principais figuras a frente do Jesus Seminar, fez as seguintes observações, em um Seminário On-line na lista acadêmica de discussão "Crosstalk", quando perguntado em relação a tese da não existência de Jesus, faz a comparação (muito exagerada, ao nosso ver) entre essa tese com aqueles que negam que os americanos pousam na lua:
"(...) Eu não estou certo, como já havia dito antes, que alguém possa persuadir outras pessoas que Jesus nunca existiu se não for capaz de explicar todo o fenômeno de Jesus histórico e cristianismo primitivo, seja como um trapaça ou uma parábola santa. Eu tinha um amigo na Irlanda, que não acreditava que os americanos pousaram na lua, mas que tinham criado a coisa inteira para reforçar sua imagem de guerra fria contra os comunistas. Eu não consigo argumentar com ele. Portanto, não estou de todo certo que eu possa provar que o Jesus histórico existiu contra esse tipo de hipótese e, provavelmente, para ser honesto, não estaria mesmo interessado em tentar. No entanto, tomei a hipótese não como uma conclusão pré-estabelecida , mas como uma simples questão que estava por trás das primeiras páginas de BofC [Birth of Christianity] quando eu mencionei Josefo e Tácito. Eu não acredito que tanto um quanto o outro tenham checado os arquivos romanos ou judaicos sobre Jesus. Eu creio que eles expressaram o conhecimento público, comum, sobre aquele estranho grupo chamdo cristãos, e seu não menos estranho fundador chamado Cristo. A existência, não apenas dos textos cristãos mas destas fontes não cristãs é suficiente para me convencer que estamos lidando com um indíviduo que existiu na história. Além disso, a despeito das inúmeras formas em que os oponentes criticaram o cristianismo, ninguém nunca sugeriu que tudo tinha sido inventado. Isso é suficiente para mim.
e (...) que esta pessoa existiu é uma conclusão histórica para mim, e não um postulado dogmático ou pressuposição teológica. De modo geral, meus argumentos são: (1) a existência é dada em fontes cristãs, pagãs e judaicas; (2) Não é negada até mesmo pelos críticos mais hostis do cristianismo primitivo (Jesus é um bastardo e um tolo mas nunca uma ficção ou um mito!); (3) Até onde eu sei, não há paralelo daquela época e período que me permita compreender uma invenção desse tipo [8].

A grande questão é que independente dos testemunhos não-cristãos, sempre bem-vindos pelos estudiosos, a grande maioria das informações sobre Jesus virá, sempre, do Novo Testamento, e de alguns outros textos considerados antigos, como o evangelho de Tomé e de Pedro. Como observa o Professor Steve Mason, da Universidade York [9], se por um lado não se deve esperar do historiador "tratamento especial" para as narrativas evangélicas, o ceticismo radical que agressivamente recusa, a priori, qualquer informação histórica é equivocado. Segundo Mason, devem ser utilizados os mesmos critérios de análise crítica adotados para reconstruir o passado a partir de narrativas de historiadores antigos como Livio, Josefo e Tacito.

b) Critérios de autenticidade e fontes cristãs primitivas: estabelecendo um esboço da figura de Jesus

De fato, durante quase 200 anos de pesquisa, os acadêmicos criaram critérios para analisar os evangelhos como fontes historicas, e os ditos e feitos atribuídos a Jesus. Para exemplificar, podemos utilizar um desses critérios, como o do embaraçamento, se refere a ditos e feitos atribuidos a Jesus que criariam dificuldade para igreja primitiva, e enfraqueceriam sua posição diante de oponentes, e que dificilmente teriam sido inventados. Um exemplo de fato autenticado por este critério é a crucificação de Jesus sob a acusação de ser o Rei dos Judeus.

O próprio Paulo diz aos Corintíos que a cruz era escândalo para os judeus e loucura para os gregos (I Cor. 1:23). De fato, os evangelhos usam intensamente as escrituras para provar que Jesus era o Cristo, mas esta diz "Se um homem tiver cometido um pecado digno de morte, e for morto, e o tiveres pendurado num madeiro, o seu cadáver não permanecerá toda a noite no madeiro, mas certamente o enterrarás no mesmo dia; porquanto aquele que é pendurado é maldito de Deus. Assim não contaminarás a tua terra, que o Senhor teu Deus te dá em herança.(Dt 21:22-23)". Os oponentes e adversários dos cristãos usavam a crucificação como a maior prova de que Jesus não foi o Messias, como o judeu Trifo, rebatendo o uso de Dan. 7 por Justino Martir "Estas mesmas escrituras, meu caro, nos ordenam esperar aquele que, como Filho do Homem, receberá do Ancião de Dias o Reino Eterno. Mas este que vocês chamam de Cristo não teve honra ou glória, tanto assim que a maldição contida na Lei de Deus caiu sobre ele, porque foi crucificado" (Dialogo com Trifo, Capítulo 32). Também os rabinos, no Talmude, mostram como a crucificação poderia acabar com a "carreira" de pretendente messiânico "Rabi Meir costumava ensinar 'Qual o significado (do verso), "Aquele que for pendurado no madeiro é maldito de Deus" (Dt 21:23)? Havia dois irmaos gêmeos que eram parecidos. Um reinava sobre o mundo todo e outro se tornou um ladrão. Após um tempo, o que era bandido foi pego e então crucificado em um madeiro. Todos que passavam e viam, diziam "parece que o Rei foi crucificado" (bTalmude, Sinédrio 9:7). A cruz era escândalo, porque um Messias digno de seu "cargo" não poderia ser crucificado.

Tanto é que Celso, o fílosofo pagão de sec. II que escreveu contra Cristo e os Cristãos, os acusa de serem culpados de um sofisma ao afirmarem que o "Filho de Deus é o próprio Logos", porque ao dizerem "que o Logos é o Filho de Deus, não apresentam um Logos puro e imaculado, mas um homem dos mais degenerados, pois foi açoitado e crucificado" (Contra Celso, II.31), ridicularinzando-os por transformarem um criminosos em Deus "Se, após inventar defesas que são absurdas, e pelas quais vocês são ridiculamente enganados, ainda que imaginando que vocês realmente fizeram uma boa defesa, porque vocês não consideram aqueles outros individuos que também foram condenados, e sofreram uma morte miserável, como maiores e mais divinos mensageiros dos céus (que Jesus) ? (Contra Celso, II.44)

"O fato de que a cruz era escândalo e loucura, é evidenciado ainda na forma como alguns grupos cristãos chegaram a afirmar que Jesus não foi realmente crucificado. O Professor AKM Adam, da Universidade de Glasgow, observa que Irineu, em seu Tratado "Contra Todas as Heresias" critica os seguidores de seguidores de Cerinto, que acreditavam que Cristo desceu ao mundo e entrou no corpo do homem Jesus em seu batismo, mas o deixou em sua crucificação, de forma que embora Jesus tenha nascido, sofrido e morrido, Cristo permaneceu espiritual e intocado pelo sofrimento. Relata que os discípulos de Simão, o Mago, afirmavam que embora parecesse que Jesus havia padecido na cruz, ele não havia sofrido de fato. Basilides, pregava que Jesus não poderia realmente sofrer ou morrer, mas trocou de lugar com Simão de Cirene, que foi transfigurado para parecer com Jesus e crucificado, enquanto o verdadeiro Jesus via de longe e ria. Marcião e outros ensinavam que Logos/Cristo desceu sobre Jesus em forma de pomba e ascendeu aos céus antes de sofrer na cruz. Cristo apenas parecia ter um corpo físico, e ter sofrido e sido crucificado, mas ele era na verdade incorpóreo, um espírito puro, e assim não poderia sofrer [10]. Os próprios cristãos, percebiam quanto a crucificação era degradante e embaraçosa, tanto que que alguns deles chegaram a afirmar que Cristo, o Messias, não poderia ser realmente submetido a ela, e seu suplício só poderia ter sido aparente, ou ele teria sido substituído por alguém que foi transfigurado para parecer com ele. Isso reforça a percepção que a crucificação de Jesus não foi inventada pelos cristãos, mas um fato traumático que eles buscaram lidar de diferentes formas.

Por fim, a crucificação de Jesus e sob a acusação de ser o Rei dos Judeus era muito perigosa para os primeiros cristãos dado seu status legal precário no Império Romano. Os evangelhos foram escritos, provavelmente, entre a 1ª Guerra Judaica (66-73 DC) e 2ª Guerra Judaica (132-135 DC). No primeiro século DC e início do secundo, houveram inúmeras revoltas, provocadas por auto-proclamados "Reis dos Judeus" e "Messias", que causaram a morte de (dezenas de) milhares de pessoas, dentre os quais milhares de bons soldados e cidadãos de Roma. No mesmo período, a igreja era perseguida e o cristianismo era uma seita ilegal, sendo que alguns oficiais e magistrados suspeitavam que o grupo era formado por agitadores, desleias a Cesar e a Roma. De fato, Aristides, Quadrato, Justino Martir, Melito, Apolinario, e outros, escreveram ao Imperador da época buscando incessantemente provar que os cristãos eram leais, pacíficos e produtivos e perfeitos súditos do Império. Porque, nessas circunstâncias, os cristãos inventariam que seu líder tinha sido um Messias Crucificado, executado como um criminoso político, por magistrados romanos, sob a acusação de Alta Traição? Certamente porque Jesus foi realmente crucificado, por ter sido acusado (justa ou injustamente) de se auto-proclamar "Rei dos Judeus", e essas coisas eram fatos bem conhecidos (e problemáticos) que os cristãos tinham que explicar.

Os critérios como embaraçamento, dissimilaridade, múltipla atestação e outros apresentam limitações, mas permitem, no caso de Jesus, estabelecer, no mínimo, um esboço de sua figura. E o que observa o Prof. Alan Segal, da Universidade de Colúmbia:
"Desde o Iluminismo, as histórias do Evangelho sobre a vida de Jesus tem sido postas em dúvida. Intelectuais, naquele tempo e agora, perguntam: "O que torna as histórias do Novo Testamento historicamente mais prováveis do que fábulas de Esopo ou contos de Grimm?" Os críticos podem ser respondidos de forma satisfatória, mas os argumentos que eles apresentam são corrosivos à fé ingênua"[11]

Segal observa que muitos estudiosos são céticos quando as narrativas de infância de Jesus, considerando como lendários os relatos dos anjos aparecendo aos pastores, a matança dos inocentes, a estrela de Belém e os magos do oriente. Pondera a falta de registros históricos escritos durante a vida de Jesus. No entanto, ele afirma, isso não invibiabiliza a pesquisa histórica sobre a vida de Jesus, pois entre os critérios estabelecidos pelos historiadores, o do embaraçamento estabelece um padrão muito rigoroso que, se por um lado, é tão severo que vai lançar fora até mesmo ditos e feitos de Jesus autênticos, por outro, justamente por seu rigor, dá aos estudiosos fatos indisputáveis que permite verificar que as narrativas são, pelo menos em parte, históricas. Segal então continua:
"Pelo grande rigor com que foi definido, o critério [do embaraçamento] demonstra que Jesus existiu. Aqui estão alguns fatos nos evangelhos que a igreja foram embaraçosos para a Igreja Primitiva: Jesus foi batizado por João (um grande problema teológico). Ele pregou o fim do mundo (que não veio). Ele se opôs ao Templo de alguma forma (e esta oposição o levou diretamente para a morte). Ele foi crucificado (uma maneira desonrosa de morrer). A inscrição na cruz "Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus" (a Igreja nunca pregou este título para Jesus e logo perdeu o interesse em converter judeus). Ninguém, de fato, viu quando ele ressuscitou (embora, evidentemente, seus discípulos, quase que imediatamente perceberam que ele estava vivo). Ironicamente, é a natureza embaraçosa desses fatos que nos garante que são autenticos (...).O critério de dissimilaridade nos coloca em uma posição melhor no que diz respeito à vida de Jesus no que estamos no que se refere aos grandes acontecimentos da história israelita [11].

O Prof. James McGrath, da Butler University, disponibilizou em seu site, uma compilação de listas dos Prof. Norman Perrin, E.P Sanders, e N.T Wright, que apresentam ditos e feitos de Jesus que são considerados como (quase) indisputavelmente autênticos.

c) Avaliação dos evangelhos como relatos históricos, data de autoria e genero literário.

Segundo a posição amplamente dominante entre os historiadores do cristianismo primitivo os quatro evangelhos foram compostos pelas 2ª e 3ª geração de cristãos, entre 70 e 110 DC, havendo possibilidade de variação de 15 ou 20, para mais ou para menos, para um ou outro evangelho individual [12]. É uma distância comparavel, em nossa perspectiva, a acontecimentos como a ida do homem a lua (1968) e Copa do Mundo de 1970, de um lado, e a crise de 1929 ou a subida de GetúlioVargas ao poder (1930) de outro. Ou seja, é bem provável que pelo menos Marcos (65-80 DC) ou Mateus (80-100 DC), tenham sido finalizados em uma época que testemunhas oculares de Jesus ainda estivessem vivas. Lembrando sempre que essa é a data de composição final, uma vez que os estudiosos identificam fontes escritas mais antigas, como Q (fonte de ditos), como servindo como base a composição evangélica.

Ainda, do ponto de vista do gênero literário, muitos, se não a maioria dos estudiosos atualmente aceitam a tese proposta pelo Prof. Charles Talbert, (Baylor University) e desenvolvida pelo Prof. Richard Burridge (Kings College), - de que cada um dos quatro evangelhos podem ser classificados na categoria das biografias greco-romanas (bioi ou vitae, que apresentam características bem distintas das atuais biografias), como Vidas Paralelas de Plutarco e Agrícola de Tácito -, a partir da analise das caracteristicas mais importantes desse tipo de trabalho (apresentação, assunto, características internas e externas, além de próposito e recepção pelos leitores), no periodo entre 500 AC a 300 DC [13]. Conforme Burridge, existiria, por convenção um contrato informal entre as partes, que "define uma série de expectativas no leitor a respeito das intenções do autor, ajudando na construção do significado do texto, bem como na reconstrução do significado original do autor, assim como na interpretação e avalaição da comunicação contida na obra literária".

A definição de genero é importante, pois, certamente, usando um exemplo atual, nossas expectativas e nossa forma de compreender uma narrativa são diferenciadas, digamos, diante de uma descrição de um assassinato numa página policial de um jornal ou o notíciário na TV, em comparação a de um livro de Agatha Christie ou numa série de ficção como CSI Miami. Ao situarmos os evangelhos na mesma categoria de escritos como as biografias de Alexandre, O Grande e Julio César, a implicação é que Marcos, Mateus, Lucas e João buscaram relatar os ditos, feitos e a significância de Jesus, e, como era extremamente comum entre as bioi, tinham a intenção de que suas obras tivessem finalidade didática em relação as crenças dos cristãos e seu fundador. Obviamente, o reconhecimento em um certo gênero literário diz mais sobre a intenção presumida do autor do que o resultado final de sua obra. O fato de serem bioi ou vitae não "prova" que a "Bíblia tinha Razão" ou estabelece o nível de confiabilidade historica dos evangelhos - ponto diverso que deve ser analisado separadamente - pois também para Cesar, Alexandre e Augusto existiram bons e maus biografos - apenas indica ao estudioso a intenção pela qual foram escritos e forma como foram originalmente lidos.

Outros, como Geza Vermes [14], acreditam que os evangelistas, embora não fossem historiadores profissionais atuaram como narradores populares da história de Jesus de Nazaré. Em ambos os casos, seja como for, os evangelistas teria buscado narrar a vida, idéias, atividades, magistério e morte de Jesus, e usaram estes acontecimentos para compartilhar sua Fé na sua ressureição e de que ele era o Cristo, conforme as escrituras. Observe-se que, mesmo aqueles estudiosos que não concordam com a classificação dos evangelhos como escritos históricos ou bioi, stricto-sensu, como John Dominic Crossan, acreditam que é possivel utiliza-los como fontes históricas, obtendo informações sobre Jesus e os primeiros cristãos [15].

d) Resultados. Como os estudiosos avaliam os evangelhos

Os resultados variam muito, havendo aqueles como F.F Bruce e Craig Bloomberg que defendem a aceitação da tradição evangélica como confíavel até aqueles como Burton Mack que defende uma visão muito mais cética, considerando que cerca de 10 % do que é atribuido a Jesus nos evangelhos teria sido provavelmente dito ou realizado por ele [16]. Seja como for - uma vez que, segundo John D. Crossan, são atribuidos pouco mais de 500 ditos e feitos de Jesus nos evangelhos e outras fontes cristãs escritas até cerca de 100 anos após a morte de Jesus [17] - mesmo nessa visão bem minimalista teriamos por volta de 50 feitos e ditos de Jesus considerados como provavelmente autênticos, mesmo utilizando os critérios históricos de forma extremamente rigorosa. Considerando que, temos apenas quatro ditos associados a uma figura da importância de Hanina Ben-Dosa [18], por exemplo, mesmo antes de qualquer análise crítica, não é díficil entender porque o Professor Flusser nos diz que sabemos mais sobre Jesus do que quase todos seus outros contemporâneos. Alías se considerarmos que existem dezenas de evangelhos e outros textos cristãos, além do NT, tais como os de Nag Hammadi, ai que percebemos que o problema não é a falta de fontes, mas justamente seu excesso.

É que nos diz, em outras palavras, Michael Grant (1914-2004), Professor de História Antiga da Universidade de Edinburgo, ateu, e uma das mais respeitadas figuras em história romana:
"Se nos aplicarmos ao Novo Testamento, como nós devemos, a mesma sorte de critérios que nós devemos utilizar para outros escritos da antiguidade contendo material histórico, nós não podemos mais rejeitar a existência de Jesus sem o fazer o mesmo com um grande número de personagens pagãos cuja realidade de sua figuras históricas nunca é questionada. Certamente, existem todas aquelas discrepancias entre um evangelho e outro. Mas nós não negamos que um evento aconteceu apenas porque alguns historiadores pagãos como, por exemplo, Livio e Polibio, o descreveram de maneiras diferentes. Que houve um rápido crescimento de lendas em volta de Jesus não pode ser negado, e isso aconteceu muito rápido. No entanto, também houve um rápido desenvolvimento de lendas em torno de figuras pagãs como Alexandre o Grande, ainda que ninguém o considere completamente mítico ou fictício. No fim das contas, os métodos críticos modernos não dão suporte a teoria do Cristo Mítico. E, de novo, mais uma vez, ela foi "refutada e rejeitada pelos estudiosos de primeira linha". Nos anos recentes "nenhum estudioso sério ousou levantar a tese da não historicidade de Jesus", ou muito pouco o fizeram, e mesmo assim não conseguiram ser bem-sucedidos frente a forte e abundante evidência contrária" [19]

Por fim, observamos que tanto Vermes quanto Grant observam que existe um "punhado" ou uns "poucos" estudiosos que questionaram a historicidade de Jesus. Na atualidade, podemos citar, por exemplo, o Prof. Robert Price e o Dr. Richard Carrier, entre outros. Estes estudiosos acreditam que existem evidências que sugerem que Jesus possivelmente não teria existido, e uma das suas principais reclamações é justamente que o consenso histórico é tão forte, que suas teses não são consideradas com a seriedade devida, não sendo possível a eles sequer começar o debate acadêmico. Seja como for, não há problema em se questionar a existência de Jesus, ou seu significado, que é uma questão histórica como outra qualquer. O problema, como em casos como o do filme citado, é não informar aos leitor, principalmente os leigos no assunto, a situação atual do campo, dando a entender que justamente a situação contrária é a que ocorre.

CONTINUA
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Referências Bibliograficas:
[1] Peter Joseph, "Zeitgeist, O Filme", transcrição parte 1, acessado em 30.12.2009[2] Jona Lendering: "Pontius Pilate"http://www.livius.org/pi-pm/pilate/pilate01.htm., acessado em 28.12.2009[3] ver John J. Butt, Greenwood Dictionary of World History (2006), "Pliny the Younger", fl. 266; Ronald Mellor (1999), Roman Historians, fl. 89. Este exemplo foi utilizado anteriormente por Gakusei Don, na analise do documentário "God who Wasn't there"[4] Statius, Silvae 4.4; Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas 20:7.2; Suetônio, A Vida dos Doze Césares, Tito 8:3-4.[5] Herbert W. Benario (2000), Trajan In: De Imperatoribus Romanis:An Online Encyclopedia of Roman Rulers and their Families (http://www.roman-emperors.org/) , acessado 28.12.2009[6] Geza Vermes (2005), Quem e Quem na Época de Jesus, fl. 23, Ed. Record, 1ª Edição[7] David Flusser (1998), Jesus, fl .01, Ed. Perspectiva[8] John D. Crossan (2000), Seminar on Materials & Methods in Historical Jesus Research, Seminário On-line realizado de 11 de fevereiro a 4 de março de 2000, ver mensagens 146 e 159, e também 167, de 28/02, 01/03 e 02/03/2000, respectivamente (acessado em 04.01.2010)[9] Steve Mason, Where Jesus Was Born? O Little Town of…Nazareth?, Bible Review, Fevereiro de 2000.[10] A.K.M. Adam, Docetism, The Ecole Initiative, http://ecole.evansville.edu/articles/docetism.html, as passagens citadas de Contra as Heresias, de Irineu de Lyon, são os Livros I capítulos 23, verso 2, e 26, verso 4; II; e Livro II 24.4, acessado 04.01.2010.
[11] Alan F. Seagal (2005), Jesus and the Gospels-What Really Happened - [1]: Believe only the Embarrassing, Slate, 21.12.2005 http://www.slate.com/id/2132974/entry/2132989/, acessado em 04.01.2010.
[12] ver Geza Vermes (2005), A Paixão, fl. 15, Editora Record, 1ª edição; John D. Crossan, Jesus, Uma Biografia Revolucionária, fl. 14, Ed. Imago, 1ª Edição; Gerd Thiessen, O Novo Testamento, fls. 71-92 e fls. 111-122; 1ª Edição.[13] Burridge, Richard (2004): What Are the Gospels, A Comparison with Graeco-Roman Biography, 2ª edição;ver também o review por James Morrison (Bryan Mawr Classical Review 2005.05.31) e Mitchell G. Reddish (Mitchell Reddish, review of Richard A. Burridge, What Are the Gospels?: A Comparison with Greco-Roman Biography, Review of Biblical Literature). Quanto a avaliação da tese, o Professor Bart Erhmann afirma que, recentemente "tem sido aceita por muitos estudiosos" (Bart Ehrman, The New Testament: A Historical Introduction to the Early Christian Writings. 3ª edição, fl. 64-65, 2004). O próprio Burridge afirma ter ficado surpreso com a aceitação de sua tese, parecendo-lhe que a maioria dos estudiosos já classificava os evangelhos entre as bioi ou vitae no final da década de 1990 (What Are the Gospels.... fl. 253). Andrew T. Lincoln fala em consenso na comunidade acadêmica em torno da tese de Burridge (A.T. Lincoln, 'Reading John, The Forth Gospel under Modern and Post-Modern Interrogation In Stanley Porter (ed.) : Reading the Gospels Today), percepção compartilhada pelo Prof. Mitchell Reddish no review já citado.[14] Geza Vermes (2001), As Várias Faces de Jesus, fl.177[15] John Dominic Crossan (2004); Texto e Contexto na Metodologia dos Estudos do Jesus Histórico In Chevitarese, Corneli & Selvatici; Jesus de Nazaré, Uma outra História, fls. 169-170.[16] Burton L Mack (1993), The Lost Gospel: The Book of Q and Christians Origins, especialmente fls. 71-105 e fls. 260-263; ver também o sumário extremamente útil de Cris Zeichmann, "Q and The Historical Jesus, Pt. 2" http://neonostalgia.com/weblog/?p=551[17] John Dominic Crossan (1999) Birth Of the Christianity, fls. 587-596. Disponível online em http://www.jesusdatabase.org/index.php?title=Crossan_Inventory, acessado em 30.12.2009[18] Geza Vermes (2001), As Várias Faces de Jesus, fl.[19] Michael Grant (1979), Jesus: An Historian's Review of the Gospels, pagina 200.