quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Israel Finkelstein e a arqueologia de Israel

FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. The Bible Unearthed. Archaeology's New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001, xii + 385 p. - ISBN 9780684869124 - Hardcover; ISBN 9780684869131 - Paperback, 2002.

Israel Finkelstein, autor de importantes estudos no campo da arqueologia da Palestina, foi o Diretor do Instituto de Arqueologia Sonia e Marco Nadler da Universidade de Tel Aviv, Israel, de 1996 a 2002, e co-diretor das escavações de Tel Meguido. Atualmente, 2005, é o titular da Cátedra Jacob M. Alkow de Arqueologia de Israel nas Idades do Bronze e do Ferro da mesma Universidade, e acaba de ganhar o prêmio Dan David. Neil Asher Silberman é Diretor de Interpretação Histórica do "Ename Center for Public Archaeology and Heritage Presentation", na Bélgica.

Este envolvente livro, A Bíblia Desenterrada: Uma Nova Visão Arqueológica do Antigo Israel e da Origem de seus Textos Sagrados (no Brasil: A Bíblia Não Tinha Razão, São Paulo, A Girafa, 2003), contém 12 capítulos agrupados em três partes, um epílogo, 7 apêndices - que retomam e aprofundam temas tratados ao longo do texto - uma bibliografia, um índice de nomes e lugares, além dos tradicionais prólogo e introdução. Donos de prosa refinada, os autores tomam cuidadosamente o leitor pela mão e o conduzem em aventura fascinante através do mundo do Antigo Israel.

Mesmo antes do prólogo, nos agradecimentos feitos pelos autores àqueles que colaboraram na produção da obra, os autores já explicam a razão da publicação do livro.

O livro, dizem, foi pensado cerca de oito anos antes de sua publicação. E o motivo foi o debate sobre a historicidade da Bíblia, que então começava a atrair o público leigo. Os autores concluíram, ainda no começo da década de 90, que "um livro atualizado sobre este tema para os leitores em geral se fazia necessário" (p. V).

Finkelstein e Silberman observam que, nestes últimos anos, a controvérsia arqueológica sobre a questão bíblica cresceu muito, inclusive com acusações pessoais de motivações políticas inconfessáveis [os autores devem estar se referindo às possíveis implicações da pesquisa acadêmica para as reivindicações atuais de determinados grupos em Israel sobre o território palestino].

Houve um êxodo? Existiu uma conquista de Canaã? Davi e Salomão governaram um grande império? Questões como estas atraíram jornalistas, chegaram ao grande público e, ao ultrapassarem os círculos acadêmicos da arqueologia e da exegese bíblica, criaram polêmicos debates teológicos, resultando até em discussões sobre a crença religiosa deste ou daquele estudioso.

Por tudo isso é que declaram os autores: "Apesar das paixões suscitadas por este tema, nós acreditamos que uma reavaliação dos achados das escavações mais antigas e as contínuas descobertas feitas pelas novas escavações deixaram claro que os estudiosos devem agora abordar os problemas das origens bíblicas e da antiga sociedade israelita de uma nova perspectiva, completamente diferente da anterior" (pp. V-VI). Sua proposta no livro: apresentar evidências que sustentam esta afirmação e reconstruir uma história do antigo Israel bem diferente das habituais. Os autores deixam, finalmente, aos leitores, o julgamento de sua empreitada.

No Prólogo os autores propõem que o mundo em que a Bíblia nasceu foi o da Jerusalém da reforma do rei Josias no século VII AEC [antes da Era Comum, o mesmo que a.C.= antes de Cristo]. O núcleo histórico da Bíblia, pelo menos, nasceu nas ruas de Jerusalém, nos pátios do palácio real da dinastia davídica e no Templo do Deus de Israel, em parte de materiais tradicionais herdados, em parte de composições originais da época.

Nas palavras dos autores: "A saga histórica contida na Bíblia - do encontro de Abraão com Deus e sua jornada para Canaã, da libertação mosaica dos filhos de Israel da escravidão até a ascensão e queda dos reinos de Israel e Judá - não foi uma revelação miraculosa, mas um brilhante produto da imaginação humana. Ela foi concebida pela primeira vez - como as recentes descobertas arqueológicas sugerem - no espaço de duas ou três gerações, a cerca de dois mil e seiscentos anos atrás. Seu berço foi o reino de Judá, uma região escassamente povoada por pastores e agricultores, governada por uma isolada cidade real precariamente encravada no coração da região montanhosa sobre um estreito cume, entre profundos, rochosos desfiladeiros" (p. 1).

Uma cidade que pareceria extremamente modesta aos olhos de um observador moderno, com seus cerca de 15 mil habitantes, com bazares e casas amontoadas a oeste e sul de um modesto palácio real e seu Templo. Entretanto, no século VII AEC, esta cidade fervilhava com uma agitada população de oficiais reais, sacerdotes, profetas, refugiados e camponeses privados de suas terras. Uma cidade consciente de sua história, identidade, destino e relação direta com Deus.

Esta visão da antiga Jerusalém e das circunstâncias que deram origem à Bíblia, insistem os autores, é proveniente das recentes descobertas arqueológicas. Descobertas que "revolucionaram o estudo do Israel primitivo e lançaram sérias dúvidas sobre as bases históricas das tão famosas estórias bíblicas como as peregrinações dos patriarcas, o Êxodo do Egito, a conquista de Canaã e o glorioso império de Davi e Salomão" (p. 3).

É isto que os autores deste livro pretendem contar: "A estória do antigo Israel e o nascimento de suas escrituras sagradas a partir de uma nova perspectiva, uma perspectiva arqueológica" (p. 3). Os autores pretendem separar história de lenda. Enfim, declaram, seu propósito não é simplesmente desmontar conhecimentos ou crenças, mas partilhar as mais recentes percepções arqueológicas "não apenas sobre o quando, mas também sobre o porquê a Bíblia foi escrita, e porque ela permanece tão poderosa ainda hoje" (p. 3).

Na Introdução, pp. 4-24, sob o título A Arqueologia e a Bíblia, os autores nos informam que foram os estudos detalhados dos textos bíblicos e as pesquisas arqueológicas realizadas na Palestina nos dois últimos séculos que nos ajudaram a reconstruir a real história escondida atrás da Bíblia.

Em seguida, ao oferecerem algumas definições básicas do que é a Bíblia Hebraica [= Antigo Testamento] e explicar a sua estrutura - "O coração da Bíblia Hebraica é uma história épica que descreve o surgimento do povo de Israel e sua contínua relação com Deus" (p. 8) -, Finkelstein e Silberman dizem que este livro examina as principais obras 'históricas' da Bíblia, ou seja, a Torá [= Pentateuco: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio] e os Profetas Anteriores [= OHDtr - Obra Histórica Deuteronomista: Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis].

E explicam: "Nós comparamos esta narrativa com a riqueza dos dados arqueológicos que foram coletados nas últimas décadas. O resultado é a descoberta de uma relação complexa e fascinante entre o que realmente aconteceu na terra da Bíblia durante o período bíblico (...) e os conhecidos detalhes da elaborada narrativa histórica contida na Bíblia Hebraica" (p. 8).

Após esboçarem a história da pesquisa do Pentateuco e da OHDtr, os autores continuam definindo, em gradual aproximação, a sua perspectiva que é: a arqueologia oferece hoje evidência suficiente para que se sustente uma nova proposta. Proposta que diz ter sido o núcleo histórico do Pentateuco e da OHDtr modelado no século VII AEC.

"Nós focalizaremos o Judá do final do século VIII e do século VII AEC, quando este processo literário começou para valer, e argumentaremos que a maior parte do Pentateuco é uma criação da monarquia recente, elaborado em defesa da ideologia e necessidades do reino de Judá, e, como tal, está intimamente associado à História Deuteronomista. E nos alinharemos com aqueles estudiosos que argumentam que a História Deuteronomista foi compilada, principalmente, no tempo do rei Josias [640-609 AEC], para oferecer uma legitimação ideológica para ambições políticas e reformas religiosas específicas" (p. 14).

Finalmente, depois de brevemente resenhar a história da arqueologia da Palestina, Finkelstein e Silberman concluem, na p. 23, que "a maior parte daquilo que é normalmente considerado como história acurada (...) são, na verdade, as criativas expressões de um poderoso movimento de reforma religiosa que floresceu no reino de Judá na Idade Recente do Ferro".

Isto não implica, para os autores, que o antigo Israel não tenha uma história genuína, nem que os relatos bíblicos devam ser descartados, mas que, amparados pelos achados arqueológicos e pelos testemunhos extrabíblicos, se verá como as narrativas bíblicas são, elas mesmas, parte da estória, e não o inquestionável quadro histórico dentro do qual deveriam se encaixar cada achado arqueológico ou conclusão da pesquisa.

A Bíblia é, nesta perspectiva, um artefato específico que, juntamente com a cerâmica, a arquitetura e as inscrições, nos ajuda a compreender a sociedade na qual ela foi produzida.

"Nossa estória se afastará dramaticamente da familiar narrativa bíblica. Será a estória não de um, mas de dois reinos escolhidos, que juntos contêm as raízes históricas do povo de Israel", concluem os autores ao término da Introdução, na p. 23.

A Primeira Parte do livro - A Bíblia como História? - tem cinco capítulos, que tratam, respectivamente, dos patriarcas (pp. 27-47), do êxodo (pp. 48-71), da conquista de Canaã (pp. 72-96), da identidade dos israelitas (pp. 97-122) e da monarquia sob Davi/Salomão (pp. 123-145).

No capítulo sobre os patriarcas, após sintetizarem as tradições bíblicas sobre estas figuras, os autores se perguntam: reais ou fictícias?

Para responder a isso, eles explicam as razões da busca dos estudiosos pelos patriarcas, nos últimos séculos, e como a historiografia bíblica ficou convencida de sua historicidade. Entre os nomes mais conhecidos estão, por exemplo, Albright, De Vaux, Speiser, Gordon e Benjamin Mazar.

Entretanto, lembram os autores, um acordo nunca foi alcançado, especialmente na questão da datação dos patriarcas. E questionam: onde está o erro desta busca? O erro está em que todos eles acreditavam que a época patriarcal deveria ser vista, de qualquer modo, como a primeira fase de uma história seqüencial de Israel, concluem na p. 36. E se esta seqüência - patriarcas, êxodo, conquista, monarquia unida, reinos divididos, exílio etc - não for considerada?

Em seguida, os autores expõem a posição de especialistas que, analisando de modo diferente as tradições, não acreditam na historicidade dos patriarcas. Destacam Wellhausen, Van Seters e Thomas L. Thompson, todos mostrando que as narrativas são compilações bem recentes. E, mais uma vez, perguntas: mas estas compilações teriam ocorrido quando?

Buscando na arqueologia as respostas, Finkelstein e Silberman mostram as inconsistências existentes nas tradições patriarcais. E defendem que detalhes como a presença impossível de camelos e filisteus no mundo patriarcal são 'anacronismos' a serem seriamente considerados, pois não são inserções posteriores em narrativas antigas, mas indícios de que as narrativas são bem mais recentes do que alguns estudiosos pensavam. E tudo aponta para os séculos VIII/VII AEC, concluem na p. 38, quando estes elementos não eram, de modo algum, anacrônicos.

E é a partir desse pressuposto que os autores vão mostrar como o exame das genealogias e dos costumes patriarcais "oferecem um colorido mapa humano do Antigo Oriente Médio de um inquestionável ponto de vista dos reinos de Israel e Judá nos séculos oitavo e sétimo AEC. Estas estórias oferecem um comentário altamente sofisticado dos negócios políticos nesta região nos períodos assírio e neo-babilônico", dizem nas pp. 38-39.

Finkelstein e Silberman consideram que a caracterização de muitos termos e nomes de lugares das tradições patriarcais combinam perfeitamente com a relação de Israel e Judá com os reinos e povos vizinhos desta época. Para demonstrar isto, tratam dos arameus, de Amon e Moab, Edom, dos descendentes de Ismael e de nomes de lugares mencionados em Gn 14 e outros textos.

Na seqüência, os autores lembram a posição de M. Noth de que os patriarcas seriam originariamente ancestrais isolados que foram agrupados como uma família para criar uma história unificada. E mostram, então, nesta perspectiva, que a escolha de Abraão e sua ligação com Hebron e Jerusalém (Salém em Gn 14,18), cidades reais davídicas, foi feita para enfatizar a primazia de Judá. Escolha esta feita nos séculos VIII/VII AEC, mas retroprojetadas para o começo, para legitimar Judá como projeto divino. "Então, a idéia pan-israelita, com Judá no centro, nasceu", sentenciam na p. 44.

Concluem, assim, Finkelstein e Silberman a questão patriarcal: as narrativas patriarcais são provavelmente, baseadas em antigas tradições locais, mas "a ordem em que elas foram agrupadas as transformam em uma poderosa expressão dos sonhos judaítas do século sétimo" (p. 45). Por isso, as tradições patriarcais devem ser lidas como uma espécie de piedosa 'pré-história' de Israel, na qual Judá exerce um papel decisivo. Sob tal perspectiva, devemos considerar a versão javista (J) das narrativas patriarcais como uma tentativa de redefinir a unidade do povo de Israel, muito mais do que a recuperação de vidas de personagens que teriam vivido um milênio antes.

Finkelstein e Silberman consideram, finalmente, que a grande genialidade dos criadores deste épico nacional do século sétimo AEC foi ter transformado os filhos de Abraão, Isaac e Jacó numa grande família, unidos pelo poder da lenda, muito mais forte do que poderiam ser tênues lembranças de alguns indivíduos nômades perambulando pelas montanhas de Canaã.

No capítulo sobre o êxodo, os autores fazem quatro perguntas: O êxodo tem credibilidade histórica? A arqueologia pode ajudar a reconstruí-lo? É possível traçar a rota do êxodo? O êxodo aconteceu como descrito na Bíblia?

Após uma síntese da narrativa bíblica, Finkelstein e Silberman confirmam que as migrações de Canaã para o Egito são bem documentadas pela arqueologia e por textos da época. Para muitos habitantes de Canaã, região periodicamente sujeita a severas secas, a única saída era ir para o Egito. Pinturas e textos egípcios testemunham a presença de semitas no delta do Nilo ao longo das Idades do Bronze e do Ferro.

Por outro lado, há intrigantes paralelos entre a história bíblica de José e o êxodo e a história egípcia escrita por Maneton, sobre a invasão do Egito pelos hicsos e sua posterior expulsão após um século. "Invasão" que escavações arqueológicas recentes revelaram ter sido muito mais uma ocupação cananéia gradual e pacífica do delta do que uma operação militar. "As descobertas feitas em Tell ed-Daba [a antiga Avaris, capital dos hicsos] constituem evidência de um longo e gradual desenvolvimento da presença cananéia no delta e um controle pacífico da região", concluem na p. 55.

Estes paralelismos entre a história bíblica de José e a história egípcia dos hicsos indicam a possibilidade do êxodo. Entretanto, duas questões permanecem: Quem eram este imigrantes semitas? E será que a data de sua permanência no Egito [1670-1570 AEC] combina com a cronologia bíblica?
A Bíblia colocou o êxodo em torno de 1440 AEC, data que se obtém pela comparação de dados bíblicos com fontes extrabíblicas. Entretanto, esta data não coincide com a expulsão dos hicsos. Por isto, muitos estudiosos consideram-na simbólica apenas, e datam o êxodo no século XIII AEC, na época de Ramsés II, fundados em testemunhos egípcios indiretos, como a construção da cidade de Pi-Ramsés no delta, na qual trabalharam semitas, e na estela de Merneptah, filho e sucessor de Ramsés II, que fala da presença de uma entidade de nome 'Israel' presente em Canaã, no final do século XIII AEC.

Mas quem eram estes semitas presentes no Egito na construção de cidades e que 'Israel' é este da estela de Merneptah? Ainda não há respostas definitivas para estas perguntas. E mais: um êxodo em massa teria sido possível na época de Ramsés II?

O que se sabe é que não existe nas fontes egípcias da época menção alguma da presença de israelitas no Egito. Nem ligados aos hicsos (séculos XVII-XVI AEC), nem aos grupos cananeus mencionados nas Cartas de Tell el-Amarna (século XIV AEC), nem a um fuga para Canaã (século XIII AEC).

Trabalhando a partir desta lógica, Finkelstein e Silberman vão concluir pela impossibilidade do êxodo no século XIII AEC. Entre outras coisas, eles alegam que, nesta época, a fronteira do Egito com Canaã era severamente controlada, como a arqueologia comprovou na década de 70; que não existe nenhum sinal de ocupação do Sinai na época de Ramsés II ou predecessores imediatos; que não existe sinal do êxodo em Kadesh-Barnea ou Ezion-Geber, nem nos outros lugares mencionados na narrativa do êxodo, como Tel Arad, Tel Hesbon ou Edom. Convém considerar, também, que as narrativas bíblicas do êxodo jamais mencionam o nome do faraó que os israelitas enfrentaram.

E concluem: "Os locais mencionados na narrativa do êxodo são reais. Alguns eram bem conhecidos e aparentemente estavam ocupados em épocas mais antigas e em épocas mais recentes - após o estabelecimento do reino de Judá, quando a narrativa bíblica foi pela primeira vez escrita. Infelizmente, para os defensores da historicidade do êxodo, estes locais estavam desocupados exatamente na época em que aparentemente eles exerceram algum papel nas andanças dos israelitas pelo deserto" (p. 64).

E é então que se verifica estarem as condições do sétimo século AEC, época da escrita, bem mais presentes na estória do êxodo, do que uma realidade do século XIII AEC. E aqui Finkelstein e Silberman vão adotar a tese do egiptólogo Donald B. REDFORD, exposta no livro Egypt, Canaan, and Israel in Ancient Times, Princeton University Press, Princeton, 1992.

Falando de maneira muito simplificada, a proposta é a seguinte: a memória da invasão e expulsão dos hicsos foi incorporada em Canaã como uma memória de confronto, vitória e libertação. Israel, ao surgir de Canaã, será o herdeiro dessa memória. Quando, no século VII AEC, Psamético I, faraó do Egito e Josias, rei de Judá tentam ocupar o espaço deixado pela Assíria na região da Palestina, e se confrontam - Josias será vencido por Necao II, filho de Psamético I -, esta memória serve de pano de fundo para a narrativa do êxodo. Êxodo impossível na época de Ramsés II, mas um paradigma de resistência na luta de Josias para reunificar o grande Israel.

Para finalizar: "A saga do êxodo de Israel do Egito não é uma verdade histórica, nem uma ficção literária. Ela é uma poderosa expressão de memória e esperança nascida em um mundo em transformação. O confronto entre Moisés e o faraó espelha o crucial confronto entre o jovem rei Josias e o recém-coroado faraó Necao. Fixar esta imagem bíblica em uma data anterior é subtrair da estória seu mais profundo significado. A Páscoa se revela, assim, não como um simples evento, mas como uma experiência contínua de resistência nacional contra os poderes estabelecidos" (pp.70-71).

No capítulo sobre a conquista de Canaã, a questão básica é: história ou mito? Para responder a isto, os autores, após resumir a saga bíblica da conquista narrada no livro de Josué, dizem que as Cartas de Tell el-Amarna, do século XIV AEC, mostram um Canaã bem diferente daquele de Josué, ou seja, como uma província egípcia, governada por fracos chefes nas cidades. Realidade que a arqueologia confirma, ao escavar cidades pequenas e fracas, algumas abandonadas ou diminuídas em população e povoados sem muralhas.

E no século XIII AEC? Não temos dados como os das Cartas de Tell el-Amarna, mas o forte governo de Ramsés II estava presente em Canaã, como se pode ver na fortaleza egípcia de Bet-Shean e em Meguido, do que os autores deduzem que os egípcios em Canaã não ficariam indiferentes a uma destruição tal como a de Josué.

Após repassar a arqueologia da conquista - quer dizer, os defensores da versão de Josué - na primeira metade do século XX, com as escavações de Albright em Tell Beit Mirsim/Debir (1926-1932), dos britânicos em Tell ed-Duweir/Lakish (1930ss) e do israelense Yigael Yadin em Tell el-Waqqas/Hasor (1956), Finkelstein e Silberman explicam como a euforia desta teoria entrou em crise com as pesquisas de Jericó, Ai, Gabaon e outras cidades que nem existiam no século XIII AEC, fazendo cair o consenso sobre a conquista de Canaã.

Em seguida, alertam que, para se compreender Canaã, é preciso olharmos o Mundo Mediterrâneo como um todo no século XIII AEC. E aí apontam transformações dramáticas, tais como o grandioso Egito de Ramsés II que se enfrenta com o império de Hatti na batalha de Cades, levando ao tratado egípcio-hitita; o mundo de Micenas; Chipre...

E, então, por volta de 1130 AEC o grande 'terremoto' da migração dos Povos do Mar, a sua tentativa de invasão do Egito na época de Ramsés III, a presença dos filisteus em Ashdod e Ekron, a destruição de outras cidades cananéias como Hasor, Afek, Lakish e Meguido, destruição lenta e gradual, concluindo que não pode ter sido Josué o destruidor destas cidades.

Lembram também os autores como a escola alemã de Alt e Noth já mostrava, antes da atual posição da arqueologia, a inconsistência de uma conquista, tal como narrada em Josué, e a maior coerência da narrativa de Jz 1. Para concluir disto o seguinte: o livro de Josué pode trazer, sim, memórias populares e lendas sobre esta época de profundas transformações, mas o que deve ter sido uma destruição caótica provocada por diferentes fatores e grupos diversos, ficou na tradição como uma poderosa saga de uma brilhante conquista territorial comandada pelas bênçãos divinas.

Ainda: a lista de cidades de Js 15,21-22 corresponde às fronteiras do reino de Judá na época de Josias. E algumas localidades estiveram habitadas somente nas décadas finais do século VII AEC. Assim, o que a OHDtr narra das batalhas de Josué cabe melhor na época de Josias, como o caso de Jericó, Ai (na região de Betel), o caso dos gabaonitas, a conquista da Shefelá e a conquista do norte, especialmente Hasor.

Donde os autores concluem que as conquistas de Josué são uma 'mascara' para as conquistas de Josias: e isto está bem entranhado na OHDtr, onde os paralelismos entre as figuras de Josué e Josias não são apenas convencionais, mas "paralelismos diretos na linguagem e na ideologia - além dos idênticos objetivos de conquista dos dois personagens" (p. 85).

No capítulo sobre a identidade dos israelitas, a questão é: se, como a arqueologia sugere, as sagas dos patriarcas e do êxodo são lendárias, compostas em épocas bem mais recentes, e se não houve uma conquista unificada de Canaã sob o comando de Josué, quem é este Israel que reivindica uma identidade nacional desde tempos antigos?

Ora, "a arqueologia, surpreendentemente, nos revela que este povo que vivia nestes povoados, eram habitantes nativos de Canaã que somente gradualmente desenvolveram uma identidade étnica que poderia ser chamada de israelita", dizem os autores na p. 98.

Após repassarem uma síntese bíblica da divisão do território entre as tribos, segundo o livro de Josué, e as lutas do livro dos Juízes, mais questões são colocadas por Finkelstein e Silberman: a Bíblia está narrando algo que realmente aconteceu? Cultuava Israel um só Deus, mas caía, às vezes, no politeísmo? Como viviam estes israelitas no seu cotidiano? Sabemos de suas fronteiras e batalhas, mas como eram os assentamentos e como se sustentavam? Como nômades do deserto aprenderam a ser agricultores tão rapidamente?

Em seguida, os autores falam do 'Israel' citado na estela de Merneptah no final do século XIII AEC, da diferença entre as culturas cananéia e a dos invasores 'seminômades' percebida pelos arqueólogos, da teoria da infiltração pacífica de A. Alt e dos testemunhos egípcios sobre os apiru e os shoshu. Criticam, por um lado, a teoria da infiltração pacífica e, por outro, a proposta da revolta camponesa de Mendenhall e Gottwald, esta última, pela falta de suporte arqueológico, para chegar onde sempre chegam: a resposta às questões colocadas deve ser buscada na arqueologia.

Mas, dizem Finkelstein e Silberman, os arqueólogos até os anos 60 procuravam Israel nos lugares errados, nos grandes sítios das maiores cidades cananéias. E isto porque acreditavam em Josué. A exceção foi Y. Aharoni que fez escavações na Alta Galiléia. Entretanto, lembram, desde os anos 40 os arqueólogos já reconheciam a necessidade da pesquisa de uma região e não apenas de uma localidade.

E, então, a partir de 1967, os territórios das tribos de Judá, Benjamin, Efraim e Manassés foram intensivamente pesquisados, revolucionando o estudo do antigo Israel, pois uma densa rede de povoados montanheses foi descoberta: cerca de 250 comunidades habitando as colinas apareceram. "Aqui estavam os primeiros israelitas", comemoram os autores na p. 107.

Como assim? Neste ponto do capítulo, eles passam a descrever as características de um típico povoado da Idade do Ferro I, oferecendo inclusive desenhos ilustrativos e afirmando que a população de todos estes povoados por volta do ano 1000 AEC não ultrapassava em muito as 45 mil pessoas. Descrevem o modo de vida nos povoados, usando como exemplo Izbet Sartah que foi bem pesquisado.

Disto concluem: a principal luta dos primeiros israelitas não era com outros povos, mas com as duras condições da natureza onde viviam. E parece que viviam em relativa paz e com uma economia auto-suficiente, isolados das principais rotas comerciais da região e razoavelmente distantes uns dos outros, não havendo sinais de comércio entre os povoados. "Por isso, não nos surpreende que inexistam evidências de significativa estratificação social nestes povoados, nenhum sinal de edifícios administrativos, nem grandes residências de dignitários ou produtos especializados de hábeis artesãos", dizem os autores na p. 110.

Entretanto, uma pergunta permanece: de onde eles vieram? Ora,a partir da pesquisa de Izbet Sartah, que preservou bastante bem suas estruturas originais, pode-se acompanhar a evolução dos povoados. E tudo indica que uma grande parte dos primeiros israelitas veio do meio pastoril. Pastores nômades, mas que estavam passando por profundas transformações, tornando-se, gradualmente, agricultores.

Outra coisa interessante que a arqueologia mostra também é que esta transformação no século XII AEC não foi nem a primeira, nem a única: duas outras ondas de ocupação da região montanhosa de Canaã ocorreram antes.

A primeira onda foi na Idade do Bronze Antigo, por volta de 3500 AEC, com cerca de 100 povoados e pequenas cidades, acontecendo o abandono da maior parte das povoações nas montanhas por volta de 2200 AEC. A segunda onda ocorreu na Idade do Bronze Médio, por volta de 2000 AEC, com cerca de 220 assentamentos, que iam desde povoados até cidades e centros regionais fortificados, chegando a população a um total de 40 mil pessoas. Esta onda terminou no século XVI AEC.

A terceira onda, a dos assentamentos israelitas, ocorreu por volta de 1200 AEC, com uma população de aproximadamente 45 mil habitantes em cerca de 250 localidades. O ápice desta ocupação foi no século VIII AEC, após a constituição dos reinos de Judá e de Israel, com cerca de 500 localidades e uma população de aproximadamente 160 mil habitantes.

Agora, uma questão interessante é colocada pelos autores: existe algum padrão nestas três ocupações? Existe, sim, respondem. A parte norte da região montanhosa sempre foi mais populosa do que a parte sul; cada onda de crescimento demográfico parece ter começado no leste e se expandido para o oeste; as três ondas possuem uma cultura material comum (na cerâmica, na arquitetura e na estrutura dos povoados), resultado provável de condições ambientais e econômicas semelhantes.

Interessante, porém, é o que a arqueologia revelou ao escavar ossos de animais: nos períodos entre estas ondas de ocupação não acontecia um abandono da região, mas uma mudança de atividade: da agricultura e criação de gado para o pastoreio. Este, aliás, parece ter sido, ao longo dos séculos, um comportamento típico das populações da região: em períodos de intenso povoamento, há maior dedicação à agricultura, enquanto que, nos períodos de crise, as pessoas praticam mais o pastoreio, o que lhes dá maior mobilidade.

E isto tem importância para a identificação dos primeiros israelitas? Tem. O que se observa é que agricultores e pastores nômades sempre tiveram uma relação de interdependência nas sociedades do Antigo Oriente Médio, complementando-se na troca de seus produtos. Entretanto, esta troca não é inteiramente equilibrada, pois os habitantes dos povoados podem sobreviver apenas com seus próprios produtos, o mesmo não acontecendo com os pastores nômades: eles precisam de grãos para complementar sua dieta, totalmente dependente do rebanho. E assim, quando não há povoados com os quais comerciar, eles são obrigados a produzir, eles mesmos, seus grãos. Aparentemente, foi isto o que aconteceu no século XII AEC, quando teria ocorrido a ausência do controle egípcio sobre Canaã e a economia da região entrou em colapso.

Assim concluem os autores na p. 118: “O processo que nós descrevemos aqui é, na verdade, o oposto daquele que temos na Bíblia: a emergência do Israel primitivo foi uma conseqüência do colapso da cultura cananéia, não a sua causa. E a maior parte dos israelitas não veio de fora de Canaã – eles emergiram de dentro desta terra. Não ocorreu um êxodo em massa do Egito. Não houve uma conquista violenta de Canaã. A maior parte das pessoas que formaram o primitivo Israel eram moradores locais – as mesmas pessoas que vemos nas montanhas nas Idades do Bronze e do Ferro. Os israelitas primitivos eram – ironia das ironias – eles mesmos originariamente cananeus!"

O mesmo processo poderia ser, segundo os autores, testemunhado na Transjordânia, com populações locais formando os povos de Amon, Moab e Edom.

Finalmente, terminam Finkelstein e Silberman este capítulo com duas especulações: os israelitas, já nas suas origens, não consumiam carne de porco - não se sabe a razão -, não tendo sido encontrados ossos deste animal nos povoados das montanhas, e isto seria sua marca distintiva; e o livro dos Juízes, parte da OHDtr, reflete, não as lutas dos primeiros tempos de Israel, mas a época de Josias, quando este, controlando o antigo território do reino de Israel e centralizando o culto em Jerusalém, quebrou o círculo vicioso de apostasia e desastre que atingia periodicamente Israel.

De minha parte, considero a especulação sobre a ausência de consumo da carne de porco como elemento distintivo dos israelitas primitivos especialmente frágil...

No capítulo sobre a monarquia davídico-salomônica, os autores lembram como, para os leitores da Bíblia, Davi e Salomão representam uma idade de ouro, enquanto que para os estudiosos representavam, até recentemente, o primeiro período bíblico realmente histórico. Hoje, a crise se abateu sobre o "império" davídico-salomônico. E se perguntam: Davi e Salomão existiram?

Mostram como os minimalistas dizem: "não", os argumentos pró e contra a postura dos minimalistas, para chegarem à questão chave: o que diz a arqueologia sobre Davi/Salomão?

Para Finkelstein e Silberman a evolução dos primeiros assentamentos para modestos reinos é um processo possível e até necessário na região. Descrevendo as características do território de Judá, concluem que este permaneceu pouco desenvolvido, escassamente habitado e isolado no período atribuído pela Bíblia a Davi/Salomão: é o que a arqueologia descobriu.

E Jerusalém? As escavações de Yigal Shiloh, da Universidade Hebraica de Jerusalém, nas décadas de 70 e 80, na Jerusalém das Idades do Bronze e do Ferro mostram que não há nenhuma evidência de uma ocupação no século X AEC. A postura mais otimista aponta para um vilarejo no século décimo, enquanto que o resto de Judá, na mesma época seria composto por cerca de 20 pequenos povoados e poucos milhares de habitantes, tendo havido, portanto, dificilmente, um grande império davídico.

Mas e as conquistas davídicas? Até recentemente, em qualquer lugar em que se encontravam cidades destruídas por volta do ano 1000 AEC isto era atribuído a Davi por causa das narrativas de Samuel. Teoricamente é possível que os israelitas da região montanhosa tenham controlado pequenas cidades filistéias como Tel Qasile, escavada por Benjamin Mazar em 1948-1950, ou até mesmo cidades cananéias maiores como Gezer, Meguido ou Bet-Shean. Mas será que o fizeram?

E o glorioso reino de Salomão? Em Jerusalém, nada foi encontrado, mas e Meguido, Hasor e Gezer? Em Meguido, P. L. O. Guy, da Universidade de Chicago, descobriu, nas décadas de 20 e 30, os "estábulos" de Salomão. Sua interpretação dos edifícios achados se baseou em 1Rs 7,12;9,15.19. Na década de 50, Yigael Yadin descobriu, ou identificou nas descobertas de outros, as "portas salomônicas" de Hasor, Gezer e Meguido. Também a chave aqui foi 1Rs 9,15, que diz: "Eis o que se refere à corvéia que o rei Salomão organizou para construir o Templo de Iahweh, seu palácio, o Melo e o muro de Jerusalém, bem como Hasor, Meguido, Gazer [=Gezer]".

Mas, na década de 60, Y. Yadin escava novamente Meguido e faz a descoberta de um belo palácio que parecia ligado à porta da cidade e abaixo dos "estábulos", o que o leva à seguinte conclusão : os palácios [a Universidade de Chicago encontrara outro antes] e a porta de Meguido são salomônicas, enquanto que os "estábulos" seriam da época de Acab, rei de Israel do norte no século IX AEC.

Durante muitos anos, estas "portas salomônicas" de Hasor, Gezer e Meguido foram o mais poderoso suporte arqueológico ao texto bíblico. Mas o modelo arquitetônico dos palácios salomônicos veio dos palácios bit hilani da Síria, e estes, se descobriu, só aparecem no século IX AEC, pelo menos meio século após a época de Salomão. "Como poderiam os arquitetos de Salomão ter adotado um estilo arquitetônico que ainda não existia?", se perguntam os autores na p. 140. E o contraste entre Meguido e Jerusalém? Como um rei constrói fabulosos palácios em uma cidade provincial e governa a partir de um modesto povoado?

Pois bem, dizem Finkelstein e Silberman na p. 140: "Agora nós sabemos que a evidência arqueológica para a grande extensão das conquistas davídicas e para a grandiosidade do reino salomônico foi o resultado de datações equivocadas".

Dois tipos de evidência fundavam os argumentos em favor de Davi e Salomão: o fim da típica cerâmica filistéia por volta de 1000 AEC fundamentava as conquistas davídicas; e as construções das monumentais portas e palácios de Hasor, Gezer e Meguido testemunhavam o reino de Salomão. Nós últimos anos, entretanto, estas evidências começaram a desabar [aqui os autores remetem o leitor ao Apêndice D, pp. 340-344, onde os seus argumentos são mais detalhados].

Primeiro, a cerâmica filistéia continua após Davi e não serve mais para datar suas conquistas; segundo, os estilos arquitetônicos e as cerâmicas de Hasor, Gezer e Meguido atribuídos à época salomônica são, de fato, do século IX AEC; e, por último, testes com o Carbono 14 em Meguido e outras localidades apontam para datas da metade do século IX AEC.

Enfim: a arqueologia mostra hoje que é preciso "abaixar" as datas em cerca de um século [anoto aqui que esta "cronologia baixa" de Finkelstein tem dado muito o que falar nos meios acadêmicos!]. O que se atribuía ao século XI é da metade do século X e o que era datado na época de Salomão deve ser visto como pertencendo ao século IX AEC.

Dizem os autores: "Não há razões para duvidarmos da historicidade de Davi e Salomão. Há, sim, muitos motivos para questionarmos as dimensões e o esplendor de seus reinos. Mas, e se não existiu um grande império, nem monumentos, nem uma magnífica capital, qual era a natureza do reino de Davi?" (p. 142).

O quadro é o seguinte: região rural... nenhum documento escrito... nenhum sinal de uma estrutura cultural necessária em uma monarquia... do ponto de visto demográfico, de Jerusalém para o norte, povoamento mais denso; de Jerusalém para o sul, mais escasso... estimativa populacional: dos 45 mil habitantes da região montanhosa, cerca de 40 mil habitariam os povoados do norte e apenas 5 mil se distribuíam entre Jerusalém, Hebron e mais uns 20 pequenos povoados de Judá, com grupos continuando o pastoreio...

Davi e seus descendentes? "No século décimo, pelo menos, seu governo não possuía nenhum império, nem cidades com palácios, nem uma espetacular capital. Arqueologicamente, de Davi e Salomão só podemos dizer que eles existiram - e que sua lenda perdurou" (p. 143).

Entretanto, quando o Deuteronomista escreveu sua obra no século VII AEC, Jerusalém tinha todas as estruturas de uma sofisticada capital monárquica. Então, o ambiente desta época é que serviu de pano de fundo para a narrativa de uma mítica idade de ouro. Uma bem elaborada teologia ligava Josias e o destino de todo o povo de Israel à herança davídica: ele unificara o território, acabara com o ciclo idolátrico da época dos Juízes e concretizara a promessa feita a Abraão de um vasto e poderoso reino. Josias era o novo Davi e Iahweh cumprira suas promessas "O que o historiador deuteronomista queria dizer é simples e forte: existe ainda uma maneira de reconquistar a glória do passado" (p. 144).

A Segunda Parte do livro - A Ascensão e Queda do Antigo Israel - tem três capítulos, que tratam, respectivamente, do surgimento do reino de Israel (pp. 149-168), da dinastia de Omri (pp. 169-195) e do domínio assírio sobre Israel (pp. 196-225).

No capítulo sobre o surgimento do reino de Israel, os autores começam lembrando o relato bíblico sobre a rebelião do norte, onde Judá e Simeão aparecem em forte contraste com o condenável comportamento das 10 tribos do norte.

Este esquema bíblico, de uma monarquia unida, que se desintegra após a morte de Salomão, sempre foi aceito por arqueólogos e historiadores, mas está errado. Não há evidências de uma monarquia unida governada por Jerusalém, mas há boas razões para se acreditar que sempre houve duas diferentes entidades políticas na região montanhosa de Canaã, garantem os autores.

A pesquisa arqueológica nos anos 80 retrata uma situação bem diferente do relato bíblico. Em cada uma das ondas de ocupação das montanhas (Idade Antiga do Bronze: 3500-2200; Idade Média do Bronze: 2000-1550 AEC) sempre aparecem duas sociedades distintas, norte e sul, assim como no Ferro I (1150-900 AEC) existe a distinção entre Israel e Judá. A região norte sempre aparece mais povoada, com uma complexa hierarquia de grandes, médios e pequenos sítios arqueológicos e sempre mais fortemente ligada à agricultura. A região sul sempre aparece como mais escassamente povoada, com pequenos sítios arqueológicos e uma população de grupos nômades mais significativa.

No Bronze Antigo dois únicos centros se destacam em Canaã: no sul, Khirbet et-Tell (Ai) e no norte Tell el-Farah (Tirsá). No Bronze Médio, dois centros se destacam no sul, Jerusalém e Hebron, e um centro no norte, Siquém. Além destas pistas arqueológicas, os Textos de Execração egípcios mencionam, para este período, apenas dois centros nas montanhas de Canaã: Siquém e Jerusalém.

Uma inscrição egípcia do século XIX AEC, falando das ações de um general egípcio chamado Khu-Sebek na região montanhosa de Canaã, menciona a 'terra', e não a cidade, de Siquém em paralelo com Retenu (um dos nomes egípcios para Canaã). No Bronze Recente, as Cartas de Tell el-Amarna, do século XIV AEC, indicam duas cidades líderes na região das montanhas: Siquém e Jerusalém.

Assim, Siquém e Jerusalém, Israel e Judá, parecem ter sido sempre dois territórios distintos e rivais, concluem os autores.

Norte e sul possuem, de fato, dois ecossistemas bem diferentes sob qualquer aspecto: topografia, formação rochosa, clima, vegetação e potencial econômico. O sul é mais isolado por barreiras topográficas, enquanto que o norte possui vales férteis com maior potencial econômico. O maior desenvolvimento do norte pode ter proporcionado o surgimento de instituições econômicas mais complexas, levando ao surgimento de instituições políticas mais sofisticadas, nascendo daí um 'Estado'.

"A evolução das colinas de Canaã em duas distintas entidades políticas foi um desenvolvimento natural. Não há evidência arqueológica em lugar algum de que esta situação de norte e sul tenha surgido de uma anterior unidade política - muito menos de uma localizada no sul", dizem os autores na p. 158.

Judá, nos séculos X e IX AEC, era pastoril e pouco significativo. Jerusalém era um pequeno povoado na época de Salomão e Roboão, enquanto que o norte já era mais populoso e desenvolvido. Israel (do norte) já era um Estado no século IX AEC, enquanto que a sociedade e economia de Judá pouco tinham mudado desde suas origens nas montanhas.

Sem dúvida, Israel e Judá da Idade do Ferro tinham muito em comum: ambos cultuavam Iahweh (além de outros deuses) e seus povos partilhavam muitas estórias sobre um passado comum. Falavam línguas semelhantes, ou dialetos do hebraico, e, por volta do século VIII AEC, partilhavam da mesma escrita. Mas experimentaram diferentes histórias e desenvolveram culturas distintas, sendo Israel mais desenvolvido do que Judá.

O norte pode ter se desenvolvido mais do que o sul, mas não era tão próspero e urbanizado como as cidades-estado cananéias das planícies e da região costeira. Foi a derrocada destas cidades na Idade Antiga do Bronze - quer tenha sido causada pelos Povos do Mar, ou por rivalidades entre elas ou, ainda, por desordens sociais - que possibilitou a sua independência.

Mas no século XI AEC houve nova onda de prosperidade nas regiões das planícies: filisteus na costa sul e fenícios na norte. Meguido é um bom exemplo deste processo. Entretanto, este renascimento durou pouco: o faraó Shishaq (ou Sheshonq, nas inscrições egípcias), fundador da Décima Segunda Dinastia, fez agressivo ataque, no final do século X AEC, à região: Meguido, Taanach, Rehov e Bet-Shean, no vale de Jezreel, foram alvos das forças egípcias. Embora os motivos e detalhes desta destruição sejam problemas não respondidos até hoje... Mas isto tem importantes implicações: abriu caminho para a ocupação israelita do Vale de Jezreel...

Entretanto: por que a Bíblia narra tudo diferente, surgindo Israel (do norte) de uma ruptura com Judá? A resposta está em quatro profecias ligadas pela narrativa bíblica à queda da monarquia unida: Salomão como responsável pela quebra da unidade (1Rs 11,4-13); Jeroboão como 'herdeiro do norte, segundo o profeta Aías de Silo (1Rs 11,31-39); Jeroboão recebendo, em Betel, a profecia de "um homem de Deus" sobre Josias que destruirá o altar de Betel (1Rs 13,1-2); Aías de Silo falando à esposa de Jeroboão do extermínio de sua dinastia e do exílio de Israel (1Rs 14,7-16). O argumento de Finkelstein e Silberman aqui pareceu-me meio "circular" e pouco convincente...

Entretanto, segundo eles, a inevitabilidade da queda de Israel e o triunfo de Josias tornou-se um tema central para o redator deuteronomista no século VII AEC. Betel, a ameaça ao santuário de Jerusalém, cai sob Josias...

O historiador deuteronomista transmite ao leitor a seguinte mensagem, segundo os autores, na p. 167: "De um lado ele descreve Judá e Israel como Estados irmãos; de outro lado, ele mostra forte antagonismo entre eles. Era ambição de Josias expandir-se para o norte e tomar posse dos territórios montanhosos que outrora pertenceram ao reino do norte. Assim, a Bíblia legitima esta ambição, explicando que o reino do norte se estabelecera sobre os territórios da mítica monarquia unida, que fora governada a partir de Jerusalém; que havia um reino israelita irmão; que sua população era composta de israelitas que haviam prestado culto em Jerusalém; que os israelitas ainda vivendo nestes territórios deveriam voltar seus olhos para Jerusalém; e que Josias, o herdeiro do trono davídico e da promessa eterna feita a Davi, era o único legítimo herdeiro dos territórios do vencido Israel. Por outro lado, os autores da Bíblia precisavam deslegitimar o culto do norte - especialmente o santuário de Betel - e mostrar que as típicas tradições religiosas do reino do norte eram todas más, que elas deveriam ser eliminadas e substituídas pelo culto centralizado no Templo de Jerusalém".

No capítulo sobre a dinastia de Omri, os autores começam lembrando que, segundo o texto bíblico, os omríadas foram os piores: o casal Acab e Jezabel é acusado de idolatria, assassinatos brutais, confisco de terras de herança, tudo na mais perfeita impunidade.

Mas, lembram Finkelstein e Silberman, a arqueologia hoje aponta noutra direção, mostrando que Acab foi um poderoso rei, seu casamento com Jezabel, filha do rei fenício Etbaal, foi uma grande vitória diplomática para Israel, suas construções foram magníficas, seu poder militar e suas conquistas territoriais foram brilhantes.

Em seguida, após repassarem a descrição bíblica dos governos do reino de Israel de Nadab a Jorão, ou seja, do segundo ao nono rei [para uma lista dos reis de Israel, clique aqui], os autores passam a mostrar as inconsistências e anacronismos da Obra Histórica Deuteronomista. Isto porque a narrativa bíblica, segundo eles, está por demais influenciada pela teologia dos escritores do século VII AEC. Estaríamos, nesta perspectiva, muito mais diante de uma novela histórica do que de posse de uma acurada crônica histórica.

Entretanto, os testemunhos extrabíblicos nos permitem ver os omríadas sob diferente perspectiva, exercendo forte papel aí a Estela de Mesha, a Inscrição de Tel Dan e os testemunhos assírios, como a Inscrição de Salmanasar III, que cita os dois mil carros de combate de Acab - número impressionante! - usados como parte de uma coalizão da Síria, Israel e Fenícia contra as suas investidas na região.

Além disso, as escavações de Samaria, Meguido, Hasor e Dan mostram os omríadas como grandes administradores e construtores arrojados.

Para os autores, o que até então era atribuído a Salomão pode tranqüilamente ser considerado como omríada. E eles mostram características comuns nas cidades de Samaria, Jezreel, Hasor, Meguido e Gezer, para eles, todas resultantes de atividades da dinastia de Omri. Como conseqüência, Salomão e Jerusalém ficam bastante diminuídos.

O poder dos omríadas impressiona também por sua presença na Transjordânia, e bem ao sul, no território de Moab, em Ataroth (=Khirbet Atarus) e em Jahaz (talvez Khirbet el-Mudayna, sítio que está sendo escavado por Michèle Daviau, da Wilfrid Laurier University, Canadá).

Neste ponto, Finkelstein & Silberman se perguntam: de onde vinham os recursos para estas realizações?

Eles acreditam que possam haver vários elementos em jogo. Como a destruição dos centros cananeus pelo faraó Shishaq no final do século X AEC, que teria aberto o caminho para que Omri tomasse posse dos territórios de Meguido, Hasor e Gezer.

Mas especialmente a diversidade de populações no território - cananeus, israelitas, arameus e fenícios - seria um elemento importante, porque integrava vários ecossistemas e mecanismos econômicos que só fortaleciam o país. As duas capitais seriam representativas desta diversidade: Samaria seria mais israelita, enquanto Jezreel seria mais cananéia. A estimativa demográfica para o século nono é difícil, mas no século VIII AEC, segundo eles, seria de 350 mil habitantes em Israel, fazendo deste território o mais densamente povoado do Levante. Seu único rival possível seria o reino de Damasco.

Este era um Estado "israelita"? Dificilmente... a identidade israelita atribuída ao território do norte parece ser muito mais a obra de escritores de uma monarquia judaíta mais recente!

E uma última pergunta: por que, então, o Deuteronomista, séculos mais tarde, faz de tudo para deslegitimar os omríadas? Exatamente porque Omri, o primeiro rei verdadeiro do reino de Israel, ofuscou o pobre, marginalizado e rural território de Judá...

No capítulo oitavo o livro trata do domínio assírio sobre Israel. Os autores começam mostrando como a interpretação bíblica do trágico destino do reino de Israel, destruído pela Assíria, é muito mais teológica do que histórica: segundo o Deuteronomista, a devastação de Israel pelos exércitos estrangeiros fazia parte de um preciso plano divino, que puniu o povo e seus líderes por sua recusa do culto a Iahweh no Templo de Jerusalém e por sua adesão a outros deuses. Veja-se, por exemplo: Jeú: 2Rs 10,28-33; Joás: 2Rs 13,22-25; Jeroboão II: 2Rs 14,23-27; o motivo do fim do reino do norte: 2Rs 17,7-41. Mas a arqueologia apresenta uma perspectiva diferente: Israel foi invadido pelos assírios por ter sido um reino bem sucedido que, vivendo à sombra do grande império, suscitou sua cobiça.

Após mostrar os equívocos da arqueologia tradicional na pesquisa do reino de Israel, os autores colocam lado a lado os dados do Deuteronomista e da inscrição de Tel Dan, alertando o leitor para a tremenda importância de Aram no declínio de Israel, embora seja complicado decidir se foi Jeú, o general israelita (como diz o Dtr), ou Hazael, o rei arameu (como diz a inscrição de Tel Dan), o responsável pela queda dos omríadas. De qualquer maneira, detalham como Israel teve seu território destruído e parcialmente ocupado por Aram - leia-se por Hazael - por um período significativo.
Entretanto, a chegada ao poder do assírio Adad-nirari III decretou o fim da hegemonia de Damasco na região e fez com que o fiel vassalo assírio que era Israel começasse a se expandir sob Joás e Jeroboão II. Testemunhos arqueológicos desse crescimento, durante o governo de Jeroboão II, no século VIII AEC, segundo os autores, não faltam.

Citam como exemplo os óstraca de Samaria que testemunham a grande produção e exportação de óleo de oliva e de vinho para a Assíria e Egito, o aumento da população que pode ter chegado a 350 mil habitantes - enquanto Judá teria cerca de 100 mil - as construções em Meguido, Hasor e Gezer, a criação de cavalos treinados para a guerra e exportados para a Assíria - possível interpretação para a origem dos controvertidos "estábulos" encontrados em Meguido - a riqueza de Samaria e, até mesmo, os desmandos da elite governante e dos comerciantes denunciados pelos profetas Amós e Oséias.

Só que este crescimento gerou rivalidade entre facções israelitas que, após a morte de Jeroboão, entraram em confronto, fazendo com que os golpes de Estado se sucedessem em ritmo frenético nos últimos 30 anos de Israel. Confronto este que se agravou com a ascensão ao trono do poderoso e ambicioso rei assírio Tiglat-Pileser III que acabará invadindo, destruindo e incorporando Aram e quase todo o Israel. Pouco mais tarde, Israel encontrou seu fim definitivo nas mãos dos assírios Salmanasar V e Sargão II.

A Terceira e Última Parte do livro - Judá e a Elaboração da História Bíblica - tem quatro capítulos e um epílogo, que tratam, respectivamente, de Judá desde Roboão até a reforma de Ezequias (pp. 229-250), de Judá da invasão de Senaquerib à ascensão de Josias (pp. 251-274), da reforma de Josias à destruição de Jerusalém por Nabucodonosor (pp. 275-295) e do exílio babilônico e da volta para a terra sob domínio persa (pp. 296-313). Um epílogo de quatro páginas fala de Israel a partir de Alexandre Magno (pp. 315-318).

No capítulo nono, A Transformação de Judá, que trata da região de Roboão até a reforma de Ezequias, os autores começam sintetizando o que vão desenvolver nas páginas seguintes, ou seja, a constatação arqueológica da pouca importância de Judá até o século VIII AEC. Mas, logo em seguida, definem que a lista de reis de Judá, como apresentada na OHDtr, a partir de Roboão é aceitável. Reis bons e ruins se sucedem, contudo o período de governo dos bons é superior ao dos ruins. Um ponto que é interessante: concluem que a "reforma" de Ezequias não foi a restauração de uma estrutura desmantelada ao longo do tempo, mas uma inovação. "A idolatria dos judaítas não foi um abandono de seu anterior monoteísmo, pois esta era a forma como a população de Judá tinha praticado seu culto por centenas de anos" (p. 234).

Observando a arqueologia da região, Finkelstein e Silberman dizem que os monumentos atribuídos pelo Deuteronomista aos reis Roboão e Asa são bem posteriores, são do século VIII AEC para cá. Aliás, os sinais de um Estado desenvolvido aparecem em Judá apenas dois séculos após Salomão e é apenas no século VII AEC que burocracia e comércio controlado podem ser detectados. Até este ponto, dizendo mais o que Judá não era do que era, concluem: "À luz destas descobertas, está claro agora que o Judá da Idade do Ferro não viveu uma precoce era de ouro. Davi, seu filho Salomão e os reis seguintes da dinastia davídica governaram uma região rural, marginalizada e isolada, sem nenhum sinal de grande riqueza ou administração centralizada. Esta região não sofreu um súbito declínio, perdendo uma condição de incomparável prosperidade. O que ela experimentou foi um longo e gradual desenvolvimento ao longo dos séculos. A Jerusalém de Davi e Salomão era apenas um entre outros centros religiosos na terra de Israel, e não o centro espiritual de todo o povo desde o começo" (p. 238).

Aqui, a necessária pergunta: mas o que era então Jerusalém e redondezas até o século VIII AEC?

Para responder, recorrem às cartas de Tell el-Amarna, do século XIV AEC, entre as quais estão seis do rei de Jerusalém Abdi-Hepa (ou Abdi-Heba). Aí aparece seu "reino": um pequeno território de uns dois mil e trezentos quilômetros quadrados, com cerca de mil e quinhentos habitantes localizados em oito pequenos assentamentos e um número impreciso de nômades pastores. E não há razão para pensar Jerusalém e Judá na época de Davi de maneira muito diferente.

Explicam também os autores que o culto a Iahweh convivia com vários outros deuses e cultos na época dos reis de Judá. O que é descrito em 1Rs 14,22-24, como sendo práticas idolátricas típicas da época de Roboão, era um costume generalizado na região e na maioria dos governos judaítas. Conviviam com o culto a Iahweh (e a outros deuses?) no Templo de Jerusalém, rituais rurais, cultos domésticos, cultos da fertilidade...

Só que, para os autores, subitamente, com a interferência de Tiglat-Pileser III na região e a posterior destruição do reino do norte na época de Sargão II, Jerusalém perdeu seu isolamento típico e, ancorada na política assíria, cresceu de 10 a 12 para 150 acres e de cerca de mil para algo em torno de 15 mil habitantes. E em Judá, no final do século VIII AEC, havia cerca de 300 assentamentos e uma população de uns 120 mil habitantes. Surge, só agora, uma elite judaíta e se formam as estruturas de um verdadeiro Estado.

Junto com esta extraordinária transformação social, começa uma intensa luta religiosa, caracterizada pelos autores como a defesa do monoteísmo javista por profetas e sacerdotes [levitas?] dissidentes vindos do norte, somados ao pessoal do Templo de Jerusalém. Na esteira de Morton Smith, os autores defendem que, neste momento, se estrutura o movimento "só-Iahweh" que se concretizará, de maneira mais definida no Deuteronômio e na Obra Histórica Deuteronomista. O programa político deste "movimento" é a unificação de todo o Israel, juntamente com a condenação de todo e qualquer culto não-javista, na tentativa de dar uma identidade exclusiva a Judá, diferenciando-o da região ao redor.

Gostaria de lembrar que este suposto movimento "só-Iahweh" é extremamente controvertido - aliás, seus argumentos nunca me convenceram - e que a questão da origem e prática do javismo e, mais ainda, do monoteísmo, continuam gerando acirrado debate e muita controvérsia entre os especialistas. Para um panorama das propostas, de seus autores e algumas centenas de obras, vale a pena a didática exposição de GNUSE, R. K., No Other Gods. Emergent Monotheism in Israel, Sheffield, Sheffield Academic Press, 1997. Especialmente as pp. 62-128. Para uma confusa e nada convincente exposição do "movimento", pode se ler, em português, o artigo de Bernhard Lang, o maior defensor desta idéia: Só-Javé! Origem e forma do monoteísmo bíblico, em Concilium 197 (1985/1), pp. 45-53.

Sobre o reforma de Ezequias, enfim, em apenas uma página no final do capítulo, ficam Finkelstein e Silberman em superficial questionamento, pois, apesar da insistência do Deuteronomista, do ponto de vista arqueológico tal reforma é muito difícil de ser detectada.

O capítulo décimo trata de Judá desde a invasão de Senaquerib até a ascensão de Josias ao trono. Após mostrar que a visão do Deuteronomista em 2 Reis é teologicamente otimista - apesar da invasão terrível do rei assírio, Iahweh salvou Jerusalém porque Ezequias era fiel - os autores, fundando-se mais em Crônicas e no testemunho da arqueologia do que em 2 Reis, descrevem os preparativos do rei judaíta para o enfrentamento: muralhas de Jerusalém reforçadas, abastecimento de água garantido com a construção do túnel de Siloé, defesas extremamente eficazes em Lakish, os selos "lmlk" (= pertencentes ao rei) encontrados em grandes jarros (que, de alguma maneira, faziam parte do preparação de Judá para o que viria)...

Contudo, Senaquerib acabou com Judá em 701 AEC, como mostram os relatos assírios e os testemunhos arqueológicos da devastação, encontrados em várias escavações por todo o território. Especialmente significativos são a representação assíria da tomada de Lakish encontrada no palácio de Senaquerib em Nínive - hoje está no British Museum - e a escavação, feita pelos britânicos na década de 30 e por David Ussishkin, da Universidade de Tel Aviv, na década de 70 do século XX, da poderosa fortaleza, esta que era a segunda mais importante cidade de Judá e ficava situada na Shefelá, protegendo a entrada de Judá.

Os autores trazem à cena também os profetas Isaías e Miquéias para mostrar, com seus oráculos, como a destruição de Judá foi terrível, muito distante do otimismo deuteronomista.

Manassés, filho e sucessor de Ezequias, para o Deuteronomista, é o oposto do pai: governou 55 anos como o pior rei de Judá, especialmente por ter restaurado os cultos não-javistas. Por que teria Manassés feito isto? Acreditam Finkelstein e Silberman que a reorganização do território de Judá, agora sob a sombra da Assíria, implicou em alianças com lideranças clânicas que exigiram a volta aos cultos dos deuses da terra. Não foi a "maldade" de Manassés que implodiu o javismo, mas as suas necessidades econômicas é que trouxeram de volta o pluralismo cultual.

Colaborando com a Assíria e deslocando a população judaíta para outras regiões, depois de perder a fértil Shefelá, Manassés, como a arqueologia pode comprovar, desenvolveu significativa produção e exportação de óleo de oliva e explorou as rotas de comércio por onde passavam as caravanas que iam e vinham entre a Assíria e a Arábia. Importante, neste sentido, foram as escavações das instalações para a fabricação do óleo de oliva em Tel Miqne (= Ekron) - as maiores existentes em todo o Oriente Médio naquela época - e dos ossos de camelos adultos em Tell Jemmeh, uma localidade vizinha a Gaza.

Entretanto, o filho de Manassés, Amon, foi assassinado ao sucedê-lo, certamente por grupos prejudicados com o prosseguimento desta política. E Josias, com apenas oito anos, é declarado rei de Judá.

O décimo-primeiro capítulo trata da história de Judá da reforma de Josias à destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, rei da Babilônia. Após fazer uma avaliação da descrição deuteronomista de Josias e de sua reforma, onde Josias aparece como o ideal concentrado das figuras de Moisés, Josué, Davi e até mesmo de Salomão, os autores assumem a posição tradicional e conhecida de que o "Livro da Lei" é o Deuteronômio original, não descoberto no Templo, mas escrito pouco antes ou durante o governo de Josias.

Descrevem, em seguida, o renascimento do poder egípcio com Psamético I, o enfraquecimento da Assíria e a expansão de Judá. Neste ambiente o Deuteronomista construiu a saga épica da conquista de Canaã, projetando para o início de Israel o que só acontecia agora no século sétimo AEC.

Mas a arqueologia testemunha a reforma de Josias? Ora, o templo de Betel, possivelmente destruído por Josias, ainda não foi encontrado, as estatuetas da deusa da fertilidade Asherá foram achadas em grande quantidade nas residências... embora os sinetes da época não contenham mais figuras divinas astrais, como antes! Por outro lado, os sinais da expansão territorial de Judá sob Josias são visíveis, a população aumentou, fortalezas, como Lakish, foram restauradas. Talvez Josias tenha conseguido um território semelhante ao de Manassés, embora com outras características.

Mas Josias e o faraó Necao II se desentenderam. 2Rs 23,29 é lacônico, 2Cr 35,20-24 fala de um conflito militar - hipótese simpática a muitos historiadores, que a adotam - mas, seguindo a explicação da Nadav Naaman, os autores pensam que Necao II teria simplesmente exigido a renovação da lealdade de Josias aos egípcios, mas, existindo um conflito de interesses quanto ao território, o resultado foi o desastroso fim de Josias.

Sem muita novidade em relação ao que já se escreveu em muitas "Histórias de Israel", os autores descrevem os últimos dias de Judá, terminando o capítulo com a arqueologia da destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, que mostra a ferocidade do fatídico cerco.

No décimo-segundo capítulo o livro trata do exílio e da volta para a terra
. Neste ponto, pareceu-me que os autores utilizam as fontes bíblicas com pouco questionamento, especialmente Jeremias, Ezequiel, Esdras, Neemias, Ageu e Zacarias. Isto resulta na descrição já conhecida em obras anteriores do que teria sido o exílio, a volta e a reconstrução. Assumem a hipótese de Frank Moore Cross de duas versões da OHDtr, a primeira da época de Josias e a segunda uma revisão feita durante o exílio, redimensionando a anterior avaliação teológica face à novidade da destruição: a justiça de Josias apenas adiou a catástrofe que fatalmente atingiria Jerusalém, diz a revisão exílica, não a eliminou do horizonte, como pensava a primeira versão.

Denunciam, em seguida, o mito da "terra vazia" durante o exílio - apenas 1/4 dos judaítas teriam sido exilados -, calculam uma população de uns 30 mil habitantes para o território do Templo na época de Esdras/Neemias e explicam a política persa de repovoamento e controle da região através do domínio sacerdotal.

Finalmente, chamam a atenção para a atualidade de vários temas bíblicos que, neste momento, têm uma função real: o êxodo, as tradições sobre Abraão, o conflito de Jacó e Esaú (= Edom), os túmulos dos patriarcas... estas leituras, projetadas como originantes, foram, na verdade, originadas para criarem uma identidade judaica na época persa.

O epílogo sintetiza em míseras quatro páginas os acontecimentos a partir de Alexandre Magno, mas, especialmente, procura mostrar a função da narrativa bíblica, sua atualidade e seu valor.

No conjunto, um livro fascinante. Nos detalhes, muita coisa pode ser discutida, porque pouco fundamentadas quando ousadas, ou porque apenas repetem o texto bíblico, sem entrar na discussão sobre o uso das fontes. Muita credibilidade tem a arqueologia para os autores, um pouco menos as fontes extra-bíblicas, alguma as fontes bíblicas, especialmente quando as lacunas não podem ser preenchidas por outro material. Procuram escapar do "construto erudito" denunciado por Philip R. Davies, mas ele permanece à espreita...

Pouca análise da ideologia das fontes extra-bíblicas dos impérios da região? Com certeza, pois é claro que impérios não nos legam apenas informações objetivas, mas muita propaganda que possa legitimar o seu domínio sobre os povos mais fracos. Pouca ênfase no fato de que a arqueologia também é o resultado de uma interpretação? Razoavelmente evidente. Conseguem comprovar que os principais relatos bíblicos foram escritos mesmo a partir do século VII AEC? Talvez em parte...

Entretanto, é bom lembrar: esta é apenas uma obra de divulgação. Talvez, por isso, tenha que evitar a análise mais técnica e árida de fontes e a complexa discussão metodológica que permeia hoje a historiografia do Antigo Oriente Médio. Enfim, um livro que procura ser honesto, o que já é um grande mérito.
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E a Bíblia Não Tinha Razão

Pesquisas arqueológicas criam polêmica ao desmentir as versões mais aceitas dos relatos bíblicos. Episódios como a fuga do Egito, a conquista da Terra Prometida e o reinado de Davi e Salomão compõem a obra essencial do mundo ocidental. É ela que deu o fundamento religioso ao judaísmo, e assim consolidou as aspirações de um povo. Sob o nome de Antigo Testamento, é ela que também deu início a uma religião revolucionária, com base nos ensinamentos de Jesus. Muitas pessoas hoje lêem esses textos sagrados como se fossem livros de História - ou seja, relatos ao pé da letra sobre o que aconteceu em determinada época. Outras afirmam justamente o contrário, que quase nada do que está descrito na Bíblia realmente ocorreu. O texto, segundo elas, consistiria simplesmente em uma pregação feita em linguagem figurada e poética, própria de seu tempo, e sem relação com a História factual. Nas últimas três décadas, esforços de arqueólogos, historiadores e lingüistas mostram que a Bíblia está em uma situação intermediária entre essas visões extremas. E o que eles revelam sobre as escrituras sagradas é uma série de surpresas.

Boa parte dessas descobertas é feita pelos arqueólogos Neil Asher Silberman e Israel Finkelstein, dois dos mais respeitados pesquisadores dessa área, traz revelações surpreendentes sobre ä esse período histórico. Ao que tudo indica, no decorrer de poucas décadas, há cerca de 2.600 anos, um esforço conjunto de escribas, sacerdotes e profetas deu forma a uma escritura sagrada que iria mudar o mundo. Ao unir uma coleção de memórias, poesias, lendas, folclore e relatos históricos, esses homens do pequeno reino de Judá, perdido entre as montanhas próximas ao Mar Morto, deram início ao Antigo Testamento e plantaram a pedra fundamental de religiões que iriam se espalhar por toda a Terra.

Entre as histórias da Bíblia, uma das mais contadas e recontadas é aquela em que Moisés, à frente do povo escolhido, desafia os poderes de um faraó egípcio, lançando-o numa viagem de 40 anos pelo deserto rumo à Terra Prometida, Canaã. Segundo o relato, os israelitas viviam no exílio no Egito, nas cidades a leste do Delta do Nilo, e tinham passagem livre para ir e voltar a sua terra natal. No entanto, com a chegada ao trono de um novo faraó, o povo foi escravizado - e só seria libertado por Moisés, um israelita criado por uma filha do faraó, que se revoltou diante do tratamento dispensado a seu povo e terminou por liderá-lo na revolta e no Êxodo. Em sua história estão descritos milagres como a sarça ardente, as dez pragas do Egito, a abertura do Mar Vermelho e o aparecimento de maná no deserto. É ele também que recebe de Deus, no Monte Sinai, as tábuas com os Dez Mandamentos.

EM BUSCA DO JESUS HISTÓRICO

Na época, fora dos livros religiosos, há somente duas menções ao nome de Jesus, filho de José. No século XIX, arqueólogos e historiadores chegaram a propor que Jesus não existiu. Hoje, os especialistas não seguem nem esse extremo, nem o outro - crer que tudo o que o Novo Testamento diz é exato. O consenso de historiadores, lingüistas, teólogos e arqueólogos é de que Jesus nasceu entre 7 a.C. e 6 a.C. e, por volta do ano 30 d.C., foi condenado à morte sob as ordens de Pôncio Pilatos. No entanto, os especialistas concordam que muitas das narrativas sobre ele têm um sentido figurado, e não factual. Das diversas histórias sobre Jesus, quatro - os Evangelhos da Bíblia, escritos entre os anos de 50 d.C. e 110 d.C. - são aceitas pelo cristianismo. Outras 60, os evangelhos chamados 'apócrifos', também o mencionam. Fora da literatura religiosa, há apenas duas referências, nos livros dos romanos Flávio Josefo (que escreveu a história dos judeus) e Plínio, o Moço. Segundo os especialistas, nenhum dos textos pode ser tomado ao pé da letra. 'Tudo o que se diz sobre Cristo foi escrito num período muito posterior aos acontecimentos. Não é uma história, e sim uma memória', diz o arqueólogo Francisco Marshall, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 'Nesse sentido, os livros revelam um ambiente cultural, e o que se dizia naquela época.'

Nas últimas décadas, inúmeros esforços foram feitos para descobrir um pouco mais da história de Jesus. Houve até uma tentativa de reconstituir seu rosto, a partir de dados e medidas do crânio de um judeu do século I d.C. Mas pouco se avançou, e houve até fraudes, como a urna funerária apresentada há dois anos com a inscrição 'Tiago, irmão de Jesus', que se revelaria uma falsificação.

Por anos, os cientistas buscaram o indícios de um Moisés histórico, sem sucesso. É pouco provável que existisse um líder tão importante comandando uma revolta de proporções, e ainda criado por uma filha de faraó, sem que isso fosse registrado nos documentos oficiais ä egípcios. Se a existência da figura de Moisés, porém, é posta em dúvida, há evidências de que a presença de povos originários de Canaã no Egito, entre os séculos XVI a.C. e XIII a.C., era comum.

Os egípcios eram um povo rico e poderoso, capaz de estocar grãos e manter sua produção estável devido à constância das cheias do Nilo e ao avançado sistema de irrigação. Isso naturalmente atraía seus vizinhos mais pobres. 'Quando havia fome, era comum que o povo de Canaã fosse ao Egito. É possível que houvesse uma tradição antiga, talvez imemorial, de migrações ao sul', conta Silberman. 'Além disso, os tipos de condição de servidão que vemos descritos no Êxodo parecem realistas.' Mas os indícios específicos de israelitas no Egito ou de uma fuga pelo deserto não foram encontrados. 'Não é razoável aceitar a idéia de fuga de um grande grupo de escravos do Egito, através de fronteiras fortemente vigiadas por guarnições militares, para o deserto e depois para Canaã, numa época com colossal presença egípcia na região', escrevem Finkelstein e Silberman em seu livro.

As escavações e os estudos de textos antigos podem não dar pistas precisas sobre a veracidade do Êxodo, mas ajudam a desenterrar algo de velado e surpreendente do relato bíblico. O que os especialistas vêm descobrindo, com cada vez maior clareza, é que o Antigo Testamento foi composto de uma série de lembranças ancestrais, lendas, mitos e histórias populares de diversas tribos israelitas, todos 'costurados' em um único texto. 'São como córregos que vão formando um rio'. 'Não é uma narrativa factual, não é uma reportagem histórica. Esse povo vai olhar para sua história e recontá-la à luz de sua fé. O que conta não são os fatos em si, mas a interpretação que será dada a eles', explica. Segundo os especialistas, a Bíblia pegou uma série de histórias e lendas de personagens como Abraão, Moisés e Josué, que existiam isoladamente, e colocou-as juntas em um mesmo texto. Essa composição ocorreu provavelmente nas últimas décadas do século VII a.C., no pequeno reino de Judá. A razão para ter sido feita justamente nessa época, sob o reinado de um rei chamado Josias, é fascinante.

'Nesse tempo havia uma nova situação mundial, em que os impérios antigos, particularmente o assírio, estavam perdendo seu poder', diz Silberman. Os assírios, que haviam dominado o Oriente Médio e controlado os reinos de Judá e Israel, mais ao norte, começaram a abandonar a região entre 630 a.C. e 640 a.C., criando, assim, um vácuo político. Ao mesmo tempo, o Egito ensaiava um renascimento militar e se tornava um forte candidato a ocupar o lugar deixado pela Assíria. Josias, rei de Judá, queria anexar Israel, o reino vizinho do norte, antes que outros o fizessem. Ao se preparar para uma guerra muito perigosa contra o Egito, contra os assírios remanescentes e os países vizinhos, a corte de Josias decidiu compilar uma história que iria validar o que estavam fazendo. 'Queriam deixar claro que era como se Deus tivesse ordenado a eles', diz Silberman. Nesse contexto, o Êxodo tinha uma importância fundamental. A história da fuga bem-sucedida do Egito e da ajuda de Deus contra os exércitos do faraó poderia servir de incentivo e justificativa para um novo confronto com esse poderoso vizinho.

ÊXODO SEM VESTÍGIOS

Não há indícios da existência de Moisés, nem da travessia épica pelo deserto. A história de Moisés é a mais cinematográfica da Bíblia. Colocado num cesto e jogado no rio para escapar à perseguição aos filhos dos hebreus. Adotado pela filha do faraó, revolta-se ao ver os maus-tratos contra os escravos hebreus. Recebe a revelação divina e as tábuas da lei. Lança as Pragas do Egito, leva os hebreus pelo deserto e abre o Mar Vermelho, que se fecha sobre o exército do faraó (leia mais sobre os milagres na página 92). A arqueologia procurou indícios do Êxodo. Encontrou sinais de que habitantes de Canaã - de onde os hebreus seriam originários - podem ter migrado gradualmente para o Egito. Mas uma inscrição egípcia do século XIII a.C. faz a menção mais antiga conhecida de um povo chamado Israel, num contexto completamente inverso ao da Bíblia - diz que o povo foi dizimado em uma campanha do faraó Meneptah. Não há nenhuma prova concreta da existência de Moisés, embora fosse de esperar que um jovem criado pela família do faraó, envolvido em brigas políticas, fosse citado em algum lugar. Não há nenhum indício palpável de que tenha havido um grande êxodo pelo deserto. Um povo numeroso, viajando por uma região de pouca vegetação, deveria deixar diversos vestígios arqueológicos, mas eles não existem. 'Eu diria que Moisés pode ser considerado como uma figura arquetípica de grande líder. Não se sabe nada de sua existência factual. Não dá para afirmar nem que existiu, nem que não.'

Esse ponto, no entanto, permanece polêmico. 'Ainda há debates intensos sobre muitos dos temas que tratamos no livro. Muitas de nossas idéias são altamente controversas e certamente não compartilhadas por todos', admite Silberman. Apesar disso, suas teorias ganham cada vez maior respaldo na comunidade acadêmica. 'A partir do final da década de 60, uma ä nova geração de arqueólogos com uma competência técnica extraordinária, como é o caso de Finkelstein, começou a revolucionar essa área de estudo', diz o historiador e arqueólogo Francisco Marshall, coordenador do núcleo de História antiga da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 'O trabalho deles é notável. É preciso quebrar um conjunto de paradigmas muito forte, e isso não é uma coisa simples.'

Outra das questões delicadas diz respeito ao passado do reino de Judá. A Bíblia fala de uma era de ouro, por volta do século X a.C., em que há a unificação de Judá e Israel sob o comando de um rei, Davi. É o jovem Davi que derrota o gigante Golias e posteriormente se torna rei das 12 tribos de Israel, cumprindo uma profecia de unificação prevista havia séculos (leia o quadro na página 88). É seu filho, Salomão, que é lembrado como o mais sábio dos reis e como o maior dos construtores de grandes monumentos, como o Templo de Jerusalém. No entanto, a história parece não ter sido bem essa. Muitas teses da arqueologia que davam suporte ao reinado de Davi e Salomão foram questionadas, e hoje o quadro é bem diferente. Ao que tudo indica, existiu realmente um Davi. Escavações realizadas em 1993 num sítio arqueológico conhecido como Tel-Dan, ao norte de Israel, revelaram um monumento de basalto negro, quebrado e reaproveitado em uma construção posterior, que citava a existência de uma 'Casa de Davi', ou seja, de uma dinastia cujo fundador levava esse nome. 'Mas não dizia nada a seu respeito', comenta Silberman.

Sobre essa questão, os cientistas têm concluído que a dinastia real de Davi não era tão poderosa como diz a tradição bíblica. Tudo indica que Davi, Salomão e sua dinastia governavam apenas Judá, e não um reino unificado. Israel, mais poderoso que Judá entre os séculos XI a.C. e X a.C., possuía outros governantes e uma relação comercial mais intensa com as regiões adjacentes. Além disso, na época de Davi e Salomão, Jerusalém, centro administrativo de seu reino, era uma cidade pequena e pouco influente. Ela só iria se tornar um centro expressivo séculos depois. 'O reino de Judá permaneceu relativamente desocupado de uma população permanente, muito isolado e marginal durante e logo depois do tempo presumido de Davi e Salomão, sem grandes centros urbanos e sem hierarquia articulada de vilas, aldeias e cidades', escrevem Finkelstein e Silberman.

NEM TANTO PODER ASSIM

Para arqueólogos, Davi existiu de fato, mas não chegou a unificar as 12 tribos israelitas. O duelo mais famoso da história mundial está nas páginas da Bíblia. Armado de uma funda, o pastor Davi mata o gigante Golias e corta-lhe a cabeça. Mais tarde, Davi se tornará o novo rei de Israel, unificando sob seu comando as 12 tribos em um só reino e dando início à era de ouro do povo de Israel. Salomão, seu filho, se torna o rei mais sábio de seu tempo. Empreendedor de grandes obras, como o Templo de Jerusalém, mandou fortificar essa e outras cidades provinciais, como Hazor, Megiddo e Gezer. A história de Davi e seu filho Salomão, com suas manobras políticas e intrigas dinásticas, pareceu durante séculos uma descrição exata do que realmente havia acontecido em Judá e Israel. No entanto, nova luz sobre essa época, entre os anos de 1005 a.C. e 930 a.C., aponta para um mundo bem diferente. É certo que pelo menos Davi realmente existiu, devido à descoberta de uma inscrição do século IX a.C. que cita o nome de sua dinastia. No entanto, seu reinado não chegou a unificar as 12 tribos israelitas, nem foi tão vasto como diz a Bíblia. 'Quando olhamos para os padrões de assentamentos em Judá nessa época, só encontramos algumas pequenas aldeias, e não há nenhuma evidência de um comércio exterior de porte ou mesmo a capacidade para construções monumentais', comenta Silberman. O Templo de Salomão, descrito na Bíblia como tendo dimensões internas de 10 metros de largura por 30 metros de profundidade, era de fato grande para os padrões do Oriente Médio daquele tempo, mas não era o maior (esse posto cabe a um templo em Alep) e não pode nem de longe ser comparado aos templos gregos que seriam construídos alguns anos depois.

As contradições entre a Bíblia e as descobertas arqueológicas não param por aí. Os especialistas, por exemplo, questionam os relatos épicos que descrevem a conquista da Terra Prometida. Conforme o Antigo Testamento, depois do Êxodo, Moisés morreu antes de levar os filhos de Israel a Canaã. Quem conduz o povo é Josué, seu ajudante de longa data. A Bíblia fala de batalhas, cerco a cidades e milagres, como quando o Sol permanece parado nos céus, dando tempo para que Josué e seu exército aniquilem totalmente o inimigo. O relato mais impressionante descreve como os israelitas conquistam Jericó, localizada perto do Rio Jordão. Eles marcham em volta dos muros da cidade e, no sétimo dia, ao soar suas trombetas, as resistentes muralhas tombam a seus pés. O problema é que escavações arqueológicas nessa cidade mostram que ela nunca teve muros. 'Todas as cidades da região tinham apenas um palácio, algumas edificações em torno de um templo e uns poucos prédios públicos', contam os arqueólogos. 'Mas não existiam muros.' Esses e outros indícios levam a crer que a ocupação da Terra Prometida tenha ocorrido pacificamente e aos poucos, de forma diferente da descrita na Bíblia.

No atual estudo das escrituras sagradas, não é só o Antigo Testamento que é alvo de indagações. Outro foco de pesquisa de arqueólogos, historiadores e teólogos é o Jesus Cristo histórico. Apesar de a maioria dos especialistas concordar que ele deve ter existido, muito pouco de concreto se pode afirmar sobre sua vida. 'A arqueologia tem muito pouco a dizer em favor da existência de um Cristo histórico', afirma Marshall. 'Mas a gente tem de relativizar, porque no mundo antigo muitos fenômenos podiam ocorrer sem deixar vestígios.' Atualmente, o consenso é de que, em Belém ou Nazaré, nasceu Yeshua Ben Yossef, que significa 'Jesus filho de José', em aramaico. A data estimada varia entre os anos de 7 a.C. e 6 a.C. e a morte por volta do ano 30 d.C. De resto, pouco mais se sabe. 'O que é mais expressivo na história de Cristo não é a sua historicidade, e sim seu caráter mítico', diz Marshall. 'Quando falamos em mítico, é preciso explicar que não é no sentido de falso, mas de culturalmente significativo.' Embora possam criar dúvidas sobre os eventos históricos e mesmo a existência de Jesus, Moisés, Davi e Salomão, os arqueólogos tratam de observar que não querem contestar a Bíblia. 'Procuramos descobrir como o texto foi escrito, qual era seu significado, seu contexto. Tentamos dar às pessoas uma visão mais complexa e detalhada', afirma Silberman. 'Depois que se provou que o mundo não foi criado em sete dias, as pessoas continuaram a admirar a história de Adão e Eva, do Dilúvio. Agora estamos simplesmente levando essa fronteira um pouco mais além.'

CONQUISTA SEM MURALHAS

Jericó era uma cidade quase abandonada e nunca chegou a ser protegida por muralhas. Após conduzir os israelitas até as margens do Rio Jordão, Moisés, já com 120 anos, não será o líder na conquista da Terra Prometida. Ele indica Josué para, em seu lugar, liderar uma campanha militar fulminante. O livro de Josué, do Antigo Testamento, descreve o ataque dos israelitas a Canaã, com a conquista de cidades como Jericó, Hai e Hazor. Os arqueólogos Finkelstein e Silberman queriam descobrir como um exército em andrajos, viajando com mulheres, crianças e idosos, emergindo do deserto depois de décadas, poderia montar uma invasão efetiva. A resposta, segundo eles, é que a ocupação se deu de uma forma muito diferente do contado na Bíblia. Para começar, muralhas como as de Jericó - que teriam sido derrubadas com o soar das trombetas - simplesmente não existiam, nem ali nem nas outras cidades da região. Aparentemente por motivos econômicos, as grandes e médias civilizações do Mediterrâneo, como Canaã, começaram a se desagregar entre os séculos XIII a.C. e XII a.C. 'Esse foi um dos períodos mais dramáticos e caóticos da História, com velhos impérios caindo e novas forças chegando para substituí-los', dizem os arqueólogos. Silberman calcula que os israelitas, povos nômades e pastoris das redondezas, passaram a se fixar em Canaã por volta de 1200 a.C., após o colapso da civilização mais antiga ter transformado várias localidades em cidades quase fantasmas. 'É viável que a maioria das pessoas que mais tarde se tornaram israelitas tivesse ancestrais cananeus', diz Silberman. 'Assim, a distinção entre israelitas e cananeus não é tão aguda quanto a Bíblia faz crer.'

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A Trindade e as religiões

O dogma da trindade constitui um dos principais pilares da fé cristã. Para os cristãos, Deus é um só, mas é divido em três naturezas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo. Mesmo sendo um dos principais dogmas cristãos, nem todas as denominações o aceitam, sejam por questões dogmáticas ou históricas. Uma das razões pela quais algumas denominações negam a doutrina da trindade é o fato dela estar baseada em conceitos de religiões antigas, esta tese é defendida principalmente pelo judaísmo e islamismo, embora as próprias escrituras judaicas e islâmicas abram espaço para tal interpretação, o que confirmaria a realidade desta doutrina. Se abrirmos o leque de entendimento podemos confirmar esta doutrina com base nas próprias religiões pagãs antigas, visto que em todas elas está presente esta doutrina. Esta tabela mostra as trindades das principais religiões da história antiga.

As Trindades nas religiões antigas

Como podem ver a maioria dessas religiões não existem mais, muitas delas assim como suas seitas foram suprimidas pelo cristianismo em sua expansão, outras, foram destruídas ou aculturadas por outras civilizações e apenas duas, o Hinduísmo e o Zoroastrismo estão quase que exclusivamente presentes no território em que surgiram. Para entendermos porque a maioria dessas crenças foram extintas precisamos entender o contexto histórico que levou à absorção dessa doutrina pelo cristianismo.

A formação da Trindade no cristianismo

Como sabemos na época de formação do cristianismo existiam muitas religiões no Império Romano. Dentre elas a religião egípcia, a religião greco-romana e o Mitraísmo. Como vimos em todas estas religiões está presente a doutrina da trindade. O cristianismo aos poucos foi deixando de ser mais uma das seitas judaicas como os essênios e nazarenos para firmar-se como a religião oficial do Império Romano. No princípio o cristianismo tentava seguir ao máximo os preceitos do judaísmo, mas após a elaboração de uma doutrina excepcional por Paulo de Tarso, judeu e soldado romano, fica claro o porquê de uma absorção teológica por parte do cristianismo. Sendo soldado romano, Paulo vivia sob a cultura romana, ou seja, em constante contato com as demais religiões.

Com sua conversão para o cristianismo era inevitável uma desligação total dos preceitos das antigas religiões. Com isso, na elaboração da nova doutrina (afinal, Paulo fez uma releitura do judaísmo encaixando Jesus no contexto do Antigo Testamento segundo a sua perspectiva, afinal, a base de interpretação do cristianismo e do Novo Testamento tem as cartas de Paulo) a seita cristã adquiriu aspectos pagãos. Isto é confirmado pelo próprio Judaísmo uma vez que a crença judaica não possui uma trindade, visto que para os judeus Deus é um só, e a própria concepção de Espírito Santo possui uma outra conotação, o que impediria a formação de uma trindade. Entretanto os bispos reunidos no Concílio de Nicéia achariam uma brecha teológica Judaísmo para justificar a doutrina da trindade. A mesma brecha pode ser achada no Islã como veremos mais a frente.

Com o Edito de Milão o cristianismo deixou de ser perseguido e finalmente com a oficialização da Igreja como religião do Estado, as outras religiões foram proibidas. Como uma religião não se acaba de uma hora para outra, houve uma absorção dos preceitos das diversas religiões dentro do Cristianismo. No Concílio de Nicéia foram formuladas as diversas doutrinas do cristianismo inclusive a da trindade, visto que tendo Jesus vindo do Judaísmo não teria possibilidade dessa doutrina ter vindo originalmente da religião judaica. Assim fica clara a absorção da doutrina da trindade das outras religiões. Entretanto uma doutrina não pode ser colocada do nada numa religião sem uma justificativa, e essa justificativa para a doutrina da trindade está dentro da própria Bíblia como veremos a seguir.

A Trindade no Cristianismo

Para os cristãos, Deus é um só, dividido em três naturezas distintas. A primeira natureza é a de Deus Pai, aquele que cria e rege o Universo. Geralmente, a figura de Deus Pai é associada à imagem de Deus em sua plenitude. A segunda natureza é a de Deus Filho, aquele que vêm a Terra para salvar a humanidade. É o aspecto pessoal de Deus. A terceira natureza é a de Deus Espírito Santo, aquele que dá a vida e seus dons. É o aspecto de Deus como sendo presente no meio material. É representado por uma pomba.

No Judaísmo não há trindade, entretanto para os cristãos a primeira menção a trindade já está nas primeiras palavras do Gênese: “No princípio, Deus criou os céus e a terra.” – Gênesis 1:1. A palavra original em hebraico para Deus é Elohim. Entretanto a palavra Elohim é uma palavra que indica o plural. Se levarmos ao pé da letra a tradução teremos: “No princípio, os Deuses criaram os céus e a terra". Aí temos duas inconsistência. A primeira: Um politeísmo. Alguns historiadores afirmam que no princípio, a crença judaica era politeísta, mas com a unificação das tribos houve a unificação da crença existindo um deus único que mais tarde os hebreus deram o nome de YHWH, ou seja, nome nenhum, visto que o tetragrama não tem tradução para o hebraico. Isto significaria que para não haver uma disputa de deuses, o nome de Deus seria impronunciável sendo chamado apenas de Senhor (Adonai). Até hoje não há tradução para o tetragrama sagrado, sendo para os judeus, um mistério de fé. Por isso a tradução para o português como Javé ou Jeová é errada.

Entretanto, para os cristãos, essa inconviniência é justificada pela doutrina da trindade. Para os cristãos, o caráter pluralista de Deus confirma a doutrina da trindade. Segundo os cristãos, no versículo “Então Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança.” – Gênesis 1:26, Deus está presente como sendo trino. Em diversos outros versículos Deus se apresenta como plural. E no Novo Testamento, durante o batismo de Jesus temos a figura da trindade: “Depois que Jesus foi batizado, saiu logo da água. Eis que os céus se abriram e viu descer sobre ele, em forma de pomba, o Espírito de Deus. E do céu baixou uma voz: Eis meu Filho muito amado em quem ponho minha afeição.” – Mateus 3:16,17. Nesta cena temos presente o Pai com a voz de Deus, o Filho com a figura de Jesus e o Espírito Santo com a pomba. Entretanto para os judeus isto é um equívoco, ainda mais, uma heresia.

A Trindade no Judaísmo

A Torah, ou “Lei” em hebraico é a Bíblia judaica, nela estão presentes os cinco primeiros livros da Bíblia cristã e entre eles está o Gênesis, ou Bereshit em hebraico que significa “No princípio”, visto que essas são as palavras de abertura do livro. Como vimos, logo no começo do Gênesis Deus se apresenta como sendo plural, sendo trino ou como vários deuses distintos. Isso confirmariam a doutrina da trindade dentro do próprio judaísmo, entretanto os judeus refutam a doutrina utilizando-se de outros trechos das escrituras. Vários trechos negam a trindade como “Eu sou o primeiro e eu sou o último. Fora de mim não há Deus.” - Isaías 44:6, Deus define-se no tempo e no espaço. Para os cristãos, Deus estava falando em sua totalidade, entretanto temos mais a frente a famosa lei dos 10 Mandamentos “Não terás outros deuses diante de Mim”. - Êxodo 20:3 em que Deus fala plenamente singular, onde a palavra Elohim não aparece.

Outro fato os judeus se utilizam para negar a trindade é o conceito de Espírito Santo. A palavra original em hebraico é Ruach HaKodesh que é traduzido literalmente como Espírito Santo. Entretanto o termo Ruach HaKodesh significa “inspiração”, que é uma das qualidades do Espírito Santo segundo o cristianismo. A inspiração é ligada à mente visto que todas as ações humanas provém dela. Curiosamente o termo hebraico para espírito é Ruwach que também significa “inspiração”, ou “fôlego”. Ora, sendo o espírito a inspiração vinda da mente, logo o espírito é a mente. A essência do ser humano. Então o Espírito Santo seria a mente de Deus. Deus como um ser pensante, assim como o homem, por isto ele nos fez “segundo a sua imagem e semelhança”. Esta é uma das explicações dadas por alguns segmentos religiosos cristãos como os Adventistas, que negam a doutrina da trindade, visto que Deus Pai e o Espírito Santo seriam uma coisa só.

Mas sendo Deus Pai e o Espírito Santo, como poderia o Filho provir deles? Para os cristãos Jesus é uma encarnação de Deus, mas levando em conta o contexto da palavra espírito, Jesus seria Deus encarnado em sua mente, ou seja, Jesus seria um ser humano inspirado pela mente de Deus ou vontade de Deus assim como um profeta. Esta é a visão muçulmana que diz que Jesus estava sob a Vontade de Deus, ou seja, ele era um muçulmano, aquele que se submete à Vontade de Deus, não como um escravo, mas como alguém consciente que assume uma missão. Entretanto, mesmo negando, o conceito de trindade assim como o Judaísmo, a mesma também se faz presente no Islamismo.

A Trindade no Islamismo

Embora neguem a trindade, a mesma se faz presente no Islã, mais precisamente em trechos do Corão. Sob os mesmos aspectos apresentados no Gênesis temos: “E o atendemos e o agraciamos com Yahia (João), e curamos sua mulher (de esterilidade); um procurava sobrepujar o outro nas boas ações, recorrendo a Nós com afeição e temor, e sendo humildes a Nós.” - Alcorão 19:12. E ainda mais a frente: “Ó humanos, em verdade, Nós vos criamos de macho e fêmea e vos dividimos em povos e tribos, para reconhecerdes uns aos outros. Sabei que o mais honrado, dentre vós, ante Deus, é o mais temente. Sabei que Deus é Sapientíssimo e está bem inteirado.” - Alcorão 49:13.

Para os muçulmanos esta passagem tem a mesma explicação do judaísmo, visto que a palavra Allah vem do hebraico El Ellah, ou Elohim. Allah significa Deus em árabe e assim como a palavra Elohim ela é flexionada no plural. Com isso, temos uma menção a um Deus plural, ou vários deuses. Mas visto que Deus é tido como único no Islã temos uma interpretação onde Deus é um só, mas manifesta-se através dos profetas, por isso, o caráter plural, onde Deus compartilha sua natureza com os homens. É tanto que a Essência de Deus é comungada com os homens segundo os Sufis, um segmento religioso do Islã que prega que através da mente podemos nos unir com Deus (misticismo Islâmico). Esta visão mística também é compartilhada pela Kabbalah judaica. Curiosamente essa mesma visão de comunhão entre Deus e os homens por meio da mente é a essência dos ensinamentos orientais, mais precisamente com o Budismo e o Hinduísmo como veremos nos próximos capítulos. Este é o ponto de encontro entre a espiritualidade ocidental e oriental.

A Trindade no Hinduísmo e Budismo

Para o hinduísmo, Deus é único, não existe outro além Dele. Ele está no Universo e em todas as coisas criada por Ele, pois assim Deus pode ser onipresente e manifestar-se em todo o Universo. Mas Ele não se limita ao Universo. O título que se dá a Deus em sua forma impessoal no hinduísmo é Brahman, que significa "O Princípio Absoluto". Deus também é designado como sendo o Om, o mantra "AUM". Essa sílaba faz relação às três naturezas de Deus como Criador, Conservador e Renovador (Pai, Filho e Espírito Santo), uma espécie de "Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo" que os católicos dizem antes de qualquer oração, neste caso, os hindus que a utilizam antes de qualquer oração ou invocação.

Assim como o cristianismo, o hinduísmo possui uma trindade aonde Deus é um só, mas possui três naturezas. Brahma, ou o "Pai Criador" é a primeira natureza da Trindade hindu chamada "Trimurti". A segunda natureza é Vishnu, o "Filho Conservador" que vem a Terra salvar os homens. Ele encarna de tempos toda vez que os homens esquecem a mensagem de Deus. E a terceira natureza é Shiva, o "Espírito Santo Renovador", Ele é que dá sabedoria aos homens e os renova por meio da “destruição” da velha consciência e a ressurreição com uma nova. Essa trindade mostra que Deus também segue o ciclo da vida criando, mantendo, e renovando a vida. No hinduísmo Deus é "Absoluto" ou seja, "Perfeito". E como um ser perfeito ele precisa ser simétrico, por isso, cada natureza masculina possui seu oposto feminino com as mesmas funções das masculinas. A Trimurti feminina é composta por Saraswati, a "Consorte do Pai Criador", Lakshmi, a "Consorte do Filho Conservador" e Parvati, a "Consorte do Espírito Santo Renovador". Assim com essa Trimurti Feminina, as três naturezas de Deus ficam em equilíbrio.

Tanto no Cristianismo quanto no Hinduísmo, o significado palavra "Filho" quer dizer "Aquele que vem sob a forma de". Shiva e Parvati possuem um Filho, Ganesha, o Elefante. Como Shiva é o Espírito Santo, Ganesha é o Espírito Santo que vem sob a forma de um Elefante, enquanto que no Cristianismo, o Espírito Santo vem sob a forma de uma pomba. Por isso o Elefante é considerado um animal sagrado na Índia. Curiosamente, Maya, a mãe de Buda durante a revelação que seria mãe do Deus sonhou com um Elefante branco. Como já vimos sendo o elefante é o símbolo de Ganesha, filho de Shiva que é o Espírito Santo temos a simbologia onde Maya foi visitada pelo Espírito Santo na sua forma terrena sendo assim, fecundada pelo mesmo dando a luz a Buda, o Senhor do mundo. Mais a frente na biografia do Iluminado temos mais um simbolismo onde após atingir a Iluminação após a tentação, uma Naja gigante repousa sobre a cabeça do santo. Retomando a figura de Shiva, a Naja é um dos símbolos do Espírito Santo hindu, sendo um símbolo da sabedoria. Com isso temos a metáfora que a sabedoria do Espírito Santo de Deus repousou sobre Sidharta.

Logo é errado dizer que o budismo é uma religião atéia, visto que o próprio Buda fala de Deus como um ser real como veremos mais a frente. Por vir do Hinduísmo, o Budismo tem que por regra, absorver aspectos da sua religião precursora, onde o processo de aculturação é inevitável e claro. Com isso temos a figura divina do Buda, a descida de Deus a Terra e o caráter mítico e messiânico da religião. É impossível que uma religião não possua esses elementos, mesmo que estejam presentes implicitamente.

A Trindade Greco-Romana

Uma trindade curiosa é a trindade greco-romana. Ela é composta por Zeus (Júpiter), Athena (Minerva), e Hera (Juno). Antes de mais nada, devemos entender o porquê de Zeus ser não só o rei dos deuses como o próprio o Pai. Segundo a mitologia grega Zeus era filho de Cronos (o Tempo) e Réia. Antes Cronos devorava seus filhos, para que não tomassem seu lugar como Senhor do Universo. Pois bem, Réia teve mais seis filhos dos quais cinco foram devorados, menos um, Zeus que ela escondeu de Cronos. Muito tempo se passou, até que Zeus matou Cronos e expulsou Réia mandando-os para a Terra. Então Zeus assumiu o lugar de rei dos deuses e como venceu Cronos (Tempo) virou imortal junto com todos os outros deuses. Mas então Zeus foi criado? Não. Quando dizemos que Cronos e Réia foram seus pais e que Zeus os venceu, quer dizer que Zeus virou eterno, Senhor do Tempo e da Existência, ele sempre existiu, mesmo antes de Cronos. Assim, Zeus está além do tempo, sendo este, reservado aos mortais e assim como a todo o resto do Universo.

Os 6 filhos de Cronos eram: Zeus (Pai dos deuses e dos homens), Deméter (Deusa da Natureza), Hades (Deus do Mundo dos Mortos, não necessariamente o inferno), Hera (Deusa do Nascimento), Héstia (Deusa do Fogo) e Poseidon (Deus das Águas). Muitos pensam que esses 6 deuses são deuses distintos, mas não são. Podemos ver claramente uma completude como vemos no caso da Trimurti hindu. Sendo Zeus o deus da criação, da vida, sua contraparte é Poseidon, deus das águas, visto que toda a vida surgiu das águas. Sendo Deméter a deusa da natureza, ela está responsável pela manutenção da criação e acolhimento da vida, enquanto Hades, deus dos mortos está ligado ao acolhimento da morte. E sendo Hera a deusa do nascimento, sua contraparte é Héstia, visto que ela como sendo deusa do fogo, tem o poder de renovar a criação assim como o nascimento. A religião grego-romana em sua essência não é politeísta, visto que Deus representa o Universo em sua totalidade, podemos dizer que Deus na mitologia grega é o panteísmo. Uma famosa frase de Pitágoras exprime isso quando ele diz “Deus é um em muitos”. Vários filósofos e pensadores gregos falam em Deus como sendo um e não muitos, pois tudo o que existe tem uma essência comum, e se os deuses existem, é porque houve uma origem divina. Mas onde entra a trindade?

Como podem ver, a trindade greco-romana tem um paralelismo com a hindu, visto que as naturezas de Deus se equilibram em duas trindade complementares a fim de manter o caráter de perfeição. Mesmo tendo este caráter múltiplo, na verdade só existe uma trindade. Segundo a mitologia grega Zeus é casando-se com Hera (união do Pai com o Espírito Santo) tive uma filha: Athena (Minerva). Essa união dos três deuses também remete à trindade hindu uma vez que Zeus cumpre o papel de criador, Athena de conservadora da criação e Hera de geradora da vida, ou renovadora. Esta é de fato a representação oficial da trindade na religião greco-romana.

A Trindade no Zoroastrismo

A Trindade no Zoroastrismo é composta pelo Deus criador Ahura-Mazda, o Saoshyant, representado pela figura de Mithra e Vohu Mano, o Espírito de Ahura-Mazda. Ahura-Mazda significa o Grande Senhor em persa antigo. Segundo a mitologia zoroastra, foi ele que criou todo o universo. Para manter o Universo em harmonia, ele manda o Saoshyant, o Messias salvador que tem por missão conduzir a humanidade à salvação. A palavra Saoshyant significa “Aquele que trás a Boa Nova”. Para o zoroastrismo, o Saoshyant vem à terra de tempos em tempos. Uma dessas encarnações é a do deus Mithra. Novamente temos uma alusão à Trimurti. Junto com Ahura-Mazda e o Saoshyant há Vohu Mano, ou a “Santa Mente”. Ora, não preciso dizer mais nada. Retomando a conotação da palavra espírito no judaísmo e a concepção do que seria o Espírito Santo, temos que Vohu Mano é a mente de Ahura-Mazda, seu Espírito Santo.

Em uma das diversas narrativas do Zoroastrismo uma chama atenção. Durante um momento de meditação numa caverna Zaratustra tem uma revelação onde Vohu Mano lhe aparece dizendo: “Zaratustra, tu que questionas sobre as coisas criação, receberá de Ahura-Mazda as respostas, pois Deus o escolheu para partilhar com os homens a sua sabedoria. Você irá anunciar a Sua mensagem libertadora aos homens”. Assustado, Zaratustra respondeu: “Por que eu? Não sou poderoso e nem tenho recursos!". Entretanto Vohu Mano disse: “Você tem tudo o que precisa, o que todos igualmente têm: Bons pensamentos, boas palavras e boas ações. Tú és o escolhido de Deus. Agora vai!”. Se trocassemos os nomes Zaratustra por Moisés e Vohu Mano por Elohim teríamos a mesma cena. Está clara a relação entre a revelação de Deus a Moisés e a Zaratustra. Com Moisés, aconteceu a mesma coisa, visto que Deus se manifestou para ele em Espírito (mente) inspirando-o à seguir em uma missão. A mesma coisa com Zaratustra. Por isso temos Vohu Mano como sendo o Espírito de Ahura-Mazda, Deus.

Depois dessas reflexões chegamos a duas conclusões. A primeira é que se formos considerar apenas a essência das religiões monoteístas como o Judaísmo de onde veio o cristianismo, realmente não há uma trindade de um só Deus. Entretanto devemos ter em mente que antes de ser algo concreto, a religião lida com o metafísico tendo seu entendimento via filosofia, não ao pé da letra. Se formos ver pelo lado filosófico, há uma trindade sim, visto que Deus manifesta-se em Espírito (mente) dentro do enviado estando o Messias em comunhão com a Mente de Deus, para assim transmitir Sua mensagem aos homens. Deus como sendo impessoal não pode gerar um Filho material, entretanto ele pode gerar um filho espiritual que serve de elo entre Ele e os homens. O caminho. Quando Jesus falava ser uno com Deus e como consequência, Seu Espírito, falava estar em unidade com a Mente de Deus, para poder cumprir Sua Vontade, assim como os diversos enviados.





O curioso Hanina ben Dosa

Hanina ben Dosa foi um carismático Galileu do século I. d.c que viveu na cidade de Arab / Arava, ou Gabara, a cerca de 19 quilômetros ao norte de Nazaré. Era um contemporâneo mais jovem de Jesus de Narazé, e a literatura rabínica o apresenta como um pupilo de Iohanã bem Zacai, o líder espiritual de Arav por 18 anos de acordo com a tradição talmúdica.

Nada se sabe sobre o histórico familiar de Hanina. O nome grego seu pai, Dosa, redução de Dositeu, era usado normalmente por rabinos, de modo que isso não necessariamente indica uma cultura helênica. Hanina não está ligado a qualquer acontecimento histórico datável, mas temos provas circunstanciais suficientes para situá-lo no século I d.c., e provavelmente no príodo anterior a 70. Ele está ligado a três personagens importantes: Iohanã ben Zacai durante o período de sua carreira na Galiléia; Neuniá, um funcionário do templo, portanto, por definição, um personagem anterior a 70; e Gamaliel. Se esse Gamaliel for Gamaliel, o Velho, professor de São Paulo, mais uma vez estamos antes da queda de Jerusalém. Seja como for, não há nada registrado sobre Hanina que exija uma data posterior a destruição do Templo.

Embora a tradição talmúdica posterior retrate Hanina como um pleno realizador de milagres, a descrição inicial dos rabinos o representa como um homem de impressionante devoção, um hasside com um talento extraordinário para a cura. Sua fé era baseada em uma absoluta concentração na oração. Dizia-se que nem a chegada de um rei ou a presença de uma cobra podia perturbar sua devoção. De acordo com a história contada sobre Hanina, ele continuou a orar sem ser ferido mesmo depois de uma serpente tê-lo mordido.

Na verdade, foi à serpente que morreu. Essa história originou o provérbio “lamente pelo homem que foi mordido por uma serpente, mas lamente pela serpente que mordeu Hanina ben Dosa” (Mishnah Berakhot 5:1; Tosephta Berakhot 2:20; Talmude de Jerusalém Berakhot 9a; Talmude Babilônico Berakhot 33a).

Sua reputação como curandeiro espiritual era tão alta que mesmo os líderes do farisaísmo do século I d.c teriam solicitado sua ajuda. Ele curou o filho de seu antigo mestre, Iohanã ben Zacai, fazendo seu pedido a deus em uma posição de oração mística com a cabeça apertada entre os joelhos, imitação do milagreiro profeta Elias. Em outra história, Gamaliel, provavelmente o Velho, enviou dois de seus discípulos de Jerusalém para a distante Galiléia a fim de pedir a intercessão de Hanina em benefício de seu filho doente. Hanina conseguiu a cura in absertia mesmo antes de ser ouvido o pedido de Gamaliel transmitido por seus enviados:

Acontece que, quando o filho de Gamaliel caiu doente, ele mandou dois pupilos a Hanina ben Dosa para que orasse pelo filho. Quando os viu, Hanina foi para o quarto de cima e orou. Ao descer, disse-lhes: “Partam, pois a febre o deixou.” Perguntaram ele: “Você é um profeta?” Ele respondeu: “Eu não sou profeta, nem sou filho de profeta, mas é assim que sou atendido. Se minha oração é fluente em minha boca, eu sei que o doente é atendido; se não, eu sei que sua doença é fatal.” Os pupilos de Gamaliel se sentaram e anotaram a hora. Quando voltaram, Gamaliel lhes disse: Pelos céus, vocês nem diminuíram nem aumentaram, foi assim mesmo que aconteceu. Foi nessa hora que a febre o deixou e ele nos pediu água pra beber” (Talmude Babilônico de Berakhot 34b, Talmude de Jerusalém Berakhot 9d).

Hanina também era conhecido como um homem que controlava demônios, incluindo a rainha dos espíritos maléficos, Ágrate, filha de Málate, e, como Honi e seus netos, Hanã e Abba Hilquiá, tinha a reputação de fazer chover. Seus contemporâneos acreditavam que ele tinha devolvido a fertilidade à natureza, e o honravam como alguém que tinha resgatado a humanidade. De acordo com a lenda rabínica, Hanina foi festejado como um “filho de Deus” com uma voz celestial proclamando diariamente:

“Todo o universo é mantido graças a meu filho Hanina”. (Talmude Babilônico Taanit 24b) A especulação religiosa foi ainda mais longe, afirmando que o mundo, e mesmo o mundo futuro, tinha sido criado por causa de Hanina ben Dosa (Talmude Babilônico Berakhot 61b), e que por causa de seus méritos o favor de Deus tinha sido concedido a todos os seus contemporâneos (Talmude Babilônico Hagigah 14a).Homem que vivia na mais completa miséria, Hanina era mais um milagreiro que um professor, e quando morreu os “homens de [maravilhosas] obras” desapareceram, de acordo com a mixná (Mishnah Sotah 9:15). Apenas alguns poucos de seus ditos sobreviveram. Ele exaltava o medo do pecado e as realizações devotas mais que as palavras de sabedoria, e pregava a gentileza para com as pessoas, pois “qualquer homem com quem os homens estão satisfeitos, Deus está satisfeito com ele” (Mishnah Abot 3:9-12).

Muitas das características de Hanina ben Dosa lembram as de Jesus, embora em menor escala. Especialmente a cura do filho de gamaliel faz recordar a cura à distância do servo do centurião Cafarnaum. A superioridade de Hanina em relação aos demônios é comparável ao retrato de Jesus como exorcista. Sua história com a serpente faz recordar um dos ditos de Jesus! “Dei-lhes o poder de pisar serpentes (...) e nada poderá lhes causar dano” (Lc 10,19). Mais interessante ainda, a voz celestial chamando Jesus, Hanina e outros, como o rabino Meir, de “meu filho”, dá uma excelente visão da utilização metafórica original do conceito de “filho de Deus” no pensamento religioso judaico-palestino.

Pelo lado negativo, representantes do judaísmo convencional tentaram procurar defeitos no comportamento heterodoxo de um carismático. Hanina foi criticado por negligenciar suas obrigações rituais, por se comportar inconvenientemente para um homem de Deus, como andar só pela rua à noite. Seu anúncio de uma cura à distância provocou a pergunta sarcástica: “Você é profeta?” E o efeito milagroso de sua oração foi atribuído aos méritos de Abraão, Issac e Jacó.No todo, o relato de Hanina ben Dosa lança uma luz valiosa sobre o retrato de Jesus nos Evangelhos e sobre as linhas de desenvolvimento teológico inicial do judeu-cristianismo palestino.


O Jesus Oculto

Apesar de existir um imenso debate sobre a interpretação dos evangelhos apócrifos encontrados, na sua grande maioria, em 1945, em Nag Hammadi (no Egito), poucas pessoas tiveram tempo de entender o que acontece de fato no meio religioso.

Novas interpretações de uma descoberta de cinco décadas atrás estão questionando dogmas de fé do catolicismo, como a existência do pecado original, e até confirmando outros, como o da assunção de Maria aos céus, narrada com detalhes nos evangelhos apócrifos que tratam sobre a mãe de Deus. Ela aparece nos textos não como intercessora, mas como apóstola de seu filho e liderança no cristianismo. A leitura de gênero aplicada nos apócrifos evidencia a disputa de poder entre Pedro e Madalena. Esta última não é vista como prostituta, mas apóstola e amada de Jesus. Outra revelação é a de Jesus Cristo como líder político – uma nova imagem tão forte quanto a propagada pela igreja como homem místico com seus poderes de filho de Deus. Segundo o apócrifo de Tomé, Cristo era revolucionário político.

Estes evangelhos, em parte, estão no Vaticano e apenas estudiosos do assunto têm o direito da consulta completa. Na internet proliferam interpretações dos textos que tratam dos apócrifos. Se existe polêmica em religião, esta é a maior delas. Frei Jacir de Freitas Faria, que estudou no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, informa ao Diário da Manhã que estes textos datam do ano 50 d.C até século VI e VII. “Eles ficaram escondidos por muito tempo. A igreja mandou para a fogueira esses textos por considerá-los heréticos, não aptos para a fé cristã”, diz frei Jacir.

O estudo consiste num comentário aos evangelhos de Madalena e Tomé e na apresentação da história de Maria, a mãe de Jesus, de José e da infância de Jesus nos apócrifos. Jacir é um dos maiores pesquisadores sobre o tema no país. Para ele, o assunto fascina, pois inverte muitos aspectos tidos como certos ao longo do cristianismo.

Ele indica que a forma com que a tradição cristã tratou Madalena está toda equivocada. “A interpretação feita pela Igreja de Lc 7, 36-50, que identificou a pecadora citada como sendo Maria Madalena, fez dela uma prostituta. Fato que ninguém mais ousou duvidar”, diz. No evangelho de Madalena e em outros apócrifos, ela é apresentada como liderança forte e que ameaçava Pedro ao ponto dele tramar contra ela, pedindo a Jesus que a expulsasse do grupo dos apóstolos. “Com a divulgação destes evangelhos, é possível perceber também um outro perfil de Pedro, um homem misógino, machista”, diz o frei.

A pesquisa de frei Jacir retorna aos primórdios do cristianismo. Desvenda uma época pré-igreja Católica, pois mostra as origens dos seguidores de Cristo e o modo como entenderam Jesus e sua mensagem. O que temos na Bíblia é a versão que se tornou oficial, canônica. O teólogo Antônio Maria diz que conhece os evangelhos narrados pelo frei Jacir, mas prefere acreditar na Bíblia tradicional. “Nada impede de se discutir estes temas, mas o mais valioso, com certeza, se encontra na Bíblia”, diz o pesquisador goiano.

Jacir explica que não existiu um só cristianismo. Ou seja, não existiu apenas uma versão dos fatos daquele período. A importância de saber que existiam diversos seguidores de Cristo ajuda a entender como uma única visão integrada surgiu. Com estas pesquisas pode-se descobrir que a Igreja dos séculos que se seguiram aos fatos narrados com Jesus acabou escolhendo uma verdade em seu interior, a que adequava aos seus objetivos. “Podemos falar de vários cristianismos, aquele da comunidade de Marcos, de Mateus, de Lucas, de João, de Tiago, irmão de Jesus, de Maria Madalena, de Tomé, de Paulo, dos Atos dos apóstolos”, afirma.

Cada comunidade deu o seu tom ao seu escrito. Mateus enfocou o lado judeu de Jesus. Marcos, o Jesus missionário; Lucas, o Jesus salvador da humanidade; Atos dos Apóstolos, o Jesus da apostolicidade; Paulo, o Jesus ressuscitado. Maria Madalena procurou traçar o perfil de Jesus ressuscitado, humano e revelador de ensinamentos divinos. Tomé revelou o Jesus judeu revolucionário, anti-romano e místico. Tiago, o irmão de Jesus, anunciou o Cristo revolucionário, mas foi abafado.

O cristianismo subseqüente, mesmo sendo perseguido por Roma, foi se adequando ao império. O gnosticismo, outra corrente de pensamento nas origens do cristianismo, considerada herética, resistiu à institucionalização da religião. O cristianismo, que deu o tom aos ensinamentos vindouros sobre Cristo, foi o da apostolicidade, liderado por homens que impediram a liderança das mulheres. Isso não acontecia com grupos gnósticos, onde as mulheres eram mestras, profetisas e sacerdotisas. Houve disputas teologais entre os primeiros cristãos.

“Apontadas como heresia, as idéias de grupos, como os Gnósticos e Docetas, foram expulsas do cristianismo. Esses grupos criaram uma literatura alternativa, a apócrifa. Os gnósticos acreditavam que a salvação estava no conhecimento de Deus e em si mesmo e que não era necessário uma hierarquia eclesial para chegar a Deus. Cada um pode percorrer o seu caminho de Salvação. Isso criou problemas."

Assim, as narrativas que falam de Jesus e do nascimento dos cristianismos são relatos sobre como os cristãos, judeus e não-judeus entendiam Jesus. Os relatos bíblicos são narrativas primeiro repassadas de forma oral. Pelos estudos de frei Jacir e outros estudiosos da religião, é possível identificar como chega até nós uma Bíblia que muito bem poderia ter outro conteúdo. Jacir afirma que o estudo desses evangelhos suscita opiniões divergentes entre os estudiosos.

Existe uma corrente que defende a falsidade destes textos, os quais foram escritos por pessoas não confiáveis – e que por isso exageraram nas narrativas ou escreveram ‘verdades’ não-inspiradas. Outros, no qual ele se inclui, defendem que esses textos devem ser estudos de modo crítico e ecumênico. Respeitar a diversidade de pensamento na origem do cristianismo é um caminho salutar. Isso não significa, explica Jacir, proclamar a inspiração desses textos, mas dialogar com eles e descobrir, por exemplo, que a mulher tinha papel importante no início do cristianismo, que Deus era visto com Pai e Mãe, mas vingou a idéia de Deus-Pai.

Além disso, nascemos em estado de graça, sem pecado ‘original’. “Não há pecado! Somos nós que criamos o pecado, quando agimos conforme os hábitos de nossa natureza adultera”, diz, segundo o evangelho de Maria Madalena. “É bem certo que os exageros nos apócrifos devem ser compreendidos no contexto da piedade popular que queria enaltecer Jesus e seus seguidores”, afirma Frei Jacir.

Ideias adormecidas:
O que os apócrifos elucidam:

A partir do séc. III, Maria Madalena foi interpretada como prostituta, impura e pecadora. O que fez dela modelo para o cristianismo: a pecadora redimida, em contraposição a Maria, mãe de Jesus, virgem santa. Os apócrifos revelam que Maria Madalena era a mulher amada por Jesus e liderança apostólica. No texto apócrifo Pistis Sofia, ela conversa com Jesus e mostra ser sábia em seus apontamentos. No evangelho de Maria Madalena, após ter ouvido dela os ensinamentos de Jesus, Pedro questiona: ‘Será que nós devemos dar ouvidos ao que essa mulher diz? Devemos mudar nossos hábitos? Será que o Mestre a preferiu a nós?’ “Maria Madalena ameaçava a liderança dos homens. Fazer dela uma prostituta significou minimizar o seu papel de liderança no início do cristianismo, assim como tantas outras mulheres que caíram no ostracismo. Estudar os apócrifos é resgatar também o papel da mulher na primeira hora do cristianismo”, afirma Frei Jacir.

Jesus beijava Maria Madalena:
Segundo o apócrifo de Felipe, Jesus beijava Madalena na boca. Jacir afirma que os documentos pesquisados apontam para grande ciúme dos discípulos em relação a esse amor. E ainda explica que o beijo, na visão semita, tem sentido de comunicar o espírito, o saber. Por outro lado, concorda que Jesus poderia ter beijado Maria Madalena em outro sentido. “Onde está o problema?”, questiona Frei Jacir. Este seria, assim, um Jesus mais humano e, por isso, divino, afirma.

Pedro e as mulheres:
O líder maior nos textos canônicos é Pedro. Mas nos apócrifos, é visto como um homem que tem aversão às mulheres. “Não chega a ser uma questão de homossexualismo, mas de raiva, de ser intolerante com as mulheres”, afirma frei Jacir. No evangelho Pistis Sofia, Pedro fala com Cristo, pedindo a expulsão de Madalena. Para ele, Madalena conversava demais, impedindo que outros também falassem. Ela, por sua vez, diz a Cristo que também não mais suporta Pedro e que ele detesta o sexo oposto. O ódio de Pedro às mulheres é um dos pontos mais polêmicos dos novos estudos. No evangelho de Tomé, Jesus chega a dizer ironicamente a Pedro que faria Madalena transformar-se homem para que ela pudesse entrar no reino.

Não existe pecado:
O dogma de que os seres humanos já nascem com pecado original foi formado pela Igreja ao longo da história. O estudo desses textos indica que o homem nasce, de fato, puro. “Depois, com o tempo, conforme nossas práticas, é que chegamos a uma situação pecaminosa”, conta frei Jacir. Em uma conversa entre Madalena e Pedro, no Evangelho de Maria Madalena, que não está na Bíblia, ela diz que o Mestre revelou: “Não há pecado.” Além de não adotar o que diz Madalena, a Bíblia e a própria igreja insistiu muito no pecado moral, se esquecendo dos pecados sociais. “Somos nós que fazemos existir o pecado, quando agimos conforme a nossa natureza adúltera”, diz o evangelho de Maria Madalena. Entre os cristãos havia a discussão sobre o pecado. Mais tarde, a idéia do pecado original ganhou força de dogma de fé: quando uma pessoa nasce já estará concebida em pecado. “Os antigos até ensinavam que quando uma criança morria sem ser batizada, ela vomitaria o leite do pecado que a sua mãe lhe havia oferecido. Que absurdo! Uma criança não pode nascer em pecado. Ela é totalmente graça. Pecado original entendido desse jeito só pode ser original na cabeça de quem o inventou.

Tomé apresenta um Jesus revolucionário:
Nos evangelhos canônicos, Tomé é aquele que não acreditou, por não ter uma fé suficiente. Nos apócrifos, Tomé recebe ensinamentos secretos de Jesus e não os revela aos discípulos. Seu evangelho alternativo apócrifo traz duas novidades: a dimensão mística do cristão, influenciada pelo gnosticismo, e a visão revolucionária do projeto de Jesus. Por exemplo, a parábola do semeador também está em Tomé, mas não a sua interpretação, isto é, a alegoria.

Elohims unificados sob a figura de YHWH

A iconografia e representações não só de Jesus, mas também de Deus mostram claras referências à incorporação de elementos de outras religiões. Elas também fornecem pistas para traçarmos não só um perfil iconográfico, mas até mesmo psicológico podendo tirar conclusões nunca pensadas. Certas características descobertas em imagens e até imagens descorbertas revelam um Jesus muito diferente do Jesus judaico tradicional mostrado há séculos.

Desde que nascemos somos educados a termos uma visão poderosa de Deus, onde Ele é um velho que está no céu, sentado num trono governando o mundo. Curiosamente esta é a mesma imagem representativa de Zeus. Tendo em mente que não existia um conceito antropomórfico de Deus no judaísmo, até porque Deus não tinha forma, como consequência não tinha uma necessidade de representar Deus, até porque isso era proibido. Entretanto com a elaboração oficial do dogma da trindade no Concílio de Nicéia, houve a necessidade de traçar um perfil iconográfico do Deus cristão. Entretanto ninguém nunca o tinha visto na figura do Pai, sendo somente visto na figura de Jesus, o Filho, isso há 300 anos, assim como o Espírito Santo teria se manifestado na forma de uma pomba segundo os evangelhos.

Para unificar a crença, procuraram-se elementos comuns às religiões em relação à figura de Deus. O mais comum deles era o local aonde Deus se encontraria: Nos céus. Outro fator que era comum era o fato de Deus se encontrar sentado num trono, visto que o mesmo governava o Universo. Sendo visto como uma figura que governa, Ele deveria passar temor para as pessoas, por isso criou-se uma imagem de um Deus furioso. E como sendo eterno ele deveria ser representado como um velho. E assim fixou-se a imagem do Deus cristão: Um velho poderoso que mora acima dos céus e governa o Universo do seu trono. Curiosamente esta é a mesma imagem que temos de Zeus. E não é coincidência.

A figura mítica de Zeus foi justamente escolhida pelo fato dele ser o Deus mais comum nas religiões da sociedade romana visto que era sincretizado sob os mais diversos nomes: Júpiter, Osíris, Ahura-Mazda/ Ormuz, dentre outros. A figura irada de Zeus tomou a forma de Deus Pai cristão, que em vez de governar o mundo do Olimpo, governa dos céus. Em vez de raios sobre a terra, ele manda fogo e enxofre em Sodoma e Gomorra. Esta figura imponente de Deus sentado no seu trono também é encontrada na figura de Osíris e mais tarde na figura de Odin. Devido à semelhança iconográfica com o Pai dos deuses, Jesus também seria encaixado a essa imagem de Zeus todo-poderoso sentado no trono, sendo tido como o Rei Onipotente que governa todo o Universo.

Uma característica iconográfica muito peculiar no cristianismo é a presença de um “halo” luminoso na cabeça dos santos e também na de Jesus. Para os cristãos o “halo” simboliza a santidade e a sabedoria dos santos, visto que são “Iluminados” por Deus. Entretanto este mesmo “halo” é visto na representação de muitos deuses e a origem dessa característica iconográfica remete ao Egito Antigo. O círculo que ficava na cabeça dos deuses egípcios é chamado de “disco solar” e também simbolizava a sabedoria. O Sol era o símbolo de Rá, o Deus Sol, fonte da vida. Dele emanavam os outros deuses como Osíris, Hórus e Ísis. Assim, o disco solar representava o poder de Rá em cada natureza do deus, sendo ele Osíris, Hórus ou Ísis. Esta característica iconográfica também foi adotada pela religião mitráica e mais tarde transferida para o cristianismo.

É curioso que esta característica esteja presente desde a fundação da Igreja com o Império Bizantino, pois somente a partir dele temos as representações de Jesus e dos santos com o disco solar. Curiosamente os imperadores como Constantino também eram representados assim visto que o Imperador ainda era tido como um ser divino, herança do Império Romano. Esta identificação do Imperador como sendo divino veio do Egito Antigo, onde o Faraó não somente era tido como divino, mas como o próprio Hórus encarnado. Esta característica de Filho de Deus encarnado na figura do governante permaneceria até o início da Idade Moderna onde os reis absolutistas ainda eram vistos como enviados de Deus, quase rivais da figura de Jesus.

Algo curioso em relação aos santos é que os mártires só passaram a ser cultuados após a criação do Império Bizantino (justamente após cessar a perseguição a eles), como um pedido de desculpas aos mortos pelo Império Romano. Uma maneira de se fazer aceitar a romanização do cristianismo por parte dos cristãos que antes eram perseguidos. Outra característica curiosa é que no Império Romano, cada família possuía seu protetor ancestral, sendo cada ente da família após a sua morte,divinizado quase que como um deus. Eles eram objeto de culto onde seus parentes pediam proteção em rituais e procissões com a imagem do falecido onde a família lhe prestava homenagens. Com a adaptação das diversas religiões do Império para o cristianismo, os ancestrais viraram santos, tendo a sua divindade apenas abaixo da figura de Deus e Jesus. Devido à enorme quantidade de santos cultuados, mais tarde seriam definidas as condições de como uma pessoa se tornaria santa. Entretanto, as características de proteção e intercessão continuariam presentes na fé cristã.

No cristianismo serpente é tida como o símbolo do mal, de Satanás. Segundo a mitologia cristã, o mal tomou a forma da serpente e seduziu Eva para que fizesse Adão comer do fruto proibido. Pela a história a serpente tomou uma conotação negativa. Entretanto tudo isso tem um fundamento que se originou no começo da sociedade hebraica. Os hebreus viveram um tempo da sua história no cativeiro do Egito. Com a unificação das tribos e o Êxodo, formou-se por meio da unificação cultural uma identidade comum. Todos os Elohims foram unificados sob a figura de YHWH. E com o início da religião judaica várias imagens e simbolismos começaram a ser criados. Inclusive a imagem do mal, ou o opositor dos hebreus.

Ao escrever o Gênesis, os discípulos de Moisés (visto que os livros do Pentateuco só foram escritos após a morte de Moisés) encheram os livros de metáforas contextualizando a religião com a realidade em que viviam. Assim, vindos de um cativeiro, os hebreus personificaram o mal como sendo o Faraó, cujo símbolo era a serpente. Assim a serpente tomou uma conotação negativa por parte dos judeus. Entretanto mais a frente o próprio Deus destruiria essa imagem quando manda Moisés construir uma serpente de bronze para que todo aquele que olhasse para a imagem e rogasse a Deus, ficaria curado (Números 21:8-9). Mais tarde nos evangelhos Jesus se utiliza de uma metáfora que leva à outra reflexão sobre os ensinamentos de Jesus. Num evangelho apócrifo ele diz “Os fariseus e os escribas tiraram a chave do conhecimento e a ocultaram. Nem eles entraram nem permitiram entrar os que queriam entrar. Vós, porém, sede inteligentes como as serpentes e simples como as pombas” - Evangelho de Tomé N° 39.

Ora, como vimos a imagem da serpente como sendo símbolo da sabedoria vêm do oriente, tanto da Índia como do Egito Antigo. Isto nos mostra que Jesus não seguia um judaísmo puro como veremos isso mais a frente. Por falar nisso, temos outra característica iconográfica da figura de Jesus importada das outras religiões.

Uma característica quase despercebida nas imagens de Jesus é a posição em que as mãos do Messias cristão se encontram. Se notarem em todas as representações bizantinas, Jesus faz um gesto com as mãos como se estivesse abençoando. Esta imagem se chama Khristós Pantokrator que sigfinica “Cristo Todo-Poderoso” em grego. Nesta imagem Entretanto este gesto é mais que uma bênção, é uma invocação. Este símbolo pictórico se chama mudra sendo ele uma série de gestos originais do Hinduísmo e do Budismo. Os mudras possuem um significado profundamente espiritual. Para os hindus e budistas eles simbolizam um estado de busca ou realização de uma determinada consciência. Geralmente são usados para invocar o poder de Deus dentro da pessoa. Frequentemente Sidharta, o Buda, é representado fazendo um mudra em sua clássica posição de Lótus.
Esta representação está presente no cristianismo não por aculturação religiosa, mas por ser uma das características de Jesus. Um dos pontos mais polêmicos sobre a vida de Jesus, é o fato do mesmo possuir características doutrinárias e espirituais do oriente, mais precisamente da Índia. A razão de Jesus ser representado dessa maneira não é um simples empréstimo artístico, mas a realidade de um dos muitos aspectos ocultados da figura clássica do Cristo, devido à vontade da Igreja de definir uma imagem exclusiva de Jesus. Jesus se utilizava de mudras para invocar o poder de Deus assim como os indianos também se utilizavam desses gestos para os mesmos fins. Como vimos os elementos iconográficos cristãos não são originais sendo claramente absorvidos num processo de aculturação com a finalidade de criar uma nova doutrina unificando aspectos de diversas religiões sob um novo nome: Cristianismo.